ORIGEM

 

A PALAVRA E A TERRA

 

I

 

Aurinaciano

 

o corpo na pedra

a pedra na vida

a vida na forma

 

Aurinaciano

 

o desenho ocre

sobre o mais antigo

desenho pensado

 

Aurinaciano

 

touro de caverna

em pó de oligisto

lá onde eu existo

 

Auritabirano

 

II

 

Agora sabes que a fazenda

é mais vetusta que a raiz:

se uma estrutura se desvenda,

vem depois do depois, maís.

 

O que se libertou da história,

ei-lo se estira ao sol, feliz.

Já não lhe pesam os heróis

e, cavalhada morta, as ações.

Agora divisou a traça

preliminar a todo gesto.

Abre a primeiríssima porta,

era tudo um problema certo.

 

Uma construção sem barrotes,

o mugir de vaca no eterno;

era uma caçamba, o chicote,

o chão sim percutindo não.

Um eco à espera de um ão.

 

III

 


manténs vivas as coisas

nomeadas.


Que seria delas sem o apelo

à existência,

e quantas feneceram em sigilo

se a essência

é o nome, segredo egípcio que recolho

para gerir o mundo no meu verso?

para viver eu mesmo de palavra?

para vos ressuscitar a todos, mortos

esvaídos no espaço, nos compêndios?

 

IV

 

Açaí de terra firme

jurema branca esponjeira

bordão de velho borragem

taxi de flor amarela

ubim peúva do campo

caju manso mamão bravo

cachimbo de jabuti

e pau roxo de igapó

 

goiaba d’anta angelim

rajado burra leiteira

tamboril timbó cazumbra

malícia d’água mumbaca

mulatinho mulateiro

muirapixuna pau ferro

chapéu de napoleão

no capim de um só botão

 

sapopema erva de chumbo

mororozinho salvina

água redonda açucena

sete sangrias majuba

sapupira pitangueira

maria mole puruma

puruí rapé dos índios

coração de negro aipé

 

sebastião de arruda embira

pente de macaco preto

gonçalo alves zaranza

pacova cega machado

barriguda pacuíba

rabo de mucura sorva

cravo do mato xuru

morototó tarumã

 

junco popoca

junco popoca

 

biquipi biribá botão de ouro

 

V

 

Tudo é teu, que enuncias. Toda forma

nasce uma segunda vez e torna

infinitamente a nascer. O pó das coisas

ainda é um nascer em que bailam mésons.

E a palavra, um ser

esquecido de quem o criou; flutua,

reparte-se em signos — Pedro, Minas Gerais, beneditino —

para incluir-se no semblante do mundo.

O nome é bem mais do que nome: o além-da-coisa,

coisa livre de coisa, circulando.

E a terra, palavra espacial, tatuada de sonhos,

cálculos.

 

VI

 

Onde é Brasil?

Que verdura é amor?

Quando te condensas, atingindo

o ponto fora do tempo e da vida?

 

Que importa este lugar

se todo lugar

é ponto de ver e não de ser?

E esta hora, se toda hora

já se completa longe de si mesma

e te deixa mais longe da procura?

E apenas resta

um sistema de sons que vai guiando

o gosto de dizer e de sentir

a existência verbal

a eletrônica

e musical figuração das coisas?

 

 

MEMÓRIA

 

TERRAS

 

Serro Verde Serro Azul

As duas fazendas de meu pai

aonde nunca fui

Miragens tão próximas


pronunciar os nomes

era tocá-las

 

 

FAZENDA

 

Vejo o Retiro: suspiro

no vale fundo.

Retiro ficava longe

do oceanomundo.

Ninguém sabia da Rússia

com sua foice.

A morte escolhia a forma

breve de um coice.

Mulher, abundavam negras

socando milho.

Rês morta, urubus rasantes

logo em concílio.

O amor das éguas rinchava

no azul do pasto.

E criação e gente, em liga,

tudo era casto.

 

 

O MULADEIRO

 

José Catumbi

estava sempre chegando

da Mata.

O cheiro de tropa

crescia pelas botas acima.

O chapéu tocava o teto

da infância.

As cartas traziam

cordiais saudações.

 

José Catumbi

estava sempre partindo

no mapa de poeira.

Almoçava ruidoso,

os bigodes somavam-se de macarrão.

As bexigas

não sabiam sorrir.

As esporas tiniam

cordiais saudações.

 

 

O SÁTIRO

 

Hildebrando insaciável comedor de galinha.

Não as comia propriamente — à mesa.

Possuía-as como se possuem

e se matam mulheres.

 

Era mansueto e escrevente de cartório.

 

 

A SANTA

 

Sem nariz e fazia milagres.

 

Levávamos alimentos esmolas

deixávamos tudo na porta

mirávamos

petrificados.

 

Por que Deus é horrendo em seu amor?

 

 

VERMELHO

 

O frango degolado

e sua queixa rouca,

a rosa no ladrilho

hidráulico, formando-se,

o gosto ruim na boca

e uma trova mineira

abafando o escarlate

esvoaçar de penugem

saudosa de ser branca.

Pinga sangue na xícara:

a morte cozinheira.

 

 

ATO

 

O PADRE, A MOÇA

 

1. O padre furtou a moça, fugiu.

Pedras caem no padre, deslizam.

A moça grudou no padre, vira sombra,

aragem matinal soprando no padre.

Ninguém prende aqueles dois,

aquele um

negro amor de rendas brancas.

Lá vai o padre,

atravessa o Piauí, lá vai o padre,

bispos correm atrás, lá vai o padre,

lá vai o padre, a maldição monta cavalos telegráficos,

lá vai o padre lá vai o padre lá vai o padre,

diabo em forma de gente, sagrado.

 

Na capela ficou a ausência do padre

e celebra missa dentro do arcaz.

Longe o padre vai celebrando vai cantando

todo amor é o amor e ninguém sabe

onde Deus acaba e recomeça.

 

2. Forças volantes atacam o padre, quem disse

que exércitos vencem o padre? patrulhas

rendem-se.

O helicóptero

desenha no ar o triângulo santíssimo,

o padre recebe bênçãos animais, ternos relâmpagos

douram a face da moça.

