A FOLHA

 

A natureza são duas.

Uma,

tal qual se sabe a si mesma.

Outra, a que vemos. Mas vemos?

Ou é a ilusão das coisas?

 

Quem sou eu para sentir

o leque de uma palmeira?

Quem sou, para ser senhor

de uma fechada, sagrada

arca de vidas autônomas?

 

A pretensão de ser homem

e não coisa ou caracol

esfacela-me em frente à folha

que cai, depois de viver

intensa, caladamente,

e por ordem do Prefeito

vai sumir na varredura,

mas continua em outra folha

alheia a meu privilégio

de ser mais forte que as folhas.

 

 

A SUPOSTA EXISTÊNCIA

 

Como é o lugar

quando ninguém passa por ele?

Existem as coisas

sem ser vistas?

 

O interior do apartamento desabitado,

a pinça esquecida na gaveta,

os eucaliptos à noite no caminho

três vezes deserto,

a formiga sob a terra no domingo,

os mortos, um minuto

depois de sepultados,

nós, sozinhos

no quarto sem espelho?

 

Que fazem, que são

as coisas não testadas como coisas,

minerais não descobertos — e algum dia

o serão?

 

Estrela não pensada,

palavra rascunhada no papel

que nunca ninguém leu?

Existe, existe o mundo

apenas pelo olhar

que o cria e lhe confere

espacialidade?

 

Concretitude das coisas: falácia

de olho enganador, ouvido falso,

mão que brinca de pegar o não

e pegando-o concede-lhe

a ilusão de forma

e, ilusão maior, a de sentido?

 

Ou tudo vige

planturosamente, à revelia

de nossa judicial inquirição

e esta apenas existe consentida

pelos elementos inquiridos?

Será tudo talvez hipermercado

de possíveis e impossíveis possibilíssimos

que geram minha fantasia de consciência

enquanto

exercito a mentira de passear

mas passeado sou pelo passeio,

que é o sumo real, a divertir-se

com esta bruma-sonho de sentir-me

e fruir peripécias de passagem?

 

Eis se delineia

espantosa batalha

entre o ser inventado

e o mundo inventor.

Sou ficção rebelada

contra a mente universa

e tento construir-me

de novo a cada instante, a cada cólica,

na faina de traçar

meu início só meu

e distender um arco de vontade

para cobrir todo o depósito

de circunstantes coisas soberanas.

 

A guerra sem mercê, indefinida,

prossegue,

feita de negação, armas de dúvida,

táticas a se voltarem contra mim,

teima interrogante de saber

se existe o inimigo, se existimos

ou somos todos uma hipótese

de luta

ao sol do dia curto em que lutamos.

 

 

ARTE POÉTICA

 

Uma breve uma longa, uma longa uma breve

uma longa duas breves

duas longas

duas breves entre duas longas

e tudo mais é sentimento ou fingimento

levado pelo pé, abridor de aventura,

conforme a cor da vida no papel.

 

 

A PAIXÃO MEDIDA

 

Trocaica te amei, com ternura dáctila

e gesto espondeu.

Teus iambos aos meus com força entrelacei.

Em dia alcmânico, o instinto ropálico

rompeu, leonino,

a porta pentâmetra.

Gemido trilongo entre breves murmúrios.

E que mais, e que mais, no crepúsculo ecoico,

senão a quebrada lembrança

de latina, de grega, inumerável delícia?

 

 

OS CANTORES INÚTEIS

 

Um pássaro flautista no quintal

caçoa de meu verso modernista.

Afinal fez-nos ambos o universo

aprendizes ao sol ou à garoa.

 

A canção absoluta não se escreve,

à falta de instrumentos não terrestres.

Aos mestres indagando, mal se escuta

pingar, de leve, a gota de silêncio.

 

Eu, pretensioso, e tu, pássaro crítico,

vence o mítico amor nossa vaidade:

os amantes que passam, distraídos

 

e surdos a tais cantos discordantes,

a melodia interna é que os governa.

Tudo mais, em verdade, são ruídos.

 

 

ANTE UM NU DE BIANCO

 

Quanto mais vejo o corpo, mais o sinto

existente em si mesmo, proprietário

de um segredo, um sentido — labirinto

particular, alheio ao ser precário.

 

Cada corpo é uma escrita diferente

e tão selada em seu contorno estrito

que a devassá-la em vão se aflige a mente:

não lhe penetra, na textura, o mito.

 

Trabalho eterno: a mão, o olhar absorto

no gesto fulvo e nu da moça andando

como flor a mover-se fora do horto.

