Uma,
tal qual se sabe a si mesma.
Outra, a que vemos. Mas vemos?
Ou é a ilusão das coisas?
Quem sou eu para sentir
o leque de uma palmeira?
Quem sou, para ser senhor
de uma fechada, sagrada
arca de vidas autônomas?
A pretensão de ser homem
e não coisa ou caracol
esfacela-me em frente à folha
que cai, depois de viver
intensa, caladamente,
e por ordem do Prefeito
vai sumir na varredura,
mas continua em outra folha
alheia a meu privilégio
de ser mais forte que as folhas.
quando ninguém passa por ele?
Existem as coisas
sem ser vistas?
O interior do apartamento desabitado,
a pinça esquecida na gaveta,
os eucaliptos à noite no caminho
três vezes deserto,
a formiga sob a terra no domingo,
os mortos, um minuto
depois de sepultados,
nós, sozinhos
no quarto sem espelho?
Que fazem, que são
as coisas não testadas como coisas,
minerais não descobertos — e algum dia
o serão?
Estrela não pensada,
palavra rascunhada no papel
que nunca ninguém leu?
Existe, existe o mundo
apenas pelo olhar
que o cria e lhe confere
espacialidade?
Concretitude das coisas: falácia
de olho enganador, ouvido falso,
mão que brinca de pegar o não
e pegando-o concede-lhe
a ilusão de forma
e, ilusão maior, a de sentido?
Ou tudo vige
planturosamente, à revelia
de nossa judicial inquirição
e esta apenas existe consentida
pelos elementos inquiridos?
Será tudo talvez hipermercado
de possíveis e impossíveis possibilíssimos
que geram minha fantasia de consciência
enquanto
exercito a mentira de passear
mas passeado sou pelo passeio,
que é o sumo real, a divertir-se
com esta bruma-sonho de sentir-me
e fruir peripécias de passagem?
Eis se delineia
espantosa batalha
entre o ser inventado
e o mundo inventor.
Sou ficção rebelada
contra a mente universa
e tento construir-me
de novo a cada instante, a cada cólica,
na faina de traçar
meu início só meu
e distender um arco de vontade
para cobrir todo o depósito
de circunstantes coisas soberanas.
A guerra sem mercê, indefinida,
prossegue,
feita de negação, armas de dúvida,
táticas a se voltarem contra mim,
teima interrogante de saber
se existe o inimigo, se existimos
ou somos todos uma hipótese
de luta
ao sol do dia curto em que lutamos.
Uma breve uma longa, uma longa uma breve
uma longa duas breves
duas longas
duas breves entre duas longas
e tudo mais é sentimento ou fingimento
levado pelo pé, abridor de aventura,
conforme a cor da vida no papel.
Trocaica te amei, com ternura dáctila
e gesto espondeu.
Teus iambos aos meus com força entrelacei.
Em dia alcmânico, o instinto ropálico
rompeu, leonino,
a porta pentâmetra.
Gemido trilongo entre breves murmúrios.
E que mais, e que mais, no crepúsculo ecoico,
senão a quebrada lembrança
de latina, de grega, inumerável delícia?
Um pássaro flautista no quintal
caçoa de meu verso modernista.
Afinal fez-nos ambos o universo
aprendizes ao sol ou à garoa.
A canção absoluta não se escreve,
à falta de instrumentos não terrestres.
Aos mestres indagando, mal se escuta
pingar, de leve, a gota de silêncio.
Eu, pretensioso, e tu, pássaro crítico,
vence o mítico amor nossa vaidade:
os amantes que passam, distraídos
e surdos a tais cantos discordantes,
a melodia interna é que os governa.
Tudo mais, em verdade, são ruídos.
Quanto mais vejo o corpo, mais o sinto
existente em si mesmo, proprietário
de um segredo, um sentido — labirinto
particular, alheio ao ser precário.
Cada corpo é uma escrita diferente
e tão selada em seu contorno estrito
que a devassá-la em vão se aflige a mente:
não lhe penetra, na textura, o mito.
Trabalho eterno: a mão, o olhar absorto
no gesto fulvo e nu da moça andando
como flor a mover-se fora do horto.
Só o pintor conhece como e quando
o corpo se demonstra na pureza
que é negação de tempo e de tristeza.