E no alto da serra

o padre

entre as cordas da chuva

o padre

no arcano da moça

o padre.

 

Vamos cercá-lo, gente, em Goiás,

quem sabe se em Pernambuco?

Desceu o Tocantins, foi visto em Macapá Corumbá Jaraguá Pelotas

em pé no caminhão da BR-15 com seu rosário

na mão

lá vai o padre

lá vai

e a moça vai dentro dele, é reza de padre.

 

Ai que não podemos

contra vossos poderes

guerrear

ai que não ousamos

contra vossos mistérios

debater

ai que de todo não sentimos

contra vosso pecado

o fecundo terror da religião.

 

Perdoai-nos, padre, porque vos perseguimos.

 

3.E o padre não perdoa: lá vai

levando o Cristo e o Crime no alforje

e deixa marcas de sola na poeira.

Chagas se fecham, tocando-as,

filhos resultam de ventre estéril

mudos e árvores falam

tudo é testemunho.

Só um anjo de asas secas, voando de Crateús,

senta-se à beira-estrada e chora

porque Deus tomou o partido do padre.

 

Em cem léguas de sertão

é tudo estalar de joelhos

no chão,

é tudo implorar ao padre

que não leve outras meninas

para seu negro destino

ou que as leve tão de leve

que ninguém lhes sinta a falta,

amortalhadas, dispersas

na escureza da batina.

Quem tem sua filha moça

padece muito vexame;

contempla-se numa poça

de fel em cerca de arame.

 

Mas se foi Deus quem mandou?

Anhos imolados

não por sete alvas espadas,

mas por um dardo do céu:

que se libere esta presa

à sublime natureza

de Deus com fome de moça.

Padre, levai nossas filhas!

O vosso amor, padre, queima

como fogo de coivara

não saberia queimar.

E o padre, sem se render

ao ofertório das virgens,

lá vai, coisa preta no ar.

 

Onde pousa o padre

é Amor-de-Padre

onde bebe o padre

é Beijo-de-Padre

onde dorme o padre

é Noite-de-Padre

mil lugares-padre

ungem o Brasil

mapa vela acesa.

 

4.Mas o padre entristece. Tudo engoiva

em redor. Não, Deus é astúcia,

e, para maior pena, maior pompa.

Deus é espinho. E está fincado

no ponto mais suave deste amor.

 

Se toda a natureza vem a bodas,

e os homens se prosternam,

e a lei perde o sumo, o padre sabe

o que não sabemos nunca, o padre esgota

o amor humano.

 

A moça beija a febre do seu rosto.

Há um gládio brilhando na alta nuvem

que eram só carneirinhos há um instante

— Padre, me roubaste a donzelice

ou fui eu que te dei o que era dável?

Não fui eu que te amei como se ama

aquilo que é sublime e vem trazer-me,

rendido,

o que eu não merecia mas amava?

Padre, sou teu pecado, tua angústia?

Tua alma se escraviza à tua escrava?

És meu prisioneiro, estás fechado

em meu cofre de gozo e de extermínio,

e queres libertar-te? Padre, fala!

Ou antes, cala. Padre, não me digas

que no teu peito amor guerreia amor,

e que não escolheste para sempre.

 

5.Que repórteres são esses

entrevistando um silêncio?

O Correio, Globo, Estado,

Manchete, France-Presse, telef

otografando o invisível?

Quem alça

a cabeça pensa

e nas pupilas rastreia

uma luz de danação,

mas a luz fosforescente

responde não?

Quem roga ao padre que pose

e o padre posa e não sente

que está posando

entre secas oliveiras

de um jardim onde não chega

o retintim deste mundo?

E que vale uma entrevista

se o que não alcança a vista

nem a razão apreende

é a verdadeira notícia?

 

6.É meia-treva, e o Príncipe baixando

entre cactos

sem mover palavras fita o padre

na menina dos olhos ensombrada.

A um breve clarear,

o Príncipe, em toda a sua púrpura,

como só merecem defrontá-lo

os que ousaram um dia. Os dois se medem

na paisagem de couro e ossos

estudando-se.

O que um não diz outro pressente.

Nem desafio nem malícia

nem arrogância ou medo encouraçado:

o surdo entendimento dos poderes.

 

O padre já não pode ser tentado.

 

Há um solene torpor no tempo morto,

e, para além do pecado,

uma zona em que o ato é duramente

ato.

Em toda a sua púrpura

o Príncipe desintegra-se no ar.

 

7. Quando lhe falta o demônio

e Deus não o socorre;

quando o homem é apenas homem

por si mesmo limitado,

em si mesmo refletido;

e flutua

vazio de julgamento

no espaço sem raízes;

e perde o eco

de seu passado,

a companhia de seu presente,

a semente de seu futuro;

quando está propriamente nu;

e o jogo, feito

até a última cartada da última jogada.

Quando. Quando.

Quando.

 

8. Ao relento, no sílex da noite,

os corpos entrançados transfundidos

sorvem o mesmo sono de raízes

e é como se de sempre se soubessem

uma unidade errante a convocar-se

e a diluir-se mudamente.

Espaço sombra espaço infância espaço

e difusa nos dois a prima virgindade,

oclusa graça.

 

Mas de rompante a mão do padre sente

o vazio do ar onde boiava

a confiada morna ondulação.

A moça, madrugada, não existe.

O padre agarra a ausência e eis que um soluço

humano desumano e longiperto

trespassa a noitidão a céu aberto.

 

A chama galopante vai cobrindo

um tinido de freios mastigados

e de patas ferradas,

e em sete freguesias

passa e repassa a grande mula aflita.

 

Urro

de fera

fúria

de burrinha

grito

de remorso

choro de criança?

 

Por que Deus se diverte castigando?

Por que degrada o amor sem destruí-lo?

e a cabeça da mula sem cabeça

ainda é rosto de amor, onde em sigilo

a ternura defesa vai flutuando?

 

Um rosto de besta

e entre as ciências do padre

entre as poderosas rezas do padre

nenhuma para resgatá-lo.

Resta deitar a febre na pedra

e aguardar

o terceiro canto do galo.

