os morituros te saúdam.
Valeu a pena farejar-te
na traça dos livros
e nos chamados instantes inesquecíveis.
Agônico
em êxtase
em pânico
em paz
o mundo-de-cada-um dilata-se até as lindes
do acabamento perfeito.
Eternidade:
existe a palavra,
deixa-se possuir, na treva tensa.
Incomunicável
o que deciframos de ti
e nem a nós mesmos confessamos.
Teu sorriso não era de fraude.
Não cintilas como é costume dos astros.
Não és responsável pelo que bordam em tua corola
os passageiros da presiganga.
Eternidade,
os morituros te beijaram.
há tanto tempo que o tempo não lembra
resta o sonho dos pés
sem peso
sem desenho.
Quem passe ali, na fração de segundo,
em deus se erige, insciente, deus faminto,
saudoso de existência.
Vai seguindo em demanda de seu rastro,
é um tremor radioso, uma opulência
de impossíveis, casulos do possível.
Mas a estrada se parte, se milparte,
a seta não aponta
destino algum, e o traço ausente
ao homem torna homem, novamente.
o que se esquiva se dá,
enquanto a falta que ama
procura alguém que não há.
Está coberto de terra,
forrado de esquecimento.
Onde a vista mais se aferra,
a dália é toda cimento.
A transparência da hora
corrói ângulos obscuros:
cantiga que não implora
nem ri, patinando muros.
Já nem se escuta a poeira
que o gesto espalha no chão.
A vida conta-se, inteira,
em letras de conclusão.
Por que é que revoa à toa
o pensamento, na luz?
E por que nunca se escoa
o tempo, chaga sem pus?
O inseto petrificado
na concha ardente do dia
une o tédio do passado
a uma futura energia.
No solo vira semente?
Vai tudo recomeçar?
É a falta ou ele que sente
o sonho do verbo amar?
sem analista
voar baixar planar
por conta própria
águias interpretadas a teu bel-prazer
intérpretes elas mesmas
tudo se mira na lagoa
do mundo explicado por si.
Uma canção cantava-se a si mesma
na rua sem foliões. Vinha no rádio?
Seu carnaval abstrato, flor de vento,
era provocação e nostalgia.
Tudo que já brincou brincava, trêmulo,
no vazio da tarde. E outros brinquedos,
futuros, se brincavam, lecionando
uma lição de festa sem motivo
à terra imotivada. E o longo esforço,
pesquisa de sinal, busca entre sombras,
marinhagem na rota do divino,
cede lugar ao que, na voz errante,
procura introduzir em nossa vida
certa canção cantada por si mesma.
A hora mesma da morte
é hora de nascer.
Nenhum tempo é tempo
bastante para a ciência
de ver, rever.
Tempo, contratempo
anulam-se, mas o sonho
resta, de viver.
o velho conversando
uma forma de flor.
O amor dos cachorrinhos
oferta-se em exemplo
inútil para o velho
maligno para a flor.
O velho conversando
o banco no jardim
de onde a flor deserta.
O velho conversando-se
é banco de jardim
mas em jardim nenhum.
I
na linha de inverno:
que meandro ou cifra
conduz ao eterno?
Broto, bravo, brinco,
metade dragão,
metade ornitorrinco:
é celeste o inferno?
Jatos no aeroporto
calam a sextina
do bardo retorto
à fel-melusina.
Broto bem neblina.
II
brota sem terreno,
tenro verde alerta
sobre fundo neutro.
Broto inesperado,
brota na luz baça
que reduz a verme
toda forma falsa.
Último relincho
de tordilho manso
no pasto das coisas
despojadas de ânsia.
o halo de separação entre presenças
contíguas no bairro; infinitamente recua,
apaga-se o conhecimento. Quem és tu, que embarcas
num jato de olvido e chegam postais em mexichrome
com o diabo velando na torre de Notre-Dame?
Furtaste a um ser gravado em pele
a voz
o gesto
a cor predileta dos trajes
e esse alguém desmorona, falto de atributos.
Como aceitar? Quem suprirá o perdido?
Quem permanece igual, se em volta
os elementos se desintegraram?
