O MARGINAL CLORINDO GATO

 

No lugar onde o mataram

acabou nascendo um lírio

que mão nenhuma plantara.

Semente do céu, disseram.

 

No lugar onde o enterraram

um outro lírio brotou

diretamente do corpo

todo estrelado de furos.

 

Nos dois lugares o povo

prostrava-se ajoelhado

venerando aquele santo

autor de bárbaros crimes.

 

Pois se consentira Deus

que dali surdissem flores,

nada mais certo que a alma

por Deus fora resgatada.

 

Resgatada, abençoada,

a fim de acudir aos homens

que na terra sem defesa

a Deus se entregam, aflitos.

 

Os lírios não feneciam

embora o tempo passasse

espalhando a ventania,

a chuva, a geada, a seca.

 

E eram lírios redolentes

com todo o cheiro da graça

que só bem-aventurados

merecem na sua glória.

 

Doentes de toda espécie

corriam aos dois locais

rogando ao morto matado

que intercedesse por eles.

 

De lá voltavam curados

ou com melhor aparência,

cativos daquele morto

que sobre todos velava,

 

sobre os velhos, os meninos,

as mulheres, os maridos,

até sobre as criações,

cobertas por seu escudo.

 

As putas mais ordinárias

como as de maior empáfia

estavam sempre rezando

ao pé de um daqueles lírios.

 

Até mesmo os assassinos

vindos de longes comarcas

lá chegavam disfarçados

no mais trevoso da noite.

 

E cochichavam pedidos

que só o morto escutava

em nebulosas paragens

ou no bem fundo da cova.

 

Assassino também fora

e dos mais despiedados,

como acaso deixaria

de atender aos companheiros?

 

Se atendia para o bem

ou para o mal dos viventes,

ninguém o sabia ao certo,

mas a fé reinava em todos.

 

E com a fé a alegria

das almas pacificadas,

para as quais o mundo todo

em pureza renascia.

 

Em pureza, em confiança,

amor de todos a todos,

ofertando o sentimento

de que o mundo tem sentido.

 

O Governo, preocupado

com a espantosa romaria,

mandou fechar as estradas

e dispersar os romeiros.

 

 

Nem mesmo a poder de unhas

e de facões reunidos

as plantas se desataram

do chão tornado sacrário.

 

Os soldados os seus rifles

a uma voz dispararam

contra os lírios e os aromas

que deles se desprendiam.

 

Nenhuma flor atingida

sequer de raspão no bulbo,

por mais que os tiros reboassem

em torno à brancura ilesa.

 

Os filhos dos homens mortos

por quem ali se enterrara

vieram pedir perdão

a quem os fizera órfãos.

 

Pois se sentiam culpados

de velhas culpas gerais

pairantes sobre os algozes

e até sobre os inocentes.

 

Em cada rua de cada

povoado daquelas grotas

uma injustiça esquecida

mostrava suas raízes.

 

As humilhações sem conta

que pesavam sobre os fracos;

os direitos mais singelos

nunca jamais consentidos;

 

o gosto ardente da posse

acima de qualquer código;

a volúpia de mandar

e de, mandando, oprimir;

 

os que tiveram suas terras

lavradas de pai a filho

perdidas sumariamente

a golpes de traficância;

 

as viúvas ofendidas,

como as donzelas violadas

e os menininhos famélicos

sem esperança de escola;

 

as casas incendiadas

por interesse ou vingança;

as serventias vedadas

ao longo de terras ermas;

 

as nascentes poluídas

e as reses envenenadas;

os feridos, os castrados,

os mortos em vil tocaia;

 

todos os males e dores

acumulados em nuvem

de cor negra sobre a vida

de tantas populações,

 

sem que já ninguém soubesse

distinguir a própria dor

da dor alheia, rosário

de contas de sangue e fel,

 

tinham revelado à mente

de moradores e estranhos

como aquele matador

no fundo era justiceiro,

 

pois afinal desfazendo

malfeitos de malfeitores

sanava culpas e erros

até então impunidos.

 

E os erros que dessa faina

também cometera aos mil

não eram mais do que erros

buscando acabar com erros.

