A minha casa pobre é rica de quimera
e, se vou sem destino a trovejar espantos,
meu nome há de romper as mais nevoentas eras
tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.
Rola em minha cabeça o tropel de batalhas
jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno.
Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,
o que nele recolho é o olor da glória eterna.
Donzelas a salvar, há milhares na Terra
e eu parto e meu rocim, corisco, espada, grito,
o torto endireitando, herói de seda e ferro,
e não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,
na férvida obsessão de que enfim a bendita
Idade de Ouro e Sol baixe lá das alturas.
II. SAGRAÇÃO
pasta a erva do sossego.
A Mancha inteira é calma.
A chama oculta arde
nesta fremente Espanha interior.
De geolhos e olhos visionários
me sagro cavaleiro
andante, amante
de amor cortês a minha dama,
cristal de perfeição entre perfeitas.
Daqui por diante
é girar, girovagar, a combater
o erro, o falso, o mal de mil semblantes
e recolher no peito em sangue
a palma esquiva e rara
que há de cingir-me a fronte
por mão de Amor-amante.
A fama, no capim
que Rocinante pasta,
se guarda para mim, em tudo a sinto,
sede que bebo, vento que me arrasta.
III. O ESGUIO PROPÓSITO
fisgando no ar,
gafanhoto montado
em corcel magriz,
espectro de grilo
cingindo loriga,
fio de linha
à brisa torcido,
relâmpago
ingênuo
furor
de solitárias horas indormidas
quando o projeto invade a noite obscura.
Esporeia
o cavalo,
esporeia
o sem fim.
IV. CONVITE À GLÓRIA
— Juntos na poeira das encruzilhadas conquistaremos a glória.
— E de que me serve?
— Nossos nomes ressoarão
nos sinos de bronze da História.
— E de que me serve?
— Jamais alguém, nas cinco partidas do mundo,
será tão grande.
— E de que me serve?
— As mais inacessíveis princesas se curvarão
à nossa passagem.
— E de que me serve?
— Pelo teu valor e pelo teu fervor,
terás uma ilha de ouro e esmeralda.
— Isto me serve.
V. UM EM QUATRO
A Z
b y
A & b Z & y
A b y Z
A B Y Z
quadrigeminados
quadrimembra jornada
quadripartito anelo
quadrivalente busca
unificado anseio
um cavaleiro um cavalo um jumento um escudeiro
(Moinhos
de vento…)
— Malina
mandinga,
traça
d’espavento!
(Moinhos e moinhos
de vento…)
— Gigantes!
Seus braços
de aço
me quebram
a espinha
me tornam
farinha?
Mas brilha
divino
o santelmo
que rege
e ilumina
meu valimento.
Doído,
moído,
caído,
perdido,
curtido,
morrido,
eu sigo,
persigo
o lunar
intento:
pela justiça no mundo,
luto, iracundo.
VII. CORO DOS CARDADORES E FABRICANTES DE AGULHAS
Epa! |
|
Pula, gordo, |
Baixa, gordo, |
vira balão |
cara de bufão, |
de São João, |
bola no chão, |
bãobalalão |
bãobalalão |
senhor capitão |
senhor capitão |
de banha balofa |
de bafo balordo |
e jeito vilão! |
E roto calção! |
Epa!
Salta e baixa,
truão,
baixa e pula,
glutão,
catrapus,
bolo de feijão
dãodarãodandão!
VIII. A LÃ E A PEDRA
— Olha Alifanfarrão e seus guerreiros!
Olha Brandabarrão e Miaulina!
Micocolembo, vê! mais Timonel!
— Senhor, eu vejo apenas uns carneiros.
A lança em riste avança e fere a lã,
traspassa ovelhas como se varasse
o coração de feros inimigos.
— Chega, senhor, esta peleja é vã.
(Não chega, não, até que a boca sangre
e dentes saltem,
costelas partam-se
e role o corpo,
colchão de dores,
do herói vencido
não por Ali
mas a pedradas
de enfurecidos
pastores.)
IX. ESDRUXULARIAS DE AMOR PENITENTE
aonde não chega a música
da voz de Dulcineia
que por mim não suspira
e mal sabe que existo,
vou fazer penitência
de amor.
Vou carpir minhas penas,
vou comover as rochas
com lavá-las de lágrimas,
vou rompê-las a grito,
ensandecer as águias,
cativar hipogrifos
e acarinhar serpentes,
vou
arrancar minhas vestes
de ferro e de grandeza
e sacar os calções
e de gâmbias de fora,
documentos do sexo
cinicamente à mostra
para que aves e plantas
desfrutem o espetáculo,
farei micagens mil,
plantarei bananeira
e darei cambalhotas,
saltos mortais, vitais
de amor
de amor
de amor.
castigador de demônios
ó benigno
defendedor de humilhados
esteio e guarda-sol da honra
espelho de galanteria
vaso de olentes machas virtudes
rocha da vontade em movimento
contínuo,
despachai, meu amo, este requerimento.