I
Por que nasce o amor no mangue
e vem coberto de limo,
assim tão úmido e humilde,
querendo ser misturado
às impurezas do homem?
O amor, brotando no mangue,
a preço de hotel do vento,
dispensa raiz profunda:
seus tentáculos à flor
da vista formam arcadas
sob as quais passam casais
desconhecidos, movidos
de pressa e eletricidade.
Amor de poucos minutos
e de sortidos amores
bebendo na mesma fonte.
Bebe um, bebe o seguinte
e o seguinte do seguinte,
sem que por isto se estanque
a fonte aberta ao passante
na extensão lunar da rua
ou no sol tenso do dia,
manguezal de vulva exposta
e de boca sanguessuga.
Fonte distinta das outras,
por sua vez vai sorvendo,
vai sugando, vai chupando
o licor cálido e múltiplo
da veloz necessidade.
Amor triste? Por que triste,
se é sempre forma de amor,
por mais barata que seja,
por mais que se mostre alheia
à tentação de durar?
II
da cópula imemorial.
Aqui o catre, o cabide,
a torneira ablucional
carícia especializada
e fruição sideral.
— Viens, chéri, vem, meu neguinho,
viens vite faire bouché.
Eu primeiro te examino
para evitar cancro duro.
Depois é você quem manda
no meu corpinho asseado.
Eu sei todas as maneiras
de te fazer delirar.
Vem, soldado, vem, caixeiro,
vem, fuzileiro naval,
vem, empregado da Light,
motorista, cobrador,
funcionário federal,
economista, poeta,
estudante, sacristão,
vem, boiadeiro goiano,
e vem tu, seminarista,
jornalista, radialista,
deputado, senador
oculto em negro capote,
vinde todos, vinde mil
da Europa, França e Bahia,
saciar a precisão.
Rapidinho, rapidinho,
que tenho fogo na veia
e para falar verdade
preciso ganhar a vida
mesmo depois de perdida.
III
aquela santa dourada?
Vela pelos pecadores,
se é culpa nossa nascer
sem direito a santidade.
E que faz o cachorrinho
enrodilhado no chão?
Faz companhia na hora
de enfrentar a solidão.
Entre santa e cachorrinho,
perpassa um ar de família,
família que continua
a bulir dentro da gente.
Então essa noiva nua
é de verdade ou mentira?
— É de mentira e verdade,
e as pombas que me rodeiam,
as pombas que estão lá fora,
as pombas que nunca param
de bicar milho de amor,
são irmãzinhas da gente,
joias da nossa nudez.
São todos irmãos: a rua
é um país compreensivo
onde o amor é procurado
sem escritura e padrinhos,
o país do pobre amor,
alta riqueza do pobre,
consolação e alegria
dos que estão sempre sozinhos
mesmo quando multidão.
São solidões que se abraçam,
que se enroscam, se deglutem
na festa
(é festa?)
do Mangue.
A vida inteira mijando — lastima-se a deusa — e nem sobra tempo para viver. Minha linfa de ouro ao sol, inestancável, impede-me o sono, proíbe-me o amor. Não sei abrir as pernas senão para isto. Para isto fui concebida? Para derramar este jato morno sobre a terra, e nunca me enxugar, e continuar a expeli-lo, branca e mijadora, fonte, fonte, fonte?
A deusa nem suspende veste nem arria calça. É seu destino mijar. Sem remissão, corpo indiferente e exposto, mija nos séculos.
I
o peitoril da janela azul. O bico
força o impasse
reviravolteia
desiste.
Resta
a exibição de vermelhos insuspeitados
sob asas cativas.
II
O papagaio estrela a área de serviço.
Entremostra e recolhe a um tempo sua chama.
O olhar redondo indaga. A ira concentrada
oculta-se em azul: a corrente-novelo.
Uma voz na prisão surge de muros rasos.
Outra voz lhe responde — a mesma. Dois conversam,
numa plumagem só, a conversa de doidos,
imitação talvez da disputa de deuses.
Ele xinga em seu código a malícia dos homens.
Reserva seu amor à velha criada surda.
O bico, a boca, o beijo. O cheiro da cozinha
é óleo que vai roer os elos da clausura.