 

No barro vermelho da alva

a mão descobre

o dormir de moça misturado

ao dormir de padre.

 

9.E já sem rumo prosseguem

na descrença de pousar,

clandestinos de navio

que deitou âncora no ar.

 

Já não se curvam fiéis

vendo o réprobo passar,

mas antes dedos em susto

implantam a cruz no ar.

 

A moça, o padre se fartam

da própria gula de amar.

O amor se vinga, consome-os,

laranja cortada no ar.

 

Ao fim da rota poeirenta

ouve-se a igreja cantar.

Mas cerraram-se-lhe as portas

e o sino entristece no ar.

 

O senhor bispo, chamado

com voz rouca de implorar,

trancou-se na sua Roma

de rocha, castelo de ar.

 

Entre pecado e pecado

há muito que epilogar.

Que venha o padre sozinho,

o resto se esfume no ar.

 

Padre e moça de tão juntos

não sabem se separar.

Passa o tempo do distinguo

entre duas nuvens no ar.

 

10.E de tanto fugir já fogem não dos outros

mas de sua mesma fuga a distraí-los.

Para mais longe, aonde não chegue

a ambição de chegar:

área vazia

no espaço vazio

sem uma linha

uma coroa

um D.

 

A gruta é grande

e chama por todos os ecos

organizados.

 

A gruta nem é negra

de tantos negrumes que se fundem

nos ângulos agudos:

a gruta é branca, e chama.

 

Entram curvos, como numa igreja

feita para fiéis ajoelhados.

Entram baixos

terreais

na posição dos mortos, quase.

 

A gruta é funda

a gruta é mais extensa do que a gruta

o padre sente a gruta e a gruta invade

a moça

a gruta se esparrama

sobre pena e universo e carnes frouxas

à maneira católica do sono.

 

Prismas de luz primeira despertando

de uma dobra qualquer de rocha mansa.

Cantar angélico subindo

em meio à cega fauna cavernícola

e dizendo de céus mais que cristãos

sobre o musgo, o calcário, o úmido medo

da condição vivente.

 

Que coros tão ardentes se desatam

em feixes de inefável claridade?

Que perdão mais solene se humaniza

e chega à aprovação e paira em bênção?

Que festiva paixão lança seu carro

de ouro e glória imperial para levá-los

à presença de Deus feita sorriso?

Que fumo de suave sacrifício

lhes afaga as narinas?

Que santidade súbita lhes corta

a respiração, com visitá-los?

Que esvair-se de males, que desfal

ecimentos teresinos?

Que sensação de vida triunfante

no empalidecer de humano sopro contingente?

 

Fora

ao crepitar da lenha pura

e medindo das chamas o declínio,

eis que perseguidores se persignam.

 

 

MASSACRE

 

Eram mil a atacar

o só objeto

indefensável

e pá e pé e ui

e vupt e rrr

e o riso passarola no ar

grasnando

e mil a espiar

os alfabetos purpúreos

desatando-se

sem rota

e llmn e nss e yn

eram mil a sentir

que a vida refugia

do ato de viver

e agora circulava

sobre toda ruína

 

 

OS DOIS VIGÁRIOS

 

Há cinquenta anos passados,

Padre Olímpio bendizia,

Padre Júlio fornicava.

E Padre Olímpio advertia

e Padre Júlio triscava.

Padre Júlio excomungava

quem se erguesse a censurá-lo

e Padre Olímpio em seu canto

antes de cantar o galo

pedia a Deus pelo homem.

Padre Júlio em seu jardim

colhia flor e mulher

num contentamento imundo.

Padre Olímpio suspirava,

Padre Júlio blasfemava.

Padre Olímpio, sem leitura

latina, sem ironia,

e Padre Júlio, criatura

de Ovídio, ria, atacava

a chã fortaleza do outro.

Padre Olímpio silenciava.

Padre Júlio perorava,

rascante e politiqueiro.

Padre Olímpio se omitia

e Padre Júlio raptava

mulher e filhos do próximo,

outros filhos aditava.

Padre Júlio responsava

os mortos pedindo contas

do mal que apenas pensaram

e desmontava filáucias

de altos brasões esboroados

entre moscas defuntórias.

Padre Olímpio respeitava

as classes depois de extintos

os sopros dos mais distintos

festeiros e imperadores.

Se Padre Olímpio perdoava,

Padre Júlio não cedia.

Padre Júlio foi ganhando

com o tempo cara diabólica

e em sua púrpura calva,

em seu mento proeminente,

ardiam brasas. E Padre

Olímpio se desolava

de ver um padre demente

e o Senhor atraiçoado.

E Padre Júlio oficiava

como oficia um demônio

sem que o escândalo esgarçasse

a santidade do ofício.

Padre Olímpio se doía,

muito se mortificava

que nenhum anjo surgisse

a consolá-lo em segredo:

“Olímpio, se é tudo um jogo

do céu com a terra, o desfecho

dorme entre véus de justiça.”

Padre Olímpio encanecia

e em sua estrita piedade,

em seu manso pastoreio,

não via, não discernia

a celeste preferência.

Seria por Padre Júlio?

Valorizava-se o inferno?

E sentindo-se culpado

de conceber turvamente

o augustíssimo pecado

atribuído ao Padre Eterno,

sofre-rezando sem tino

todo se penitenciava.

Em suas costas botava

os crimes de Padre Júlio,

refugando-lhe os prazeres.

Emagrecia, minguava,

sem ganhar forma de santo.

Seu corpo se recolhia

à própria sombra, no solo.

Padre Júlio coruscava,

ria, inflava, apostrofava.

Um pecava, outro pagava.

O povo ia desertando

a lição de Padre Olímpio.

Muito melhor escutava

de Padre Júlio as bocagens.

Dois raios, na mesma noite,

os dois padres fulminaram.

Padre Olímpio, Padre Júlio

iguaizinhos se tornaram:

onde o vício, onde a virtude,

ninguém mais o demarcava.

Enterrados lado a lado

irmanados confundidos,

dos dois padres consumidos

juliolímpio em terra neutra

uma flor nasce monótona

que não se sabe até hoje

(cinquenta anos se passaram)

se é de compaixão divina

ou divina indiferença.

