DISCURSO

 

Eternidade:

os morituros te saúdam.

 

Valeu a pena farejar-te

na traça dos livros

e nos chamados instantes inesquecíveis.

 

Agônico

em êxtase

em pânico

em paz

o mundo-de-cada-um dilata-se até as lindes

do acabamento perfeito.

 

Eternidade:

existe a palavra,

deixa-se possuir, na treva tensa.

 

Incomunicável

o que deciframos de ti

e nem a nós mesmos confessamos.

 

Teu sorriso não era de fraude.

Não cintilas como é costume dos astros.

Não és responsável pelo que bordam em tua corola

os passageiros da presiganga.

 

Eternidade,

os morituros te beijaram.

 

 

O DEUS MAL INFORMADO

 

No caminho onde pisou um deus

há tanto tempo que o tempo não lembra

resta o sonho dos pés

sem peso

sem desenho.

 

Quem passe ali, na fração de segundo,

em deus se erige, insciente, deus faminto,

saudoso de existência.

 

 

Vai seguindo em demanda de seu rastro,

é um tremor radioso, uma opulência

de impossíveis, casulos do possível.

 

Mas a estrada se parte, se milparte,

a seta não aponta

destino algum, e o traço ausente

ao homem torna homem, novamente.

 

 

A FALTA QUE AMA

 

Entre areia, sol e grama

o que se esquiva se dá,

enquanto a falta que ama

procura alguém que não há.

 

Está coberto de terra,

forrado de esquecimento.

Onde a vista mais se aferra,

a dália é toda cimento.

 

A transparência da hora

corrói ângulos obscuros:

cantiga que não implora

nem ri, patinando muros.

 

Já nem se escuta a poeira

que o gesto espalha no chão.

A vida conta-se, inteira,

em letras de conclusão.

 

Por que é que revoa à toa

o pensamento, na luz?

E por que nunca se escoa

o tempo, chaga sem pus?

 

O inseto petrificado

na concha ardente do dia

une o tédio do passado

a uma futura energia.

 

No solo vira semente?

Vai tudo recomeçar?

É a falta ou ele que sente

o sonho do verbo amar?

 

LIBERDADE

 

Sonho de fim de semana

sem analista

voar baixar planar

por conta própria

águias interpretadas a teu bel-prazer

intérpretes elas mesmas

tudo se mira na lagoa

do mundo explicado por si.

 

 

A VOZ

 

Uma canção cantava-se a si mesma

na rua sem foliões. Vinha no rádio?

Seu carnaval abstrato, flor de vento,

era provocação e nostalgia.

 

Tudo que já brincou brincava, trêmulo,

no vazio da tarde. E outros brinquedos,

futuros, se brincavam, lecionando

uma lição de festa sem motivo

 

à terra imotivada. E o longo esforço,

pesquisa de sinal, busca entre sombras,

marinhagem na rota do divino,

 

cede lugar ao que, na voz errante,

procura introduzir em nossa vida

certa canção cantada por si mesma.

 

 

QUALQUER TEMPO

 

Qualquer tempo é tempo.

A hora mesma da morte

é hora de nascer.

 

Nenhum tempo é tempo

bastante para a ciência

de ver, rever.

 

Tempo, contratempo

anulam-se, mas o sonho

resta, de viver.

 

 

DIÁLOGO

 

No banco de jardim

o velho conversando

uma forma de flor.

 

O amor dos cachorrinhos

oferta-se em exemplo

inútil para o velho

maligno para a flor.

 

O velho conversando

o banco no jardim

de onde a flor deserta.

 

O velho conversando-se

é banco de jardim

mas em jardim nenhum.

 

 

BROTO

 

I

 

Broto de verão

na linha de inverno:

que meandro ou cifra

conduz ao eterno?

 

Broto, bravo, brinco,

metade dragão,

metade ornitorrinco:

é celeste o inferno?

 

Jatos no aeroporto

calam a sextina

do bardo retorto

à fel-melusina.

 

Broto bem neblina.

 

II

 

O broto mais broto

brota sem terreno,

tenro verde alerta

sobre fundo neutro.

 

Broto inesperado,

brota na luz baça

que reduz a verme

toda forma falsa.

 

Último relincho

de tordilho manso

no pasto das coisas

despojadas de ânsia.

 

 

ELEGIA TRANSITIVA

 

Dizer — Viagem, e forma-se

o halo de separação entre presenças

contíguas no bairro; infinitamente recua,

apaga-se o conhecimento. Quem és tu, que embarcas

num jato de olvido e chegam postais em mexichrome

com o diabo velando na torre de Notre-Dame?

