I
o corpo na pedra
a pedra na vida
a vida na forma
Aurinaciano
o desenho ocre
sobre o mais antigo
desenho pensado
Aurinaciano
touro de caverna
em pó de oligisto
lá onde eu existo
Auritabirano
II
é mais vetusta que a raiz:
se uma estrutura se desvenda,
vem depois do depois, maís.
O que se libertou da história,
ei-lo se estira ao sol, feliz.
Já não lhe pesam os heróis
e, cavalhada morta, as ações.
Agora divisou a traça
preliminar a todo gesto.
Abre a primeiríssima porta,
era tudo um problema certo.
Uma construção sem barrotes,
o mugir de vaca no eterno;
era uma caçamba, o chicote,
o chão sim percutindo não.
Um eco à espera de um ão.
III
nas quebradas,
manténs vivas as coisas
nomeadas.
Que seria delas sem o apelo
à existência,
e quantas feneceram em sigilo
se a essência
é o nome, segredo egípcio que recolho
para gerir o mundo no meu verso?
para viver eu mesmo de palavra?
para vos ressuscitar a todos, mortos
esvaídos no espaço, nos compêndios?
IV
jurema branca esponjeira
bordão de velho borragem
taxi de flor amarela
ubim peúva do campo
caju manso mamão bravo
cachimbo de jabuti
e pau roxo de igapó
goiaba d’anta angelim
rajado burra leiteira
tamboril timbó cazumbra
malícia d’água mumbaca
mulatinho mulateiro
muirapixuna pau ferro
chapéu de napoleão
no capim de um só botão
sapopema erva de chumbo
mororozinho salvina
água redonda açucena
sete sangrias majuba
sapupira pitangueira
maria mole puruma
puruí rapé dos índios
coração de negro aipé
sebastião de arruda embira
pente de macaco preto
gonçalo alves zaranza
pacova cega machado
barriguda pacuíba
rabo de mucura sorva
cravo do mato xuru
morototó tarumã
junco popoca
junco popoca
biquipi biribá botão de ouro
V
Tudo é teu, que enuncias. Toda forma
nasce uma segunda vez e torna
infinitamente a nascer. O pó das coisas
ainda é um nascer em que bailam mésons.
E a palavra, um ser
esquecido de quem o criou; flutua,
reparte-se em signos — Pedro, Minas Gerais, beneditino —
para incluir-se no semblante do mundo.
O nome é bem mais do que nome: o além-da-coisa,
coisa livre de coisa, circulando.
E a terra, palavra espacial, tatuada de sonhos,
cálculos.
VI
Que verdura é amor?
Quando te condensas, atingindo
o ponto fora do tempo e da vida?
Que importa este lugar
se todo lugar
é ponto de ver e não de ser?
E esta hora, se toda hora
já se completa longe de si mesma
e te deixa mais longe da procura?
E apenas resta
um sistema de sons que vai guiando
o gosto de dizer e de sentir
a existência verbal
a eletrônica
e musical figuração das coisas?
MEMÓRIA
As duas fazendas de meu pai
aonde nunca fui
Miragens tão próximas
pronunciar os nomes
era tocá-las
no vale fundo.
Retiro ficava longe
do oceanomundo.
Ninguém sabia da Rússia
com sua foice.
A morte escolhia a forma
breve de um coice.
Mulher, abundavam negras
socando milho.
Rês morta, urubus rasantes
logo em concílio.
O amor das éguas rinchava
no azul do pasto.
E criação e gente, em liga,
tudo era casto.
estava sempre chegando
da Mata.
O cheiro de tropa
crescia pelas botas acima.
O chapéu tocava o teto
da infância.
As cartas traziam
cordiais saudações.
José Catumbi
estava sempre partindo
no mapa de poeira.
Almoçava ruidoso,
os bigodes somavam-se de macarrão.
As bexigas
não sabiam sorrir.
As esporas tiniam
cordiais saudações.
Hildebrando insaciável comedor de galinha.
Não as comia propriamente — à mesa.
Possuía-as como se possuem
e se matam mulheres.
Era mansueto e escrevente de cartório.
Levávamos alimentos esmolas
deixávamos tudo na porta
mirávamos
petrificados.
Por que Deus é horrendo em seu amor?
e sua queixa rouca,
a rosa no ladrilho
hidráulico, formando-se,
o gosto ruim na boca
e uma trova mineira
abafando o escarlate
esvoaçar de penugem
saudosa de ser branca.
Pinga sangue na xícara:
a morte cozinheira.
1. O padre furtou a moça, fugiu.
Pedras caem no padre, deslizam.
A moça grudou no padre, vira sombra,
aragem matinal soprando no padre.
Ninguém prende aqueles dois,
aquele um
negro amor de rendas brancas.
Lá vai o padre,
atravessa o Piauí, lá vai o padre,
bispos correm atrás, lá vai o padre,
lá vai o padre, a maldição monta cavalos telegráficos,
lá vai o padre lá vai o padre lá vai o padre,
diabo em forma de gente, sagrado.
Na capela ficou a ausência do padre
e celebra missa dentro do arcaz.
Longe o padre vai celebrando vai cantando
todo amor é o amor e ninguém sabe
onde Deus acaba e recomeça.
2. Forças volantes atacam o padre, quem disse
que exércitos vencem o padre? patrulhas
rendem-se.
O helicóptero
desenha no ar o triângulo santíssimo,
o padre recebe bênçãos animais, ternos relâmpagos
douram a face da moça.