A ilha
a ilha
a ilha prometida
essa danada ilha
dai-me com urgentíssima prestança.
De beijos cubro vossas mãos
por mim e por Teresa
futura prima dama
Pança.
Que é loucura: ser cavaleiro andante
ou segui-lo como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?
O que, acordado, sonha doidamente?
O que, mesmo vendado,
vê o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?
Eis-me, talvez, o único maluco,
e, me sabendo tal, sem grão de siso,
sou — que doideira — um louco de juízo.
XII. BRIGA E DESBRIGA
perigos sem moeda
já me pesa nos ossos.
Exijo o meu salário de loucura
e contagem de tempo de serviço.
— Amigo Sancho, vai-te à merda,
que não prezo favores mercenários
e posso ter duzentos escudeiros
só de renome eterno ambiciosos.
— Senhor, deixar-vos? Nunca.
Já me derreto em choro arrependido.
Sigo convosco, sigo
até o ultimíssimo perigo
sem outra paga além do vosso afeto.
Abracemo-nos, pois, de almas lavadas,
que meu destino
é ser, a vosso lado,
o grosso caldo junto ao vinho fino.
XIII. O MACACO BEM INFORMADO
Pergunta a este macaco teu passado
e ele dirá o certo e o imaginado.
O que te sucedeu na estranha lura
jamais vista de humana criatura
foi delírio ou concreta realidade,
visão inteira ou só pela metade?
Como aferir, em cada ser, a parte
que tem raiz numa insondável arte
(de Deus ou do Tinhoso) que transforma
o banal em sublime, e o sonho em norma?
Tudo isto e muito mais, por um pataco
saberás, consultando este macaco.
XIV. NO VERDE PRADO
que a nós nos caçastes,
esse é o Cavaleiro
dos Leões chamado;
eu, seu escudeiro
ante vós prostrado.
Formosa Duquesa,
qual prêmio e consolo
de nossas andanças
mal-aventuradas,
dai-nos vosso riso.
Dama resplendente,
Duque excelentíssimo,
que vosso castelo
seja paraíso
de grades franqueadas
a dois vagamundos.
A troco de cama,
candeia e pernil,
juramos prestar-nos
a vossos debiques
de alegres fidalgos
a falcoar a vida
qual jogo inocente
de ferir e rir.
Seremos jograis
e bobos de corte
mantendo aparência
de heróis romanescos,
e, ao vos divertir
a poder de estórias
passadas na mente
de meu amo gira,
nós nos divertimos
com vossa malícia,
rimos de vos rirdes,
ou eu, pelo menos,
que por ser sabido
sábio de ignorar
o fumo dos sonhos —
rio pelos dois.
(Nada disso eu digo,
mas no fundo eu penso.)
XV. RECADO
parado
e tibum! rala o corpo no solo,
magoado…
Foi por artes, talvez, de escudeiro
culpado?
Não. Destino é o seu, para sempre
traçado:
Cai de costas ou cai de catrâmbias,
coitado.
Deste jeito é que dá o seu triste
recado,
de saber cada dia seu sonho
frustrado,
e, no barro do chão, recompô-lo
maior.
XVI. AQUI DEL-REI
no gancho do carvalho,
javali me comeu
e só resta de mim
este grito de horror.
Sou defunto, me acudam
e talvez ressuscite
para sair correndo
nas pernas devoradas.
Ai, sou o meu fantasma
enganchado de medo
na forquilha da árvore
e de calção rasgado,
o meu rico, o meu belo
calção desperdiçado!
XVII. AVENTURA DO CAVALO DE PAU
Corta-vento rompe-nuvem beira-céu
fura-sol espeta-lua apaga-estrela
vai
cavalo-estalo cavalo-abalo cavalo-bala
em demanda do Gigante Malambruno
vai voando vai chispando vai levando
a coragem com o medo na garupa
vai guerreiro vai certeiro vai
a lugar nenhum, vai na ilusão
da farsa no jardim, entre risadas.
XVIII. SAUDAÇÃO DO SENADO DA CÂMARA
em seu esplendor
o vulto preclaro
do Governador.
(Na Barataria
ou seja onde for,
é sempre ilustríssimo
o Governador.)
Aqui vos saudamos
com temor e flor.
(É como se acolhe
um Governador.)
Gracioso Dom Sancho,
valente senhor!
(Vamos governar
o Governador.)
à procura de mim
que de mim se perdera
ao me sentir governo.
Governar, que doidice,
afrouxelado cárcere
de insônias e cuidados.
Que vale policiar
o interesse dos homens,
puni-los ou premiá-los,
se do poder escravo
se tornou Sancho, o livre
lavrador de outros tempos,
que em seu boi, seu rafeiro,
suas roças meninas
e tudo que cabia
num alqueire de terra
fundara seu império
e nele
governava a si mesmo?
Pelos caminhos volto
à procura de Sancho
para de novo Sancho
saber-me, conferir-me
com dobrado prazer.
ninfas douradas
brotando da casca das árvores
a me cercarem
entre murmúrios de prata líquida
e borboletas lampejantes.