Furtaste a um ser gravado em pele

a voz

o gesto

a cor predileta dos trajes

e esse alguém desmorona, falto de atributos.

Como aceitar? Quem suprirá o perdido?

Quem permanece igual, se em volta

os elementos se desintegraram?

 

Existia a viagem

desde sempre; não era percebida,

doença oculta

sob uniforme olímpico;

pequenas fugas, ensaios, despedida na esquina

comercial. Noite

entre dois escritórios ou livings,

e tudo na aparência recomeça

com a placidez dos relógios,

a segurança dos estatutos.

E não se mede o espaço. Uma viagem

é imóvel, sem rigidez. Invisível, preside

ao primeiro encontro. Todo encontro,

escala que se ignora.

Agora

quem és tu, couleur des yeux,

couleur des cheveux, signes printanniers,

 

lieu et date de naissance?

The validity of this certificate shall extend for a period of three seconds

ou por eternidades abissais?

 

Despojados antes que nos despojem,

apenas reconhecemos

uma antiga, sonolenta privação de bens conversáveis e táteis,

viajar-de-mentira, fazer-viajar por omissão.

Resta conferir apontamentos

de falta: o telefone petrificado;

envelopes do Hotel Marunouchi, Tóquio;

Laurien’s, Agra; recado a lápis

rabiscado no Albergo della Gioia, Via delle Quatri Fontane

ou (premonição) no Pouso de Chico-Rei;

exposição de malas malabertas em lojas;

a página marítima do Jornal do Comércio;

preço do dólar;

lugares onde

se

quando

habitavas um tempo

e a cidade era teu anel e colar.

 

Onde habitas agora,

como saber tuas joias errantes?

Que ardil para imaginar o novo corpo

onde se esboça a lucilação

diversa, e outra música?

Lento, conhecer; obscuro, ter conhecido;

e em nosso museu desapropriado a angústia passeia

altas perguntas sem contestação.

 

Viajar é notícia

de que ficamos sós à hora de nascer?

 

 

O FIM NO COMEÇO

 

A palavra cortada

na primeira sílaba.

A consoante esvanecida

sem que a língua atingisse o alvéolo.

O que jamais se esqueceria

pois nem principiou a ser lembrado.

O campo — havia, havia um campo? —

 

irremediavelmente murcho em sombra

antes de imaginar-se a figura

de um campo.

 

A vida não chega a ser breve.

 

 

ACONTECIMENTO

 

O sangue dos bodes e dos touros

seca no Antigo Testamento.

O maná e a vara dentro da urna

de ouro

desaparecem. Na planície

balouça unicamente

o berço

de feno, concha lumiada

pelo clarão do Paracleto,

que é justiça e consolo,

com uma cruz dormindo entre cordeiros.

Nova palavra — Amor — é descoberta

nas cinzas de outra igual e já sem música.

Desde então, fere mais a nostalgia

do sempre, em nosso barro.

 

 

COMENTÁRIO

 

De Andrades o androide,

não a mina de ouro.

Ter avô riquinho

é de mau agouro.

 

Na guerra mais íntima

sonhar com derrota.

Luz em poeira fina,

o orgulho se esgota.

 

Pasta no sol-posto

o tardo besouro.

Verso: covardia

de soldado mouro.

MEU IRMÃO PENSADO EM ROMA

 

Conclui em Minas o trabalho

de conviver.

 

Em Roma, começa a nascer.

 

Sua morte, Piazza Vulture,

penetra num desconhecido.

 

Quando ele mesmo já não pensa,

eis que começa a ser pensado.

 

Ser revestido, refletido

nas fontes;

no restaurante, mastigado.

 

Meu irmão habitando Roma

como habitam informações.

 

Parecia que estava em Minas

e em Minas fora sepultado.

 

Estava circulando em Roma

atomizado,

meu irmão em Roma pensado

pensada Roma

pensada.

 

 

HALLEY

 

O sol vai diminuindo

de tamanho e calor e interesse em teu redor.

Há menos razões de rir e até de chorar.

Alguém toca — talvez — a campainha.

Depressa! Não há mais tempo para te vestires,

o barco sombrio impaciente na rua.

Tudo é como se não acontecido,

pois depois de acontecer — restou o quê?

 

Ah, sim, restou Halley

iluminando de ponta a ponta o céu de 1910.