 

Só o pintor conhece como e quando

o corpo se demonstra na pureza

que é negação de tempo e de tristeza.

 

 

A FESTA DO MANGUE

 

I

 

Por que nasce o amor no mangue

e vem coberto de limo,

assim tão úmido e humilde,

querendo ser misturado

às impurezas do homem?

O amor, brotando no mangue,

a preço de hotel do vento,

dispensa raiz profunda:

seus tentáculos à flor

da vista formam arcadas

sob as quais passam casais

desconhecidos, movidos

de pressa e eletricidade.

Amor de poucos minutos

e de sortidos amores

bebendo na mesma fonte.

Bebe um, bebe o seguinte

e o seguinte do seguinte,

sem que por isto se estanque

a fonte aberta ao passante

na extensão lunar da rua

ou no sol tenso do dia,

manguezal de vulva exposta

e de boca sanguessuga.

Fonte distinta das outras,

por sua vez vai sorvendo,

vai sugando, vai chupando

o licor cálido e múltiplo

da veloz necessidade.

Amor triste? Por que triste,

se é sempre forma de amor,

por mais barata que seja,

por mais que se mostre alheia

à tentação de durar?

 

II

 

Aqui se cumprem os ritos

da cópula imemorial.

Aqui o catre, o cabide,

a torneira ablucional

carícia especializada

e fruição sideral.

Viens, chéri, vem, meu neguinho,

viens vite faire bouché.

Eu primeiro te examino

para evitar cancro duro.

Depois é você quem manda

no meu corpinho asseado.

Eu sei todas as maneiras

de te fazer delirar.

Vem, soldado, vem, caixeiro,

vem, fuzileiro naval,

vem, empregado da Light,

motorista, cobrador,

funcionário federal,

economista, poeta,

estudante, sacristão,

vem, boiadeiro goiano,

e vem tu, seminarista,

jornalista, radialista,

deputado, senador

oculto em negro capote,

vinde todos, vinde mil

da Europa, França e Bahia,

saciar a precisão.

Rapidinho, rapidinho,

que tenho fogo na veia

e para falar verdade

preciso ganhar a vida

mesmo depois de perdida.

 

III

 

Que faz ali na parede

aquela santa dourada?

Vela pelos pecadores,

se é culpa nossa nascer

sem direito a santidade.

E que faz o cachorrinho

enrodilhado no chão?

Faz companhia na hora

de enfrentar a solidão.

Entre santa e cachorrinho,

perpassa um ar de família,

família que continua

a bulir dentro da gente.

Então essa noiva nua

é de verdade ou mentira?

— É de mentira e verdade,

e as pombas que me rodeiam,

as pombas que estão lá fora,

as pombas que nunca param

de bicar milho de amor,

são irmãzinhas da gente,

joias da nossa nudez.

São todos irmãos: a rua

é um país compreensivo

onde o amor é procurado

sem escritura e padrinhos,

o país do pobre amor,

alta riqueza do pobre,

consolação e alegria

dos que estão sempre sozinhos

mesmo quando multidão.

São solidões que se abraçam,

que se enroscam, se deglutem

na festa

(é festa?)

do Mangue.

 

 

FONTE GREGA

 

A vida inteira mijando — lastima-se a deusa — e nem sobra tempo para viver. Minha linfa de ouro ao sol, inestancável, impede-me o sono, proíbe-me o amor. Não sei abrir as pernas senão para isto. Para isto fui concebida? Para derramar este jato morno sobre a terra, e nunca me enxugar, e continuar a expeli-lo, branca e mijadora, fonte, fonte, fonte?

A deusa nem suspende veste nem arria calça. É seu destino mijar. Sem remissão, corpo indiferente e exposto, mija nos séculos.

 

 

O PRISIONEIRO

 

I

 

O verde esforço por alcançar

o peitoril da janela azul. O bico

força o impasse

reviravolteia

desiste.

Resta

a exibição de vermelhos insuspeitados

sob asas cativas.

 

II

 

O papagaio estrela a área de serviço.

Entremostra e recolhe a um tempo sua chama.

O olhar redondo indaga. A ira concentrada

oculta-se em azul: a corrente-novelo.

 

Uma voz na prisão surge de muros rasos.

Outra voz lhe responde — a mesma. Dois conversam,

numa plumagem só, a conversa de doidos,

imitação talvez da disputa de deuses.

Ele xinga em seu código a malícia dos homens.

Reserva seu amor à velha criada surda.

O bico, a boca, o beijo. O cheiro da cozinha

é óleo que vai roer os elos da clausura.