Existia a viagem
desde sempre; não era percebida,
doença oculta
sob uniforme olímpico;
pequenas fugas, ensaios, despedida na esquina
comercial. Noite
entre dois escritórios ou livings,
e tudo na aparência recomeça
com a placidez dos relógios,
a segurança dos estatutos.
E não se mede o espaço. Uma viagem
é imóvel, sem rigidez. Invisível, preside
ao primeiro encontro. Todo encontro,
escala que se ignora.
Agora
quem és tu, couleur des yeux,
couleur des cheveux, signes printanniers,
lieu et date de naissance?
The validity of this certificate shall extend for a period of three seconds
ou por eternidades abissais?
Despojados antes que nos despojem,
apenas reconhecemos
uma antiga, sonolenta privação de bens conversáveis e táteis,
viajar-de-mentira, fazer-viajar por omissão.
Resta conferir apontamentos
de falta: o telefone petrificado;
envelopes do Hotel Marunouchi, Tóquio;
Laurien’s, Agra; recado a lápis
rabiscado no Albergo della Gioia, Via delle Quatri Fontane
ou (premonição) no Pouso de Chico-Rei;
exposição de malas malabertas em lojas;
a página marítima do Jornal do Comércio;
preço do dólar;
lugares onde
se
quando
habitavas um tempo
e a cidade era teu anel e colar.
Onde habitas agora,
como saber tuas joias errantes?
Que ardil para imaginar o novo corpo
onde se esboça a lucilação
diversa, e outra música?
Lento, conhecer; obscuro, ter conhecido;
e em nosso museu desapropriado a angústia passeia
altas perguntas sem contestação.
Viajar é notícia
de que ficamos sós à hora de nascer?
na primeira sílaba.
A consoante esvanecida
sem que a língua atingisse o alvéolo.
O que jamais se esqueceria
pois nem principiou a ser lembrado.
O campo — havia, havia um campo? —
irremediavelmente murcho em sombra
antes de imaginar-se a figura
de um campo.
A vida não chega a ser breve.
O sangue dos bodes e dos touros
seca no Antigo Testamento.
O maná e a vara dentro da urna
de ouro
desaparecem. Na planície
balouça unicamente
o berço
de feno, concha lumiada
pelo clarão do Paracleto,
que é justiça e consolo,
com uma cruz dormindo entre cordeiros.
Nova palavra — Amor — é descoberta
nas cinzas de outra igual e já sem música.
Desde então, fere mais a nostalgia
do sempre, em nosso barro.
não a mina de ouro.
Ter avô riquinho
é de mau agouro.
Na guerra mais íntima
sonhar com derrota.
Luz em poeira fina,
o orgulho se esgota.
Pasta no sol-posto
o tardo besouro.
Verso: covardia
de soldado mouro.
de conviver.
Em Roma, começa a nascer.
Sua morte, Piazza Vulture,
penetra num desconhecido.
Quando ele mesmo já não pensa,
eis que começa a ser pensado.
Ser revestido, refletido
nas fontes;
no restaurante, mastigado.
Meu irmão habitando Roma
como habitam informações.
Parecia que estava em Minas
e em Minas fora sepultado.
Estava circulando em Roma
atomizado,
meu irmão em Roma pensado
pensada Roma
pensada.
de tamanho e calor e interesse em teu redor.
Há menos razões de rir e até de chorar.
Alguém toca — talvez — a campainha.
Depressa! Não há mais tempo para te vestires,
o barco sombrio impaciente na rua.
Tudo é como se não acontecido,
pois depois de acontecer — restou o quê?
Ah, sim, restou Halley
iluminando de ponta a ponta o céu de 1910.
O menino Murilo Mendes o contemplava em Juiz de Fora
o menino Marques Rebelo em Vila Isabel
o menino Carlos no mato-dentro de Itabira
os três absolutamente fascinados
como o contemplaria no Brabante em 1302 o menino Ruysbrock-o-Admirável.
Halley voltará
Halley volta sempre
com a pontualidade comercial dos astros.