Agora, touros
furiobufantes
é que me envolvem,
derrubam, pisam
entre lanças e aboios inimigos
no tropel de combate desigual
que não me faz calar:
Proclamo nestes bosques a beleza
de ninfas e pastoras
e a beleza maior que o eco prolonga
de Dulcineiaeiaeiaeiaeia.
XXI. ANTEFINAL NOTURNO
Pelejaste mais do que a peleja
(e perdeste).
Amaste mais do que amor se deixa amar.
O ímpeto
o relento
a desmesura
fábulas que davam rumo ao sem rumo
de tua vida levada a tapa
e a coice d’armas,
de que valeu o tudo desse nada?
Vilões discutem e brigam de braço
enquanto dormes.
Neutras estátuas de alimárias velam
a areia escura de teu sono
despido de todo encantamento.
Dorme, Alonso, andante
petrificado
cavaleiro-desengano.
(COM MUITA HONRA)
Bandeira de uma república visionária
branca branca branca branca
república nunca proclamada
branca
rubra
do sangue do único republicano
em triângulo multiângulo de membros repartidos.
Lá vem o Liberdade pela Rua da Quitanda
lá vai o Liberdade, o Corta-Vento,
vai armando sua teia
que 100 anos não desfazem.
Cavaleiro boquirroto,
cavaleiro apaixonado,
com a garra da paixão
semeando rebelião:
— Despotismo
pobreza
beata ignorância
no chão de ouro das minas
riqueza mísera entre ferros.
Palavra cochichada, brasa oculta,
conversa bêbada na estalagem,
na casa de rameiras,
no varandão da fazenda,
no quarto de dormir do Coronel,
no morro-sobe-desce-toda-vida.
(Ai Minas, que mil distâncias na distância
de ti a ti, peito enfurnado.)
— Se todos fossem do meu ânimo…
Mas lá está a mão de Deus.
Pensamento-rastilho
ideia fixa
prego pregado no futuro:
liberdade
americana.
Semelhantes traças
nem pensar se deve.
Frioleiras
disparates
parvoíces.
Fujam deste homem que ele está doido.
O demônio o tentou para tramar escândalos
que lhe hão de custar a prateada cabeça.
Quer os frutos da terra divididos
entre mazombos pretos índios
escolas fabricas no país florente
de livres almas
americanas.
Solta a linguagem
dos insubmissos,
a arenga
dos desatinados
e até nas fábulas
que vai urdindo,
a louca palavra
dos verdadeiros.
Aluado
de jogar pedra,
de ser pateado
na Casa da Ópera,
de morrer na forca
morte infamante,
despedaçar-se
distribuir-se
pelos caminhos
e consciências
viver na glória.
(O perdido latim, a insensível trindade,
a desfeita esperança?
O constante lembrar.)
Lá vem, lá vai
o Corta-Vento pelas serranias
mantiqueiras.
No chão queimado
ainda retine
o tropel rosilho
de seu cavalo
enchendo o vale,
o plaino, o espaço
americano.
Meu caro Luís, que vens fazer nesta hora
de antimúsica pelo mundo afora?
Patética, heroica, pastoral ou trágica,
tua voz é sempre um grito modulado,
um caminho lunar conduzindo à alegria.
Ao não rumor tiraste a percepção mais íntima
do coração da Terra, que era o teu.
Urso-maior uivando a solidão
aberta em cântico: entre mulheres
passando sem amor. Meu rude Luís,
tua imagem assusta na parede,
em medalhão soturno sobre o piano.
Que tempestade passou em ti e continua
a devastar-te no limite
em que a própria morte exausta se socorre
da vida, e reinstala
o homem na fatalidade de ser homem?
Nós, os surdos, não captamos
o amor doado em sinfonia, a paz
em allegro energico sobre o caos,
que nos ofertas do fundo
de teu mundo clausurado.
Nós, computadores, não programamos
a exaltação romântica filtrada
em sonatino adágio murmurante.
Nós, guerreiros nucleares, não isolamos
o núcleo de paixão de onde se espraia
pela praia infinita essa abstrata
superação do tempo e do destino
que é razão de viver, razão florente
e grave.
Tanto mais liberto quanto mais
em tua concha não acústica cerrado,
livre da corte, da contingência, do barroco,
erguendo o sentimento à culminância
da divina explosão, que purifica
o resíduo mortal, a angústia mísera,
que vens fazer, do longe de dois séculos,
escuro Luís, Luís luminoso,
em nosso tempo de compromisso e omisso?
Do fogo em que te queimaste,
uma faísca resta para incendiar
corações maconhados, sonolentos,
servos da alienação e da aparência?
Quem comporá a Apassionata do nosso tempo,
quem removerá as cinzas, despertará a brasa,
quem reinventará o amor, as penas de amor,
quem sacudirá os homens do seu torpor?
Boto no pickup o teu mar de música,
nele me afogo acima das estrelas.
