QUIXOTE E SANCHO, DE PORTINARI

 

I. SONETO DA LOUCURA

 

A minha casa pobre é rica de quimera

e, se vou sem destino a trovejar espantos,

meu nome há de romper as mais nevoentas eras

tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.

 

Rola em minha cabeça o tropel de batalhas

jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno.

Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,

o que nele recolho é o olor da glória eterna.

 

Donzelas a salvar, há milhares na Terra

e eu parto e meu rocim, corisco, espada, grito,

o torto endireitando, herói de seda e ferro,

 

e não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,

na férvida obsessão de que enfim a bendita

Idade de Ouro e Sol baixe lá das alturas.

 

II. SAGRAÇÃO

 

Rocinante

pasta a erva do sossego.

 

A Mancha inteira é calma.

A chama oculta arde

nesta fremente Espanha interior.

 

De geolhos e olhos visionários

me sagro cavaleiro

andante, amante

de amor cortês a minha dama,

cristal de perfeição entre perfeitas.

 

Daqui por diante

é girar, girovagar, a combater

o erro, o falso, o mal de mil semblantes

e recolher no peito em sangue

a palma esquiva e rara

que há de cingir-me a fronte

por mão de Amor-amante.

 

 

A fama, no capim

que Rocinante pasta,

se guarda para mim, em tudo a sinto,

sede que bebo, vento que me arrasta.

 

III. O ESGUIO PROPÓSITO

 

Caniço de pesca

fisgando no ar,

gafanhoto montado

em corcel magriz,

espectro de grilo

cingindo loriga,

fio de linha

à brisa torcido,

relâmpago

ingênuo

furor

de solitárias horas indormidas

quando o projeto invade a noite obscura.

 

Esporeia

o cavalo,

esporeia

o sem fim.

 

IV. CONVITE À GLÓRIA

 

Juntos na poeira das encruzilhadas conquistaremos a glória.

— E de que me serve?

 

— Nossos nomes ressoarão

nos sinos de bronze da História.

— E de que me serve?

 

— Jamais alguém, nas cinco partidas do mundo,

será tão grande.

— E de que me serve?

 

— As mais inacessíveis princesas se curvarão

à nossa passagem.

— E de que me serve?

 

— Pelo teu valor e pelo teu fervor,

terás uma ilha de ouro e esmeralda.

— Isto me serve.

 

V. UM EM QUATRO

 

A Z

b y

 

A & b Z & y

 

A b y Z

 

A B Y Z

 

 

quadrigeminados

quadrimembra jornada

quadripartito anelo

quadrivalente busca

unificado anseio

 

um cavaleiro um cavalo um jumento um escudeiro

 

VI. O DERROTADO INVENCÍVEL

 

— Gigantes!

(Moinhos

de vento…)

— Malina

mandinga,

traça

d’espavento!

(Moinhos e moinhos

de vento…)

— Gigantes!

Seus braços

de aço

me quebram

a espinha

me tornam

farinha?

Mas brilha

divino

o santelmo

que rege

e ilumina

meu valimento.

Doído,

moído,

caído,

perdido,

curtido,

morrido,

eu sigo,

persigo

o lunar

intento:

pela justiça no mundo,

luto, iracundo.

 

 

VII. CORO DOS CARDADORES E FABRICANTES DE AGULHAS

 

Epa!

Epa!

Pula, gordo,

Baixa, gordo,

vira balão

cara de bufão,

de São João,

bola no chão,

bãobalalão

bãobalalão

senhor capitão

senhor capitão

de banha balofa

de bafo balordo

e jeito vilão!

E roto calção!

 

Epa!

Salta e baixa,

truão,

baixa e pula,

glutão,

catrapus,

bolo de feijão

dãodarãodandão!

 

VIII. A LÃ E A PEDRA

 

Olha Alifanfarrão e seus guerreiros!

Olha Brandabarrão e Miaulina!

Micocolembo, vê! mais Timonel!

— Senhor, eu vejo apenas uns carneiros.

 

A lança em riste avança e fere a lã,

traspassa ovelhas como se varasse

o coração de feros inimigos.

— Chega, senhor, esta peleja é vã.

 

 

(Não chega, não, até que a boca sangre

e dentes saltem,

costelas partam-se

e role o corpo,

colchão de dores,

do herói vencido

não por Ali

mas a pedradas

de enfurecidos

pastores.)

 

IX. ESDRUXULARIAS DE AMOR PENITENTE

 

Neste só, nestas brenhas

aonde não chega a música

da voz de Dulcineia

que por mim não suspira

e mal sabe que existo,

vou fazer penitência

de amor.

Vou carpir minhas penas,

vou comover as rochas

com lavá-las de lágrimas,

vou rompê-las a grito,

ensandecer as águias,

cativar hipogrifos

e acarinhar serpentes,

vou

arrancar minhas vestes

de ferro e de grandeza

e sacar os calções

e de gâmbias de fora,

documentos do sexo

cinicamente à mostra

para que aves e plantas

desfrutem o espetáculo,

farei micagens mil,

plantarei bananeira

e darei cambalhotas,

saltos mortais, vitais

de amor

de amor

de amor.

 

 

 

X. PETIÇÃO GENUFLEXA

 

Ó terrível

castigador de demônios

ó benigno

defendedor de humilhados

esteio e guarda-sol da honra

espelho de galanteria

vaso de olentes machas virtudes

rocha da vontade em movimento

contínuo,

despachai, meu amo, este requerimento.