 

… Fugiu, com toda a cor.

 

 

A CRUZ E A ÁRVORE

 

Na Estrada do Cafundá,

na Serra do Caverá,

corpos e madeiras enlaçados.

A cruz de Eliana, o jamelão de Leo

contam a história do nosso agora

(ou de sempre).

Demônios passam na viração, instalam-se

na carne virgem de Eliana

que toda se retorce

na possessão vermelha

e não querem sair nunca mais

de seus guardados.

O corpo exige cruz.

Eliana amortalha-se

de crepe alvo transparente.

Seus pés lacerados a gilete

rumam para o calvário.

Multidões famintas de milagre

chegam dos quatro pontos

do universo rio-grandense.

Entre latas de cerveja,

buzinas, gravador pentecostal,

olhos cobiçosos de sofrimento

alheio,

Eliana assume postura de Cristo,

a dor de Cristo, a opção de Cristo.

Pecadores pasmam, recolhem gotas

de humilde sangue precioso,

orvalho de redenção.

Eliana dorme, Eliana vela,

suspira, espera

que fuja de suas entranhas

a manada de porcos infernais

e a Face Resplandecente lhe sorria.

Leo acorda cedo, vai assaltar.

Profissão vigente, como outras.

O carro-pagador traz apenas 15 mil cruzeiros,

ridículos para um assalto.

Mas Leo precisa exercer

a profissão sem carteira.

Homens atracam-se com ele.

Lutam na lama do loteamento

verde, na lama verde.

O revólver trai seu portador.

Leo não recolhe os 15 mil.

Trabalhadores defendem o que é deles,

suado salário da semana.

Leo amarrado ao jamelão

está perdido.

Está salva Eliana.

O corpo voltou a ser virgem.

Gritos triunfais assustam os pássaros

da Serra do Caverá.

Os pais de Eliana,

o noivo desempregado de Eliana,

recolhem nos braços

a santa de claros cabelos

que salvará o Rio Grande do Sul.

Eliana, sacra e triste,

não viu o Cristo aparecer-lhe

e confortá-la.

Nem todos os santos merecem o privilégio.

E a graça se oferece, recusando-se.

Eliana redimida,

Leo amarrado pela cintura

e pescoço

pede para ser preso.

Que chamem, que chamem a joaninha

para transportá-lo.

Ninguém escuta, param caminhões,

automóveis param, descem

pessoas para colaborar no linchamento.

O forte jamelão também é cruz

do mau ladrão.

Não há muitas oportunidades

de vingar num só o mal de mil.

Vibram todos ritualmente

em Leo os golpes de ira coletiva.

Cada um tem sua queixa de Leo,

injúria a resgatar

antiga humilhação,

dor do mundo a doer em cada peito.

Na Serra do Caverá demônios exorcizados

a pau e pedra e pontapé e escarro

e palavrão

escapolem da alma de Leo purificada.

O jamelão embala com suas folhas

sussurrantes, na Estrada do Cafundá,

a alma liberta de Eliana

entre hosanas de amor, e tudo é santo.

 

 

O HISTORIADOR

 

Veio para ressuscitar o tempo

e escalpelar os mortos,

as condecorações, as liturgias, as espadas,

o espectro das fazendas submergidas,

o muro de pedra entre membros da família,

o ardido queixume das solteironas,

os negócios de trapaça, as ilusões jamais confirmadas

nem desfeitas.

Veio para contar

o que não faz jus a ser glorificado

e se deposita, grânulo,

no poço vazio da memória.

É importuno,

sabe-se importuno e insiste,

rancoroso, fiel.

 

 

PATRIMÔNIO

 

Duas riquezas: Minas

e o vocábulo.

 

Ir de uma a outra, recolhendo

o fubá, o ferro, o substantivo, o som.

 

Numa, descansar de outra. Palavras

assumem código mineral.

Minérios musicalizam-se em vogais.

Pastor sentir-se: reses encantadas.

 

 

APARIÇÃO

 

Um cão violento e uma viúva doida

vigiam as grades de tua casa.

Sais pelo terraço

em voo certeiro pelas onze da noite

e tuas longas pernas vão pousar

nos azulejos da praça, hastes brotando,

pungentes, do céu.

 

Teu passeio desenvolve-se através de coisas

golpeadas, penetradas até a raiz do símbolo.

No acrílico do bar, no cadeiral da basílica,

no poste extremamente solitário,

insinuas-te. E será sempre assim, arquipresente

nas mínimas ruas da cidade.

 

Não te alcanço.