… Fugiu, com toda a cor.
na Serra do Caverá,
corpos e madeiras enlaçados.
A cruz de Eliana, o jamelão de Leo
contam a história do nosso agora
(ou de sempre).
Demônios passam na viração, instalam-se
na carne virgem de Eliana
que toda se retorce
na possessão vermelha
e não querem sair nunca mais
de seus guardados.
O corpo exige cruz.
Eliana amortalha-se
de crepe alvo transparente.
Seus pés lacerados a gilete
rumam para o calvário.
Multidões famintas de milagre
chegam dos quatro pontos
do universo rio-grandense.
Entre latas de cerveja,
buzinas, gravador pentecostal,
olhos cobiçosos de sofrimento
alheio,
Eliana assume postura de Cristo,
a dor de Cristo, a opção de Cristo.
Pecadores pasmam, recolhem gotas
de humilde sangue precioso,
orvalho de redenção.
Eliana dorme, Eliana vela,
suspira, espera
que fuja de suas entranhas
a manada de porcos infernais
e a Face Resplandecente lhe sorria.
Leo acorda cedo, vai assaltar.
Profissão vigente, como outras.
O carro-pagador traz apenas 15 mil cruzeiros,
ridículos para um assalto.
Mas Leo precisa exercer
a profissão sem carteira.
Homens atracam-se com ele.
Lutam na lama do loteamento
verde, na lama verde.
O revólver trai seu portador.
Leo não recolhe os 15 mil.
Trabalhadores defendem o que é deles,
suado salário da semana.
Leo amarrado ao jamelão
está perdido.
Está salva Eliana.
O corpo voltou a ser virgem.
Gritos triunfais assustam os pássaros
da Serra do Caverá.
Os pais de Eliana,
o noivo desempregado de Eliana,
recolhem nos braços
a santa de claros cabelos
que salvará o Rio Grande do Sul.
Eliana, sacra e triste,
não viu o Cristo aparecer-lhe
e confortá-la.
Nem todos os santos merecem o privilégio.
E a graça se oferece, recusando-se.
Eliana redimida,
Leo amarrado pela cintura
e pescoço
pede para ser preso.
Que chamem, que chamem a joaninha
para transportá-lo.
Ninguém escuta, param caminhões,
automóveis param, descem
pessoas para colaborar no linchamento.
O forte jamelão também é cruz
do mau ladrão.
Não há muitas oportunidades
de vingar num só o mal de mil.
Vibram todos ritualmente
em Leo os golpes de ira coletiva.
Cada um tem sua queixa de Leo,
injúria a resgatar
antiga humilhação,
dor do mundo a doer em cada peito.
Na Serra do Caverá demônios exorcizados
a pau e pedra e pontapé e escarro
e palavrão
escapolem da alma de Leo purificada.
O jamelão embala com suas folhas
sussurrantes, na Estrada do Cafundá,
a alma liberta de Eliana
entre hosanas de amor, e tudo é santo.
e escalpelar os mortos,
as condecorações, as liturgias, as espadas,
o espectro das fazendas submergidas,
o muro de pedra entre membros da família,
o ardido queixume das solteironas,
os negócios de trapaça, as ilusões jamais confirmadas
nem desfeitas.
Veio para contar
o que não faz jus a ser glorificado
e se deposita, grânulo,
no poço vazio da memória.
É importuno,
sabe-se importuno e insiste,
rancoroso, fiel.
e o vocábulo.
Ir de uma a outra, recolhendo
o fubá, o ferro, o substantivo, o som.
Numa, descansar de outra. Palavras
assumem código mineral.
Minérios musicalizam-se em vogais.
Pastor sentir-se: reses encantadas.
Um cão violento e uma viúva doida
vigiam as grades de tua casa.
Sais pelo terraço
em voo certeiro pelas onze da noite
e tuas longas pernas vão pousar
nos azulejos da praça, hastes brotando,
pungentes, do céu.
Teu passeio desenvolve-se através de coisas
golpeadas, penetradas até a raiz do símbolo.
No acrílico do bar, no cadeiral da basílica,
no poste extremamente solitário,
insinuas-te. E será sempre assim, arquipresente
nas mínimas ruas da cidade.