E no alto da serra
o padre
entre as cordas da chuva
o padre
no arcano da moça
o padre.
Vamos cercá-lo, gente, em Goiás,
quem sabe se em Pernambuco?
Desceu o Tocantins, foi visto em Macapá Corumbá Jaraguá Pelotas
em pé no caminhão da BR-15 com seu rosário
na mão
lá vai o padre
lá vai
e a moça vai dentro dele, é reza de padre.
Ai que não podemos
contra vossos poderes
guerrear
ai que não ousamos
contra vossos mistérios
debater
ai que de todo não sentimos
contra vosso pecado
o fecundo terror da religião.
Perdoai-nos, padre, porque vos perseguimos.
3.E o padre não perdoa: lá vai
levando o Cristo e o Crime no alforje
e deixa marcas de sola na poeira.
Chagas se fecham, tocando-as,
filhos resultam de ventre estéril
mudos e árvores falam
tudo é testemunho.
Só um anjo de asas secas, voando de Crateús,
senta-se à beira-estrada e chora
porque Deus tomou o partido do padre.
Em cem léguas de sertão
é tudo estalar de joelhos
no chão,
é tudo implorar ao padre
que não leve outras meninas
para seu negro destino
ou que as leve tão de leve
que ninguém lhes sinta a falta,
amortalhadas, dispersas
na escureza da batina.
Quem tem sua filha moça
padece muito vexame;
contempla-se numa poça
de fel em cerca de arame.
Mas se foi Deus quem mandou?
Anhos imolados
não por sete alvas espadas,
mas por um dardo do céu:
que se libere esta presa
à sublime natureza
de Deus com fome de moça.
Padre, levai nossas filhas!
O vosso amor, padre, queima
como fogo de coivara
não saberia queimar.
E o padre, sem se render
ao ofertório das virgens,
lá vai, coisa preta no ar.
Onde pousa o padre
é Amor-de-Padre
onde bebe o padre
é Beijo-de-Padre
onde dorme o padre
é Noite-de-Padre
mil lugares-padre
ungem o Brasil
mapa vela acesa.
4.Mas o padre entristece. Tudo engoiva
em redor. Não, Deus é astúcia,
e, para maior pena, maior pompa.
Deus é espinho. E está fincado
no ponto mais suave deste amor.
Se toda a natureza vem a bodas,
e os homens se prosternam,
e a lei perde o sumo, o padre sabe
o que não sabemos nunca, o padre esgota
o amor humano.
A moça beija a febre do seu rosto.
Há um gládio brilhando na alta nuvem
que eram só carneirinhos há um instante
— Padre, me roubaste a donzelice
ou fui eu que te dei o que era dável?
Não fui eu que te amei como se ama
aquilo que é sublime e vem trazer-me,
rendido,
o que eu não merecia mas amava?
Padre, sou teu pecado, tua angústia?
Tua alma se escraviza à tua escrava?
És meu prisioneiro, estás fechado
em meu cofre de gozo e de extermínio,
e queres libertar-te? Padre, fala!
Ou antes, cala. Padre, não me digas
que no teu peito amor guerreia amor,
e que não escolheste para sempre.
5.Que repórteres são esses
entrevistando um silêncio?
O Correio, Globo, Estado,
Manchete, France-Presse, telef
otografando o invisível?
Quem alça
a cabeça pensa
e nas pupilas rastreia
uma luz de danação,
mas a luz fosforescente
responde não?
Quem roga ao padre que pose
e o padre posa e não sente
que está posando
entre secas oliveiras
de um jardim onde não chega
o retintim deste mundo?
E que vale uma entrevista
se o que não alcança a vista
nem a razão apreende
é a verdadeira notícia?
6.É meia-treva, e o Príncipe baixando
entre cactos
sem mover palavras fita o padre
na menina dos olhos ensombrada.
A um breve clarear,
o Príncipe, em toda a sua púrpura,
como só merecem defrontá-lo
os que ousaram um dia. Os dois se medem
na paisagem de couro e ossos
estudando-se.
O que um não diz outro pressente.
Nem desafio nem malícia
nem arrogância ou medo encouraçado:
o surdo entendimento dos poderes.
O padre já não pode ser tentado.
Há um solene torpor no tempo morto,
e, para além do pecado,
uma zona em que o ato é duramente
ato.
Em toda a sua púrpura
o Príncipe desintegra-se no ar.
7. Quando lhe falta o demônio
e Deus não o socorre;
quando o homem é apenas homem
por si mesmo limitado,
em si mesmo refletido;
e flutua
vazio de julgamento
no espaço sem raízes;
e perde o eco
de seu passado,
a companhia de seu presente,
a semente de seu futuro;
quando está propriamente nu;
e o jogo, feito
até a última cartada da última jogada.
Quando. Quando.
Quando.
8. Ao relento, no sílex da noite,
os corpos entrançados transfundidos
sorvem o mesmo sono de raízes
e é como se de sempre se soubessem
uma unidade errante a convocar-se
e a diluir-se mudamente.
Espaço sombra espaço infância espaço
e difusa nos dois a prima virgindade,
oclusa graça.
Mas de rompante a mão do padre sente
o vazio do ar onde boiava
a confiada morna ondulação.
A moça, madrugada, não existe.
O padre agarra a ausência e eis que um soluço
humano desumano e longiperto
trespassa a noitidão a céu aberto.
A chama galopante vai cobrindo
um tinido de freios mastigados
e de patas ferradas,
e em sete freguesias
passa e repassa a grande mula aflita.