Jack London Vachel Lindsay Hart Crane
René Creve Walter Benjamin Cesare Pavese
Stefan Zweig Virginia Woolf Raul Pompeia
Sá-Carneiro
e disse apenas alguns
de tantos que escolheram
o dia a hora o gesto
o meio
a dis-
solução
A mesa em que Rodrigo trabalhava
está vazia.
Pesquiso indícios na madeira
na redoma de ar da sala
na cruel paisagem de concreto
perdoada — até quando?
por Santa Luzia azul-desbotado entre moneysáurios.
Procuro que não vejo
Rodrigo míope curvado
sobre traças esfareladas de capelas
e fortalezas em cacos
maquinando contornando insistindo
provendo.
Onde está, onde estará Mestre Rodrigo
o dos entalhadores pintores pedreiros
josé manuel raimundo elisiário simplesmente
retirados por sua mão prospectadora
do bolor de códices
de mortas confrarias?
Dele não há notícia melodiosa
em alguma parte de Alcântara ou Sete Povos?
Nem a mesa ondulada companheira conserva
o movimento de dedos escrevendo
de manhã de janeiro a noite de dezembro
o relatório das injúrias
que, mais que o tempo, os homens imprimiram
a lajes memorandas?
As coisas que restituiu ao sol da História
não cantam, não me contam de Rodrigo.
A mosca bailarina
pousa no tampo de vidro
na mesa em que Rodrigo trabalhava
na mesa em que
na mesa
na
Cinquenta anos: espelho d’água ou névoa? Tudo límpido,
ou o tempo corrói o incalculável tesouro?
Vem do abismo de cinquenta anos, gravura em talho-doce,
a revelação de Emílio Moura.
Era tempo de escolha. Escolha em silêncio, definitiva.
Na rua, no bar, nossos companheiros esperam ser decifrados.
Mas o sinal os distingue. Descubro, e para sempre,
a amizade de Emílio Moura.
Agora a noite caminha no passo dos estudantes versíferos.
Bem conhecemos as magnólias, as mansões art nouveau, os guardas-civis
imóveis em cada esquina. Vou consultando um outro eu:
a presença de Emílio Moura.
E Verlaine, Samain, Laforgue, Antônio Nobre,
Alphonsus, tanta gente, nos acompanham sem ruído.
Começa a tecer-se, renda fluida na neblina,
a canção de Emílio Moura.
Canção de câmara: a que ele escreve e a que ele é.
Peculiar surdina, íntimo violino, jeito manso de ser,
que escapa aos trovões pop e risca em fundo cinza
a alma de Emílio Moura.
Alma que interroga. Ao mundo todo interroga, constante.
Há um impasse de ser, na graça de sentir.
E não se basta o homem. Ave-problema, esvoaça
a dúvida de Emílio Moura.
No céu de dúvidas, o amor responde ao poeta,
aponta-lhe os iniludíveis alvos deliciosos
em que a dor adormece e em que floresce o canto,
a explicação de Emílio Moura.
Ah, mineiro! que tem minas nem dele mesmo sabidas,
pois não as quer explorar, e toda glória é fuligem.
Mineiro que cala e cisma, e é quando mais se adensa
a Minas de Emílio Moura.
Mineiros há que saem. E mineiros que ficam.
Este ficou, de braços longos para o adeus.
Em Belo Horizonte, rumor sem verdes, é água pura
a permanência de Emílio Moura.
Ei-lo que chega, vem trazer a magrilonga
figura amada a amigos longe, em festa calma.
E conversá-lo e vê-lo é sentir indelével
a suavidade de Emílio Moura.
Agora não vem mais. Agora, é procurá-lo
em cinquenta anos vividos, em papéis, em retratos.
E transferir a pessoa viva a um cofre de ouro:
a poesia de Emílio Moura.
Pois aconteceu a coisa aquém e além da vida,
e nem vale chorar nem vale sofismar.
O fato novo extingue a casa transparente de estar-perto:
a morte de Emílio Moura.
Neste fato penetro e o vou todo explorando.
Corredor ou caverna ou túnel ou presídio,
não importa: uma luz violeta vai seguir-me:
a saudade de Emílio Moura.
a vida completa,
o poeta recolhe seus dons,
o arsenal de sons e signos,
o sentimento de seu pensamento.
Imobiliza-se,
infinitamente cala-se,
cápsula em si mesma contida.
Fica sendo o não rir
de longos dentes,
o não ver
de cristais acerados,
o não estar
nem ter aparência.
O absoluto do não ser.
Não há invocá-lo acenar-lhe pedir-lhe.
Passa ao estranho domínio
de deus ou pasárgada-segunda.
Onde não aflora a pergunta
nem o tema da
nem a hipótese do.
Sua poesia pousa no tempo.
Cada verso, com sua música
e sua paixão, livre de dono,
respira em flor, expande-se
na luz amorosa.
A circulação do poema
sem poeta: forma autônoma
de toda circunstância,
magia em si, prima letra
escrita no ar, sem intermédio,
faiscando,
na ausência definitiva
do corpo desintegrado.