 

 

REMATE

 

Volta o filho pródigo

à casa do pai

e o próprio pai é morto desde Adão.

Onde havia relógio

e cadeira de balanço

vacas estrumam a superfície.

O filho pródigo tateia

assobia fareja convoca

as dezoito razões de fuga

e nada mais vigora

nem soluça.

Ninguém recrimina

ou perdoa,

ninguém recebe.

Deixa de haver o havido

na ausência de fidelidade

e traição.

Jogada no esterco verde

a agulha de gramofone

varre de ópera o vazio.

O ex-filho pródigo

perde a razão de ser

e cospe

no ar estritamente seco.

 

 

LAVRA

 

DESTRUIÇÃO

 

Os amantes se amam cruelmente

e com se amarem tanto não se veem.

Um se beija no outro, refletido.

Dois amantes que são? Dois inimigos.

 

Amantes são meninos estragados

pelo mimo de amar: e não percebem

quanto se pulverizam no enlaçar-se,

e como o que era mundo volve a nada.

 

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma

que os passeia de leve, assim a cobra

se imprime na lembrança de seu trilho.

 

E eles quedam mordidos para sempre.

Deixaram de existir, mas o existido

continua a doer eternamente.

 

 

MINERAÇÃO DO OUTRO

 

Os cabelos ocultam a verdade.

Como saber, como gerir um corpo

alheio?

Os dias consumidos em sua lavra

significam o mesmo que estar morto.

 

Não o decifras, não, ao peito oferto,

monstruário de fomes enredadas,

ávidas de agressão, dormindo em concha.

Um toque, e eis que a blandícia erra em tormento,

e cada abraço tece além do braço

a teia de problemas que existir

na pele do existente vai gravando.

 

Viver-não, viver-sem, como viver

sem conviver, na praça de convites?

Onde avanço, me dou, e o que é sugado

ao mim de mim, em ecos se desmembra;

nem resta mais que indício,

pelos ares lavados,

do que era amor e, dor agora, é vício.

 

O corpo em si, mistério: o nu, cortina

de outro corpo, jamais apreendido,

assim como a palavra esconde outra

voz, prima e vera, ausente de sentido.

Amor é compromisso

com algo mais terrível do que amor?

— pergunta o amante curvo à noite cega,

e nada lhe responde, ante a magia:

arder a salamandra em chama fria.

 

 

AMAR-AMARO

 

Por que amou por que a!mou

se sabia

p r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o s

ternos ou

nesse museu do pardo indiferente

me diga: mas por que

amarsofrer talvezcomo se morre

de varíola voluntária vágula ev

idente?

 

ah PORQUEAMOU

e se queimou

todo por dentro por fora nos cantos nos ecos

lúgubres de você mesm(o,a)

irm(ã,o) retrato espéculo por que amou?

se era para

ou era por

como se entretanto todavia

toda vida mas toda vida

é indagação do achado e aguda espostejação

da carne do conhecimento, ora veja

 

permita cavalheir(o,a)

amig(o,a) me releve

este malestar

cantarino escarninho piedoso

este querer consolar sem muita convicção

o que é inconsolável de ofício

a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima

a vida também

 

tudo também

mas o amor car(o,a) colega este não consola nunca de núncaras.

 

 

COMPANHIA

 

ATAÍDE

 

Alferes de milícias Manuel da Costa Ataíde:

eu, paisano,

bato continência

em vossa admiração.

 

Há dois séculos menos um dia, contados na folhinha,

batizaram-vos na Sé da Cidade Mariana,

mas isso não teria importância nenhuma

se mais tarde não houvésseis olhado ali para o teto

e reparado na pintura de Manuel Rabelo de Sousa.

O rumo fora traçado.

Pintaríeis outras tábuas de outros tetos

ou mais precisamente

romperíeis o forro para a conversação radiante com Deus.

 

Alferes

que em São Francisco de Assis de Vila Rica

derramais sobre nós no azul-espaço

do teatro barroco do céu

o louvor cristalino coral orquestral dos serafins

à Senhora Nossa e dos Anjos;

repórter da Fuga e da Ceia,

testemunha do Poverello,

dono da luz e do verde-veronese,

inventor de cores insabidas,

a espalhar por vinte igrejas das Minas

“uma bonita, valente e espaçosa pintura”:

em vossa admiração

bato continência.

 

E porque

ao sairdes de vossa casinha da Rua Nova nos fundos do Carmo

encontro-vos sempre caminhando

mano a mano com o mestre mais velho Antônio Francisco Lisboa

e porque viveis os dois em comum o ato da imaginação

e em comum o fixais em matéria, numa cidade após outra,

porque soubestes amá-lo, ao difícil e raro Antônio Francisco,

e manifestais a arte de dois na unidade da criação,

bato continência

em vossa admiração.

 

 

MÁRIO LONGÍNQUO

 

No marfim de tua ausência

persevera o ensino cantante,

martelo

a vibrar no verso e na carta:

A própria dor é uma felicidade.

 

(O real, frente a frente,

de perfil ou de ponta-cabeça,

tal fruto gordo colhido

e triturado, transformado,

por sobre as altas vergas que emolduram

a morte.)

 

Mário assombração, Mário problema?

A essa distância lunar

de tudo e de todos, menos

de teus múltiplos retratos falantes,

cachoeiras emaranhadas confidências

cilícios didáticos

reinações

adágios paulistanos de madura melancolia,

guardas a familiaridade e o sigilo

que alternam os losangos

da pele seca de Arlequim.

 

De longe, sem contorno,

revela-se a plena doação,

a nenhum em particular, murmúrio desfeito

no peito de desconhecidos

que vivem o poeta ignorando-lhe a existência

raio de amor geral barroco soluçante.

 

Mário arco-íris, mas tão exato

na modenatura de suas cores e dores,

que captamos a só imagem de alegria

e azul disciplinado,

lá onde, surdamente,

turvação, paciência e angústia se mesclaram.

 

Tão mesquinha, tua lembrança

fichada nos arquivos da saudade!

Vejo-te livre, respirando

a fina luz do dia universal.