 

Nascido em chão de miséria,

acalentado na sede,

à margem, fora de vista

das promessas de viver,

 

já condenado no útero

ao destino sem destino

senão a ser refugado,

espezinhado, moído,

 

discriminado, espancado,

vilipendiado, cuspido,

amordaçado, riscado

a ferro e fogo na alma,

 

em seu peito resumia

um dicionário de agravos

queimando todas as horas

de uma existência marcada.

 

É claro que cada crime

que vivia cometendo,

bem antes de cometê-lo

estava previsto e feito,

 

e o braço exterminador

que ele movia certeiro

ninguém podia sustá-lo

em sua fatalidade.

 

A fama de tal legenda

correndo léguas em torno

chegou às cidades grandes

e logo se armaram cultos

 

em sociedades abertas

ao sol da publicidade

em clubes, centros, igrejas

das mais diversas feições.

 

De outras terras, outras gentes

em carro, avião, navio

chegaram para render

seu preito de amor ao morto.

 

Suas línguas enroladas,

seus cânticos divergentes

iam no rumo dos lírios

e da memória exaltante.

 

De novo então o Governo

temendo que perigassem

os fundamentos da ordem

baixou um forte decreto.

 

Mandou prender sem fiança

e, cabendo, deportar

quem quer que manifestasse

devoção ao falso santo.

 

Em vão os braços da lei

autuavam em flagrante

fiéis que mesmo surrados

mais pio fervor mostravam.

 

Foi quando o próprio Ministro

de Fatos Extraordinários

decidiu-se a visitar

os dois locais encantados.

 

Despediu seus assessores,

chegou sozinho bem perto

e longo tempo assuntou

as flores inexplicáveis.

 

Veio-lhe então uma ideia

que lhe pareceu brilhante:

misto de cálculo, astúcia

e conveniência política.

 

Saiu dali, foi direto

aos paços da governança,

propôs que se instituísse

a Festa dos Lírios Bentos.

 

Um decreto se revoga,

outro decreto se baixa

convidando o mundo inteiro

a desfrutar o fenômeno.

 

Serviços de segurança

garantiam o espetáculo.

As agências de turismo

entraram a tocar trombeta.

 

Imensa renda fluiu

para os cofres nacionais

na exploração dessa festa

que durava o ano inteiro.

 

Notou-se porém que a cor

dos lírios ia mudando

e a cada mês a brancura

dos dois mais se acinzentava.

 

Escurecia, tornava-se

tendente ao pardo, sem brilho,

e não se achava processo

que a brancura restaurasse.

 

Depois o tom, definindo-se,

já era sujo mofado

e, pior que tudo, a forma

dos lírios se degradava.

 

Assumindo linhas trágicas

de punhais e de pistolas,

ela inspirava terror

ou tristeza e repugnância.

 

Pois o divino perfume

que ali antes se exalava

ora em pútrido bafejo

as narinas agredia.

 

Já ninguém mais suplicava

bênçãos, favores e curas.

Estacava simplesmente,

presa de enjoo ou de angústia,

 

no lugar onde cem praças

com suas metralhadoras

mataram aquele homem

e no onde o sepultaram.

 

As romarias rareando

e nula a arrecadação,

desce o pó do esquecimento

sobre os lírios conspurcados.

 

O mato crescia em torno,

bichos selvagens pastavam

nos sítios abandonados

que ninguém mais visitava.

 

Passaram-se muitos anos,

mais que uma vida de homem.

Vieram guerras e modas,

verdades e fantasias.

 

Uma nova geração

marcadamente urbanística

traçou planos imobiliários

na extensão daquelas terras.

 

Grandes máquinas desbravam

a selva densa. Operários

encontram em dois lugares

o mesmo quadro radiante:

 

um lírio florindo pleno,

outro em plena floração

e em volta aos dois o esplendor

de sublime claridade.

 

Era no fundo da mata

e até no fundo da noite

os lírios resplandeciam

criando, em círculo, a aurora.

 

Emocionados correram

espalhando a estranha nova.

Nem os mais sábios sabiam

daqueles fatos longínquos.

 

As mais díspares versões

circularam pelo vídeo,

umas contando de um deus

que se perdera na Terra,

 

do Diabo outras falando

e de suas diabolices.