Agora Manuel Bandeira é pura
poesia, profundamente.
Em Vila Rosali Noel Nutels repousa
do desamor alheio aos índios
e de seu próprio amor maior aos índios.
Como se os bastos bigodes perguntassem:
Valeu a pena?
Valeu a pena gritar em várias línguas
e conferências e entrevistas e países
que a civilização às vezes é assassina?
Valeu, valeu a pena
criar unidades sanitárias aéreas
para salvar os remanescentes
das vítimas de posseiros, madeireiros, traficantes
burocratas et reliqua,
que tiram a felicidade aos simples
e em troca lhes atiram de presente
o samburá de espelhos, canivetes,
tuberculose e sífilis?
Noel baixa de helicóptero
e vê a fome à beira d’água trêmula de peixes.
Homens esquecidos do arco e flecha
deixam-se consumir em nome
da integração que desintegra
a raiz do ser e do viver.
“Vocês têm obrigação de usar calça
camisa paletó sapato e lenço,
enquanto no Leblon nos despedimos
de toda convenção, e viva a natureza…”
Noel, tu o disseste:
A civilização que sacrifica
povos e culturas antiquíssimas
é uma farsa amoral.
O Parque maravilha do Xingu
rasgado e oferecido
ao galope das máquinas,
não o quiseste assim e protestaste
como se fosse coisa tua, e era,
pois onde um índio cisma
e acende fogo e dança
a dança milenar extraConservatório
e desenha seu momento de existir
longe da Bolsa, da favela e do napalm,
aí estavas tu, teu riso companheiro,
teus medicamentos,
tua branca alegria de viver
a vida universal.
Valeu? Valeu a pena
teu cerne ucraniano
fundir-se em meiga argila brasileira
para melhor sentires
o primitivo apelo da terra
moldura natural de homens xavantes
e kreen-akarores
lar aberto de bororos
carajás e kaingangs
hoje tão infelizes
pela compulsão da felicidade programada.
Valeu, Noel, a pena
seguir a traça de Rondon
e de Nimuendaju,
mãos dadas com Orlando e Cláudio Villas-Boas
sob o olhar de Darcy Ribeiro,
e voar e baixar e assistir e prover
e alertar e verberar
para que fique ao menos no espaço
este signo de amor compreensivo e ardente
que foi a tua vida sertaneja,
a tua vida iluminada,
e tua generosa decepção.
BRASIL / TARSILA A Aracy Amaral
descendente direta de Brás Cubas
Tarsila
princesa do café na alta de ilusões
Tarsila
engastada na pulseira gótica do colégio de Barcelona
Tarsila
medularmente paulistinha de Capivari reaprendendo
o amarelo vivo
o rosa violáceo
o azul pureza
o verde cantante
desprezados pelo doutor bom gosto oficial.
Tarsila radar tranquilo
captando em traço elíptico
o vazio da rua de Congonhas com um cachorro e uma galinha servindo de multidão
a mudez da rua de São João del Rei com duas meninas no cenário operístico de casas e igreja
o silêncio do desvio ferroviário
o sono da cidade pequena onde as casas são boizinhos espalhados em presépio.
(Tarsila, Oswald e Mário revelando Minas aos mineiros de Anatole.)
Tarsila acordando para o pesadelo
de assombrações pré-colombianas tão vivas agora como outrora
abaporu das noites na fazenda
bichos que não existem? mas existentes
cactos-animais, pedras-árvores,
monstros a expulsar de nossa mente
ou a recolher para melhor
seguir nosso traçado preternatural.
Tarsila mágica,
meu Deus, tão simples,
alheia às técnicas analíticas de Freud
e desvendando
as grutas, os alçapões, as perambeiras
da consciência rural,
expondo ao sol
a alegria colorida da libertação.
Tarsila relâmpago
de beleza no Grande Hotel de Belo Horizonte em 24
acabando com o mandamento das pintoras feias
Quero ser em arte
a caipirinha de São Bernardo
A mais elegante das caipirinhas
a mais sensível das parisienses
jogada de brincadeira na festa antropofágica.
Tarsila
nome brasil, musa radiante
que não queima, dália sobrevivente
no jardim desfolhado, mas constante
em serena presença nacional
fixada com doçura,
Tarsila
amora amorável d’amaral
prazer dos olhos meus onde te encontres
azul e rosa e verde para sempre.
libertas da corrupção do vestido
e, como jangadas ou feixes de trigo,
são variações de concretitude
tamisadas de sonho,
forma plena, bastante,
sob a luz que esmerilha
a pelúcia das coisas.
O mar invade o quadro,
a sala,
o contemplante,
num fulgor de balanço,
e entre os raios da rede ilumina-se
e dança
o negro cavername
da água ou de nós mesmos, em marulho.
Sobre os infindos olhos esféricos do boi-bumbá
— lanternões acesos na alegria religiosa
do povo menino
do Brasil —:
festa
folia
flauta
coração da terra.