A ilha

a ilha

a ilha prometida

essa danada ilha

dai-me com urgentíssima prestança.

De beijos cubro vossas mãos

por mim e por Teresa

futura prima dama

Pança.

 

XI. DISQUISIÇÃO NA INSÔNIA

 

Que é loucura: ser cavaleiro andante

ou segui-lo como escudeiro?

De nós dois, quem o louco verdadeiro?

O que, acordado, sonha doidamente?

O que, mesmo vendado,

vê o real e segue o sonho

de um doido pelas bruxas embruxado?

Eis-me, talvez, o único maluco,

e, me sabendo tal, sem grão de siso,

sou — que doideira — um louco de juízo.

 

XII. BRIGA E DESBRIGA

 

A fatigada festa de correr

perigos sem moeda

já me pesa nos ossos.

Exijo o meu salário de loucura

e contagem de tempo de serviço.

 

— Amigo Sancho, vai-te à merda,

que não prezo favores mercenários

e posso ter duzentos escudeiros

só de renome eterno ambiciosos.

 

— Senhor, deixar-vos? Nunca.

Já me derreto em choro arrependido.

Sigo convosco, sigo

até o ultimíssimo perigo

sem outra paga além do vosso afeto.

Abracemo-nos, pois, de almas lavadas,

que meu destino

é ser, a vosso lado,

o grosso caldo junto ao vinho fino.

 

XIII. O MACACO BEM INFORMADO

 

Pergunta a este macaco teu passado

e ele dirá o certo e o imaginado.

 

O que te sucedeu na estranha lura

jamais vista de humana criatura

 

foi delírio ou concreta realidade,

visão inteira ou só pela metade?

 

Como aferir, em cada ser, a parte

que tem raiz numa insondável arte

 

(de Deus ou do Tinhoso) que transforma

o banal em sublime, e o sonho em norma?

 

Tudo isto e muito mais, por um pataco

saberás, consultando este macaco.

 

XIV. NO VERDE PRADO

 

Gentil caçadora

que a nós nos caçastes,

esse é o Cavaleiro

dos Leões chamado;

eu, seu escudeiro

ante vós prostrado.

Formosa Duquesa,

qual prêmio e consolo

de nossas andanças

mal-aventuradas,

dai-nos vosso riso.

Dama resplendente,

Duque excelentíssimo,

que vosso castelo

seja paraíso

de grades franqueadas

a dois vagamundos.

A troco de cama,

candeia e pernil,

juramos prestar-nos

a vossos debiques

de alegres fidalgos

a falcoar a vida

qual jogo inocente

de ferir e rir.

Seremos jograis

e bobos de corte

mantendo aparência

de heróis romanescos,

e, ao vos divertir

a poder de estórias

passadas na mente

de meu amo gira,

nós nos divertimos

com vossa malícia,

rimos de vos rirdes,

ou eu, pelo menos,

que por ser sabido

sábio de ignorar

o fumo dos sonhos —

rio pelos dois.

(Nada disso eu digo,

mas no fundo eu penso.)

 

XV. RECADO

 

Cavaleiro que cai de cavalo

parado

 

e tibum! rala o corpo no solo,

magoado…

 

Foi por artes, talvez, de escudeiro

culpado?

 

Não. Destino é o seu, para sempre

traçado:

 

Cai de costas ou cai de catrâmbias,

coitado.

 

Deste jeito é que dá o seu triste

recado,

 

de saber cada dia seu sonho

frustrado,

 

e, no barro do chão, recompô-lo

maior.

 

XVI. AQUI DEL-REI

 

Ai, aqui onde estou,

no gancho do carvalho,

javali me comeu

e só resta de mim

este grito de horror.

Sou defunto, me acudam

e talvez ressuscite

para sair correndo

nas pernas devoradas.

Ai, sou o meu fantasma

enganchado de medo

na forquilha da árvore

e de calção rasgado,

o meu rico, o meu belo

calção desperdiçado!

 

XVII. AVENTURA DO CAVALO DE PAU

 

Corta-vento rompe-nuvem beira-céu

fura-sol espeta-lua apaga-estrela

vai

cavalo-estalo cavalo-abalo cavalo-bala

 

em demanda do Gigante Malambruno

vai voando vai chispando vai levando

a coragem com o medo na garupa

vai guerreiro vai certeiro vai

a lugar nenhum, vai na ilusão

da farsa no jardim, entre risadas.

 

XVIII. SAUDAÇÃO DO SENADO DA CÂMARA

 

Oh, seja bem-vindo

em seu esplendor

o vulto preclaro

do Governador.

 

(Na Barataria

ou seja onde for,

é sempre ilustríssimo

o Governador.)

 

Aqui vos saudamos

com temor e flor.

(É como se acolhe

um Governador.)

 

Gracioso Dom Sancho,

valente senhor!

(Vamos governar

o Governador.)

 

XIX. SOLILÓQUIO DA RENÚNCIA

 

Volto pelos caminhos

à procura de mim

que de mim se perdera

ao me sentir governo.

Governar, que doidice,

afrouxelado cárcere

de insônias e cuidados.

Que vale policiar

o interesse dos homens,

puni-los ou premiá-los,

se do poder escravo

se tornou Sancho, o livre

lavrador de outros tempos,

que em seu boi, seu rafeiro,

suas roças meninas

e tudo que cabia

num alqueire de terra

fundara seu império

e nele

governava a si mesmo?