O menino Murilo Mendes o contemplava em Juiz de Fora

o menino Marques Rebelo em Vila Isabel

o menino Carlos no mato-dentro de Itabira

os três absolutamente fascinados

como o contemplaria no Brabante em 1302 o menino Ruysbrock-o-Admirável.

 

Halley voltará

Halley volta sempre

com a pontualidade comercial dos astros.

Pouco importa sejam outros meninos que o hão de ver em 1986

iluminando de ponta a ponta

a noite da vida.

 

 

SUB

 

reptício

merso

consciente

liminar

marginal

desenvolvido

dividido

alterno

serviente

vencionado

delegado

versivo

lunar

tegmine fagi

 

 

COMUNHÃO

 

Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo,

eu no centro.

Nenhum tinha rosto. Eram reconhecíveis

pela expressão corporal e pelo que diziam

no silêncio de suas roupas além da moda

e de tecidos; roupas não anunciadas

nem vendidas.

Nenhum tinha rosto. O que diziam

escusava resposta,

ficava parado, suspenso no salão, objeto

denso, tranquilo.

Notei um lugar vazio na roda.

Lentamente fui ocupá-lo.

Surgiram todos os rostos, iluminados.

 

 

BENS E VÁRIA FORTUNA DO PADRE MANUEL RODRIGUES, INCONFIDENTE

 

1o inventário

 

Que armas escondia

em sua fazenda do Registro Velho

o inimigo da Rainha

a perpétuo degredo condenado?

3 manustérgios

1 pala de corporal

2 sanguinhos

1 cíngulo

1 alva

1 mantelete

2 estolas

4 manípulos

2 véus de cálice

2 tapetes de supedâneo

e

1 aquífera para ofertório.

 

2o inventário

 

3 manustérgios

1 corporal

1 brinco com olhinhos de mosquito

2 sanguinhos 3 amitos

1 casaca de lemiste forrada de tafetá roxo

1 cíngulo

3 tomos de Cartas de Ganganelli

2 chapinhas de ouro de pescocinho

4 manípulos

2 casulas

1 lacinho de prata com pedras amarelas

1 leito grande de pau preto torneado

1 mantelete

1 bacia grande que terá de peso meia arroba

1 dita pequena de urinar

1 tomo de Obras Poéticas de Garção

1 aquífera para ofertório

2 tapetes de supedâneo

1 jaleco de cetim de flores

1 papa de pelo branco de lã

2 preguiceiros cobertos de couro

1 tomo de Instruções para cultura de amoreiras

4 camisas de bretanha

1 calção de veludo preto

1 chorão com seu jaleco de ganga

1 tomo da Recreação Filosófica

1 dito da Arte de Navegar

1 loba de gala 4 palas 1 alva

1 negro por nome Caetano de nação angola

3 breviários

1 óculo de papelão de ver ao longe

o que tudo importa

em degredo por toda a vida na Ilha do Príncipe

aliás comutado pela clemência do Príncipe Nosso Senhor.

 

 

O PAR LIBERTADO

 

No centro

no centro de uma praça

no centro de uma praça circular

eis-nos sentados, contemplados

novos Rei e Rainha de Henry Moore

menos reverenciados que inquiridos

por guardas e pedestres

computadores

fotógrafos vorazes.

 

Imóveis como convém ao estar na praça

bem no centro do olhar

em nossas mãos pousa a partícula de pó

viajado de outras praças

a caminho de outras (e perdeu-se

para ser nossa leve companhia).

 

Nossas microbiografias não seduzem

a pergunta mundial.

Querem saber de nós o que não pode

ser dito

nem se chega a pensar, uma existência

não basta para tanto:

segredo que se fecha sem esforço

porque futuro e branco.

 

(Na dignidade da postura

paralítica, ausente de sentido,

irradiamos talvez

surda sabedoria

flor e sumo de todo não fazer.)

 

Irritam-se insofiridos

nossos inspetores

e de um mal nos acusam

imperdoável mais do que tolera

de não escritas leis a face branda:

o crime de calar

quando atinge à palavra o som do inseto

e há escola de grito submarino.

 

No centro de uma praça ou de uma arena?

de teatro? senado? consultório

metafísico, bolsa de valores

que valem mais e menos cada instante

se o investidor vai morrer ou vai amar?

No quarto-cama-kit devassado

pelo raio de mil vidraças e sistemas?

 

Bem no centro do mundo

bem no centro

ou

nessa plataforma espacial

quedamos longe

de vossa curiosidade e até de nossa

mesma nostalgia dos espelhos.