É fácil o cerne escuro das madeiras,

atravessas o próprio mineral, no carvão

teu sorriso é especial promessa a não destinatários,

afago que se basta, sem sentido.

Tudo se passa em teatro, como se teatro

houvesse. Ao amanhecer,

recolho as setenta infidelidades de tua imagem.

 

 

NASCER DE NOVO

 

Nascer: findou o sono das entranhas.

Surge o concreto,

a dor de formas repartidas.

Tão doce era viver

sem alma, no regaço

do cofre maternal, sombrio e cálido.

Agora,

na revelação frontal do dia,

a consciência do limite,

o nervo exposto dos problemas.

 

Sondamos, inquirimos

sem resposta:

Nada se ajusta, deste lado,

à placidez do outro?

É tudo guerra, dúvida

no exílio?

O incerto e suas lajes

criptográficas?

Viver é torturar-se, consumir-se

à míngua de qualquer razão de vida?

 

Eis que um segundo nascimento,

não adivinhado, sem anúncio,

resgata o sofrimento do primeiro,

e o tempo se redoura.

Amor, este o seu nome.

Amor, a descoberta

de sentido no absurdo de existir.

O real veste nova realidade,

a linguagem encontra seu motivo

até mesmo nos lances de silêncio.

 

A explicação rompe das nuvens,

das águas, das mais vagas circunstâncias:

Não sou eu, sou o Outro

que em mim procurava seu destino.

Em outro alguém estou nascendo.

A minha festa,

o meu nascer poreja a cada instante

em cada gesto meu que se reduz

a ser retrato,

espelho,

semelhança

de gesto alheio aberto em rosa.

 

 

O NOME

 

Encapelou-se o mar, um nome ouvindo.

Feras emudeceram. Da montanha

um rumor rubro e pânico, infletindo

sobre a cidade, entontecida aranha,

 

trouxe consigo o pó do tempo findo

e das coisas morrentes, em tamanha

desolação que, tudo consumindo,

desse nome crescia a força estranha.

 

Que poder tão terrível permanece

nas sílabas cruéis e musicais,

a recordarem quanto a mente esquece?

 

E ficam revoando, reboando

no revolto universo, entre espirais

convulsas de um amor não mais amando?

 

 

CONFRONTO

 

Bateu Amor à porta da Loucura.

“Deixa-me entrar — pediu — sou teu irmão.

Só tu me limparás da lama escura

a que me conduziu minha paixão.”

 

 

A Loucura desdenha recebê-lo,

sabendo quanto Amor vive de engano,

mas estarrece de surpresa ao vê-lo,

de humano que era, assim tão inumano.

 

E exclama: “Entra correndo, o pouso é teu.

Mais que ninguém mereces habitar

minha casa infernal, feita de breu,

 

enquanto me retiro, sem destino,

pois não sei de mais triste desatino

que este mal sem perdão, o mal de amar”.

 

 

MEMÓRIA HÚNGARA

 

Caminhando nesta praia do Rio de Janeiro,

o vento me traz, na conversa de desconhecidos,

o nome de Arpad,

e a esse nome uma voz interior junta o nome de André

e os de Jorge seu filho e Maurício seu neto,

rei e príncipes de uma Hungria esfumada na História.

Que tenho a ver com eles?

Que têm a ver comigo,

pequeno burocrata aposentado a escrever para jornais

histórias da minha rua e do meu ônibus cotidiano?

Eu príncipe não sou. E muito menos rei.

E acaso restarão, na caligem que ora envolve céu e terra,

estilhaços de coroas com seus rubis empalidecidos?

Por que Arpad e Maurício em minha pobre memória?

Li um dia notícia de certa viagem marítima

e de uma tempestade a açoitar fugitivos ingleses

até a costa escocesa.

Maurício, da Casa de Arpad, comanda a embarcação.

Nada podem contra ele as fúrias do mar e as iras de Guilherme

o Conquistador.

A bela moça a bordo torna-se Rainha da Escócia,

em seu altar de igreja é Santa Margarida.

O bravo Maurício ganha terras e novos títulos,

como o de Onda Alta, Drumm-ond,

e aqui estou eu, caminhando nesta praia

com uma gota de sangue húngaro tingindo levemente meu destino

de aventureiro não realizado.