Pelos caminhos volto

à procura de Sancho

para de novo Sancho

saber-me, conferir-me

com dobrado prazer.

 

XX. NA ESTRADA DE SARAGOÇA

 

Eram pastores de sol

ninfas douradas

brotando da casca das árvores

a me cercarem

entre murmúrios de prata líquida

e borboletas lampejantes.

Agora, touros

furiobufantes

é que me envolvem,

derrubam, pisam

entre lanças e aboios inimigos

no tropel de combate desigual

que não me faz calar:

Proclamo nestes bosques a beleza

de ninfas e pastoras

e a beleza maior que o eco prolonga

de Dulcineiaeiaeiaeiaeia.

 

XXI. ANTEFINAL NOTURNO

 

Dorme, Alonso Quexana.

Pelejaste mais do que a peleja

(e perdeste).

Amaste mais do que amor se deixa amar.

O ímpeto

o relento

a desmesura

fábulas que davam rumo ao sem rumo

de tua vida levada a tapa

e a coice d’armas,

de que valeu o tudo desse nada?

Vilões discutem e brigam de braço

enquanto dormes.

Neutras estátuas de alimárias velam

a areia escura de teu sono

despido de todo encantamento.

Dorme, Alonso, andante

petrificado

cavaleiro-desengano.

 

 

TIRADENTES

(COM MUITA HONRA)

 

Bandeira de uma república visionária

branca branca branca branca

república nunca proclamada

branca

rubra

do sangue do único republicano

em triângulo multiângulo de membros repartidos.

 

Lá vem o Liberdade pela Rua da Quitanda

lá vai o Liberdade, o Corta-Vento,

vai armando sua teia

que 100 anos não desfazem.

Cavaleiro boquirroto,

cavaleiro apaixonado,

com a garra da paixão

semeando rebelião:

 

— Despotismo

pobreza

beata ignorância

no chão de ouro das minas

riqueza mísera entre ferros.

 

Palavra cochichada, brasa oculta,

conversa bêbada na estalagem,

na casa de rameiras,

no varandão da fazenda,

no quarto de dormir do Coronel,

no morro-sobe-desce-toda-vida.

(Ai Minas, que mil distâncias na distância

de ti a ti, peito enfurnado.)

 

— Se todos fossem do meu ânimo…

Mas lá está a mão de Deus.

Pensamento-rastilho

ideia fixa

prego pregado no futuro:

liberdade

americana.

 

Semelhantes traças

nem pensar se deve.

Frioleiras

disparates

parvoíces.

 

Fujam deste homem que ele está doido.

O demônio o tentou para tramar escândalos

que lhe hão de custar a prateada cabeça.

 

Quer os frutos da terra divididos

entre mazombos pretos índios

escolas fabricas no país florente

de livres almas

americanas.

 

Solta a linguagem

dos insubmissos,

a arenga

dos desatinados

e até nas fábulas

que vai urdindo,

a louca palavra

dos verdadeiros.

Aluado

de jogar pedra,

de ser pateado

na Casa da Ópera,

de morrer na forca

morte infamante,

despedaçar-se

distribuir-se

pelos caminhos

e consciências

viver na glória.

 

(O perdido latim, a insensível trindade,

a desfeita esperança?

O constante lembrar.)

 

Lá vem, lá vai

o Corta-Vento pelas serranias

mantiqueiras.

No chão queimado

ainda retine

o tropel rosilho

de seu cavalo

enchendo o vale,

o plaino, o espaço

americano.

 

BEETHOVEN

 

Meu caro Luís, que vens fazer nesta hora

de antimúsica pelo mundo afora?

 

Patética, heroica, pastoral ou trágica,

tua voz é sempre um grito modulado,

um caminho lunar conduzindo à alegria.

Ao não rumor tiraste a percepção mais íntima

do coração da Terra, que era o teu.

Urso-maior uivando a solidão

aberta em cântico: entre mulheres

passando sem amor. Meu rude Luís,

tua imagem assusta na parede,

em medalhão soturno sobre o piano.

Que tempestade passou em ti e continua

a devastar-te no limite

em que a própria morte exausta se socorre

da vida, e reinstala

o homem na fatalidade de ser homem?

Nós, os surdos, não captamos

o amor doado em sinfonia, a paz

em allegro energico sobre o caos,

que nos ofertas do fundo

de teu mundo clausurado.

Nós, computadores, não programamos

a exaltação romântica filtrada

em sonatino adágio murmurante.

 

Nós, guerreiros nucleares, não isolamos

o núcleo de paixão de onde se espraia

pela praia infinita essa abstrata

superação do tempo e do destino

que é razão de viver, razão florente

e grave.

 

Tanto mais liberto quanto mais

em tua concha não acústica cerrado,

livre da corte, da contingência, do barroco,

erguendo o sentimento à culminância

da divina explosão, que purifica

o resíduo mortal, a angústia mísera,

que vens fazer, do longe de dois séculos,

escuro Luís, Luís luminoso,

em nosso tempo de compromisso e omisso?

 

Do fogo em que te queimaste,

uma faísca resta para incendiar

corações maconhados, sonolentos,

servos da alienação e da aparência?