Não te alcanço.
É fácil o cerne escuro das madeiras,
atravessas o próprio mineral, no carvão
teu sorriso é especial promessa a não destinatários,
afago que se basta, sem sentido.
Tudo se passa em teatro, como se teatro
houvesse. Ao amanhecer,
recolho as setenta infidelidades de tua imagem.
Nascer: findou o sono das entranhas.
Surge o concreto,
a dor de formas repartidas.
Tão doce era viver
sem alma, no regaço
do cofre maternal, sombrio e cálido.
Agora,
na revelação frontal do dia,
a consciência do limite,
o nervo exposto dos problemas.
Sondamos, inquirimos
sem resposta:
Nada se ajusta, deste lado,
à placidez do outro?
É tudo guerra, dúvida
no exílio?
O incerto e suas lajes
criptográficas?
Viver é torturar-se, consumir-se
à míngua de qualquer razão de vida?
Eis que um segundo nascimento,
não adivinhado, sem anúncio,
resgata o sofrimento do primeiro,
e o tempo se redoura.
Amor, este o seu nome.
Amor, a descoberta
de sentido no absurdo de existir.
O real veste nova realidade,
a linguagem encontra seu motivo
até mesmo nos lances de silêncio.
A explicação rompe das nuvens,
das águas, das mais vagas circunstâncias:
Não sou eu, sou o Outro
que em mim procurava seu destino.
Em outro alguém estou nascendo.
A minha festa,
o meu nascer poreja a cada instante
em cada gesto meu que se reduz
a ser retrato,
espelho,
semelhança
de gesto alheio aberto em rosa.
Encapelou-se o mar, um nome ouvindo.
Feras emudeceram. Da montanha
um rumor rubro e pânico, infletindo
sobre a cidade, entontecida aranha,
trouxe consigo o pó do tempo findo
e das coisas morrentes, em tamanha
desolação que, tudo consumindo,
desse nome crescia a força estranha.
Que poder tão terrível permanece
nas sílabas cruéis e musicais,
a recordarem quanto a mente esquece?
E ficam revoando, reboando
no revolto universo, entre espirais
convulsas de um amor não mais amando?
Bateu Amor à porta da Loucura.
“Deixa-me entrar — pediu — sou teu irmão.
Só tu me limparás da lama escura
a que me conduziu minha paixão.”
A Loucura desdenha recebê-lo,
sabendo quanto Amor vive de engano,
mas estarrece de surpresa ao vê-lo,
de humano que era, assim tão inumano.
E exclama: “Entra correndo, o pouso é teu.
Mais que ninguém mereces habitar
minha casa infernal, feita de breu,
enquanto me retiro, sem destino,
pois não sei de mais triste desatino
que este mal sem perdão, o mal de amar”.
Caminhando nesta praia do Rio de Janeiro,
o vento me traz, na conversa de desconhecidos,
o nome de Arpad,
e a esse nome uma voz interior junta o nome de André
e os de Jorge seu filho e Maurício seu neto,
rei e príncipes de uma Hungria esfumada na História.
Que tenho a ver com eles?
Que têm a ver comigo,
pequeno burocrata aposentado a escrever para jornais
histórias da minha rua e do meu ônibus cotidiano?
Eu príncipe não sou. E muito menos rei.
E acaso restarão, na caligem que ora envolve céu e terra,
estilhaços de coroas com seus rubis empalidecidos?
Por que Arpad e Maurício em minha pobre memória?
Li um dia notícia de certa viagem marítima
e de uma tempestade a açoitar fugitivos ingleses
até a costa escocesa.
Maurício, da Casa de Arpad, comanda a embarcação.
Nada podem contra ele as fúrias do mar e as iras de Guilherme
o Conquistador.
A bela moça a bordo torna-se Rainha da Escócia,
em seu altar de igreja é Santa Margarida.