Pouco importa sejam outros meninos que o hão de ver em 1986
iluminando de ponta a ponta
a noite da vida.
merso
consciente
liminar
marginal
desenvolvido
dividido
alterno
serviente
vencionado
delegado
versivo
lunar
tegmine fagi
Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo,
eu no centro.
Nenhum tinha rosto. Eram reconhecíveis
pela expressão corporal e pelo que diziam
no silêncio de suas roupas além da moda
e de tecidos; roupas não anunciadas
nem vendidas.
Nenhum tinha rosto. O que diziam
escusava resposta,
ficava parado, suspenso no salão, objeto
denso, tranquilo.
Notei um lugar vazio na roda.
Lentamente fui ocupá-lo.
Surgiram todos os rostos, iluminados.
BENS E VÁRIA FORTUNA DO PADRE MANUEL RODRIGUES, INCONFIDENTE
1o inventário
em sua fazenda do Registro Velho
o inimigo da Rainha
a perpétuo degredo condenado?
3 manustérgios
1 pala de corporal
2 sanguinhos
1 cíngulo
1 alva
1 mantelete
2 estolas
4 manípulos
2 véus de cálice
2 tapetes de supedâneo
e
1 aquífera para ofertório.
2o inventário
3 manustérgios
1 corporal
1 brinco com olhinhos de mosquito
2 sanguinhos 3 amitos
1 casaca de lemiste forrada de tafetá roxo
1 cíngulo
3 tomos de Cartas de Ganganelli
2 chapinhas de ouro de pescocinho
4 manípulos
2 casulas
1 lacinho de prata com pedras amarelas
1 leito grande de pau preto torneado
1 mantelete
1 bacia grande que terá de peso meia arroba
1 dita pequena de urinar
1 tomo de Obras Poéticas de Garção
1 aquífera para ofertório
2 tapetes de supedâneo
1 jaleco de cetim de flores
1 papa de pelo branco de lã
2 preguiceiros cobertos de couro
1 tomo de Instruções para cultura de amoreiras
4 camisas de bretanha
1 calção de veludo preto
1 chorão com seu jaleco de ganga
1 tomo da Recreação Filosófica
1 dito da Arte de Navegar
1 loba de gala 4 palas 1 alva
1 negro por nome Caetano de nação angola
3 breviários
1 óculo de papelão de ver ao longe
o que tudo importa
em degredo por toda a vida na Ilha do Príncipe
aliás comutado pela clemência do Príncipe Nosso Senhor.
no centro de uma praça
no centro de uma praça circular
eis-nos sentados, contemplados
novos Rei e Rainha de Henry Moore
menos reverenciados que inquiridos
por guardas e pedestres
computadores
fotógrafos vorazes.
Imóveis como convém ao estar na praça
bem no centro do olhar
em nossas mãos pousa a partícula de pó
viajado de outras praças
a caminho de outras (e perdeu-se
para ser nossa leve companhia).
Nossas microbiografias não seduzem
a pergunta mundial.
Querem saber de nós o que não pode
ser dito
nem se chega a pensar, uma existência
não basta para tanto:
segredo que se fecha sem esforço
porque futuro e branco.
(Na dignidade da postura
paralítica, ausente de sentido,
irradiamos talvez
surda sabedoria
flor e sumo de todo não fazer.)
Irritam-se insofiridos
nossos inspetores
e de um mal nos acusam
imperdoável mais do que tolera
de não escritas leis a face branda:
o crime de calar
quando atinge à palavra o som do inseto
e há escola de grito submarino.
No centro de uma praça ou de uma arena?
de teatro? senado? consultório
metafísico, bolsa de valores
que valem mais e menos cada instante
se o investidor vai morrer ou vai amar?
No quarto-cama-kit devassado
pelo raio de mil vidraças e sistemas?
Bem no centro do mundo
bem no centro
ou
nessa plataforma espacial
quedamos longe
de vossa curiosidade e até de nossa
mesma nostalgia dos espelhos.
Em deserto nos vemos e sorrimos
imperceptivelmente
imóveis
imêmores
imantados
pelo aço do silêncio em nós cravado.
o calor do alfabeto.
Uma letra perdida
no palor da estalagem.