Quem comporá a Apassionata do nosso tempo,

quem removerá as cinzas, despertará a brasa,

quem reinventará o amor, as penas de amor,

quem sacudirá os homens do seu torpor?

 

Boto no pickup o teu mar de música,

nele me afogo acima das estrelas.

 

 

HOMENAGEM

 

Jack London Vachel Lindsay Hart Crane

René Creve    Walter Benjamin Cesare Pavese

Stefan Zweig Virginia Woolf Raul Pompeia

 Sá-Carneiro

 

e disse apenas alguns

de tantos que escolheram

o dia a hora o gesto

o meio

a dis-

solução

 

 

AUSÊNCIA DE RODRIGO

 

A mesa em que Rodrigo trabalhava

está vazia.

 

Pesquiso indícios na madeira

na redoma de ar da sala

na cruel paisagem de concreto

perdoada — até quando?

por Santa Luzia azul-desbotado entre moneysáurios.

 

Procuro que não vejo

Rodrigo míope curvado

sobre traças esfareladas de capelas

e fortalezas em cacos

maquinando contornando insistindo

provendo.

 

Onde está, onde estará Mestre Rodrigo

o dos entalhadores pintores pedreiros

josé manuel raimundo elisiário simplesmente

retirados por sua mão prospectadora

do bolor de códices

de mortas confrarias?

 

Dele não há notícia melodiosa

em alguma parte de Alcântara ou Sete Povos?

Nem a mesa ondulada companheira conserva

o movimento de dedos escrevendo

de manhã de janeiro a noite de dezembro

o relatório das injúrias

que, mais que o tempo, os homens imprimiram

a lajes memorandas?

 

As coisas que restituiu ao sol da História

não cantam, não me contam de Rodrigo.

 

A mosca bailarina

pousa no tampo de vidro

na mesa em que Rodrigo trabalhava

na mesa em que

na mesa

na

 

 

O POETA IRMÃO

 

Cinquenta anos: espelho d’água ou névoa? Tudo límpido,

ou o tempo corrói o incalculável tesouro?

Vem do abismo de cinquenta anos, gravura em talho-doce,

a revelação de Emílio Moura.

 

Era tempo de escolha. Escolha em silêncio, definitiva.

Na rua, no bar, nossos companheiros esperam ser decifrados.

Mas o sinal os distingue. Descubro, e para sempre,

a amizade de Emílio Moura.

 

Agora a noite caminha no passo dos estudantes versíferos.

Bem conhecemos as magnólias, as mansões art nouveau, os guardas-civis

imóveis em cada esquina. Vou consultando um outro eu:

a presença de Emílio Moura.

 

E Verlaine, Samain, Laforgue, Antônio Nobre,

Alphonsus, tanta gente, nos acompanham sem ruído.

Começa a tecer-se, renda fluida na neblina,

a canção de Emílio Moura.

 

Canção de câmara: a que ele escreve e a que ele é.

Peculiar surdina, íntimo violino, jeito manso de ser,

que escapa aos trovões pop e risca em fundo cinza

a alma de Emílio Moura.

 

Alma que interroga. Ao mundo todo interroga, constante.

Há um impasse de ser, na graça de sentir.

E não se basta o homem. Ave-problema, esvoaça

a dúvida de Emílio Moura.

 

No céu de dúvidas, o amor responde ao poeta,

aponta-lhe os iniludíveis alvos deliciosos

em que a dor adormece e em que floresce o canto,

a explicação de Emílio Moura.

 

Ah, mineiro! que tem minas nem dele mesmo sabidas,

pois não as quer explorar, e toda glória é fuligem.

Mineiro que cala e cisma, e é quando mais se adensa

a Minas de Emílio Moura.

 

Mineiros há que saem. E mineiros que ficam.

Este ficou, de braços longos para o adeus.

Em Belo Horizonte, rumor sem verdes, é água pura

a permanência de Emílio Moura.

 

Ei-lo que chega, vem trazer a magrilonga

figura amada a amigos longe, em festa calma.

E conversá-lo e vê-lo é sentir indelével

a suavidade de Emílio Moura.

 

Agora não vem mais. Agora, é procurá-lo

em cinquenta anos vividos, em papéis, em retratos.

E transferir a pessoa viva a um cofre de ouro:

a poesia de Emílio Moura.

 

Pois aconteceu a coisa aquém e além da vida,

e nem vale chorar nem vale sofismar.

O fato novo extingue a casa transparente de estar-perto:

a morte de Emílio Moura.

 

Neste fato penetro e o vou todo explorando.

Corredor ou caverna ou túnel ou presídio,

não importa: uma luz violeta vai seguir-me:

a saudade de Emílio Moura.

 

 

DESLIGAMENTO DO POETA

 

A arte completa,

a vida completa,

o poeta recolhe seus dons,

o arsenal de sons e signos,

o sentimento de seu pensamento.

 

Imobiliza-se,

infinitamente cala-se,

cápsula em si mesma contida.

 

Fica sendo o não rir

de longos dentes,

o não ver

de cristais acerados,

o não estar

nem ter aparência.

O absoluto do não ser.

 

Não há invocá-lo acenar-lhe pedir-lhe.

 

Passa ao estranho domínio

de deus ou pasárgada-segunda.

 

Onde não aflora a pergunta

nem o tema da

nem a hipótese do.

 

Sua poesia pousa no tempo.

Cada verso, com sua música

e sua paixão, livre de dono,

 

respira em flor, expande-se

na luz amorosa.