O bravo Maurício ganha terras e novos títulos,
como o de Onda Alta, Drumm-ond,
e aqui estou eu, caminhando nesta praia
com uma gota de sangue húngaro tingindo levemente meu destino
de aventureiro não realizado.
não te conheço de verdade,
mas teu sangue bole em meu sangue
e sem saber te vivo em mim
e sem saber vou copiando
tuas imprevistas maneiras,
mais do que isso: teu fremente
modo de ser, enclausurado
entre ferros de conveniência
ou aranhóis de burguesia,
vou descobrindo o que me deste
sem saber que o davas, na líquida
transmissão de taras e dons,
vou te compreendendo, somente
de esmerilar em teu retrato
o que a pacatez de um retrato
ou o seu vago negativo,
nele implícito e reticente,
filtra de um homem; sua face
oculta de si mesmo; impulso
primitivo; paixão insone
e mais trevosas intenções
que jamais assumiram ato
nem mesmo sombra de palavra,
mas ficaram dentro de ti
cozinhadas em lenha surda.
Acabei descobrindo tudo
que teus papéis não confessaram
nem a memória de família
transmitiu como fato histórico,
e agora te conheço mais
do que a mim próprio me conheço,
pois sou teu vaso e transcendência,
teu duende mal encarnado.
Refaço os gestos que o retrato
não pode ter, aqueles gestos
que ficaram em ti à espera
de tardia repetição,
e tão meus eles se tornaram,
tão aderentes ao meu ser,
que suponho tu os copiaste
de mim antes que eu os fizesse,
e, furtando-me a iniciativa,
meu ladrão, roubaste-me o espírito.
que o mantém acorrentado.
Sente raiva da corrente
a puxá-lo para a frente
e a fazer do seu futuro
o retorno ao chão escuro
onde jaz envilecida
certa promessa de vida
de onde brotam cogumelos
venenosos, amarelos,
e encaracoladas lesmas
deglutindo-se a si mesmas.
só para ocupar
estrito espaço numerado
ao sol e chuva
que meticulosamente vai delindo
o número
enquanto o nome vai-se autocorroendo
na terra, nos arquivos
na mente volúvel ou cansada
até que um dia
trilhões de milênios antes do Juízo Final
não reste em qualquer átomo
nada de uma hipótese de existência.
era mínimo, sem flores.
Plantas nasciam, renasciam
para não serem olhadas.
Meros projetos de existência,
desligavam-se de sol e água,
mesmo daquela secreção
que em teus olhos se represava.
Ninguém te viu quando, curvada,
removias o caracol
da via estreita das formigas,
nem sequer se ouviu teu chamado.
Pois chamaste (já era tarde)
e a voz da usina amorteceu
tua fuga para o sem-país
e o sem-tempo. Mas te recordo
e te alcanço viva, menina,
a planejar tão cedo o jardim
onde estás, eu sei, clausurada,
sem que ninguém, ninguém te adivinhe.
virou peça de arquivo?
Sua vida é papel
a fingir de jornal?
Dele faz-se bom uso
se seu texto é confuso?
Numa velha gaveta
o esqueceram, caneta?
Após tantos escapes
arredonda-se em lápis?
Essa indelével tinta
é para que não minta
mais do que o necessário
a uma sigla no armário?
Recobre-se de letras
ou são apenas tretas?
Entrará em catálogo
à custa de monólogo?
Terá número, barra
e borra de carimbo?
Afinal, ele é gente
ou registro pungente?
a cavalo de galope
a cavalo de galope
lá vem a morte chegando.
A cavalo de galope
a cavalo de galope
a morte numa laçada
vai levando meus amigos.
A cavalo de galope
depois de levar meus pais
a morte sem prazo ou norte
vai levando meus irmãos.
A morte sem avisar
a cavalo de galope
sem dar tempo de escondê-los
vai levando meus amores.
A morte desembestada
com quatro patas de ferro
a cavalo de galope
foi levando minha vida.
A morte de tão depressa
nem repara no que fez.
A cavalo de galope
a cavalo de galope
me deixou sobrante e oco.
Un peu profond ruisseau calomnié
desce em meu rumo, vem-se aproximando.
Sem o ouvido sutil de Mallarmé,
ouço-lhe embora o ruído grave e brando.
Boiam fanadas coisas na corrente:
uma quermesse, vozes, o violino
em febre ouvido, a cor de uma serpente
enovelada sobre o meu destino.
Já provo o antessabor da linfa amara
a penetrar-me a língua e a percorrer
o mais furtivo poro de consciência.