Constante matemática
na teia de variáveis,
uma letra se esforça
por subir à palavra
que não se molda nunca
ou se omite à leitura
na câmara sombria,
carvão cavado em dia.
O ponto segue a letra
em seu itinerário.
Cachorro, escravo, mínimo
ajudante de busca,
fadado a consumir-se
ante constelações
de símbolos multívocos,
ele próprio enganando
a seu amo, no engano
de pleitear a chave
do que é voo, na ave.
K.
Mas o alfabeto existe
fora de qualquer letra,
em si, por si, na graça
de existir, na miséria
de não ser decifrado,
mesmo que seja amado.
O súbito vocábulo
queima de sul a norte
o espaço neutro, e nele
a letra não figura.
A letra inapelada
que exprime tudo, e é nada.
çomma
bredda kreza kressynk dekred
ryokred
fydex fynywest ynwesko
horwendys
hortek
del-tek
ha-les
halley áureo foguete em órbita 180
210 240 360 dias-cruzeiro
melódico deságio & borborigmo de presságio
Quando seremos ricos, morena?
No fim de $ 5 anos-kofybrasa
se não perdermos até o ouro das cáries
e ainda restar memória de riqueza
no ar nohrlar
ressurge no preto e branco
da linha pura
lacônica
exata
conta a gravidade do ser
perdido
numa aventura sem explicação
se não existisse o amor
antecâmara da piedade
e a poesia
erva renitente no ar sem raiz
poesia que elimina o som
e volta à linha
como as criaturas voltam a si mesmas
na visão de Segall prospectivo-nostálgica.
A seu gesto
a madeira o cobre o ácido revelam
entre sulcos aquele
que conduz à negação do labirinto
ao essencial das coisas
cicatriz
relâmpago
tristeza depositada no quarto
de velório no florir da moça
no ver
no simples ver o visto todo dia
em seu carvão de rude e mel
no objeto exposto
com desespero contido
filtrado
pacificado
sobre a dor bíblica intemporal
e a dor contemporânea
que podemos pegar de tão doendo
até pressentir a alegria do conhecimento
solidário.
Somos chamados
a compreender e amar num ato único
as formas as gentes os animais retirados da noite
para a festa de serenidade melancólica
no coração-estúdio de Lasar Segall
aberto em confissão
aos murmúrios da terra.
como a nuvem escolhe a paisagem
a cabeleira escolhe a cabeça
onde pousar.
E nela instala
sua noite de ouro ou sonata
em cuja trama se adivinha
aquele selo, aquela extrema
estrela nunca planejada.
Revelação
alga primeira
princípio de chama
corola
que se despetala, compondo
mil imóveis voos de pássaro,
vai desdobrando na mulher
outras hipóteses de ser.
És o sonho de uma cabeleira.
Do tempo não visitado surge Maud
e volta
para o tempo não visitado.
Por que chegou, por que partiu
por que ligou seu nome às coisas
por que existiu, canção-intervalo
entre dois blocos de silêncio?
Maud veio dar um recado?
E, tão depressa dado, se foi?
Ou veio ouvir para contar
a uma assembleia distante, ávida
de notícias terrestres que se ocultam
na página mais branca?
Decerto não foi a passeio
que pisou o chão, que viu a paisagem.
Em seu caminhar, a pressa ardente
marca o essencial. Maud vai a serviço.
Porventura sabe que serviço é esse?
É dedicar-se, é manifestar-se
através de outro, nele refletir-se?
De quantos possíveis faz-se uma tarefa,
quantos impossíveis a constelam?
Saber a ordem não é importante
analisar a ordem não é importante
cumprir a ordem é importante.
Cintilação da ordem no desencontro
de um em um, de todos em ninguém
e do encontro maior
de um em dois, no silo do acaso,
galeria onde o quadro não estava exposto
e de repente se criou
rodeado de música,
sonata de Leclair juntando o gosto
francês ao italiano:
o som é cor, a cor, viola-de-amor.
O artista ilumina-se
à rápida, penserosa lanterna
que redescobre, povoa o universo.
Boia, nelumbo, no cristal da Fonte
a palavra-chave
gravada no alto da Torre.