Urro
de fera
fúria
de burrinha
grito
de remorso
choro de criança?
Por que Deus se diverte castigando?
Por que degrada o amor sem destruí-lo?
e a cabeça da mula sem cabeça
ainda é rosto de amor, onde em sigilo
a ternura defesa vai flutuando?
Um rosto de besta
e entre as ciências do padre
entre as poderosas rezas do padre
nenhuma para resgatá-lo.
Resta deitar a febre na pedra
e aguardar
o terceiro canto do galo.
No barro vermelho da alva
a mão descobre
o dormir de moça misturado
ao dormir de padre.
9.E já sem rumo prosseguem
na descrença de pousar,
clandestinos de navio
que deitou âncora no ar.
Já não se curvam fiéis
vendo o réprobo passar,
mas antes dedos em susto
implantam a cruz no ar.
A moça, o padre se fartam
da própria gula de amar.
O amor se vinga, consome-os,
laranja cortada no ar.
Ao fim da rota poeirenta
ouve-se a igreja cantar.
Mas cerraram-se-lhe as portas
e o sino entristece no ar.
O senhor bispo, chamado
com voz rouca de implorar,
trancou-se na sua Roma
de rocha, castelo de ar.
Entre pecado e pecado
há muito que epilogar.
Que venha o padre sozinho,
o resto se esfume no ar.
Padre e moça de tão juntos
não sabem se separar.
Passa o tempo do distinguo
entre duas nuvens no ar.
10.E de tanto fugir já fogem não dos outros
mas de sua mesma fuga a distraí-los.
Para mais longe, aonde não chegue
a ambição de chegar:
área vazia
no espaço vazio
sem uma linha
uma coroa
um D.
A gruta é grande
e chama por todos os ecos
organizados.
A gruta nem é negra
de tantos negrumes que se fundem
nos ângulos agudos:
a gruta é branca, e chama.
Entram curvos, como numa igreja
feita para fiéis ajoelhados.
Entram baixos
terreais
na posição dos mortos, quase.
A gruta é funda
a gruta é mais extensa do que a gruta
o padre sente a gruta e a gruta invade
a moça
a gruta se esparrama
sobre pena e universo e carnes frouxas
à maneira católica do sono.
Prismas de luz primeira despertando
de uma dobra qualquer de rocha mansa.
Cantar angélico subindo
em meio à cega fauna cavernícola
e dizendo de céus mais que cristãos
sobre o musgo, o calcário, o úmido medo
da condição vivente.
Que coros tão ardentes se desatam
em feixes de inefável claridade?
Que perdão mais solene se humaniza
e chega à aprovação e paira em bênção?
Que festiva paixão lança seu carro
de ouro e glória imperial para levá-los
à presença de Deus feita sorriso?
Que fumo de suave sacrifício
lhes afaga as narinas?
Que santidade súbita lhes corta
a respiração, com visitá-los?
Que esvair-se de males, que desfal
ecimentos teresinos?
Que sensação de vida triunfante
no empalidecer de humano sopro contingente?
Fora
ao crepitar da lenha pura
e medindo das chamas o declínio,
eis que perseguidores se persignam.
o só objeto
indefensável
e pá e pé e ui
e vupt e rrr
e o riso passarola no ar
grasnando
e mil a espiar
os alfabetos purpúreos
desatando-se
sem rota
e llmn e nss e yn
eram mil a sentir
que a vida refugia
do ato de viver
e agora circulava
sobre toda ruína
Padre Olímpio bendizia,
Padre Júlio fornicava.
E Padre Olímpio advertia
e Padre Júlio triscava.
Padre Júlio excomungava
quem se erguesse a censurá-lo
e Padre Olímpio em seu canto
antes de cantar o galo
pedia a Deus pelo homem.
Padre Júlio em seu jardim
colhia flor e mulher
num contentamento imundo.
Padre Olímpio suspirava,
Padre Júlio blasfemava.
Padre Olímpio, sem leitura
latina, sem ironia,
e Padre Júlio, criatura
de Ovídio, ria, atacava
a chã fortaleza do outro.
Padre Olímpio silenciava.
Padre Júlio perorava,
rascante e politiqueiro.
Padre Olímpio se omitia
e Padre Júlio raptava
mulher e filhos do próximo,
outros filhos aditava.
Padre Júlio responsava
os mortos pedindo contas
do mal que apenas pensaram
e desmontava filáucias
de altos brasões esboroados
entre moscas defuntórias.
Padre Olímpio respeitava
as classes depois de extintos
os sopros dos mais distintos
festeiros e imperadores.
Se Padre Olímpio perdoava,
Padre Júlio não cedia.
Padre Júlio foi ganhando
com o tempo cara diabólica
e em sua púrpura calva,
em seu mento proeminente,
ardiam brasas. E Padre
Olímpio se desolava
de ver um padre demente
e o Senhor atraiçoado.
E Padre Júlio oficiava
como oficia um demônio
sem que o escândalo esgarçasse
a santidade do ofício.
Padre Olímpio se doía,
muito se mortificava
que nenhum anjo surgisse
a consolá-lo em segredo:
“Olímpio, se é tudo um jogo
do céu com a terra, o desfecho
dorme entre véus de justiça.”
Padre Olímpio encanecia
e em sua estrita piedade,
em seu manso pastoreio,
não via, não discernia
a celeste preferência.
Seria por Padre Júlio?
Valorizava-se o inferno?