 

 

A CARLITO

 

Velho Chaplin:

as crianças do mundo te saúdam.

Não adiantou te esconderes na casa de areia dos setenta anos,

refletida no lago suíço.

Nem trocares tua roupa e sapatos heroicos

pela comum indumentária mundial.

Um guri te descobre e diz: Carlito

C A R L I T O — ressoa o coro em primavera.

 

Homens apressados estacam. E readquirem-se.

Estavas enrolado neles como bola de gude de quinze cores,

concentração do lúdico infinito.

Pulas intato da algibeira.

Uma guerra e outra guerra não bastaram

para secar em nós a eterna linfa

em que, peixe, modulas teu bailado.

 

O filme de 16 milímetros entra em casa

por um dia alugado

e com ele a graça de existir

mesmo entre os equívocos, o medo, a solitude mais solita.

Agora é confidencial o teu ensino,

pessoa por pessoa,

ternura por ternura,

e, desligado de ti e da rede internacional de cinemas,

o mito cresce.

 

O mito cresce, Chaplin, a nossos olhos

feridos do pesadelo cotidiano.

O mundo vai acabar por mão dos homens?

A vida renega a vida?

Não restará ninguém para pregar

o último rabo de papel na túnica do rei?

Ninguém para recordar

que houve pelas estradas um errante poeta desengonçado,

a todos resumindo em seu despojamento?

 

Perguntas suspensas no céu cortado

de pressentimentos e foguetes

cedem à maior pergunta

que o homem dirige às estrelas.

Velho Chaplin, a vida está apenas alvorecendo

e as crianças do mundo te saúdam.

 

 

A MÃO

 

Entre o cafezal e o sonho

o garoto pinta uma estrela dourada

na parede da capela,

e nada mais resiste à mão pintora.

A mão cresce e pinta

o que não é para ser pintado mas sofrido.

A mão está sempre compondo

módul-murmurando

o que escapou à fadiga da Criação

e revê ensaios de formas

e corrige o oblíquo pelo aéreo

e semeia margaridinhas de bem-querer no baú dos vencidos.

A mão cresce mais e faz

do mundo-como-se-repete o mundo que telequeremos.

A mão sabe a cor da cor

e com ela veste o nu e o invisível.

Tudo tem explicação porque tudo tem (nova) cor.

Tudo existe porque foi pintado à feição de laranja mágica

não para aplacar a sede dos companheiros,

principalmente para aguçá-la

até o limite do sentimento da terra domicílio do homem.

 

Entre o sonho e o cafezal

entre guerra e paz

entre mártires, ofendidos,

músicos, jangadas, pandorgas,

entre os roceiros mecanizados de Israel

a memória de Giotto e o aroma primeiro do Brasil

entre o amor e o ofício

eis que a mão decide:

Todos os meninos, ainda os mais desgraçados,

sejam vertiginosamente felizes

como feliz é o retrato

múltiplo verde-róseo em duas gerações

da criança que balança como flor no cosmo

e torna humilde, serviçal e doméstica a mão excedente

em seu poder de encantação.

 

Agora há uma verdade sem angústia

mesmo no estar-angustiado.

O que era dor é flor, conhecimento

plástico do mundo.

E por assim haver disposto o essencial,

deixando o resto aos doutores de Bizâncio,

bruscamente se cala

e voa para nunca-mais

a mão infinita

a mão-de-olhos-azuis de Candido Portinari.

 

 

CIDADE

 

POMBO-CORREIO

 

Os garotos da Rua Noel Rosa

onde um talo de samba viça no calçamento,

viram o pombo-correio cansado

confuso

aproximar-se em voo baixo.

 

Tão baixo voava: mais raso

que os sonhos municipais de cada um.

Seria o Exército em manobras

ou simplesmente

trazia recados de ai! amor

à namorada do tenente em Aldeia Campista?

 

E voando e baixando entrançou-se

entre folhas e galhos de fícus:

era um papagaio de papel,

estrelinha presa, suspiro

metade ainda no peito, outra metade

no ar.

 

Antes que o ferissem,

pois o carinho dos pequenos ainda é mais desastrado

que o dos homens

e o dos homens costuma ser mortal,

uma senhora o salva

tomando-o no berço das mãos

e brandamente alisa-lhe

a medrosa plumagem azulcinza

cinza de fundos neutros de Mondrian

azul de abril pensando maio.

 

3235-58-Brasil

dizia o anel na perninha direita.

Mensagem não havia nenhuma

ou a perdera o mensageiro

como se perdem os maiores segredos de Estado,

que graças a isto se tornam invioláveis,

ou o grito de paixão abafado

pela buzina dos ônibus.

 

Como o correio (às vezes) esquece cartas,

teria o pombo esquecido

a razão de seu voo?

Ou sua razão seria apenas voar

baixinho sem mensagem como a gente

vai todos os dias à cidade

e somente algum minuto em cada vida

se sente repleto de eternidade, ansioso

por transmitir a outros sua fortuna?

 

Era um pombo assustado

perdido

e há perguntas na Rua Noel Rosa

e em toda parte sem resposta.

 

Pelo que a senhora o confiou

ao senhor Manuel Duarte, que passava,

para ser devolvido com urgência

ao destino dos pombos militares

que não é um destino.

 

 

CAÇA NOTURNA

 

No escuro

o zumbido gigante do besouro

corrói os cristais do sono.

Que avião é esse, levando para Teerã

uma amizade um amor um bloco de oitenta indiferenças

que não acaba de passar e circunvoa

sobre a casa perdida na floresta

imobiliária?

 

Vai o ouvido apurando

na trama do rumor suas nervuras:

inseto múltiplo reunido

para compor o zanzineio surdo

circular opressivo

zunzin de mil zonzons zoando em meio

à pasta de calor

da noite em branco.

 

São as eletrobombas em serviço.

A música da seca.

Pickup que não para de girar.

Gato que não cansa de roncar.

Ah, como os conheço!

Fazem parte da vida esses possantes

motores de tocaia

na caça lunar de água, lebre esquiva

sugada

por um canal de desespero e insônia.

 

Que gemido crilado, apenas zi,

tímido se incorpora ao zon compacto?

