estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.
É isto, amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe
valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.
Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.
Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.
Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?
Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação,
pois ao dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.
Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor feito som
vibração espacial.
No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amaste antes.
Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não amor.
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio
me salvo e me dano: amor.
Esta paisagem? Não existe. Existe espaço
vacante, a semear
de paisagem retrospectiva.
A presença da serra, das imbaúbas,
das fontes, que presença?
Tudo é mais tarde.
Vinte anos depois, como nos dramas.
Por enquanto o ver não vê; o ver recolhe
fibrilhas de caminho, de horizonte,
e nem percebe que as recolhe
para um dia tecer tapeçarias
que são fotografias
de impercebida terra visitada.
A paisagem vai ser. Agora é um branco
a tingir-se de verde, marrom, cinza,
mas a cor não se prende a superfícies,
não modela. A pedra só é pedra
no amadurecer longínquo.
E a água deste riacho
não molha o corpo nu:
molha mais tarde.
A água é um projeto de viver.
Abrir porteira. Range. Indiferente.
Uma vaca-silêncio. Nem a olho.
Um dia este silêncio-vaca, este ranger
baterão em mim, perfeitos,
existentes de frente,
de costas, de perfil,
tangibilíssimos. Alguém pergunta ao lado:
O que há com você?
E não há nada
senão o som-porteira, a vaca silenciosa.
Paisagem, país
feito de pensamento da paisagem,
na criativa distância espacitempo,
à margem de gravuras, documentos,
quando as coisas existem com violência
mais do que existimos: nos povoam
e nos olham, nos fixam. Contemplados,
submissos, delas somos pasto,
somos a paisagem da paisagem.
O Museu de Erros passeia pelo mundo
estátuas andróginas
quadros despidos de moldura pintura tela
mas ativos
ideias conversíveis
planos tão racionais que chegam à vertigem do pensamento puro
embriões humanos in vitro
a sexalegria industrializada em artigos de supermercado.
Buzina
profecias de devastação para devaneio
dos que esperam escapar,
e em caprichado definitivo arco-íris
revela
o esplendor da verdade
sem verdade.
O museu moderno por excelência
viageiro visita
o interior das vísceras,
conta horror, beleza,
melodia, paz narcótica, novo horror.
As coleções têm a variedade
do que ainda não foi imaginado nem sentido.
O catálogo impresso em grito
lê, antes de ser lido,
visitantes apatetados
e nega-se a referir
o que é arte de amar sem computador.
O museu infiltra-se na plataforma submarina
onde se refugiam os derradeiros
homens e mulheres com cara de gente, irreconhecíveis.
Fulmina-os com seu raio, só existe agora o museu.
Sobe acima da lua, videofixa
a miséria estelar, novas espécies
do mal pré-histórico, presidente
imemorial da Natureza.
O museu muge eufórico
assume solenemente
o papel de deus-universo, espetáculo de si mesmo.
O pagamento está difícil.
Quando se fará a folha
e se construirá a máquina
que fará o cálculo e os descontos?
E quando se fabricará o dinheiro,
espécie nova de dinheiro,
para fazer o pagamento?
Quem receberá no primeiro lote
quem no segundo e no terceiro
se antes de tudo vier a morte
poupar serviço ao tesoureiro?
O pagamento está difícil.
A espera, quem é que paga a espera
e os extraordinários da esperança
e os serviços (esquecidos) dos pais
e dos avós e dos antiquérrimos?
O pagamento está difícil.
Que contador porá em dia as contas
e qual será o seu critério?
Irá medir produtividade,
assiduidade, pequenos méritos,
oblíquas faltas, imperfeitos
serões, tarefas de má vontade?
Só sairá o pagamento
depois do inquérito concluído?
O pagamento está difícil.
Nem um simples apontamento
foi tomado, não há controle
e direção?
Ou não houve serviço nunca,
ninguém jamais se empregou
nem patrões existiram nem
saiu produção de nada?
Não houve encomenda de nada
na fábrica inexistente,
e ninguém podia tomar nota
alguma em nenhum escritório?