Em deserto nos vemos e sorrimos

imperceptivelmente

imóveis

imêmores

imantados

pelo aço do silêncio em nós cravado.

 

 

K.

 

Uma letra procura

o calor do alfabeto.

Uma letra perdida

no palor da estalagem.

Constante matemática

na teia de variáveis,

uma letra se esforça

por subir à palavra

que não se molda nunca

ou se omite à leitura

na câmara sombria,

carvão cavado em dia.

 

O ponto segue a letra

em seu itinerário.

Cachorro, escravo, mínimo

ajudante de busca,

fadado a consumir-se

ante constelações

de símbolos multívocos,

ele próprio enganando

a seu amo, no engano

de pleitear a chave

do que é voo, na ave.

 

K.

Mas o alfabeto existe

fora de qualquer letra,

em si, por si, na graça

de existir, na miséria

de não ser decifrado,

mesmo que seja amado.

O súbito vocábulo

queima de sul a norte

o espaço neutro, e nele

a letra não figura.

A letra inapelada

que exprime tudo, e é nada.

 

 

OS NOMES MÁGICOS

 

sêdula syfra cynal

çomma

bredda kreza kressynk dekred

ryokred

fydex fynywest ynwesko

horwendys

hortek

del-tek

ha-les

halley áureo foguete em órbita 180

210 240 360 dias-cruzeiro

melódico deságio & borborigmo de presságio

Quando seremos ricos, morena?

No fim de $ 5 anos-kofybrasa

se não perdermos até o ouro das cáries

e ainda restar memória de riqueza

no ar nohrlar

 

 

NOTÍCIA DE SEGALL

 

Segall desaparecido

ressurge no preto e branco

da linha pura

lacônica

exata

conta a gravidade do ser

perdido

numa aventura sem explicação

se não existisse o amor

antecâmara da piedade

e a poesia

erva renitente no ar sem raiz

poesia que elimina o som

e volta à linha

como as criaturas voltam a si mesmas

na visão de Segall prospectivo-nostálgica.

 

A seu gesto

a madeira o cobre o ácido revelam

entre sulcos aquele

que conduz à negação do labirinto

ao essencial das coisas

cicatriz

relâmpago

tristeza depositada no quarto

de velório no florir da moça

no ver

no simples ver o visto todo dia

em seu carvão de rude e mel

no objeto exposto

com desespero contido

filtrado

pacificado

sobre a dor bíblica intemporal

e a dor contemporânea

que podemos pegar de tão doendo

até pressentir a alegria do conhecimento

solidário.

 

Somos chamados

a compreender e amar num ato único

as formas as gentes os animais retirados da noite

para a festa de serenidade melancólica

no coração-estúdio de Lasar Segall

aberto em confissão

aos murmúrios da terra.

 

 

CRIAÇÃO

 

Como o berilo escolhe o anel

como a nuvem escolhe a paisagem

a cabeleira escolhe a cabeça

onde pousar.

 

E nela instala

sua noite de ouro ou sonata

em cuja trama se adivinha

aquele selo, aquela extrema

estrela nunca planejada.

 

Revelação

alga primeira

princípio de chama

corola

que se despetala, compondo

mil imóveis voos de pássaro,

vai desdobrando na mulher

outras hipóteses de ser.

 

És o sonho de uma cabeleira.

 

 

MAUD

 

Do tempo não visitado surge Maud

e volta

para o tempo não visitado.

 

Por que chegou, por que partiu

por que ligou seu nome às coisas

por que existiu, canção-intervalo

entre dois blocos de silêncio?

 

Maud veio dar um recado?

E, tão depressa dado, se foi?

Ou veio ouvir para contar

a uma assembleia distante, ávida

de notícias terrestres que se ocultam

na página mais branca?

 

Decerto não foi a passeio

que pisou o chão, que viu a paisagem.

Em seu caminhar, a pressa ardente

marca o essencial. Maud vai a serviço.

 

Porventura sabe que serviço é esse?

É dedicar-se, é manifestar-se

através de outro, nele refletir-se?

De quantos possíveis faz-se uma tarefa,

quantos impossíveis a constelam?

Saber a ordem não é importante

analisar a ordem não é importante

cumprir a ordem é importante.

 

Cintilação da ordem no desencontro

de um em um, de todos em ninguém

e do encontro maior

de um em dois, no silo do acaso,

galeria onde o quadro não estava exposto

e de repente se criou

rodeado de música,

sonata de Leclair juntando o gosto

francês ao italiano:

o som é cor, a cor, viola-de-amor.