E sentindo-se culpado
de conceber turvamente
o augustíssimo pecado
atribuído ao Padre Eterno,
sofre-rezando sem tino
todo se penitenciava.
Em suas costas botava
os crimes de Padre Júlio,
refugando-lhe os prazeres.
Emagrecia, minguava,
sem ganhar forma de santo.
Seu corpo se recolhia
à própria sombra, no solo.
Padre Júlio coruscava,
ria, inflava, apostrofava.
Um pecava, outro pagava.
O povo ia desertando
a lição de Padre Olímpio.
Muito melhor escutava
de Padre Júlio as bocagens.
Dois raios, na mesma noite,
os dois padres fulminaram.
Padre Olímpio, Padre Júlio
iguaizinhos se tornaram:
onde o vício, onde a virtude,
ninguém mais o demarcava.
Enterrados lado a lado
irmanados confundidos,
dos dois padres consumidos
juliolímpio em terra neutra
uma flor nasce monótona
que não se sabe até hoje
(cinquenta anos se passaram)
se é de compaixão divina
ou divina indiferença.
à casa do pai
e o próprio pai é morto desde Adão.
Onde havia relógio
e cadeira de balanço
vacas estrumam a superfície.
O filho pródigo tateia
assobia fareja convoca
as dezoito razões de fuga
e nada mais vigora
nem soluça.
Ninguém recrimina
ou perdoa,
ninguém recebe.
Deixa de haver o havido
na ausência de fidelidade
e traição.
Jogada no esterco verde
a agulha de gramofone
varre de ópera o vazio.
O ex-filho pródigo
perde a razão de ser
e cospe
no ar estritamente seco.
e com se amarem tanto não se veem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.
Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.
Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.
E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.
Como saber, como gerir um corpo
alheio?
Os dias consumidos em sua lavra
significam o mesmo que estar morto.
Não o decifras, não, ao peito oferto,
monstruário de fomes enredadas,
ávidas de agressão, dormindo em concha.
Um toque, e eis que a blandícia erra em tormento,
e cada abraço tece além do braço
a teia de problemas que existir
na pele do existente vai gravando.
Viver-não, viver-sem, como viver
sem conviver, na praça de convites?
Onde avanço, me dou, e o que é sugado
ao mim de mim, em ecos se desmembra;
nem resta mais que indício,
pelos ares lavados,
do que era amor e, dor agora, é vício.
O corpo em si, mistério: o nu, cortina
de outro corpo, jamais apreendido,
assim como a palavra esconde outra
voz, prima e vera, ausente de sentido.
Amor é compromisso
com algo mais terrível do que amor?
— pergunta o amante curvo à noite cega,
e nada lhe responde, ante a magia:
arder a salamandra em chama fria.
se sabia
p r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o s
ternos ou
nesse museu do pardo indiferente
me diga: mas por que
amarsofrer talvezcomo se morre
de varíola voluntária vágula ev
idente?
ah PORQUEAMOU
e se queimou
todo por dentro por fora nos cantos nos ecos
lúgubres de você mesm(o,a)
irm(ã,o) retrato espéculo por que amou?
se era para
ou era por
como se entretanto todavia
toda vida mas toda vida
é indagação do achado e aguda espostejação
da carne do conhecimento, ora veja
permita cavalheir(o,a)
amig(o,a) me releve
este malestar
cantarino escarninho piedoso
este querer consolar sem muita convicção
o que é inconsolável de ofício
a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima
a vida também
tudo também
mas o amor car(o,a) colega este não consola nunca de núncaras.
Alferes de milícias Manuel da Costa Ataíde:
eu, paisano,
bato continência
em vossa admiração.
Há dois séculos menos um dia, contados na folhinha,
batizaram-vos na Sé da Cidade Mariana,
mas isso não teria importância nenhuma
se mais tarde não houvésseis olhado ali para o teto
e reparado na pintura de Manuel Rabelo de Sousa.
O rumo fora traçado.
Pintaríeis outras tábuas de outros tetos
ou mais precisamente
romperíeis o forro para a conversação radiante com Deus.
Alferes
que em São Francisco de Assis de Vila Rica
derramais sobre nós no azul-espaço
do teatro barroco do céu
o louvor cristalino coral orquestral dos serafins
à Senhora Nossa e dos Anjos;
repórter da Fuga e da Ceia,
testemunha do Poverello,
dono da luz e do verde-veronese,
inventor de cores insabidas,
a espalhar por vinte igrejas das Minas
“uma bonita, valente e espaçosa pintura”:
em vossa admiração
bato continência.
E porque
ao sairdes de vossa casinha da Rua Nova nos fundos do Carmo
encontro-vos sempre caminhando
mano a mano com o mestre mais velho Antônio Francisco Lisboa
e porque viveis os dois em comum o ato da imaginação
e em comum o fixais em matéria, numa cidade após outra,
porque soubestes amá-lo, ao difícil e raro Antônio Francisco,
e manifestais a arte de dois na unidade da criação,
bato continência
em vossa admiração.
persevera o ensino cantante,
martelo
a vibrar no verso e na carta:
A própria dor é uma felicidade.
(O real, frente a frente,
de perfil ou de ponta-cabeça,
tal fruto gordo colhido
e triturado, transformado,
por sobre as altas vergas que emolduram
a morte.)
Mário assombração, Mário problema?
A essa distância lunar
de tudo e de todos, menos
de teus múltiplos retratos falantes,
cachoeiras emaranhadas confidências
cilícios didáticos
reinações
adágios paulistanos de madura melancolia,
guardas a familiaridade e o sigilo
que alternam os losangos
da pele seca de Arlequim.