Assim Bianco, viajando
a cor e seus compartimentos encantados,
registra o ofício de homens e mulheres
jungidos à natureza por uma chispa
de ouro, um cipó
telúrico, semente
de amor explodindo em cântico.
flutuar e florir na pauta
musicometálica.
Água forte, água tinta
água fina
lavam
a crosta da terra
varam
a delicada ordenação das estruturas
manifestam
o diáfano.
Fayga exige à madeira
suas paisagens concentradas
mundos lenhosos que sobem à vida
no coro de cores, cor
ressoando nas coisas, independente de som.
Fayga faz e perfaz
a fundação de objetos líricos
sob superfícies falazes.
Depois bloqueia a luz, e a espessa
atmosfera do Não volve em depósito
de infinitos esquemas
vibrando noturnamente.
Fayga é um fazer,
filtrar e descobrir
as relações da vista e do visto
dando estatuto à passagem
no espaço: viver
é ver sempre de novo
a cada forma
a cada cor
a cada dia
o dia em flor no dia.
os mundos de Wega
violentos
verdinatais, vermelhoníricos
sobressaltando a natureza.
O último? o primeiro
dia da criação implanta
a densa vida tensa
em que a terra é criação do homem
e a criatura revela sua íntima
dramática estrutura.
Brasil:
o nome soa em mim é sino
ardendo fogueira despetalada
em curva de viola
calor de velhas horas no estridor
de coisas novas.
meu modo de ser e ver e estar triste e pular
em plena tristeza como se pula alto
sobre água corrente.
Meu país, essa parte de mim fora de mim
constantemente a procurar-me. Se o esqueço
(e esqueço tantas vezes)
volta
em cor, em paisagem
na polpa da goiaba na abertura
de vogais
no jogo divertido de esses e erres
e sinto
que sou mineiro carioca amazonense
coleção de mins entrelaçados.
Sou todos eles e
o sentimento subterrâneo
de dores criativas e fadigas
que abriram picadas
criaram bois e mulas e criam búfalos
e trabalham o couro o ferro o diamante o papel o destino.
Por que Brasil e não
outro qualquer nome de aventura?
Brasil fiquei sendo
serei sendo nas escritas do sangue.
Minha arte de viver foi soletrada
em roteiros distantes?
A vida me foi dada em leis e reis?
Me fizeram e moldaram
em figurinos velhos? Amanheço.
Confuso amanhecer, de alma ofertante
e angústias sofreadas
injustiças e fomes e contrastes
e lutas e achados rutilantes
de riquezas da mente e do trabalho,
meu passo vai seguindo
no zigue-zague de equívocos,
de esperanças que malogram mas renascem
de sua cinza morna.
Vai comigo meu projeto
entre sombras, minha luz
de bolso me orienta
ou sou eu mesmo o caminho a procurar-se?
Brasa sem brasão brasilpaixão
de vida popular em mundo aberto
à confiança dos homens.
Assim me vejo e toco: brasileiro
sem limites traçados para o amor
humano.
A explosão ingênua de desejos
a sensual vontade de criar
a pressa de revelar a face inédita
a cachoeira, o corisco, o som gritante
o traço americano
o sêmen novo
não me fazem um ser descompassado.
Brasileiro sou,
moreno irmão do mundo é que me entendo
e livre irmão do mundo
me pretendo.
(Brasil, rima viril de liberdade.)
minerais
minas de Minas
demais,
de menos?
minas exploradas
no duplo, no múltiplo
sem sentido,
minas esgotadas
a suor e ais,
minas de mil
e uma noites presas
do fisco, do fausto,
da farra; do fim.
Minas de três séculos
mal digeridos
ainda minando
mineralgias míticas.
O ouro desfalece:
Minas na mira
do erário real.
O diamante esmaece
Minas na surdina
da seresta exausta.
O ferro empalidece:
Minas na ruína
de simplórios donos
de roças mal lavradas.
Minas orgulhosa
de tanta riqueza,
endividada
de tanta grandeza
no baú delida.
Cada um de nós, rei
na sua fazenda,
cada pé de milho
erguia o pendão
de nossa realeza,
cada boi-de-coice
calcava o tesouro
da terra indefesa
negociada
com a maior fineza.
(Ai, que me arrependo
— me perdoa, Minas —
de ter vendido
na bacia das almas
meu lençol de hematita
ao louro da estranja
e de ter construído
filosoficamente
meu castelo urbano
sobre a jazida
de sonhos minérios.
Me arrependo e vendo.)
Minas, oi Minas,
tua estranha sina
delineada
ao bailar dos sinos
ao balir dos hinos
de festins políticos,
Minas mineiral
Minas musical
Minas pastorela
Minas Tiradentes
Minas liberal
Minas cidadela
Minas torturada
Minas surreal
Minas coronela
Minas tal e qual
a pedra-enigma
no labirinto da mina.
Do ferro líquido da forja
do Barão de Eschwege
resta a ficha histórica.