 

A circulação do poema

sem poeta: forma autônoma

de toda circunstância,

magia em si, prima letra

escrita no ar, sem intermédio,

faiscando,

na ausência definitiva

do corpo desintegrado.

 

Agora Manuel Bandeira é pura

poesia, profundamente.

 

 

ENTRE NOEL E OS ÍNDIOS

 

Em Vila Rosali Noel Nutels repousa

do desamor alheio aos índios

e de seu próprio amor maior aos índios.

Como se os bastos bigodes perguntassem:

Valeu a pena?

Valeu a pena gritar em várias línguas

e conferências e entrevistas e países

que a civilização às vezes é assassina?

Valeu, valeu a pena

criar unidades sanitárias aéreas

para salvar os remanescentes

das vítimas de posseiros, madeireiros, traficantes

burocratas et reliqua,

que tiram a felicidade aos simples

e em troca lhes atiram de presente

o samburá de espelhos, canivetes,

tuberculose e sífilis?

 

Noel baixa de helicóptero

e vê a fome à beira d’água trêmula de peixes.

Homens esquecidos do arco e flecha

deixam-se consumir em nome

da integração que desintegra

a raiz do ser e do viver.

 

“Vocês têm obrigação de usar calça

camisa paletó sapato e lenço,

enquanto no Leblon nos despedimos

de toda convenção, e viva a natureza…”

Noel, tu o disseste:

A civilização que sacrifica

povos e culturas antiquíssimas

é uma farsa amoral.

 

O Parque maravilha do Xingu

rasgado e oferecido

ao galope das máquinas,

não o quiseste assim e protestaste

como se fosse coisa tua, e era,

pois onde um índio cisma

e acende fogo e dança

a dança milenar extraConservatório

e desenha seu momento de existir

longe da Bolsa, da favela e do napalm,

aí estavas tu, teu riso companheiro,

teus medicamentos,

tua branca alegria de viver

a vida universal.

 

Valeu? Valeu a pena

teu cerne ucraniano

fundir-se em meiga argila brasileira

para melhor sentires

o primitivo apelo da terra

moldura natural de homens xavantes

e kreen-akarores

lar aberto de bororos

carajás e kaingangs

hoje tão infelizes

pela compulsão da felicidade programada.

Valeu, Noel, a pena

seguir a traça de Rondon

e de Nimuendaju,

mãos dadas com Orlando e Cláudio Villas-Boas

sob o olhar de Darcy Ribeiro,

e voar e baixar e assistir e prover

e alertar e verberar

para que fique ao menos no espaço

este signo de amor compreensivo e ardente

que foi a tua vida sertaneja,

a tua vida iluminada,

e tua generosa decepção.

 

 

BRASIL / TARSILA  A Aracy Amaral

 

Tarsila

descendente direta de Brás Cubas

Tarsila

princesa do café na alta de ilusões

Tarsila

engastada na pulseira gótica do colégio de Barcelona

Tarsila

medularmente paulistinha de Capivari reaprendendo

o amarelo vivo

o rosa violáceo

o azul pureza

o verde cantante

desprezados pelo doutor bom gosto oficial.

 

Tarsila radar tranquilo

captando em traço elíptico

o vazio da rua de Congonhas com um cachorro e uma galinha servindo de multidão

a mudez da rua de São João del Rei com duas meninas no cenário operístico de casas e igreja

o silêncio do desvio ferroviário

o sono da cidade pequena onde as casas são boizinhos espalhados em presépio.

(Tarsila, Oswald e Mário revelando Minas aos mineiros de Anatole.)

Tarsila acordando para o pesadelo

de assombrações pré-colombianas tão vivas agora como outrora

abaporu das noites na fazenda

bichos que não existem? mas existentes

cactos-animais, pedras-árvores,

monstros a expulsar de nossa mente

ou a recolher para melhor

seguir nosso traçado preternatural.

Tarsila mágica,

meu Deus, tão simples,

alheia às técnicas analíticas de Freud

e desvendando

as grutas, os alçapões, as perambeiras

da consciência rural,

expondo ao sol

a alegria colorida da libertação.

 

Tarsila relâmpago

de beleza no Grande Hotel de Belo Horizonte em 24

acabando com o mandamento das pintoras feias

Quero ser em arte

a caipirinha de São Bernardo

A mais elegante das caipirinhas

a mais sensível das parisienses

jogada de brincadeira na festa antropofágica.

 

Tarsila

nome brasil, musa radiante

que não queima, dália sobrevivente

no jardim desfolhado, mas constante

em serena presença nacional

fixada com doçura,

Tarsila

amora amorável d’amaral

prazer dos olhos meus onde te encontres

azul e rosa e verde para sempre.

 

 

MOTIVOS DE BIANCO

 

Melodiosas mulheres movem-se

libertas da corrupção do vestido

e, como jangadas ou feixes de trigo,

são variações de concretitude

tamisadas de sonho,

forma plena, bastante,

sob a luz que esmerilha

a pelúcia das coisas.

 

O mar invade o quadro,

a sala,

o contemplante,

num fulgor de balanço,

e entre os raios da rede ilumina-se

e dança

o negro cavername

da água ou de nós mesmos, em marulho.

 

Sobre os infindos olhos esféricos do boi-bumbá

— lanternões acesos na alegria religiosa

do povo menino

do Brasil —:

festa

folia

flauta

coração da terra.