De longe, sem contorno,
revela-se a plena doação,
a nenhum em particular, murmúrio desfeito
no peito de desconhecidos
que vivem o poeta ignorando-lhe a existência
raio de amor geral barroco soluçante.
Mário arco-íris, mas tão exato
na modenatura de suas cores e dores,
que captamos a só imagem de alegria
e azul disciplinado,
lá onde, surdamente,
turvação, paciência e angústia se mesclaram.
Tão mesquinha, tua lembrança
fichada nos arquivos da saudade!
Vejo-te livre, respirando
a fina luz do dia universal.
as crianças do mundo te saúdam.
Não adiantou te esconderes na casa de areia dos setenta anos,
refletida no lago suíço.
Nem trocares tua roupa e sapatos heroicos
pela comum indumentária mundial.
Um guri te descobre e diz: Carlito
C A R L I T O — ressoa o coro em primavera.
Homens apressados estacam. E readquirem-se.
Estavas enrolado neles como bola de gude de quinze cores,
concentração do lúdico infinito.
Pulas intato da algibeira.
Uma guerra e outra guerra não bastaram
para secar em nós a eterna linfa
em que, peixe, modulas teu bailado.
O filme de 16 milímetros entra em casa
por um dia alugado
e com ele a graça de existir
mesmo entre os equívocos, o medo, a solitude mais solita.
Agora é confidencial o teu ensino,
pessoa por pessoa,
ternura por ternura,
e, desligado de ti e da rede internacional de cinemas,
o mito cresce.
O mito cresce, Chaplin, a nossos olhos
feridos do pesadelo cotidiano.
O mundo vai acabar por mão dos homens?
A vida renega a vida?
Não restará ninguém para pregar
o último rabo de papel na túnica do rei?
Ninguém para recordar
que houve pelas estradas um errante poeta desengonçado,
a todos resumindo em seu despojamento?
Perguntas suspensas no céu cortado
de pressentimentos e foguetes
cedem à maior pergunta
que o homem dirige às estrelas.
Velho Chaplin, a vida está apenas alvorecendo
e as crianças do mundo te saúdam.
o garoto pinta uma estrela dourada
na parede da capela,
e nada mais resiste à mão pintora.
A mão cresce e pinta
o que não é para ser pintado mas sofrido.
A mão está sempre compondo
módul-murmurando
o que escapou à fadiga da Criação
e revê ensaios de formas
e corrige o oblíquo pelo aéreo
e semeia margaridinhas de bem-querer no baú dos vencidos.
A mão cresce mais e faz
do mundo-como-se-repete o mundo que telequeremos.
A mão sabe a cor da cor
e com ela veste o nu e o invisível.
Tudo tem explicação porque tudo tem (nova) cor.
Tudo existe porque foi pintado à feição de laranja mágica
não para aplacar a sede dos companheiros,
principalmente para aguçá-la
até o limite do sentimento da terra domicílio do homem.
Entre o sonho e o cafezal
entre guerra e paz
entre mártires, ofendidos,
músicos, jangadas, pandorgas,
entre os roceiros mecanizados de Israel
a memória de Giotto e o aroma primeiro do Brasil
entre o amor e o ofício
eis que a mão decide:
Todos os meninos, ainda os mais desgraçados,
sejam vertiginosamente felizes
como feliz é o retrato
múltiplo verde-róseo em duas gerações
da criança que balança como flor no cosmo
e torna humilde, serviçal e doméstica a mão excedente
em seu poder de encantação.
Agora há uma verdade sem angústia
mesmo no estar-angustiado.
O que era dor é flor, conhecimento
plástico do mundo.
E por assim haver disposto o essencial,
deixando o resto aos doutores de Bizâncio,
bruscamente se cala
e voa para nunca-mais
a mão infinita
a mão-de-olhos-azuis de Candido Portinari.
onde um talo de samba viça no calçamento,
viram o pombo-correio cansado
confuso
aproximar-se em voo baixo.
Tão baixo voava: mais raso
que os sonhos municipais de cada um.
Seria o Exército em manobras
ou simplesmente
trazia recados de ai! amor
à namorada do tenente em Aldeia Campista?
E voando e baixando entrançou-se
entre folhas e galhos de fícus:
era um papagaio de papel,
estrelinha presa, suspiro
metade ainda no peito, outra metade
no ar.
Antes que o ferissem,
pois o carinho dos pequenos ainda é mais desastrado
que o dos homens
e o dos homens costuma ser mortal,
uma senhora o salva
tomando-o no berço das mãos
e brandamente alisa-lhe
a medrosa plumagem azulcinza
cinza de fundos neutros de Mondrian
azul de abril pensando maio.
3235-58-Brasil
dizia o anel na perninha direita.
Mensagem não havia nenhuma
ou a perdera o mensageiro
como se perdem os maiores segredos de Estado,
que graças a isto se tornam invioláveis,
ou o grito de paixão abafado
pela buzina dos ônibus.
Como o correio (às vezes) esquece cartas,
teria o pombo esquecido
a razão de seu voo?
Ou sua razão seria apenas voar
baixinho sem mensagem como a gente
vai todos os dias à cidade
e somente algum minuto em cada vida
se sente repleto de eternidade, ansioso
por transmitir a outros sua fortuna?
Era um pombo assustado
perdido
e há perguntas na Rua Noel Rosa
e em toda parte sem resposta.