Do rude Cauê,
a TNT aplainado,
resta o postal
na gaveta saudosista,
enquanto milhares
milhafres
de vagões vorazes
levam para longe
a pedra azul guardada
para tua torre
para teu império
postergado sempre.
E as esmeraldas,
Minas, que matavam
de esperança e febre
e nunca se achavam
e quando se achavam
eram verde engano?
Minas sub-reptícia
tarde defendida
de áureas cobiças
pelo astuto jogo
do pensar oculto,
do dizer ambíguo,
do nevoento pairar
de flocos de sigilo
no manifesto anil
sobre serranares.
Minas, nos ares,
Minas que te quero
Minas que te perco
e torno a ganhar-te
com seres metal
diluído em genes,
com seres aço
de minha couraça,
Minas que me feres
com pontiagudas
lascas de minério
e laminados de ironia,
vês?
No coração do manganês
pousa uma escritura
de hipoteca e usura
e o banco solerte
praticando a arte
do cifrão mais forte.
Minas
teimoso lume aceso
mesmo sob cinza,
Minas Acesita
Minas Usiminas
Minas Ipatinga
Minas felina
a custo ensaiando
o salto da serra
bem alto,
o romper de algemas
mais férreas que o ferro,
no rumo certeiro
do Intendente Câmara,
Minas que te miro
desprezando os prazos
de imemoriais atrasos,
de leve batendo à porta
da era espacial,
Minas tório urânio
Minas esperança
Minas detetando
o sinal
sob a tibieza dos homens
e o parangolé da retórica,
Minas mineiralmente
geral Gerais
auriminas
turmaliniminas
diamantiniminas
muito abaixo da mais uterina
mina recôndita
luzindo
o cristalino
abafado
espírito de Minas.
Minas é uma palavra montanhosa.
MADU
Minas não é palavra montanhosa.
É palavra abissal. Minas é dentro
e fundo.
As montanhas escondem o que é Minas.
No alto mais celeste, subterrânea,
é galeria vertical varando o ferro
para chegar ninguém sabe onde.
Ninguém sabe Minas. A pedra
o buriti
a carranca
o nevoeiro
o raio
selam a verdade primeira, sepultada
em eras geológicas de sonho.
Só mineiros sabem. E não dizem
nem a si mesmos o irrevelável segredo
chamado Minas.
No hipersupermercado aberto de detritos,
ao barulhar de caixotes em pressa de suor,
mulheres magras e crianças rápidas
catam a maior laranja podre, a mais bela
batata refugada, juntam na calçada
seu estoque de riquezas, entre risos e gritos.
mal a primeira tinta
do dia se define.
Passa pelo vidro
e em pouco submergem
pessoas e tapetes,
poltronas, gestos,
nomes,
quadros,
vozes.
O mar tudo recobre
sem nada asfixiar.
No côncavo marinho
o ir e vir espelha
a vida costumeira
de peixes adestrados
que observam a lei
de viventes em casa.
Ao meio-dia, o mar
instala-se completo
nos metais e na pele
dos moradores.
Deixa esparso no ar
um tremor de prata
incendiada.
Pela tarde singramos
o mar e nos quedamos
na mesma onda imóvel
que na beira dos copos
junta ao álcool dourado
a amargura do sal
sem que sal se perceba.
Quando a noite descerra
as pétalas de sombra
sem recorte sonâmbulo
de lua sobre as águas,
e o sono deposita-se
em cada castiçal,
cinzeiro, campainha
e dobra de cortina,
e os passos amortecem
no surdo corredor,
eis que o mar se retira
para si mesmo e longe,
ou nós é que emergimos
da espessura das águas
tornadas invisíveis.
O mar chega de volta,
mal a primeira tinta
se define, do dia,
e o living, baía,
com todo o mobiliário
e pessoas, imersos,
prossegue o balouçante
estar sozinho e verde,
verdissozinho imenso
em pura escuridão.
que disfarça o caminho
com espadanas de fonte,
e ao peso do concreto
de vinte pavimentos,
a loja subterrânea
expõe os seus tesouros
como se os defendesse
de fomes apressadas.
Ao nível do tumulto
de rodas e de pés,
não se decifra a oculta
sinfonia de letras
e cores enlaçadas
no silêncio de livros
abertos em gravura.
Aquário de aquarelas,
mosaicos, bronzes,
nus,
arabescos de Klee,
piscina onde flutuam
sistemas e delírios
mansos de filósofos,
sentido e sem sentido
das ciências e artes
de viver: a quem sabe
mergulhar numa página,
o trampolim se oferta.
A vida chega aqui
filtrada em pensamento
que não fere; no enlevo
tátil-visual de ideias
reveladas na trama
do papel e que afloram
aladamente e dançam
quatro metros abaixo
do solo e das angústias
o seu balé de essências
para o leitor liberto.
O carro do sol passeia rodas de incêndio
sobre os corpos e as mentes, fulminando-os.
Restam, sob o massacre, esquírolas de consciência,
a implorar, sem esperança, um caneco de sombra.
As árvores decotadas, alamedas sem árvores.