Pois submergido estou, a vida é clara,
e não mais necessita de clemência
o epilogado, esvaecido ser.
Responde, por favor: Deus é quem sabe?
Sabe Deus o que faz?
Deus dá o pão, não amassa a farinha?
Deus o dá, Deus o leva?
Pertence-lhe o futuro?
Deus te dá saúde? Deus ajuda
a quem cedo madruga?
Será que Deus não dorme?
E é Deus por todos, cada um por si?
Deus consente, mas nem sempre? Deus
perdoa, Deus castiga?
Deus me livra ou salva?
Deus vê o que o Diabo esconde?
De hora em hora Deus melhora?
Mas é se Deus quiser?
E Deus quer?
Deus está em nós? E nós,
responde, estamos nele?
Deuses secretos passeiam no território dos homens.
Tramam, destramam nossa realidade.
Os deuses ostensivos, nossos protetores,
tudo ignoram.
Neste momento um deus perverso e anônimo
fustiga-me.
Rolo no ladrilho, contorço-me,
sem gritar.
Não tenho a quem dirigir
palavras de ira ofendida.
Sei que é um deus inominado,
sei que passará,
e vou respirar, aliviado.
todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais.
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol
são iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todas as experiências de sexo
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais
e todos, todos
os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.
Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.
Ninguém é igual a ninguém.
Todo ser humano é um estranho
ímpar.
consultados em vão.
Quero só a palavra
que nunca estará neles
nem se pode inventar.
Que resumiria o mundo
e o substituiria.
Mais sol do que o sol,
dentro da qual vivêssemos
todos em comunhão,
mudos,
saboreando-a.
1
Palmas. A porta aberta não responde.
Ô de casa! Mais palmas. A menina
manda entrar. O corredor abre à esquerda,
na tristura de cinza do escritório
baixo.
Dentro, o homem sozinho,
50 anos por fazer, mas feitos secamente
no rosto grave: — O senhor deseja?
— Vim conhecer o Príncipe, vim saudar o Príncipe
dos Poetas das Alterosas Montanhas!
O homem sorri: — O senhor está equivocado
ou caçoa talvez.
Sou há 13 anos, há 13 mil anos eternamente
juiz municipal em míseros sertões.
Em todo caso, sente-se. Conversar é bom
em minha solidão
que escorre a contemplar o deserto das cidades mortas.
O alto visitante jovem inclina-se, compenetrado:
— O Príncipe não é príncipe, eu sei,
para o distraído, fosfóreo descaso
dos donos da literatura e da vida.
Mas é bem mais do que isso, para cada um de nós poucos
obcecados
pela vertigem do poema no cristal da linguagem.
2
O homem volta a sorrir, em meio perdão
às fanfarras do recém-vindo: — Engraçado, o senhor
ao entrar aqui (desculpe)
foi como se uma grande ave imprevista irrompesse pela janela
deste pardieiro um tanto medieval…
— Acha? ri com dentes múltiplos o moço de 26 anos
quase, tão gesticulante
na alegria da curiosidade; vinha de longe,
em baldeados trens de ferro, fagulha, fumaça
para conhecer o estranho poeta
encravado na estranha, estranha paragem sonolenta.
Então sou The Raven
a stately Raven of the saintly days of yore,
não in the bleak December, mas neste friim matinal de julho?
Muito obrigado pela alta comparação!
Aliás, que vejo em sua escrivaninha?
Esse negro tinteiro
que a cabeça de um corvo representa,
junto à medalha da Virgem Dolorosa…
É, também sou de algum modo o Corvo, tenho-o de cor,
pousado no crânio esculpido da memória… Quer ver?
Once upon a midnight dreary, while I pondered weak and weary…
3
— Estou vendo que o amigo (assim o chamo, assim o quero)
sabe mesmo as dezoito estrofes de desesperança e treva,
como deve saber tantas outras coisas
no domínio nevoento do sonho acordado.
De onde vem, se quer dizer-me?
— Venho de uma Londres das neblinas finas,
venho agorinha mesmo do hibernal friul…
— Ah, São Paulo! Minhas saudades…
Amigos que já se despediram…
A Faculdade, a Villa Kyrial, o Vecchio Leone di Caprera
onde à noite, pobres estudantes, artistas pobres,
sorvíamos lendas no ouro claro da cerveja…
São Paulo! O senhor vem da minha mocidade, sabe?