Pelo que a senhora o confiou
ao senhor Manuel Duarte, que passava,
para ser devolvido com urgência
ao destino dos pombos militares
que não é um destino.
o zumbido gigante do besouro
corrói os cristais do sono.
Que avião é esse, levando para Teerã
uma amizade um amor um bloco de oitenta indiferenças
que não acaba de passar e circunvoa
sobre a casa perdida na floresta
imobiliária?
Vai o ouvido apurando
na trama do rumor suas nervuras:
inseto múltiplo reunido
para compor o zanzineio surdo
circular opressivo
zunzin de mil zonzons zoando em meio
à pasta de calor
da noite em branco.
São as eletrobombas em serviço.
A música da seca.
Pickup que não para de girar.
Gato que não cansa de roncar.
Ah, como os conheço!
Fazem parte da vida esses possantes
motores de tocaia
na caça lunar de água, lebre esquiva
sugada
por um canal de desespero e insônia.
Que gemido crilado, apenas zi,
tímido se incorpora ao zon compacto?
Que vozinha medrosa mais suspira
do que zoa, no côncavo noturno?
O motorzinho do poeta,
pobre galgo da casa,
1⁄4 de HP, caçando em vão.
I
de a-mar:
em teu nome, a sigla rara
dos tempos do verbo mar.
Os que te amamos sentimos
e não sabemos cantar:
o que é sombra do Silvestre
sol da Urca
dengue flamingo
mitos da Tijuca de Alencar.
Guanabara, saia clara
estufando em redondel:
que é carne, que é terra e alísio
em teu crisol?
Nunca vi terra tão gente
nem gente tão florival.
Teu frêmito é teu encanto
(sem decreto) capital.
Agora, que te fitamos
nos olhos,
e que neles pressentimos
o ser telúrico, essencial,
agora sim, és Estado
de graça, condado real.
II
Rio que te vais passando
a mar de estórias e sonhos
e em teu constante janeiro
corres pela nossa vida
como sangue, como seiva
— não são imagens exangues
como perfume na fronha
… como a pupila do gato
risca o topázio no escuro.
Rio-tato-
-vista-gosto-risco-vertigem
Rio-antúrio.
Rio das quatro lagoas
de quatro túneis irmãos
Rio em ã
Maracanã
Sacopenapã
Rio em ol em amba em umba sobretudo em inho
de amorzinho
benzinho
dá-se um jeitinho
do saxofone de Pixinguinha chamando pela Velha Guarda
como quem do alto do Morro Cara de Cão
chama pelos tamoios errantes em suas pirogas
Rio milhão de coisas
luminosardentissuavimariposas:
como te explicar à luz da Constituição?
III
— emudeceram as aldeias gentílicas?
A Festa das Canoas dispersou-se?
Junto ao Paço já não se ouve o sino de São José
pastoreando os fiéis da várzea?
Soou o toque do Aragão sobre a cidade?
Não não não não não não não
Rio mágico, dás uma cabriola,
teu desenho no ar é nítido como os primeiros grafismos,
teu acordar, um feixe de zínias na correnteza esperta do tempo
o tempo que humaniza e jovializa as cidades.
Rio novo a cada menino que nasce
a cada casamento
a cada namorado
que te descobre enquanto, rio-rindo,
assistes ao pobre fluir dos homens e de suas glórias pré-fabricadas.
SER
O inimigo maduro a cada manhã se vai formando
no espelho de onde deserta a mocidade.
Onde estava ele, talvez escondido em castelos escoceses,
em cacheados cabelos de primeira comunhão?
onde, que lentamente grava sua presença
por cima de outra, hoje desintegrada?
Ah, sim: estava na rigidez das horas de tenência orgulhosa,
no morrer em pensamento quando a vida queria viver.
Estava primo do outro, dentro,
era o outro, que não se sabia liquidado,
verdugo expectante, convidando a sofrer;
cruz de carvão, ainda sem braços.
Afinal irrompe, dono completo.
Instalou-se, a mesa é sua,
cada vinco e reflexão madura ele é quem porta,
e esparrama na toalha sua matalotagem:
todas as flagelações, o riso mau,
o desejo de terra destinada
e o estar ausente em qualquer terra.
3 em 1, 1 em 3:
ironia passionaridade morbidez.
No espelho ele se faz a barba amarga.
O marciano encontrou-me na rua
e teve medo de minha impossibilidade humana.
Como pode existir, pensou consigo, um ser
que no existir põe tamanha anulação de existência?
Afastou-se o marciano, e persegui-o.
Precisava dele como de um testemunho.
Mas, recusando o colóquio, desintegrou-se
no ar constelado de problemas.
E fiquei só em mim, de mim ausente.
pacificada como os atos definitivos.
Algumas folhas da amendoeira expiram em degradado vermelho.
Outras estão apenas nascendo,
verde polido onde a luz estala.
O tronco é o mesmo
e todas as folhas são a mesma antiga
folha
a brotar de seu fim
enquanto roazmente
a vida, sem contraste, me destrói.
Na mesa interminável comíamos o bolo
interminável
e de súbito o bolo nos comeu.
Vimo-nos mastigados, deglutidos
pela boca de esponja.
No interior da massa não sabemos
o que nos acontece mas lá fora
o bolo interminável
na interminável mesa a que preside
sente falta de nós
gula saudosa.
que nos concedem
podemos andar nus
diante de seus retratos.
Não reprovam nem sorriem
como se neles a nudez fosse maior.
de esquecimento sobre a terra?