 

Assim Bianco, viajando

a cor e seus compartimentos encantados,

registra o ofício de homens e mulheres

jungidos à natureza por uma chispa

de ouro, um cipó

telúrico, semente

de amor explodindo em cântico.

 

 

FAYGA OSTROWER

 

Fayga faz a forma

flutuar e florir na pauta

musicometálica.

Água forte, água tinta

água fina

lavam

a crosta da terra

varam

a delicada ordenação das estruturas

manifestam

o diáfano.

 

Fayga exige à madeira

suas paisagens concentradas

mundos lenhosos que sobem à vida

no coro de cores, cor

ressoando nas coisas, independente de som.

 

Fayga faz e perfaz

a fundação de objetos líricos

sob superfícies falazes.

Depois bloqueia a luz, e a espessa

atmosfera do Não volve em depósito

de infinitos esquemas

vibrando noturnamente.

 

Fayga é um fazer,

filtrar e descobrir

as relações da vista e do visto

dando estatuto à passagem

no espaço: viver

é ver sempre de novo

a cada forma

a cada cor

a cada dia

o dia em flor no dia.

 

 

PINTURA DE WEGA

 

À tona do mundo irrompem

os mundos de Wega

violentos

verdinatais, vermelhoníricos

sobressaltando a natureza.

O último? o primeiro

dia da criação implanta

a densa vida tensa

em que a terra é criação do homem

e a criatura revela sua íntima

dramática estrutura.

 

 

CANTO BRASILEIRO

 

Brasil:

 

o nome soa em mim é sino

ardendo fogueira despetalada

em curva de viola

calor de velhas horas no estridor

de coisas novas.

 

Brasil

 

meu modo de ser e ver e estar triste e pular

em plena tristeza como se pula alto

sobre água corrente.

 

Meu país, essa parte de mim fora de mim

constantemente a procurar-me. Se o esqueço

(e esqueço tantas vezes)

volta

em cor, em paisagem

na polpa da goiaba na abertura

de vogais

no jogo divertido de esses e erres

e sinto

que sou mineiro carioca amazonense

coleção de mins entrelaçados.

 

Sou todos eles e

o sentimento subterrâneo

de dores criativas e fadigas

que abriram picadas

criaram bois e mulas e criam búfalos

e trabalham o couro o ferro o diamante o papel o destino.

Por que Brasil e não

outro qualquer nome de aventura?

Brasil fiquei sendo

serei sendo nas escritas do sangue.

Minha arte de viver foi soletrada

em roteiros distantes?

A vida me foi dada em leis e reis?

Me fizeram e moldaram

em figurinos velhos? Amanheço.

 

Confuso amanhecer, de alma ofertante

e angústias sofreadas

injustiças e fomes e contrastes

e lutas e achados rutilantes

de riquezas da mente e do trabalho,

meu passo vai seguindo

no zigue-zague de equívocos,

de esperanças que malogram mas renascem

de sua cinza morna.

Vai comigo meu projeto

entre sombras, minha luz

de bolso me orienta

ou sou eu mesmo o caminho a procurar-se?

 

Brasa sem brasão brasilpaixão

de vida popular em mundo aberto

à confiança dos homens.

Assim me vejo e toco: brasileiro

sem limites traçados para o amor

humano.

 

A explosão ingênua de desejos

a sensual vontade de criar

a pressa de revelar a face inédita

a cachoeira, o corisco, o som gritante

o traço americano

o sêmen novo

não me fazem um ser descompassado.

Brasileiro sou,

moreno irmão do mundo é que me entendo

e livre irmão do mundo

me pretendo.

(Brasil, rima viril de liberdade.)

 

 

CANTO MINERAL

 

Minas Gerais

minerais

minas de Minas

demais,

de menos?

minas exploradas

no duplo, no múltiplo

sem sentido,

minas esgotadas

a suor e ais,

minas de mil

e uma noites presas

do fisco, do fausto,

da farra; do fim.

 

Minas de três séculos

mal digeridos

ainda minando

mineralgias míticas.

O ouro desfalece:

Minas na mira

do erário real.

O diamante esmaece

Minas na surdina

da seresta exausta.

O ferro empalidece:

Minas na ruína

de simplórios donos

de roças mal lavradas.

 

Minas orgulhosa

de tanta riqueza,

endividada

de tanta grandeza

no baú delida.

Cada um de nós, rei

na sua fazenda,

cada pé de milho

erguia o pendão

de nossa realeza,

cada boi-de-coice

calcava o tesouro

da terra indefesa

negociada

com a maior fineza.

 

(Ai, que me arrependo

— me perdoa, Minas —

de ter vendido

na bacia das almas

meu lençol de hematita

ao louro da estranja

e de ter construído

filosoficamente

meu castelo urbano

sobre a jazida

de sonhos minérios.

Me arrependo e vendo.)

 

Minas, oi Minas,

tua estranha sina

delineada

ao bailar dos sinos

ao balir dos hinos

de festins políticos,

Minas mineiral

Minas musical

Minas pastorela

Minas Tiradentes

Minas liberal

Minas cidadela

Minas torturada

Minas surreal

Minas coronela

Minas tal e qual

a pedra-enigma

no labirinto da mina.

 

Do ferro líquido da forja

do Barão de Eschwege

resta a ficha histórica.