 

 

ANTEPASSADO

 

Só te conheço de retrato,

não te conheço de verdade,

mas teu sangue bole em meu sangue

e sem saber te vivo em mim

e sem saber vou copiando

tuas imprevistas maneiras,

mais do que isso: teu fremente

modo de ser, enclausurado

entre ferros de conveniência

ou aranhóis de burguesia,

vou descobrindo o que me deste

sem saber que o davas, na líquida

transmissão de taras e dons,

vou te compreendendo, somente

de esmerilar em teu retrato

o que a pacatez de um retrato

ou o seu vago negativo,

nele implícito e reticente,

filtra de um homem; sua face

oculta de si mesmo; impulso

primitivo; paixão insone

e mais trevosas intenções

que jamais assumiram ato

nem mesmo sombra de palavra,

mas ficaram dentro de ti

cozinhadas em lenha surda.

Acabei descobrindo tudo

que teus papéis não confessaram

nem a memória de família

transmitiu como fato histórico,

e agora te conheço mais

do que a mim próprio me conheço,

pois sou teu vaso e transcendência,

teu duende mal encarnado.

Refaço os gestos que o retrato

não pode ter, aqueles gestos

que ficaram em ti à espera

de tardia repetição,

e tão meus eles se tornaram,

tão aderentes ao meu ser,

que suponho tu os copiaste

de mim antes que eu os fizesse,

e, furtando-me a iniciativa,

meu ladrão, roubaste-me o espírito.

 

 

A CORRENTE

 

Sente raiva do passado

que o mantém acorrentado.

Sente raiva da corrente

a puxá-lo para a frente

e a fazer do seu futuro

o retorno ao chão escuro

onde jaz envilecida

certa promessa de vida

de onde brotam cogumelos

venenosos, amarelos,

e encaracoladas lesmas

deglutindo-se a si mesmas.

 

 

O QUE VIVEU MEIA HORA

 

Nascer para não viver

só para ocupar

estrito espaço numerado

ao sol e chuva

que meticulosamente vai delindo

o número

enquanto o nome vai-se autocorroendo

na terra, nos arquivos

na mente volúvel ou cansada

até que um dia

trilhões de milênios antes do Juízo Final

não reste em qualquer átomo

nada de uma hipótese de existência.

 

 

EVOCAÇÃO

 

À sombra da usina, teu jardim

era mínimo, sem flores.

Plantas nasciam, renasciam

para não serem olhadas.

 

Meros projetos de existência,

desligavam-se de sol e água,

mesmo daquela secreção

que em teus olhos se represava.

 

Ninguém te viu quando, curvada,

removias o caracol

da via estreita das formigas,

nem sequer se ouviu teu chamado.

 

Pois chamaste (já era tarde)

e a voz da usina amorteceu

tua fuga para o sem-país

e o sem-tempo. Mas te recordo

 

e te alcanço viva, menina,

a planejar tão cedo o jardim

onde estás, eu sei, clausurada,

sem que ninguém, ninguém te adivinhe.

 

 

O HOMEM ESCRITO

 

Ainda está vivo ou

virou peça de arquivo?

 

Sua vida é papel

a fingir de jornal?

 

Dele faz-se bom uso

se seu texto é confuso?

 

Numa velha gaveta

o esqueceram, caneta?

 

Após tantos escapes

arredonda-se em lápis?

 

Essa indelével tinta

é para que não minta

 

mais do que o necessário

a uma sigla no armário?

 

Recobre-se de letras

ou são apenas tretas?

 

Entrará em catálogo

à custa de monólogo?

 

Terá número, barra

e borra de carimbo?

 

Afinal, ele é gente

ou registro pungente?

 

 

A MORTE A CAVALO

 

A cavalo de galope

a cavalo de galope

a cavalo de galope

lá vem a morte chegando.

 

A cavalo de galope

a cavalo de galope

a morte numa laçada

vai levando meus amigos.

 

A cavalo de galope

depois de levar meus pais

a morte sem prazo ou norte

vai levando meus irmãos.

 

A morte sem avisar

a cavalo de galope

sem dar tempo de escondê-los

vai levando meus amores.

 

A morte desembestada

com quatro patas de ferro

a cavalo de galope

foi levando minha vida.

 

A morte de tão depressa

nem repara no que fez.

A cavalo de galope

a cavalo de galope

 

me deixou sobrante e oco.

 

 

ÁGUA-DESFECHO

 

Un peu profond ruisseau calomnié

desce em meu rumo, vem-se aproximando.

Sem o ouvido sutil de Mallarmé,

ouço-lhe embora o ruído grave e brando.

 

Boiam fanadas coisas na corrente:

uma quermesse, vozes, o violino

em febre ouvido, a cor de uma serpente

enovelada sobre o meu destino.

 

Já provo o antessabor da linfa amara

a penetrar-me a língua e a percorrer

o mais furtivo poro de consciência.