Que vozinha medrosa mais suspira

do que zoa, no côncavo noturno?

O motorzinho do poeta,

pobre galgo da casa,

1⁄4 de HP, caçando em vão.

 

 

CANTO DO RIO EM SOL

 

I

 

Guanabara, seio, braço

de a-mar:

em teu nome, a sigla rara

dos tempos do verbo mar.

 

Os que te amamos sentimos

e não sabemos cantar:

o que é sombra do Silvestre

sol da Urca

dengue flamingo

mitos da Tijuca de Alencar.

 

Guanabara, saia clara

estufando em redondel:

que é carne, que é terra e alísio

em teu crisol?

 

Nunca vi terra tão gente

nem gente tão florival.

Teu frêmito é teu encanto

(sem decreto) capital.

 

Agora, que te fitamos

nos olhos,

e que neles pressentimos

o ser telúrico, essencial,

agora sim, és Estado

de graça, condado real.

 

II

 

Rio, nome sussurrante,

Rio que te vais passando

a mar de estórias e sonhos

e em teu constante janeiro

corres pela nossa vida

como sangue, como seiva

— não são imagens exangues

como perfume na fronha

… como a pupila do gato

risca o topázio no escuro.

Rio-tato-

-vista-gosto-risco-vertigem

Rio-antúrio.

 

Rio das quatro lagoas

de quatro túneis irmãos

Rio em ã

Maracanã

Sacopenapã

 

Rio em ol em amba em umba sobretudo em inho

de amorzinho

benzinho

dá-se um jeitinho

do saxofone de Pixinguinha chamando pela Velha Guarda

como quem do alto do Morro Cara de Cão

chama pelos tamoios errantes em suas pirogas

Rio milhão de coisas

luminosardentissuavimariposas:

como te explicar à luz da Constituição?

 

III

 

Irajá Pavuna Ilha do Gato

— emudeceram as aldeias gentílicas?

A Festa das Canoas dispersou-se?

Junto ao Paço já não se ouve o sino de São José

pastoreando os fiéis da várzea?

Soou o toque do Aragão sobre a cidade?

 

Não não não não não não não

 

Rio mágico, dás uma cabriola,

teu desenho no ar é nítido como os primeiros grafismos,

teu acordar, um feixe de zínias na correnteza esperta do tempo

o tempo que humaniza e jovializa as cidades.

Rio novo a cada menino que nasce

a cada casamento

a cada namorado

que te descobre enquanto, rio-rindo,

assistes ao pobre fluir dos homens e de suas glórias pré-fabricadas.

 

 

SER

 

O RETRATO MALSIM

 

O inimigo maduro a cada manhã se vai formando

no espelho de onde deserta a mocidade.

Onde estava ele, talvez escondido em castelos escoceses,

em cacheados cabelos de primeira comunhão?

onde, que lentamente grava sua presença

por cima de outra, hoje desintegrada?

 

Ah, sim: estava na rigidez das horas de tenência orgulhosa,

no morrer em pensamento quando a vida queria viver.

Estava primo do outro, dentro,

era o outro, que não se sabia liquidado,

verdugo expectante, convidando a sofrer;

cruz de carvão, ainda sem braços.

 

Afinal irrompe, dono completo.

Instalou-se, a mesa é sua,

cada vinco e reflexão madura ele é quem porta,

e esparrama na toalha sua matalotagem:

todas as flagelações, o riso mau,

o desejo de terra destinada

e o estar ausente em qualquer terra.

3 em 1, 1 em 3:

ironia passionaridade morbidez.

 

No espelho ele se faz a barba amarga.

 

SCIENCE FICTION

 

O marciano encontrou-me na rua

e teve medo de minha impossibilidade humana.

Como pode existir, pensou consigo, um ser

que no existir põe tamanha anulação de existência?

 

Afastou-se o marciano, e persegui-o.

Precisava dele como de um testemunho.

Mas, recusando o colóquio, desintegrou-se

no ar constelado de problemas.

 

E fiquei só em mim, de mim ausente.

 

 

JANELA

 

Tarde dominga tarde

pacificada como os atos definitivos.

Algumas folhas da amendoeira expiram em degradado vermelho.

Outras estão apenas nascendo,

verde polido onde a luz estala.

O tronco é o mesmo

e todas as folhas são a mesma antiga

folha

a brotar de seu fim

enquanto roazmente

a vida, sem contraste, me destrói.

 

 

O BOLO

 

Na mesa interminável comíamos o bolo

interminável

e de súbito o bolo nos comeu.

Vimo-nos mastigados, deglutidos

pela boca de esponja.

 

No interior da massa não sabemos

o que nos acontece mas lá fora

o bolo interminável

na interminável mesa a que preside

sente falta de nós

gula saudosa.

 

 

OS MORTOS

 

Na ambígua intimidade

que nos concedem

podemos andar nus

diante de seus retratos.

Não reprovam nem sorriem

como se neles a nudez fosse maior.

 

 

ANIVERSÁRIO

 

Um verso, para te salvar

de esquecimento sobre a terra?

Se é em mim que estás esquecida,

o verso lembraria apenas

esta força de esquecimento,

enquanto a vida, sem memória,

vaga atmosfera, se condensa

na pequena caixa em que moras

como os mortos sabem morar.

 

 

CARTA

 

Há muito tempo, sim, que não te escrevo.

Ficaram velhas todas as notícias.

Eu mesmo envelheci. Olha, em relevo,

estes sinais em mim, não das carícias

 

(tão leves) que fazias no meu rosto:

são golpes, são espinhos, são lembranças

da vida a teu menino, que ao sol-posto

perde a sabedoria das crianças.

 

A falta que me fazes não é tanto

à hora de dormir, quando dizias

“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.

 

É quando, ao despertar, revejo a um canto

a noite acumulada de meus dias,

e sinto que estou vivo, e que não sonho.

 

 

PARA SEMPRE

 

Por que Deus permite

que as mães vão-se embora?

Mãe não tem limite,

é tempo sem hora,

luz que não apaga

quando sopra o vento

e chuva desaba,

veludo escondido

na pele enrugada,

água pura, ar puro,

puro pensamento.