Do rude Cauê,

a TNT aplainado,

resta o postal

na gaveta saudosista,

enquanto milhares

milhafres

de vagões vorazes

levam para longe

a pedra azul guardada

para tua torre

para teu império

postergado sempre.

 

E as esmeraldas,

Minas, que matavam

de esperança e febre

e nunca se achavam

e quando se achavam

eram verde engano?

Minas sub-reptícia

tarde defendida

de áureas cobiças

pelo astuto jogo

do pensar oculto,

do dizer ambíguo,

do nevoento pairar

de flocos de sigilo

no manifesto anil

sobre serranares.

 

Minas, nos ares,

Minas que te quero

Minas que te perco

e torno a ganhar-te

com seres metal

diluído em genes,

com seres aço

de minha couraça,

Minas que me feres

com pontiagudas

lascas de minério

e laminados de ironia,

vês?

No coração do manganês

pousa uma escritura

de hipoteca e usura

e o banco solerte

praticando a arte

do cifrão mais forte.

 

Minas

teimoso lume aceso

mesmo sob cinza,

Minas Acesita

Minas Usiminas

Minas Ipatinga

Minas felina

a custo ensaiando

o salto da serra

bem alto,

o romper de algemas

mais férreas que o ferro,

no rumo certeiro

do Intendente Câmara,

Minas que te miro

desprezando os prazos

de imemoriais atrasos,

de leve batendo à porta

da era espacial,

Minas tório urânio

Minas esperança

Minas detetando

o sinal

sob a tibieza dos homens

e o parangolé da retórica,

Minas mineiralmente

geral Gerais

auriminas

turmaliniminas

diamantiniminas

muito abaixo da mais uterina

mina recôndita

luzindo

o cristalino

abafado

espírito de Minas.

 

 

A PALAVRA MINAS

 

Minas é uma palavra montanhosa.

MADU

 

Minas não é palavra montanhosa.

É palavra abissal. Minas é dentro

e fundo.

 

As montanhas escondem o que é Minas.

No alto mais celeste, subterrânea,

é galeria vertical varando o ferro

para chegar ninguém sabe onde.

 

Ninguém sabe Minas. A pedra

o buriti

a carranca

o nevoeiro

o raio

selam a verdade primeira, sepultada

em eras geológicas de sonho.

 

Só mineiros sabem. E não dizem

nem a si mesmos o irrevelável segredo

chamado Minas.

 

 

FIM DE FEIRA

 

No hipersupermercado aberto de detritos,

ao barulhar de caixotes em pressa de suor,

mulheres magras e crianças rápidas

catam a maior laranja podre, a mais bela

batata refugada, juntam na calçada

seu estoque de riquezas, entre risos e gritos.

 

 

O MAR, NO LIVING

 

O mar entra no living

mal a primeira tinta

do dia se define.

Passa pelo vidro

e em pouco submergem

pessoas e tapetes,

poltronas, gestos,

nomes,

quadros,

vozes.

 

O mar tudo recobre

sem nada asfixiar.

No côncavo marinho

o ir e vir espelha

a vida costumeira

de peixes adestrados

que observam a lei

de viventes em casa.

 

Ao meio-dia, o mar

instala-se completo

nos metais e na pele

dos moradores.

Deixa esparso no ar

um tremor de prata

incendiada.

 

Pela tarde singramos

o mar e nos quedamos

na mesma onda imóvel

que na beira dos copos

junta ao álcool dourado

a amargura do sal

sem que sal se perceba.

 

Quando a noite descerra

as pétalas de sombra

sem recorte sonâmbulo

de lua sobre as águas,

e o sono deposita-se

em cada castiçal,

cinzeiro, campainha

e dobra de cortina,

e os passos amortecem

no surdo corredor,

eis que o mar se retira

para si mesmo e longe,

ou nós é que emergimos

da espessura das águas

tornadas invisíveis.

 

O mar chega de volta,

mal a primeira tinta

se define, do dia,

e o living, baía,

com todo o mobiliário

e pessoas, imersos,

prossegue o balouçante

estar sozinho e verde,

verdissozinho imenso

em pura escuridão.

 

 

LIVRARIA

 

Ao termo da espiral

que disfarça o caminho

com espadanas de fonte,

e ao peso do concreto

de vinte pavimentos,

a loja subterrânea

expõe os seus tesouros

como se os defendesse

de fomes apressadas.

 

Ao nível do tumulto

de rodas e de pés,

não se decifra a oculta

sinfonia de letras

e cores enlaçadas

no silêncio de livros

abertos em gravura.

 

Aquário de aquarelas,

mosaicos, bronzes,

nus,

arabescos de Klee,

piscina onde flutuam

sistemas e delírios

mansos de filósofos,

sentido e sem sentido

das ciências e artes

de viver: a quem sabe

mergulhar numa página,

o trampolim se oferta.

 

A vida chega aqui

filtrada em pensamento

que não fere; no enlevo

tátil-visual de ideias

reveladas na trama

do papel e que afloram

aladamente e dançam

quatro metros abaixo

do solo e das angústias

o seu balé de essências

para o leitor liberto.

 

 

VERÃO CARIOCA 73

 

O carro do sol passeia rodas de incêndio

sobre os corpos e as mentes, fulminando-os.

Restam, sob o massacre, esquírolas de consciência,

a implorar, sem esperança, um caneco de sombra.

 

As árvores decotadas, alamedas sem árvores.