 

Pois submergido estou, a vida é clara,

e não mais necessita de clemência

o epilogado, esvaecido ser.

 

 

RIFONEIRO DIVINO

 

Responde, por favor: Deus é quem sabe?

Sabe Deus o que faz?

Deus dá o pão, não amassa a farinha?

Deus o dá, Deus o leva?

Pertence-lhe o futuro?

Deus te dá saúde? Deus ajuda

a quem cedo madruga?

Será que Deus não dorme?

E é Deus por todos, cada um por si?

Deus consente, mas nem sempre? Deus

perdoa, Deus castiga?

Deus me livra ou salva?

Deus vê o que o Diabo esconde?

De hora em hora Deus melhora?

Mas é se Deus quiser?

E Deus quer?

Deus está em nós? E nós,

responde, estamos nele?

 

 

OS DEUSES SECRETOS

 

Deuses secretos passeiam no território dos homens.

Tramam, destramam nossa realidade.

Os deuses ostensivos, nossos protetores,

tudo ignoram.

Neste momento um deus perverso e anônimo

fustiga-me.

Rolo no ladrilho, contorço-me,

sem gritar.

Não tenho a quem dirigir

palavras de ira ofendida.

Sei que é um deus inominado,

sei que passará,

e vou respirar, aliviado.

 

 

IGUAL-DESIGUAL

 

Eu desconfiava:

todas as histórias em quadrinho são iguais.

Todos os filmes norte-americanos são iguais.

Todos os filmes de todos os países são iguais.

Todos os best-sellers são iguais.

Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol
são iguais.

Todos os partidos políticos

são iguais.

Todas as mulheres que andam na moda

são iguais.

Todas as experiências de sexo

são iguais.

Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais

e todos, todos

os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.

 

Todas as guerras do mundo são iguais.

Todas as fomes são iguais.

Todos os amores, iguais iguais iguais.

Iguais todos os rompimentos.

A morte é igualíssima.

Todas as criações da natureza são iguais.

Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.

Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.

Ninguém é igual a ninguém.

Todo ser humano é um estranho

ímpar.

 

 

A PALAVRA

 

Já não quero dicionários

consultados em vão.

Quero só a palavra

que nunca estará neles

nem se pode inventar.

 

Que resumiria o mundo

e o substituiria.

Mais sol do que o sol,

dentro da qual vivêssemos

todos em comunhão,

mudos,

saboreando-a.

 

 

A VISITA

 

1

 

1919. 10 de julho.

Palmas. A porta aberta não responde.

Ô de casa! Mais palmas. A menina

manda entrar. O corredor abre à esquerda,

na tristura de cinza do escritório

baixo.

Dentro, o homem sozinho,

50 anos por fazer, mas feitos secamente

no rosto grave: — O senhor deseja?

— Vim conhecer o Príncipe, vim saudar o Príncipe

dos Poetas das Alterosas Montanhas!

 

O homem sorri: — O senhor está equivocado

ou caçoa talvez.

Sou há 13 anos, há 13 mil anos eternamente

juiz municipal em míseros sertões.

Em todo caso, sente-se. Conversar é bom

em minha solidão

que escorre a contemplar o deserto das cidades mortas.

 

O alto visitante jovem inclina-se, compenetrado:

— O Príncipe não é príncipe, eu sei,

para o distraído, fosfóreo descaso

dos donos da literatura e da vida.

Mas é bem mais do que isso, para cada um de nós poucos

obcecados

pela vertigem do poema no cristal da linguagem.

 

2

 

O homem volta a sorrir, em meio perdão

às fanfarras do recém-vindo: — Engraçado, o senhor

ao entrar aqui (desculpe)

foi como se uma grande ave imprevista irrompesse pela janela

deste pardieiro um tanto medieval…

— Acha? ri com dentes múltiplos o moço de 26 anos

quase, tão gesticulante

na alegria da curiosidade; vinha de longe,

em baldeados trens de ferro, fagulha, fumaça

para conhecer o estranho poeta

encravado na estranha, estranha paragem sonolenta.

Então sou The Raven

a stately Raven of the saintly days of yore,

não in the bleak December, mas neste friim matinal de julho?

Muito obrigado pela alta comparação!

Aliás, que vejo em sua escrivaninha?

Esse negro tinteiro

que a cabeça de um corvo representa,

junto à medalha da Virgem Dolorosa…

É, também sou de algum modo o Corvo, tenho-o de cor,

pousado no crânio esculpido da memória… Quer ver?