 

O artista ilumina-se

à rápida, penserosa lanterna

que redescobre, povoa o universo.

Boia, nelumbo, no cristal da Fonte

a palavra-chave

gravada no alto da Torre.

O artista amanhece

entre beatitudes, abismos claros, sóis penetráveis:

doação-minuto

de Maud: sua passagem.

 

Agora, ei-la retorna,

desintegra-se no carro de fogo,

que a visão reste visão além do espaço,

E tudo tem sentido

e tudo resplandece na Verdade.

 

 

CORPORAL

 

O arabesco em forma de mulher

balança folhas tenras no alvo

da pele.

Transverte coxas em ritmos,

joelhos em tulipas. E dança

repousando. Agora se inclina

em túrgidas, promitentes colinas.

 

Todo se deita: é uma terra

semeada de minérios redondos,

braceletes, anéis multiplicados,

bandolins de doces nádegas cantantes.

 

Onde finda o movimento, nasce

espontânea a parábola,

e um círculo, um seio, uma enseada

fazem fluir, ininterruptamente,

a modulação da linha.

 

De cinco, dez sentidos, infla-se

o arabesco, maçã

polida no orvalho

de corpos a enlaçar-se e desatar-se

em curva curva curva bem-amada,

e o que o corpo inventa é coisa alada.

 

 

FALTA POUCO

 

Falta pouco para acabar

o uso desta mesa pela manhã

o hábito de chegar à janela da esquerda

aberta sobre enxugadores de roupa.

Falta pouco para acabar

a própria obrigação de roupa

a obrigação de fazer barba

a consulta a dicionários

a conversa com amigos pelo telefone.

 

Falta pouco

para acabar o recebimento de cartas

as sempre adiadas respostas

o pagamento de impostos ao país, à cidade

as novidades sangrentas do mundo

a música dos intervalos.

 

Falta pouco para o mundo acabar

sem explosão

sem outro ruído

além do que escapa da garganta com falta de ar.

 

Agora que ele estava principiando

a confessar

na bruma seu semblante e melodia.

 

 

CANTILENA PRÉVIA

 

Don don dorondondon

É o Castelo de Drummond

que vai à penhora.

 

Don don dorondondon

É a soberba de Drummond

que vai-se embora.

 

Don don dorondondon

É o prazo de Drummond

que termina agora.

 

É o prazo de Drummond

que ainda não termina.

Din din Resta uma resina.

 

Din din Resta uma farinha

de substantivo, infrassom

de voz, na voz de Drummond?

 

Don don don

O morto Drummond

sorri à lembrança

 

de estar morto (don)

alva não consciência

(din) de maior ciência.

 

Dindon dorondin din

O que sabe agora

não o diz Drummond.

 

Sabe para si.

Sabe por si só.

Sabe, só, sem som.

 

É de rinfonfon.

E sem cor nem tom.

É completo. É bom.

 

 

TU? EU?

 

Não morres satisfeito.

A vida te viveu

sem que vivesses nela.

E não te convenceu

nem deu qualquer motivo

para haver o ser vivo.

 

A vida te venceu

em luta desigual.

Era todo o passado

presente presidente

na polpa do futuro

acuando-te no beco.

Se morres derrotado,

não morres conformado.

 

Nem morres informado

dos termos da sentença

de tua morte, lida

antes de redigida.

Deram-te um defensor

cego surdo estrangeiro

que ora metia medo

ora extorquia amor.

 

Nem sabes se és culpado

de não ter culpa. Sabes

que morres todo o tempo

no ensaiar errado

que vai a cada instante

desensinando a morte

quanto mais a soletras,

sem que, nascido, mores

onde, vivendo, morres.

 

Não morres satisfeito

de trocar tua morte

por outra mais (?) perfeita.

Não aceitas teu fim

como aceitaste os muitos

fins em volta de ti.

 

Testemunhaste a morte

no privilégio de ouro

de a sentires em vida

através de um aquário.

Eras tu que morrias

nesse, naquela; e vias

teu ser evaporado

fugir à percepção.

Estranho vivo, ausente

na suposta consciência

de imperador cativo.

 

Foste morrendo só

como sobremorrente

no lodoso telhado

(era prêmio, castigo?)

de onde a vista captava

o que era abraço e não

durava ou se perdia

em guerra de extermínio,

horror de lado a lado.

 

E tudo foi a caça

veloz fugindo ao tiro

e o tiro se perdendo

em outra caça ou planta

ou barro, arame, gruta.