Se é em mim que estás esquecida,
o verso lembraria apenas
esta força de esquecimento,
enquanto a vida, sem memória,
vaga atmosfera, se condensa
na pequena caixa em que moras
como os mortos sabem morar.
Há muito tempo, sim, que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci. Olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias
(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.
A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.
É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
— mistério profundo —
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.
Em novembro chegaram os signos.
O céu nebuloso não filtrava
estrelas anunciantes
nem os bronzes de São José junto ao Palácio Tiradentes
tangiam a Boa-Nova.
Eram outros os signos
e vinham na voz de iaras-propaganda
páginas inteiras de refrigerador e carro nacional
mas vinham.
O governo destinou só 210 mil dólares
à importação de artigos natalinos
avelãs figos castanhas ameixas amêndoas
sóis luas outonos cristalizados
orvalho de uísque em ramo de pinheiro
champagne extra-sec pour les connoisseurs
mas vinham
a fome sambava entre caçarolas desertas
e o amor dormia na entressafra
mas vinham
e petroleiros jatos caminhões nas BR televisores transistores corretores
descobriram subitamente
Jesus.
(Quem adquire a big cesta de natal Tremendous
no ato de pagamento da primeira prestação
recebe prêmio garantido
e concorre
na última quarta-feira de cada mês
— números correspondentes aos da Loteria Federal —
a visões como um apartamento
um jipe
uma lambreta
um lunik
um anjo eletrônico
e mais:
ajuda quinhentos velhinhos
a provar alegria
pois a Obra de Senectude Evangélica
tem comissão em cada cesta vendida.)
… na manjedoura?
no presépio?
no chão, diante do pórtico arruinado, como em Siena o pintou Francesco Giorgio?
na capelinha torta de São Gonçalo do Rio Abaixo?
na big cesta de natal?
… repousa o Infante esperado.
As luzes em que o esculpiram tornam-lhe o corpo dourado.
O Cristo é sempre novo, e na fraqueza deste menino
há um silencioso motor, uma confidência e um sino.
Nasce a cada dezembro e nasce de mil jeitos.
Temos de pesquisá-lo até na gruta de nossos defeitos.
Ministros deputados presidentes de sindicatos
prosternam-se, estabelecendo os primeiros contatos.
Preside (mal) as assembleias de todas as sociedades
anônimas, anônimo ele próprio, nas inumerabilidades
de sua pobritude. E tenta renascer a cada hora
em que se distrai nossa polícia, assim como uma flora
sem jardineiro apendoa, e, sem húmus, no espaço
restaura o dinamismo das nuvens. Sua pureza arma um laço
à astúcia terrestre com que todos nos defendemos
da outra face do amor, a face dos extremos.
Inventou-se menino para ser ao menos contemplado,
senão querido (pois amamos a nosso modo limitado,
e de criança temos pena, porque submersos garotos
ainda fazem boiar em nós seus barcos rotos,
e a tristeza infantil, malva seca no catecismo, nunca se esquece).
Assim o Cristo vem numa cantiga sem rumo, não na prece
com pandeiros alegres tocando
com chapéus de palhinha amarela
companheiros alegres cantando.
Ó lapinha,
menino de barro,
deus de brinquedo,
areia branca de córrego,
musgo de penhasco,
Belém de papel,
primeira utopia,
primeira abordagem
de território místico,
primeiro tremor.
Vi nascer um deus.
Onde, pouco importa.
Como, pouco importa.
Vi nascer um deus
em plena calçada
entre camelôs;
na vitrina da boutique
sorria ou chorava,
não sei bem ao certo;
a luz da boate
mal lhe debuxava
o mínimo perfil.
Vi nascer um deus
entre embaixadores
entre publicanos
entre verdureiros
entre mensalistas,
no Maracanã
em Para-lá-do-mapa,
quando os gatos rondam
a espinha da noite
os mendigos espreitam
os inferninhos
e no museu acordam as telas
informais
e o homem esquece
metade da ciência atômica:
vi nascer um deus.
O mais pobre,
o mais simples.
é uma flor de pânico apavorando os floricultores
A bomba
é o produto quintessente de um laboratório falido
A bomba
é miséria confederando milhões de misérias
A bomba
é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles
A bomba
é grotesca de tão metuenda e coça a perna
A bomba
dorme no domingo até que os morcegos esvoacem
A bomba
não tem preço não tem lunar não tem domicílio
A bomba
amanhã promete ser melhorzinha mas esquece
A bomba
não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está
A bomba
mente e sorri sem dente
A bomba
vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados
A bomba
é redonda que nem mesa redonda, e quadrada
A bomba
tem horas que sente falta de outra para cruzar
A bomba
furtou e corrompeu elementos da natureza e mais furtara e corrompera
A bomba
multiplica-se em ações ao portador e em portadores sem ação
A bomba
chora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminés
A bomba
faz week-end na Semana Santa
A bomba
brinca bem brincado o carnaval
A bomba
tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia
A bomba
industrializou as térmites convertendo-as em balísticos interplanetários
A bomba
sofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose, de verborreia
A bomba
não é séria, é conspicuamente tediosa
A bomba
envenena as crianças antes que comecem a nascer
A bomba
continua a envenená-las no curso da vida
A bomba
respeita os poderes espirituais, os temporais e os tais
A bomba
pula de um lado para outro gritando: eu sou a bomba
A bomba
é um cisco no olho da vida, e não sai
A bomba
é uma inflamação no ventre da primavera
A bomba
tem a seu serviço música estereofônica e mil valetes de ouro, cobalto e ferro além da comparsaria
A bomba
tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc.