Once upon a midnight dreary, while I pondered weak and weary…

 

3

 

— Estou vendo que o amigo (assim o chamo, assim o quero)

sabe mesmo as dezoito estrofes de desesperança e treva,

como deve saber tantas outras coisas

no domínio nevoento do sonho acordado.

De onde vem, se quer dizer-me?

— Venho de uma Londres das neblinas finas,

venho agorinha mesmo do hibernal friul…

— Ah, São Paulo! Minhas saudades…

Amigos que já se despediram…

A Faculdade, a Villa Kyrial, o Vecchio Leone di Caprera

onde à noite, pobres estudantes, artistas pobres,

sorvíamos lendas no ouro claro da cerveja…

São Paulo! O senhor vem da minha mocidade, sabe?

É poeta, sem dúvida.

— Poeta?

Me chame de pianeiro, me chame de doutor em piano,

professor de piano, qualquer coisa serve.

Sou um tupi tangendo um Bechstein,

mas pode-se ver em mim até um confuso doutor

em ciências filosóficas improváveis,

o que não prova nada

quanto ao meu interior, não lhe parece?

(Menti para ele, meu Deus! E a minha Gota de sangue em cada poema?)

— Compreendo. Música é a sua forma de poesia.

— Talvez. Não me fale de mim. Fale do senhor.

Sinto que precisa muito de falar.

Há um calar entreliçado nestes ares

que só deixam fugir… o silêncio!

Blocos gelados de insuportável silêncio,

e o senhor o suporta!

É deprimente. É trágico.

Sua mudez chega apenas a revistas. E tão leve.

Pequeninas revistas, de pequeninos

tipos, desfalecidas páginas

que algum devoto lê — mais nada — e são logo atiradas

à perpétua insciência das conformidades.

Como eu gostaria de, como eu gritaria, possante

o vosso nome

nas tabuletas dos bulevares, nas murmuralhas surdas dos alcazares!

(Oh! minhas alucinações!…)

Vamos, solte seus magníficos guardados.

 

4

 

O homem idoso

sorri, tímido (ou descrente de tudo):

— O senhor se acalme, aceita um copo d’água?

Vou atender ao que me pede, tenho umas coisas espalhadas

entre pilhas de autos, livros, gatafunhos.

É, o João Bertinho ou o Chico Teteia deve ter mexido nisso aí,

com sentido de achar fumo goiano.

Vai, o que se procura não se acha.

O senhor é de encontrar papéis? Eles se encafuam sei lá onde.

Pronto, achei. Leia, se não for incômodo.

— Incômodo?

Posso ler em voz alta, para o meu prazer?

 

Vaga em redor de ti uma fulgência

que tanto é sombra quanto mais fulgura…

 

Lindeza!

 

Tens um lis de ternura, que desliza

À flor da pele em mágoa suavizante…

 

Ah, o senhor diz o indizível.

Me dê depressa uma cópia, ou antes: eu copio.

— E eu assino. Obrigado. Mas não exagere no entusiasmo.

Faço versos. E daí?

— Vou ler mais. Mais. Minha voz

se altera, extasiada.

É meu jeito de ser. Deixo-me possuir

pelo aroma de flor que há em certos poemas.

Rosas, lírios, violetas, saudades,

neste jardim esquecido no meio do Brasil!

 

De noite, quando o luar cintila na montanha…

… pelos ínvios sertões do eterno sono…

 

Reparou? Agora minha voz

é timbrada, leve, silenciosa,

mas de um silêncio de religião.

O mistério a penetra. Os versos me invadiram.

Tem outros, muitos outros que eu não sei?

— Tantos. Tenho mesmo em francês,

nossa língua segunda, o senhor sabe.

Costumo, vez por outra,

oficiar no mosteiro de Verlaine…

Parbleu! Je ne suis pas un homme détraqué

mais mon cerveau est souvent rempli de bouts rimés

d’une fausse poésie

— Pode lê-los também?

— Leio, é claro.

 

Et l’automne viendra, et vous aussi, mes pleurs,

vous viendrez. Garde à toi, mon âme, c’est l’orage.

Il pleut dans l’air, il pleut dans tous les pauvres coeurs…

Pauvre âme, va sécher tes larmes. Va. Sois sage.

 

— É, a doçura verlainiana

perpassa nos seus alexandrinos.

Mas eu queria outros versos, puramente

saídos desta salinha abaixo do nível da rua

e tão alta! que nas estrelas se redoura…

— Leia estes, então. Não tenho pressa.

Não há pressa nos ermos.

 

5

 

O moço lê. O homem escuta, mão no rosto.