E a procura do tiro

e do atirador

(nem sequer tinha mãos),

a procura, a procura

da razão de procura.

 

Não morres satisfeito,

morres desinformado.

 

 

A TORRE SEM DEGRAUS

 

No térreo se arrastam possuidores de coisas recoisificadas.

No 1o andar vivem depositários de pequenas convicções, mirando-as
remirando-as com lentes de contato.

No 2o andar vivem negadores de pequenas convicções, pequeninos eles mesmos.

No 3o andar — tlás tlás — a noite cria morcegos.

No 4o, no 7o, vivem amorosos sem amor, desamorando.

No 5o, alguém semeou de pregos dentes de fera cacos de espelho a pista
encerada para o baile das debutantes de 1848.

No 6o, rumina-se política na certeza-esperança de que a ordem precisa mudar deve mudar há de mudar, contanto que não se mova um alfinete para isso.

No 8o, ao abandono, 255 cartas registradas não abertas selam o mistério da
expedição dizimada por índios Anfika.

No 9o, cochilam filósofos observados por apoftegmas que não chegam a
conclusão plausível.

No 10o, o rei instala seu gabinete secreto e esconde a coroa de crisópsis na terrina.

No 11o, moram (namoram?) virgens contidas em cintos de castidade.

No 12o, o aquário de peixes fosforescentes ilumina do teto a poltrona de um
cego de nascença.

Atenção, 13o. Do 24o baixará às 23h um pelotão para ocupar-te e flitar a bomba suja, de que te dizes depositário.

No 14o, mora o voluntário degolado de todas as guerras em perspectiva,
disposto a matar e a morrer em cinco continentes.

No 15o, o último leitor de Dante, o último de Cervantes, o último de Musil,
o último do Diário Oficial dizem adeus à palavra impressa.

No 16o, agricultores protestam contra a fusão de sementes que faz nascerem
cereais invertidos e o milho produzir crianças.

No 17o, preparam-se orações de sapiência, tratados internacionais, bulas de antibióticos.

Não se sabe o que aconteceu ao 18o, suprimido da Torre.

No 19o, profetas do Antigo Testamento conferem profecias no computador analógico.

No 20o, Cacex Otan Emfa Joc Juc Fronap fbi Usaid Cafesp Alalc Eximbank
trocam de letras, viram Xfp, Jjs, IxxU e que sei mais.

No 22o, banqueiros incineram duplicatas vencidas, e das cinzas nascem
novas duplicatas.

No 23o, celebra-se o rito do boi manso, que de tão manso ganhou biografia
e auréola.

No 24o, vide 13o.

No 25o, que fazes tu, morcego do 3o? que fazes tu, miss adormecida na passarela?

No 26o, nossas sombras despregadas dos corpos passeiam devagar, cumprimentando-se.

O 27o é uma clínica de nervosos dirigida por general-médico reformado, e em
que aos sábados todos se curam para adoecer de novo na segunda-feira.

Do 28o saem boatos de revolução e cruzam com outros de contrarrevolução.

Impróprio a qualquer uso que não seja o prazer, o 29o foi declarado inabitável.

Excesso de lotação no 30o: moradores só podem usar um olho, uma perna,
meias palavras.

No 31o, a Lei afia seu arsenal de espadas inofensivas, e magistrados cobrem-se
com cinzas de ovelhas sacrificadas.

No 32o, a Guerra dos 100 Anos continua objeto de análise acuradíssima.

No 33o, um homem pede para ser crucificado e não lhe prestam atenção.

No 34o, um ladrão sem ter o que roubar rouba o seu próprio relógio.

No 35o, queixam-se da monotonia deste poema e esquecem-se da monotonia
da Torre e das queixas.

Um mosquito é, no 36o, único sobrevivente do que foi outrora residência
movimentada com jantares óperas pavões.

No 37o, a canção

Fiorela amarlina

louliseno i flanura

meliglírio omoldana

plunigiário olanin.

No 38o, o parlamento sem voz, admitido por todos os regimes, exercita-se na
mímica de orações.

No 39o, a celebração ecumênica dos anjos da luz e dos anjos da treva, sob a
presidência de um meirinho surdo.

No 40o, só há uma porta uma porta uma porta.

Que se abre para o 41o, deixando passar esqueletos algemados e conduzidos
por fiscais do Imposto de Consciência.

No 42o, goteiras formam um lago onde boiam ninfeias, e ninfetas executam
bailados quentes.

No 43o, no 44o, no... (continua indefinidamente).