Morrer acontece

com o que é breve e passa

sem deixar vestígio.

Mãe, na sua graça,

é eternidade.

Por que Deus se lembra

— mistério profundo —

de tirá-la um dia?

Fosse eu Rei do Mundo,

baixava uma lei:

Mãe não morre nunca,

mãe ficará sempre

junto de seu filho

e ele, velho embora,

será pequenino

feito grão de milho.

 

 

MUNDO

 

VI NASCER UM DEUS

 

Em novembro chegaram os signos.

O céu nebuloso não filtrava

estrelas anunciantes

nem os bronzes de São José junto ao Palácio Tiradentes

tangiam a Boa-Nova.

Eram outros os signos

e vinham na voz de iaras-propaganda

páginas inteiras de refrigerador e carro nacional

mas vinham.

O governo destinou só 210 mil dólares

à importação de artigos natalinos

avelãs figos castanhas ameixas amêndoas

sóis luas outonos cristalizados

orvalho de uísque em ramo de pinheiro

champagne extra-sec pour les connoisseurs

mas vinham

a fome sambava entre caçarolas desertas

e o amor dormia na entressafra

mas vinham

e petroleiros jatos caminhões nas BR televisores transistores corretores

descobriram subitamente

Jesus.

 

(Quem adquire a big cesta de natal Tremendous

no ato de pagamento da primeira prestação

recebe prêmio garantido

e concorre

na última quarta-feira de cada mês

— números correspondentes aos da Loteria Federal —

a visões como um apartamento

um jipe

uma lambreta

um lunik

um anjo eletrônico

e mais:

ajuda quinhentos velhinhos

a provar alegria

pois a Obra de Senectude Evangélica

tem comissão em cada cesta vendida.)

 

… na manjedoura?

no presépio?

no chão, diante do pórtico arruinado, como em Siena o pintou Francesco Giorgio?

na capelinha torta de São Gonçalo do Rio Abaixo?

na big cesta de natal?

 

… repousa o Infante esperado.

As luzes em que o esculpiram tornam-lhe o corpo dourado.

 

O Cristo é sempre novo, e na fraqueza deste menino

há um silencioso motor, uma confidência e um sino.

 

Nasce a cada dezembro e nasce de mil jeitos.

Temos de pesquisá-lo até na gruta de nossos defeitos.

 

Ministros deputados presidentes de sindicatos

prosternam-se, estabelecendo os primeiros contatos.

 

Preside (mal) as assembleias de todas as sociedades

anônimas, anônimo ele próprio, nas inumerabilidades

 

de sua pobritude. E tenta renascer a cada hora

em que se distrai nossa polícia, assim como uma flora

 

sem jardineiro apendoa, e, sem húmus, no espaço

restaura o dinamismo das nuvens. Sua pureza arma um laço

 

à astúcia terrestre com que todos nos defendemos

da outra face do amor, a face dos extremos.

 

Inventou-se menino para ser ao menos contemplado,

senão querido (pois amamos a nosso modo limitado,

 

e de criança temos pena, porque submersos garotos

ainda fazem boiar em nós seus barcos rotos,

 

e a tristeza infantil, malva seca no catecismo, nunca se esquece).

Assim o Cristo vem numa cantiga sem rumo, não na prece

 

com pandeiros alegres tocando

com chapéus de palhinha amarela

companheiros alegres cantando.

 

Ó lapinha,

 

menino de barro,

deus de brinquedo,

areia branca de córrego,

musgo de penhasco,

Belém de papel,

primeira utopia,

primeira abordagem

de território místico,

primeiro tremor.

Vi nascer um deus.

Onde, pouco importa.

Como, pouco importa.

Vi nascer um deus

em plena calçada

entre camelôs;

na vitrina da boutique

sorria ou chorava,

não sei bem ao certo;

a luz da boate

mal lhe debuxava

o mínimo perfil.

Vi nascer um deus

entre embaixadores

entre publicanos

entre verdureiros

entre mensalistas,

no Maracanã

em Para-lá-do-mapa,

quando os gatos rondam

a espinha da noite

os mendigos espreitam

os inferninhos

e no museu acordam as telas

informais

e o homem esquece

metade da ciência atômica:

vi nascer um deus.

O mais pobre,

o mais simples.

 

 

A BOMBA

 

A bomba

é uma flor de pânico apavorando os floricultores

 

A bomba

é o produto quintessente de um laboratório falido

 

A bomba

é miséria confederando milhões de misérias

 

A bomba

é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles

 

A bomba

é grotesca de tão metuenda e coça a perna

 

A bomba

dorme no domingo até que os morcegos esvoacem

 

A bomba

não tem preço não tem lunar não tem domicílio

 

A bomba

amanhã promete ser melhorzinha mas esquece

 

A bomba

não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está

 

A bomba

mente e sorri sem dente

 

A bomba

vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados

 

A bomba

é redonda que nem mesa redonda, e quadrada

 

A bomba

tem horas que sente falta de outra para cruzar

 

A bomba

furtou e corrompeu elementos da natureza e mais furtara e corrompera

 

A bomba

multiplica-se em ações ao portador e em portadores sem ação

 

A bomba

chora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminés

 

A bomba

faz week-end na Semana Santa

 

A bomba

brinca bem brincado o carnaval

 

A bomba

tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia

 

A bomba

industrializou as térmites convertendo-as em balísticos interplanetários

 

A bomba

sofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose, de verborreia

 

A bomba

não é séria, é conspicuamente tediosa

 

A bomba

envenena as crianças antes que comecem a nascer

 

A bomba

continua a envenená-las no curso da vida

 

A bomba

respeita os poderes espirituais, os temporais e os tais

 

A bomba

pula de um lado para outro gritando: eu sou a bomba

 

A bomba

é um cisco no olho da vida, e não sai

 

A bomba

é uma inflamação no ventre da primavera

 

A bomba

tem a seu serviço música estereofônica e mil valetes de ouro, cobalto e ferro além da comparsaria

 

A bomba

tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc.