O artista amanhece
entre beatitudes, abismos claros, sóis penetráveis:
doação-minuto
de Maud: sua passagem.
Agora, ei-la retorna,
desintegra-se no carro de fogo,
que a visão reste visão além do espaço,
E tudo tem sentido
e tudo resplandece na Verdade.
balança folhas tenras no alvo
da pele.
Transverte coxas em ritmos,
joelhos em tulipas. E dança
repousando. Agora se inclina
em túrgidas, promitentes colinas.
Todo se deita: é uma terra
semeada de minérios redondos,
braceletes, anéis multiplicados,
bandolins de doces nádegas cantantes.
Onde finda o movimento, nasce
espontânea a parábola,
e um círculo, um seio, uma enseada
fazem fluir, ininterruptamente,
a modulação da linha.
De cinco, dez sentidos, infla-se
o arabesco, maçã
polida no orvalho
de corpos a enlaçar-se e desatar-se
em curva curva curva bem-amada,
e o que o corpo inventa é coisa alada.
o uso desta mesa pela manhã
o hábito de chegar à janela da esquerda
aberta sobre enxugadores de roupa.
Falta pouco para acabar
a própria obrigação de roupa
a obrigação de fazer barba
a consulta a dicionários
a conversa com amigos pelo telefone.
Falta pouco
para acabar o recebimento de cartas
as sempre adiadas respostas
o pagamento de impostos ao país, à cidade
as novidades sangrentas do mundo
a música dos intervalos.
Falta pouco para o mundo acabar
sem explosão
sem outro ruído
além do que escapa da garganta com falta de ar.
Agora que ele estava principiando
a confessar
na bruma seu semblante e melodia.
É o Castelo de Drummond
que vai à penhora.
Don don dorondondon
É a soberba de Drummond
que vai-se embora.
Don don dorondondon
É o prazo de Drummond
que termina agora.
É o prazo de Drummond
que ainda não termina.
Din din Resta uma resina.
Din din Resta uma farinha
de substantivo, infrassom
de voz, na voz de Drummond?
Don don don
O morto Drummond
sorri à lembrança
de estar morto (don)
alva não consciência
(din) de maior ciência.
Dindon dorondin din
O que sabe agora
não o diz Drummond.
Sabe para si.
Sabe por si só.
Sabe, só, sem som.
É de rinfonfon.
E sem cor nem tom.
É completo. É bom.
A vida te viveu
sem que vivesses nela.
E não te convenceu
nem deu qualquer motivo
para haver o ser vivo.
A vida te venceu
em luta desigual.
Era todo o passado
presente presidente
na polpa do futuro
acuando-te no beco.
Se morres derrotado,
não morres conformado.
Nem morres informado
dos termos da sentença
de tua morte, lida
antes de redigida.
Deram-te um defensor
cego surdo estrangeiro
que ora metia medo
ora extorquia amor.
Nem sabes se és culpado
de não ter culpa. Sabes
que morres todo o tempo
no ensaiar errado
que vai a cada instante
desensinando a morte
quanto mais a soletras,
sem que, nascido, mores
onde, vivendo, morres.
Não morres satisfeito
de trocar tua morte
por outra mais (?) perfeita.
Não aceitas teu fim
como aceitaste os muitos
fins em volta de ti.
Testemunhaste a morte
no privilégio de ouro
de a sentires em vida
através de um aquário.
Eras tu que morrias
nesse, naquela; e vias
teu ser evaporado
fugir à percepção.
Estranho vivo, ausente
na suposta consciência
de imperador cativo.
Foste morrendo só
como sobremorrente
no lodoso telhado
(era prêmio, castigo?)
de onde a vista captava
o que era abraço e não
durava ou se perdia
em guerra de extermínio,
horror de lado a lado.
E tudo foi a caça
veloz fugindo ao tiro
e o tiro se perdendo
em outra caça ou planta
ou barro, arame, gruta.
E a procura do tiro
e do atirador
(nem sequer tinha mãos),
a procura, a procura
da razão de procura.
Não morres satisfeito,
morres desinformado.
No térreo se arrastam possuidores de coisas recoisificadas.
No 1o andar vivem depositários de pequenas convicções, mirando-as
remirando-as com lentes de contato.