É poeta, sem dúvida.
— Poeta?
Me chame de pianeiro, me chame de doutor em piano,
professor de piano, qualquer coisa serve.
Sou um tupi tangendo um Bechstein,
mas pode-se ver em mim até um confuso doutor
em ciências filosóficas improváveis,
o que não prova nada
quanto ao meu interior, não lhe parece?
(Menti para ele, meu Deus! E a minha Gota de sangue em cada poema?)
— Compreendo. Música é a sua forma de poesia.
— Talvez. Não me fale de mim. Fale do senhor.
Sinto que precisa muito de falar.
Há um calar entreliçado nestes ares
que só deixam fugir… o silêncio!
Blocos gelados de insuportável silêncio,
e o senhor o suporta!
É deprimente. É trágico.
Sua mudez chega apenas a revistas. E tão leve.
Pequeninas revistas, de pequeninos
tipos, desfalecidas páginas
que algum devoto lê — mais nada — e são logo atiradas
à perpétua insciência das conformidades.
Como eu gostaria de, como eu gritaria, possante
o vosso nome
nas tabuletas dos bulevares, nas murmuralhas surdas dos alcazares!
(Oh! minhas alucinações!…)
Vamos, solte seus magníficos guardados.
4
O homem idoso
sorri, tímido (ou descrente de tudo):
— O senhor se acalme, aceita um copo d’água?
Vou atender ao que me pede, tenho umas coisas espalhadas
entre pilhas de autos, livros, gatafunhos.
É, o João Bertinho ou o Chico Teteia deve ter mexido nisso aí,
com sentido de achar fumo goiano.
Vai, o que se procura não se acha.
O senhor é de encontrar papéis? Eles se encafuam sei lá onde.
Pronto, achei. Leia, se não for incômodo.
— Incômodo?
Posso ler em voz alta, para o meu prazer?
Vaga em redor de ti uma fulgência
que tanto é sombra quanto mais fulgura…
Lindeza!
Tens um lis de ternura, que desliza
À flor da pele em mágoa suavizante…
Ah, o senhor diz o indizível.
Me dê depressa uma cópia, ou antes: eu copio.
— E eu assino. Obrigado. Mas não exagere no entusiasmo.
Faço versos. E daí?
— Vou ler mais. Mais. Minha voz
se altera, extasiada.
É meu jeito de ser. Deixo-me possuir
pelo aroma de flor que há em certos poemas.
Rosas, lírios, violetas, saudades,
neste jardim esquecido no meio do Brasil!
De noite, quando o luar cintila na montanha…
… pelos ínvios sertões do eterno sono…
Reparou? Agora minha voz
é timbrada, leve, silenciosa,
mas de um silêncio de religião.
O mistério a penetra. Os versos me invadiram.
Tem outros, muitos outros que eu não sei?
— Tantos. Tenho mesmo em francês,
nossa língua segunda, o senhor sabe.
Costumo, vez por outra,
oficiar no mosteiro de Verlaine…
Parbleu! Je ne suis pas un homme détraqué
mais mon cerveau est souvent rempli de bouts rimés
d’une fausse poésie…
— Pode lê-los também?
— Leio, é claro.
Et l’automne viendra, et vous aussi, mes pleurs,
vous viendrez. Garde à toi, mon âme, c’est l’orage.
Il pleut dans l’air, il pleut dans tous les pauvres coeurs…
Pauvre âme, va sécher tes larmes. Va. Sois sage.
— É, a doçura verlainiana
perpassa nos seus alexandrinos.
Mas eu queria outros versos, puramente
saídos desta salinha abaixo do nível da rua
e tão alta! que nas estrelas se redoura…
— Leia estes, então. Não tenho pressa.
Não há pressa nos ermos.
5
O moço lê. O homem escuta, mão no rosto.
Escuta longamente, surpreendido.
Que lhe diz essa voz, que ele não saiba?
Que novidade traz, a repeti-lo?
Não distingue, escutando, os próprios versos.
Os versos se desprendem de seu dono,
palpitam fora dele.