 

A bomba

não admite que ninguém a acorde sem motivo grave

 

A bomba

quer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticos

 

A bomba

mata só de pensarem que vem aí para matar

 

A bomba

dobra todas as línguas à sua turva sintaxe

 

A bomba

saboreia a morte com marshmallow

 

A bomba

arrota impostura e prosopopeia política

 

A bomba

cria leopardos no quintal, eventualmente no living

 

A bomba

é podre

 

A bomba

gostaria de ter remorso para justificar-se, mas isso lhe é vedado

 

A bomba

pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo

 

A bomba

declara-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidade

 

A bomba

tem um clube fechadíssimo

 

A bomba

pondera com olho neocrítico o Prêmio Nobel

 

A bomba

é russamericanenglish mas agradam-lhe eflúvios de Paris

 

A bomba

oferece na bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos de paz

 

A bomba

não terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistas

 

A bomba

desenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger velhos e criancinhas

 

A bomba

não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer

 

A bomba

é câncer

 

A bomba

vai à lua, assovia e volta

 

A bomba

reduz neutros a neutrinos, e abana-se com o leque da reação em cadeia

 

A bomba

está abusando da glória de ser bomba

 

A bomba

não sabe quando, onde e por que vai explodir, mas preliba o instante inefável

 

A bomba

fede

 

 

A bomba

é vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolina

 

A bomba

com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve

 

A bomba

não destruirá a vida

 

O homem

(tenho esperança) liquidará a bomba.

 

 

PALAVRA

 

ISSO É AQUILO

 

I

 

O fácil o fóssil

o míssil o físsil

a arte o infarte

o ocre o canopo

a urna o farniente

a foice o fascículo

a lex o judex

o maiô o avô

a ave o mocotó

o só o sambaqui

 

II

 

o gás o nefas

o muro a rêmora

a suicida o cibo

a litotes Aristóteles

a paz o pus

o licantropo o liceu

o flit o flato

a víbora o heléboro

o êmbolo o bolo

o boliche o relincho

 

III

 

o istmo o espasmo

o ditirambo o cachimbo

a cutícula o ventríloquo

a lágrima o magma

o chumbo o nelumbo

a fórmica a fúcsia

o bilro o pintassilgo

o malte o gerifalte

o crime o aneurisma

a tâmara a Câmara

 

IV

 

o átomo o átono

a medusa o pégaso

a erisipela a elipse

a ama o sistema

o quimono o amoníaco

a nênia o nylon

o cimento o ciumento

a juba a jacuba

o mendigo a mandrágora

o boné a boa-fé

 

V

 

a argila o sigilo

o pároco o báratro

a isca o menisco

o idólatra o hidrópata

o plátano o plástico

a tartaruga a ruga

o estômago o mago

o amanhecer o ser

a galáxia a gloxínia

o cadarço a comborça

 

VI

 

o útil o tátil

o colubiazol o gazel

o lepidóptero o útero

o equívoco o fel no vidro

a joia a triticultura

o know-how o nocaute

o dogma o borborigmo

o úbere o lúgubre

o nada a obesidade

a cárie a intempérie

 

VII

 

o dzeta o zeugma

o cemitério a marinha

a flor a canéfora

o pícnico o pícaro

o cesto o incesto

o cigarro a formicida

a aorta o Passeio Público

o mingau a migraine

o leste a leitura

a girafa a jitanjáfora

 

VIII

 

o índio a lêndea

o coturno o estorno

a pia a piedade

a nolição o nonipétalo

o radar o nácar

o solferino o aquinatense

o bacon o dramaturgo

o legal a galena

o azul a lues

a palavra a lebre

 

IX

 

o remorso o cós

a noite o bis-coito

o sestércio o consórcio

o ético a ítaca

a preguiça a treliça

o castiço o castigo

o arroz o horror

a nêspera a vêspera

o papa a joaninha

as endoenças os antibióticos

 

 

X

 

o árvore a mar

o doce de pássaro

a passa de pêsame

o cio a poesia

a força do destino

a pátria a saciedade

o cudelume Ulalume

o zum-zum de Zeus

o bômbix

o ptyx

 

 

F

 

forma

forma

forma

 

que se esquiva

por isso mesmo viva

no morto que a procura

 

 

a cor não pousa

nem a densidade habita

nessa que antes de ser

deixou de ser não será

mas é

 

forma

festa

fonte

flama

filme

 

e não encontrar-te é nenhum desgosto

pois abarrotas o largo armazém do factível

onde a realidade é maior do que a realidade

 

 

4 POEMAS

 

A MÚSICA BARATA

 

Paloma, Violetera, Feuilles Mortes,

Saudades do Matão e de mais quem?

A música barata me visita

e me conduz

para um pobre nirvana à minha imagem.

 

Valsas e canções engavetadas

num armário que vibra de guardá-las,

no velho armário, cedro, pinho ou…?

(O marceneiro ao fazê-lo bem sabia

quanto essa madeira sofreria.)

 

Não quero Handel para meu amigo

nem ouço a matinada dos arcanjos.

Basta-me

o que veio da rua, sem mensagem,

e, como nos perdemos,

se perdeu.

 

 

CERÂMICA

 

Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.

Sem uso,

ela nos espia do aparador.

 

 

DESCOBERTA

 

O dente morde a fruta envenenada

a fruta morde o dente envenenado

o veneno morde a fruta e morde o dente

o dente, se mordendo, já descobre

a polpa deliciosíssima do nada.

 

 

INTIMAÇÃO

 

Abre em nome da lei.

Em nome de que lei?

Acaso lei tem nome?

Em nome de que nome

cujo agora me some

se em sonho o soletrei?

Abre em nome do rei.

 

Em nome de que rei

é a porta arrombada

para entrar o aguazil

que na destra um papel

sinistramente branco

traz, e ao ombro o fuzil?

 

Abre em nome de til.

Abre em nome de abrir,

em nome de poderes

cujo vago pseudônimo

não é de conferir:

cifra oblíqua na bula

ou dobra na cogula

de inexistente frei.

 

Abre em nome da lei.

Abre sem nome e lei.

Abre mesmo sem rei.

Abre, sozinho ou grei.

Não, não abras; à força

de intimar-te, repara:

eu já te desventrei.