No 2o andar vivem negadores de pequenas convicções, pequeninos eles mesmos.
No 3o andar — tlás tlás — a noite cria morcegos.
No 4o, no 7o, vivem amorosos sem amor, desamorando.
No 5o, alguém semeou de pregos dentes de fera cacos de espelho a pista
encerada para o baile das debutantes de 1848.
No 6o, rumina-se política na certeza-esperança de que a ordem precisa mudar deve mudar há de mudar, contanto que não se mova um alfinete para isso.
No 8o, ao abandono, 255 cartas registradas não abertas selam o mistério da
expedição dizimada por índios Anfika.
No 9o, cochilam filósofos observados por apoftegmas que não chegam a
conclusão plausível.
No 10o, o rei instala seu gabinete secreto e esconde a coroa de crisópsis na terrina.
No 11o, moram (namoram?) virgens contidas em cintos de castidade.
No 12o, o aquário de peixes fosforescentes ilumina do teto a poltrona de um
cego de nascença.
Atenção, 13o. Do 24o baixará às 23h um pelotão para ocupar-te e flitar a bomba suja, de que te dizes depositário.
No 14o, mora o voluntário degolado de todas as guerras em perspectiva,
disposto a matar e a morrer em cinco continentes.
No 15o, o último leitor de Dante, o último de Cervantes, o último de Musil,
o último do Diário Oficial dizem adeus à palavra impressa.
No 16o, agricultores protestam contra a fusão de sementes que faz nascerem
cereais invertidos e o milho produzir crianças.
No 17o, preparam-se orações de sapiência, tratados internacionais, bulas de antibióticos.
Não se sabe o que aconteceu ao 18o, suprimido da Torre.
No 19o, profetas do Antigo Testamento conferem profecias no computador analógico.
No 20o, Cacex Otan Emfa Joc Juc Fronap fbi Usaid Cafesp Alalc Eximbank
trocam de letras, viram Xfp, Jjs, IxxU e que sei mais.
No 22o, banqueiros incineram duplicatas vencidas, e das cinzas nascem
novas duplicatas.
No 23o, celebra-se o rito do boi manso, que de tão manso ganhou biografia
e auréola.
No 24o, vide 13o.
No 25o, que fazes tu, morcego do 3o? que fazes tu, miss adormecida na passarela?
No 26o, nossas sombras despregadas dos corpos passeiam devagar, cumprimentando-se.
O 27o é uma clínica de nervosos dirigida por general-médico reformado, e em
que aos sábados todos se curam para adoecer de novo na segunda-feira.
Do 28o saem boatos de revolução e cruzam com outros de contrarrevolução.
Impróprio a qualquer uso que não seja o prazer, o 29o foi declarado inabitável.
Excesso de lotação no 30o: moradores só podem usar um olho, uma perna,
meias palavras.
No 31o, a Lei afia seu arsenal de espadas inofensivas, e magistrados cobrem-se
com cinzas de ovelhas sacrificadas.
No 32o, a Guerra dos 100 Anos continua objeto de análise acuradíssima.
No 33o, um homem pede para ser crucificado e não lhe prestam atenção.
No 34o, um ladrão sem ter o que roubar rouba o seu próprio relógio.
No 35o, queixam-se da monotonia deste poema e esquecem-se da monotonia
da Torre e das queixas.
Um mosquito é, no 36o, único sobrevivente do que foi outrora residência
movimentada com jantares óperas pavões.
No 37o, a canção
Fiorela amarlina
louliseno i flanura
meliglírio omoldana
plunigiário olanin.
No 38o, o parlamento sem voz, admitido por todos os regimes, exercita-se na
mímica de orações.
No 39o, a celebração ecumênica dos anjos da luz e dos anjos da treva, sob a
presidência de um meirinho surdo.
No 40o, só há uma porta uma porta uma porta.
Que se abre para o 41o, deixando passar esqueletos algemados e conduzidos
por fiscais do Imposto de Consciência.
No 42o, goteiras formam um lago onde boiam ninfeias, e ninfetas executam
bailados quentes.
No 43o, no 44o, no... (continua indefinidamente).