A bomba
não admite que ninguém a acorde sem motivo grave
A bomba
quer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticos
A bomba
mata só de pensarem que vem aí para matar
A bomba
dobra todas as línguas à sua turva sintaxe
A bomba
saboreia a morte com marshmallow
A bomba
arrota impostura e prosopopeia política
A bomba
cria leopardos no quintal, eventualmente no living
A bomba
é podre
A bomba
gostaria de ter remorso para justificar-se, mas isso lhe é vedado
A bomba
pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo
A bomba
declara-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidade
A bomba
tem um clube fechadíssimo
A bomba
pondera com olho neocrítico o Prêmio Nobel
A bomba
é russamericanenglish mas agradam-lhe eflúvios de Paris
A bomba
oferece na bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos de paz
A bomba
não terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistas
A bomba
desenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger velhos e criancinhas
A bomba
não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer
A bomba
é câncer
A bomba
vai à lua, assovia e volta
A bomba
reduz neutros a neutrinos, e abana-se com o leque da reação em cadeia
A bomba
está abusando da glória de ser bomba
A bomba
não sabe quando, onde e por que vai explodir, mas preliba o instante inefável
A bomba
fede
A bomba
é vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolina
A bomba
com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve
A bomba
não destruirá a vida
O homem
(tenho esperança) liquidará a bomba.
I
o míssil o físsil
a arte o infarte
o ocre o canopo
a urna o farniente
a foice o fascículo
a lex o judex
o maiô o avô
a ave o mocotó
o só o sambaqui
II
o muro a rêmora
a suicida o cibo
a litotes Aristóteles
a paz o pus
o licantropo o liceu
o flit o flato
a víbora o heléboro
o êmbolo o bolo
o boliche o relincho
III
o ditirambo o cachimbo
a cutícula o ventríloquo
a lágrima o magma
o chumbo o nelumbo
a fórmica a fúcsia
o bilro o pintassilgo
o malte o gerifalte
o crime o aneurisma
a tâmara a Câmara
IV
a medusa o pégaso
a erisipela a elipse
a ama o sistema
o quimono o amoníaco
a nênia o nylon
o cimento o ciumento
a juba a jacuba
o mendigo a mandrágora
o boné a boa-fé
V
o pároco o báratro
a isca o menisco
o idólatra o hidrópata
o plátano o plástico
a tartaruga a ruga
o estômago o mago
o amanhecer o ser
a galáxia a gloxínia
o cadarço a comborça
VI
o colubiazol o gazel
o lepidóptero o útero
o equívoco o fel no vidro
a joia a triticultura
o know-how o nocaute
o dogma o borborigmo
o úbere o lúgubre
o nada a obesidade
a cárie a intempérie
VII
o cemitério a marinha
a flor a canéfora
o pícnico o pícaro
o cesto o incesto
o cigarro a formicida
a aorta o Passeio Público
o mingau a migraine
o leste a leitura
a girafa a jitanjáfora
VIII
o coturno o estorno
a pia a piedade
a nolição o nonipétalo
o radar o nácar
o solferino o aquinatense
o bacon o dramaturgo
o legal a galena
o azul a lues
a palavra a lebre
IX
a noite o bis-coito
o sestércio o consórcio
o ético a ítaca
a preguiça a treliça
o castiço o castigo
o arroz o horror
a nêspera a vêspera
o papa a joaninha
as endoenças os antibióticos
X
o doce de pássaro
a passa de pêsame
o cio a poesia
a força do destino
a pátria a saciedade
o cudelume Ulalume
o zum-zum de Zeus
o bômbix
o ptyx
forma
forma
que se esquiva
por isso mesmo viva
no morto que a procura
a cor não pousa
nem a densidade habita
nessa que antes de ser
já
deixou de ser não será
mas é
forma
festa
fonte
flama
filme
e não encontrar-te é nenhum desgosto
pois abarrotas o largo armazém do factível
onde a realidade é maior do que a realidade
Paloma, Violetera, Feuilles Mortes,
Saudades do Matão e de mais quem?
A música barata me visita
e me conduz
para um pobre nirvana à minha imagem.
Valsas e canções engavetadas
num armário que vibra de guardá-las,
no velho armário, cedro, pinho ou…?
(O marceneiro ao fazê-lo bem sabia
quanto essa madeira sofreria.)
Não quero Handel para meu amigo
nem ouço a matinada dos arcanjos.
Basta-me
o que veio da rua, sem mensagem,
e, como nos perdemos,
se perdeu.
Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.
Sem uso,
ela nos espia do aparador.
O dente morde a fruta envenenada
a fruta morde o dente envenenado
o veneno morde a fruta e morde o dente
o dente, se mordendo, já descobre
a polpa deliciosíssima do nada.
Em nome de que lei?
Acaso lei tem nome?
Em nome de que nome
cujo agora me some
se em sonho o soletrei?
Abre em nome do rei.
Em nome de que rei
é a porta arrombada
para entrar o aguazil
que na destra um papel
sinistramente branco
traz, e ao ombro o fuzil?
Abre em nome de til.
Abre em nome de abrir,
em nome de poderes
cujo vago pseudônimo
não é de conferir:
cifra oblíqua na bula
ou dobra na cogula
de inexistente frei.
Abre em nome da lei.
Abre sem nome e lei.
Abre mesmo sem rei.
Abre, sozinho ou grei.
Não, não abras; à força
de intimar-te, repara:
eu já te desventrei.