Não cabe pois reclamar
nem salário nem horas extras
nem demora ou juros de mora?
O pagamento está difícil.
Difícil é o pagamento
ou conceber a estranha folha
que nunca sai
e saindo, não se registra
e registrada, não se paga
e pagando, não vale a cédula
e valendo, o vento a carrega
e carregando, foi bem feito
se não havia o que pagar?
O pagamento está difícil
porque não há com que pagar
o que não era de ser pago
e contudo está-se cobrando?
cobrando com unhas, gritos,
com bater pé, suplicar,
exigir latir bramir
chorar,
de lei na mão, uma lei feita
só de parágrafos riscados
outra vez escritos, outra vez
riscados escritos riscados
etc.?
O pagamento está difícil
ou já foi feito antes de tudo
há 40 anos, à sorrelfa,
que ninguém lembra ou se acaso lembra
é que o dinheiro era falso
era marcado era maldito
era por todos refugado?
O pagamento está difícil?
Depois de tão anunciado,
solenemente prometido,
foge o caixa, são massacrados
os condutores do dinheiro,
tudo é furtado num segundo
e o próprio assalto é simulado?
Some a ideia de pagamento
de tal sorte que ninguém mais
lhe conhece o significado
e os que reclamam não reclamam
com intenção de receber
mas por força do triste hábito?
e tornam-se mudos
de voz e gesto
e se esquecem todos
de reclamar e de adiar
e de negar?
Então, de todos olvidado
não mais pensado ou referido
nem na lousa dos dicionários
o pagamento — afinal — saiu.
Para cada um e seu irmão,
seu amigo e seu inimigo,
seu desconhecido, seu antípoda,
seu ascendente e descendente,
seu curió demissionário, seu gato escaldado, seu cachorro caduco,
suas plantinhas de vaso (sem sol) da janela,
seu coração
de válvulas paradas
seu coração
entranhado de cisco
seu coração
já sem forma de
coração.
O pagamento total geral
saiu! saiu!
o pagamento sem escrita
sem cifrão
sem limitação
sem explicação
sem razão
sem código
sem termo
saiu.
Não havia quem recebesse.
de festival.
Violas já vêm dançando
no doce do canavial.
Acorda, Maria, é dia
de prazer municipal.
A bebida está pedindo
pra ser bebida
a comida reclamando
pra ser depressa engolida
a risada quer ser rida
o namoro namorado
o peixe quer ser pescado
o sonhado ser vivido.
Maria, acorda, que é dia
de acontecer
de casar e de ter filhos
e cada filho crescer
e tomar seu rumo
e tomar seu rumo
e alguém na varanda
soletrar o espaço.
Acorda, Maria, é dia
de matar formiga
de matar cascavel
de matar tempo
de matar estrangeiro
de matar irmão
de matar impulso
de se matar.
Acorda, Maria,
todos já de pé
muitos já correndo
a gritar por ti.
Quem dorme no bairro, quem?
Não há paina de dormir
quando se espera o sinal
dentro do sinal fechado
e milhões de sinais
escondem o sinal.
O sinal afinal
é sim ou al?
E se ele apaga
antes de acender?
se ele acende
e ninguém entende?
Maria, acorda, é dia
de esperar a vida inteira
pelo sinal.
Acorda, Maria, é dia
de dizer que é dia
de fingir que é dia
de preparar o dia
de ir na folia
esquecer que não é mais
ou ainda não é dia.
Acorda, que o telefone
está chamando, Maria.
O navio está apitando
e vai soando a sineta
do presídio.
Esvoaça
a papeleta do fiscal.
A mãozinha da garota
bate no portal.
Acorda, Maria, é samba
sem carnaval.
É dia
de tirar a roupa da alma
no sofá
de pesquisar o verme
em cada maçã
de inventar o verme
a cada manhã
de saborear o verme
que nem hortelã.
É dia, atenção, de sexo
há milênios recalcado.
A vara e a concha unidos
no abraço fotografado
e tudo em verde fichado
para ser bem computado.