Que poeta é esse, do luar dos adivinhos,
do cinamomo, da avena soluçante,
de enlouquecida Ismália, quem é este?
Quem varou a pobreza do escritório
para penetrá-lo
da cintilação de místicos altares?
Tudo se transfigura em seu redor
e dentro dele. Como se não houvesse
o moço a revelar versos alheios,
mas o verso em si, a revelar-se.
Entre dois homens, objetos, cor
da hora filtrada no recinto
em partículas de ouro e torvelinho,
o verso;
entre montanhas outras que as montanhas
cravadas no imutável mar de Minas,
entre céu e terra e som e espaço não finito,
o verso,
puro verso autocriado expande-se.
Dissolvem-se paredes, a mobília
não tem forma ou sentido, nada existe
além de um ritmo a girogirar autônomo
no traço de si mesmo, e regulando
o movimento íntimo do ser,
não de um ser, não de outro, o ser geral,
concentrado na essência das palavras.
É belo, de uma tristeza sem andaimes,
e dói e sangra e rejubila
e faz subir aos olhos invisível
orvalho represado. Ah, por tantos anos
as cadências dormiram no seu peito,
na gaveta, entre contas de armazém,
envelopes, isqueiro, canivete!
E, de repente, luz. A luz envolve-as todas.
Traspassa-as.
O som dorido, o som guaiante, o som de harpa davídica
e violino trêmulo, desata-se.
O verso concentrado em tantos versos.
Nunca ninguém os disse assim, com esse metal
de sentimento modulado.
O poeta vê sua poesia. Vê, fisicamente vista,
ente real, sonoro, musical,
habitante de brancos universos,
corpo quase, muito mais que corpo,
visão,
sol meio-dia, absorvendo
todos os crepúsculos
e a opala da noite em estilhaços.
6
Detém-se o moço, mas por longo tempo
é como se a voz continuasse.
Continuasse.
Regressam os dois da claridade.
Agora, nas cadeiras de palhinha,
um se despede, outro quer detê-lo.
— Fique mais um pouco.
Eu sei que viajantes
têm ânsia de viajar.
É a viagem que os dirige, não o desejo
de parar aqui, ali. Mas fique mais um pouco.
— Impossível.
Começa a nascer outra visita,
vou conhecer outro homem.
Tenho sede do sinal
dos homens raros.
— Compreendo. Esta visita
nunca mais se repete. Está perfeita.
Amanhã o senhor já não será
o mesmo que foi esta manhã.
A vida o espera, entre ruas desvairadas
e um grande destino. Grande, o senhor ri?
Não falo em pompas, ouropéis,
mas em certo sentido de beleza
e humanidade companheira.
Agradeço-lhe, amigo,
de todo o coração de um velho poeta
amortalhado vivo neste exílio
onde mais triste ainda é a triste vida humana.
— Agradece? Mas sou eu que me rendo, cativo,
porque me deixou dar-lhe esta hora de grave alegria.
Sua alegria ressoa em mim, bronze e órgão,
e me faz cantar: Vida, vida,
vida apertada, vida comovida!
Terminou a visita.
Adeus!
— Adeus. E que Deus o acompanhe.
Leva-o à porta. A rua tão vazia
toda se enche com o vulto do viajante
alto, entre sobrados, desaparecendo
qual se fora, em contraste, a ave antiga.
7
Volta o homem ao escritório.
Devagar.
10 de julho. 1919.
Devagar, torna a vida ao tempo-sempre.
Os versos, à gaveta melancólica.
O tecido da aranha recompõe-se.
É tudo igual? É tudo sem remédio?
Em algum ponto, pousa a memória
que não se diluirá.
Não fica nas estantes, nos metais
nem fica nos papéis a se apagarem.
Não fica na folhinha de Mariana.
Fica no ar, ninguém a sente.
Dois anos depois, a alma do poeta
será uma cruz enterrada no céu.
Em novo julho, tempo da Visita.
No corpo deste poema,
foram utilizados
versos, fragmentos de versos
e informações
encontráveis nos livros
Obra completa,
de Alphonsus de Guimaraens;
Poesias completas,
de Mário de Andrade,
e
Itinerários,
— Cartas a Alphonsus de Guimaraens Filho.