O ar é neutro, fixo, e recusa passagem
às viaturas da brisa. O zinir de besouros buzinas
ressoa no interior da célula ferida.
Sobe do negro chão meloso espedaçado
o súlfur dos avernos em pescoções de fogo.
A vida, esse lagarto invisível na loca,
ou essa rocha ardendo onde a verdura ria?
O mar abre-se em leque à visita de uns milhares,
mas, curvados ao peso dessa carga de chamas,
em mil formas de esforço e pobreza e rotina, milhões
curtem a maldição do esplêndido verão.
Vênus calcianadiomênica
Vênus calcispúmica
Vênus calcitrite
Vênus de calça comprida
é Vênus calcirízica
Vênus calcigênitrix
Vênus calcimílica
De calça comprida Vênus é Vênus
calcicranachiana
calciarlesiana
calcicapitulina
Calcibelvedérica
é Vênus de calça comprida
calcieleusiana
calcitriptolêmica
Vênus calcipersefônica
Vênus calciproserpínica
de calça comprida
Vênus calcicarôntica
Calcifarnésica Vênus
Vênus calcilaomedôntica
Vênus calcionfálica
Vênus é de calça comprida
Calcimegárica
Vênus calciedípica
Vênus calciateneica
— de calça comprida — calcidedálica
Vênus calcimeleágrica
Vênus calciargonáutica
Vênus calcibelerofôntica
de calça comprida Vênus
Vênus calcidanáidica
Vênus calcihemofroidítica
Vênus calcicomprida
e sempre, nua, Vênus.
bem te ouvi recitando
e repetindo nítido
teu bentibentivismo.
Bem te vi lá na roça,
nas árvores, nas águas,
bem te vi na cidade
que prolongava a roça,
bem te vi no Jardim
da República sobre
o cupim das cutias
estátuas no gramado,
bem te vi na Argentina
quando o chá na planície
chamava a revoada
de borboletas trêmulas
sobre o azul da piscina,
bem te vi, bem te vejo
na vasta galeria
de bichos e de coisas
irmãos de nossa vida
a esvoaçar na voz
dos mais velhos que ensinam
o almanaque da terra,
bem te vi, bem te vejo
presente entre as ausências
que me vão rodeando
e quando bem te avisto
e te ouço, eis que me assisto
devolvido ao primeiro
bem-ver-ouvir do prístino
bem-te-vi bentivisto.
CRIAÇÃO
e clara.
Não a projetam arquitetos,
construtores não a fazem.
O traço no papel
o concreto, o aço dos volumes
são circunstâncias alheias
à criação.
Maria cria sua casa
como o pássaro cria seu voo
clarialto.
No vazio das peças
móveis quadros tapetes
são o pensamento de Maria
esboçando linhas cambiantes
até fixar-se na ordem imprescritível.
Objetos deixam-se moldar
com amiga docilidade.
Ajudemos Maria (dizem eles
no dizer sem nome dos objetos)
a compor sua casa
como de um baralho de sons
se compõe a estrutura musical.
Sobre a cidade,
sobre a fuligem das horas perdidas
e a angústia dos subterrâneos transpostos,
a casa é o rosto de Maria
à luz reencontrado.
O LIVING
Aqui se pode conversar
a imemorial conversa
que de tudos e nadas
se alimenta,
glosa livre do mundo.
Passeia a vista descansada
em coisas afetuosas
vindas de muitas partes para ouvir
sem o menor ruído
mas participando do colóquio
pelo poder de integração
que a poltrona, a lâmpada
trazem consigo
se nos sabemos eleger,
coisas e seres.
Portinari, Bianco, Fayga
Baumeister
estão conosco, os 90 anos de Picasso
em estampa colorida,
o ex-voto conciso do Nordeste
e o coral dos livros
(surdinado) nas brancas prateleiras.
Sala de viver
na opção de viver
a graça de viver.
O QUARTO DOS RAPAZES
Uma desordem que se espraia
uma ordem que se concentra
uma TV que se repete
uma cama que se desdobra
os corações que se procuram
a saudade de um gato antigo
pisada com leves patas
pelo cavalo aeromítico
dos haras de Aldemir Martins.
O QUARTO DE PEDRO
Móbiles de ouro da Praça General Osório
balançam no ar de Pedro notícias do Brasil.
O quarto flutua entre posters e cadernos de geografia.
A rede baiana balança na varanda aberta
sobre a plataforma a perder de vista dos terraços.
Tesouros de imperador depositam-se por toda parte:
conchas, garrafas-miniatura, volante de carro.
O império mergulha em sonho interplanetário,
mas soa a hora fatal
no quarto amanhecido:
o imperador calça os sapatos da rotina,
segue, vencido, para a escola.
O QUARTO DE MARIA
Toda a casa aqui se resume:
a ideia torna-se perfume.
O QUARTO DE BANHO
A pomba pousa no basculante
assiste ao esguicho da água
à canção das torneiras
ao glissiglissar dos sabonetes
à purificação dos corpos
e voa.