Quem tem amores desame-os
quem tem baú que o destampe
quem não tem nada que tenha
o que ter para contar.
Depressa, Maria, a praça
é uma orelha gigante
que não escuta e que passa.
Mas acorda por favor
ou por violência. É dia
de prestar contas, é dia.
Foi antecipado
o Juízo Final.
Em cada quarteirão
o oficial de justiça
divina
faz a citação
sem abrir a boca
e os nomes se imprimem
na retina
as sentenças se gravam
na pele.
Acorda, Maria, assiste
a teu julgamento em código.
Principalmente, Maria,
é dia
dia constante e durante
acima dos cem mil dias
dia só, dia sem dia
sem outro dia que diga
tudo que cabe num dia.
É um dia sem folhinha
sem gala de alvorecer
sem vontade de fluir
sem jeito de findar.
O que lhe falta em clareza
e sobra em altura
e resta em desejo
ninguém decifra.
É dia, Maria, dorme
até que passe este dia!
Fugir não adianta desabava
por toda parte minas torres
edif
ícios
princípios
l
muletas
desabando nem gritar
dava tempo soterrados
novos desabamentos insistiam
sobre peitos em pó
desabadesabadesabadavam
As ruínas formaram
outra cidade em ordem definitiva.
como o que baixou agora:
sinal de que já morremos
ou nem chegamos ainda à Terra.
Acabamos de sentir a morte
nas veias substituir o sangue.
Circulamos na atmosfera,
somos, corpo e brisa, um só.
Ou flutuamos no possível
sem pressa de, sem desejo de
atingir o irretratável
movimento do nascimento.
Este silêncio tão completo
em si, em nós, em nossa volta,
converte-nos em transparente
esfera
contemplada contemplativa.
o milho teu dourado
e deixa no farelo
um ai deteriorado.
Mói a mó, mói a morte
em seu moer parado
o que era trigo eterno
e o nem sequer semeado.
Da morte a mó que mói
não mói todo o legado.
Fica, moendo a mó,
o vento do passado.
de papel rasgado
(nem sequer escrito):
assim nos deixaram antes
que pudéssemos decifrá-los,
ao menos, ao menos isso,
já não digo… amá-los.
Assim nos deixaram e se deixaram
ir sem confiar-nos um traço
retorcido ou reto de passagem:
pisando sem pés em chão de fumo,
rindo talvez de sua esbatida
miragem.
Não se feriram no próprio corpo,
mas neste em que sobrevivemos.
Em nosso peito as punhaladas
sem marca — sem sangue — até sem dor
contam que nós é que morremos
e são eles que nos mataram.
existe para os mortos.
Os mortos não
têm medo da morte desabrochada.
Os mortos
conquistam a vida, não
a lendária, mas
a propriamente dita
a que perdemos
ao nascer.
A sem nome
sem limite
sem rumo
(todos os rumos, simultâneos,
lhe servem)
completo estar-vivo no sem fim
de possíveis
acoplados.
A morte sabe disto
e cala.
Só a morte é que sabe.
o único problema é Deus
o único enigma é Deus
o único possível é Deus
o único impossível é Deus
o único absurdo é Deus
o único culpado é Deus
e o resto é alucinação.
afirmo a propriedade.
Há mil deuses pessoais
em nichos da cidade.
Quando digo “meu Deus”,
crio cumplicidade.
Mais fraco, sou mais forte
do que a desirmandade.
Quando digo “meu Deus”,
grito minha orfandade.
O rei que me ofereço
rouba-me a liberdade.
Quando digo “meu Deus”,
choro minha ansiedade.
Não sei que fazer dele
na microeternidade.
Domingo descobri que Deus é triste
pela semana afora e além do tempo.
A solidão de Deus é incomparável.
Deus não está diante de Deus.
Está sempre em si mesmo e cobre tudo
tristinfinitamente.
A tristeza de Deus é como Deus: eterna.
Deus criou triste.
Outra fonte não tem a tristeza do homem.