Escuta longamente, surpreendido.

Que lhe diz essa voz, que ele não saiba?

Que novidade traz, a repeti-lo?

Não distingue, escutando, os próprios versos.

Os versos se desprendem de seu dono,

palpitam fora dele.

Que poeta é esse, do luar dos adivinhos,

do cinamomo, da avena soluçante,

de enlouquecida Ismália, quem é este?

Quem varou a pobreza do escritório

para penetrá-lo

da cintilação de místicos altares?

Tudo se transfigura em seu redor

e dentro dele. Como se não houvesse

o moço a revelar versos alheios,

mas o verso em si, a revelar-se.

 

Entre dois homens, objetos, cor

da hora filtrada no recinto

em partículas de ouro e torvelinho,

o verso;

entre montanhas outras que as montanhas

cravadas no imutável mar de Minas,

entre céu e terra e som e espaço não finito,

o verso,

puro verso autocriado expande-se.

Dissolvem-se paredes, a mobília

não tem forma ou sentido, nada existe

além de um ritmo a girogirar autônomo

no traço de si mesmo, e regulando

o movimento íntimo do ser,

não de um ser, não de outro, o ser geral,

concentrado na essência das palavras.

É belo, de uma tristeza sem andaimes,

e dói e sangra e rejubila

e faz subir aos olhos invisível

orvalho represado. Ah, por tantos anos

as cadências dormiram no seu peito,

na gaveta, entre contas de armazém,

envelopes, isqueiro, canivete!

E, de repente, luz. A luz envolve-as todas.

Traspassa-as.

O som dorido, o som guaiante, o som de harpa davídica

e violino trêmulo, desata-se.

O verso concentrado em tantos versos.

Nunca ninguém os disse assim, com esse metal

de sentimento modulado.

O poeta vê sua poesia. Vê, fisicamente vista,

ente real, sonoro, musical,

habitante de brancos universos,

corpo quase, muito mais que corpo,

visão,

sol meio-dia, absorvendo

todos os crepúsculos

e a opala da noite em estilhaços.

 

6

 

Detém-se o moço, mas por longo tempo

é como se a voz continuasse.

 

Continuasse.

Regressam os dois da claridade.

Agora, nas cadeiras de palhinha,

um se despede, outro quer detê-lo.

 

— Fique mais um pouco.

Eu sei que viajantes

têm ânsia de viajar.

É a viagem que os dirige, não o desejo

de parar aqui, ali. Mas fique mais um pouco.

 

— Impossível.

Começa a nascer outra visita,

vou conhecer outro homem.

Tenho sede do sinal

dos homens raros.

 

— Compreendo. Esta visita

nunca mais se repete. Está perfeita.

Amanhã o senhor já não será

o mesmo que foi esta manhã.

A vida o espera, entre ruas desvairadas

e um grande destino. Grande, o senhor ri?

Não falo em pompas, ouropéis,

mas em certo sentido de beleza

e humanidade companheira.

Agradeço-lhe, amigo,

de todo o coração de um velho poeta

amortalhado vivo neste exílio

onde mais triste ainda é a triste vida humana.

 

— Agradece? Mas sou eu que me rendo, cativo,

porque me deixou dar-lhe esta hora de grave alegria.

Sua alegria ressoa em mim, bronze e órgão,

e me faz cantar: Vida, vida,

vida apertada, vida comovida!

Terminou a visita.

Adeus!

 

— Adeus. E que Deus o acompanhe.

Leva-o à porta. A rua tão vazia

toda se enche com o vulto do viajante

alto, entre sobrados, desaparecendo

qual se fora, em contraste, a ave antiga.

 

7

 

Volta o homem ao escritório.

Devagar.

10 de julho. 1919.

Devagar, torna a vida ao tempo-sempre.

Os versos, à gaveta melancólica.

O tecido da aranha recompõe-se.

É tudo igual? É tudo sem remédio?

Em algum ponto, pousa a memória

que não se diluirá.

Não fica nas estantes, nos metais

nem fica nos papéis a se apagarem.

Não fica na folhinha de Mariana.

Fica no ar, ninguém a sente.

Dois anos depois, a alma do poeta

será uma cruz enterrada no céu.

Em novo julho, tempo da Visita.

 

No corpo deste poema,

foram utilizados

versos, fragmentos de versos

e informações

encontráveis nos livros

Obra completa,

de Alphonsus de Guimaraens;

Poesias completas,

de Mário de Andrade,

e

Itinerários,

— Cartas a Alphonsus de Guimaraens Filho.