O ar é neutro, fixo, e recusa passagem

às viaturas da brisa. O zinir de besouros buzinas

ressoa no interior da célula ferida.

 

Sobe do negro chão meloso espedaçado

o súlfur dos avernos em pescoções de fogo.

A vida, esse lagarto invisível na loca,

ou essa rocha ardendo onde a verdura ria?

 

O mar abre-se em leque à visita de uns milhares,

mas, curvados ao peso dessa carga de chamas,

em mil formas de esforço e pobreza e rotina, milhões

curtem a maldição do esplêndido verão.

 

 

VÊNUS

 

Vênus de calça comprida é

Vênus calcianadiomênica

Vênus calcispúmica

Vênus calcitrite

 

Vênus de calça comprida

é Vênus calcirízica

Vênus calcigênitrix

Vênus calcimílica

 

De calça comprida Vênus é Vênus

calcicranachiana

calciarlesiana

calcicapitulina

 

Calcibelvedérica

é Vênus de calça comprida

calcieleusiana

calcitriptolêmica

 

Vênus calcipersefônica

Vênus calciproserpínica

de calça comprida

Vênus calcicarôntica

 

Calcifarnésica Vênus

Vênus calcilaomedôntica

Vênus calcionfálica

Vênus é de calça comprida

 

Calcimegárica

Vênus calciedípica

Vênus calciateneica

— de calça comprida — calcidedálica

 

Vênus calcimeleágrica

Vênus calciargonáutica

Vênus calcibelerofôntica

de calça comprida Vênus

 

Vênus calcidanáidica

Vênus calcihemofroidítica

Vênus calcicomprida

e sempre, nua, Vênus.

 

 

O PASSARINHO EM TODA PARTE

 

Bem te vi, bem-te-vi,

bem te ouvi recitando

e repetindo nítido

teu bentibentivismo.

Bem te vi lá na roça,

nas árvores, nas águas,

bem te vi na cidade

que prolongava a roça,

bem te vi no Jardim

da República sobre

o cupim das cutias

estátuas no gramado,

bem te vi na Argentina

quando o chá na planície

chamava a revoada

de borboletas trêmulas

sobre o azul da piscina,

bem te vi, bem te vejo

na vasta galeria

de bichos e de coisas

irmãos de nossa vida

a esvoaçar na voz

dos mais velhos que ensinam

o almanaque da terra,

bem te vi, bem te vejo

presente entre as ausências

que me vão rodeando

e quando bem te avisto

e te ouço, eis que me assisto

devolvido ao primeiro

bem-ver-ouvir do prístino

bem-te-vi bentivisto.

 

 

ASPECTOS DE UMA CASA

 

CRIAÇÃO

 

A casa de Maria é alta

e clara.

Não a projetam arquitetos,

construtores não a fazem.

O traço no papel

o concreto, o aço dos volumes

são circunstâncias alheias

à criação.

Maria cria sua casa

como o pássaro cria seu voo

clarialto.

 

No vazio das peças

móveis quadros tapetes

são o pensamento de Maria

esboçando linhas cambiantes

até fixar-se na ordem imprescritível.

Objetos deixam-se moldar

com amiga docilidade.

Ajudemos Maria (dizem eles

no dizer sem nome dos objetos)

a compor sua casa

como de um baralho de sons

se compõe a estrutura musical.

Sobre a cidade,

sobre a fuligem das horas perdidas

e a angústia dos subterrâneos transpostos,

a casa é o rosto de Maria

à luz reencontrado.

 

O LIVING

 

Aqui se pode conversar

a imemorial conversa

que de tudos e nadas

se alimenta,

glosa livre do mundo.

Passeia a vista descansada

em coisas afetuosas

vindas de muitas partes para ouvir

sem o menor ruído

mas participando do colóquio

pelo poder de integração

que a poltrona, a lâmpada

trazem consigo

se nos sabemos eleger,

coisas e seres.

Portinari, Bianco, Fayga

Baumeister

estão conosco, os 90 anos de Picasso

em estampa colorida,

o ex-voto conciso do Nordeste

e o coral dos livros

(surdinado) nas brancas prateleiras.

 

Sala de viver

na opção de viver

a graça de viver.

 

O QUARTO DOS RAPAZES

 

Uma desordem que se espraia

uma ordem que se concentra

uma TV que se repete

uma cama que se desdobra

os corações que se procuram

a saudade de um gato antigo

pisada com leves patas

pelo cavalo aeromítico

dos haras de Aldemir Martins.

 

O QUARTO DE PEDRO

 

Móbiles de ouro da Praça General Osório

balançam no ar de Pedro notícias do Brasil.

O quarto flutua entre posters e cadernos de geografia.

A rede baiana balança na varanda aberta

sobre a plataforma a perder de vista dos terraços.

Tesouros de imperador depositam-se por toda parte:

conchas, garrafas-miniatura, volante de carro.

O império mergulha em sonho interplanetário,

mas soa a hora fatal

no quarto amanhecido:

o imperador calça os sapatos da rotina,

segue, vencido, para a escola.

 

O QUARTO DE MARIA

 

Toda a casa aqui se resume:

a ideia torna-se perfume.

 

O QUARTO DE BANHO

 

A pomba pousa no basculante

assiste ao esguicho da água

à canção das torneiras

ao glissiglissar dos sabonetes

à purificação dos corpos

e voa.