Interpretações científicas,

herméticas, passionais,

 

sucediam-se, enredavam-se

sem que os doutores achassem

uma explicação plausível

para o botânico fato.

 

Um simples trator esmaga

os lírios luminescentes.

Os arranha-céus cresceram,

nasceram novas crianças,

 

vieram outros marginais,

outros iníquos eventos,

resignações e protestos,

e não se falou mais nisso.

 

Clorindo, Clorindo Gato,

foi esse o nome do santo.

 

 

DECLARAÇÃO DE AMOR

 

Minha flor minha flor minha flor. Minha prímula meu pelargônio meu gladíolo meu botão-de-ouro. Minha peônia. Minha cinerária minha calêndula minha boca-de-leão. Minha gérbera. Minha clívia. Meu cimbídio. Flor flor flor. Floramarílis. Floranêmona.Florazálea. Clematite minha. Catleia delfínio estrelítzia. Minha hortensegerânea. Ah, meu nenúfar. Rododendro e crisântemo e junquilho meus. Meu ciclâmen. Macieira-minha-do-japão. Calceolária minha. Daliabegônia minha. Forsitiaíris tuliparrosa minhas. Violeta… Amor-mais-que-perfeito. Minha urze. Meu cravo-pessoal-de-defunto. Minha corola sem cor e nome no chão de minha morte.

 

 

VERSOS DE DEUS

 

I

 

Ao sentir nos pássaros

tanta liberdade

e aéreo poder,

imagina um pássaro

superior a todos

e tão invisível

que seu voo deixe

sensação de sonho.

Com leveza e graça

o homem pensa Deus.

 

II

 

No mais alto ramo

Deus está pousado

com uma garra apenas

e fita o mundo.

Do mais alto ramo

desfere voo

e sai por aí

bicando as coisas,

indiferente às coisas

bicadas,

encantadas.

 

III

 

Bica-me Deus

de manso nos olhos,

antes referência

que repreensão.

Alisa o bico

no local. E dói.

Ao sumir crocita:

“Hoje te perdoo”.

O que Deus perdoa,

só o sabe Deus.

 

IV

 

Deus rumina

que fazer, acaso.

Mais um terremoto?

De que proporções?

Uma nova guerra?

De quantas nações?

Que margem ceder

ao capricho do homem?

Vai nascer um artista?

Nascerão idiotas?

Surgirão robôs?

 

V

 

Ao findar o tempo

tudo se acomoda

à sua vontade.

Já não há projeto

de outro Deus ou vários.

Laços entrançados,

gemidos, crepúsculo

sempre continuado.

O homem arrependo-me

da criação de Deus,

mas agora é tarde.

 

 

HISTÓRIA, CORAÇÃO, LINGUAGEM

 

Dos heróis que cantaste, que restou

senão a melodia do teu canto?

As armas em ferrugem se desfazem,

os barões nos jazigos dizem nada.

É teu verso, teu rude e teu suave

balanço de consoantes e vogais,

teu ritmo de oceano sofreado

que os lembra ainda e sempre lembrará.

Tu és a história que narraste, não

o simples narrador. Ela persiste

mais em teu poema que no tempo neutro,

universal sepulcro da memória.

Bardo, foste os deuses mais as ninfas,

as ondas em furor, céus em delírio,

astúcias, pragas, guerras e cobiças,

lodoso material fundido em ouro.

Multissexual germinador de assombros,

na folha branca vieste demonstrando

o que ao homem, na luta contra o fado,

cabe tentar, cabe vencer, perder,

e nisto se resume a irresumível

humana condição no eterno jogo

sem sentido maior que o de jogar.

E quando de altos feitos te entedias

e voltas ao comum sofrer pedestre

do desamado, não te vejo a ti

perdido de saudades e desdéns.

Luís, homem estranho, pelo verbo

és, mais que amador, o próprio amor

latejante, esquecido, revoltado,

submisso, renascendo, reflorindo

em cem mil corações multiplicado.

És a linguagem. Dor particular

deixa de existir para fazer-se

dor de todos os homens, musical,

na voz de órfico acento, peregrina.

Que pássaro lascivo se intercala

no queixume sutil de tua estrofe

e não se sabe mais se é dor, delícia,

espinho, afago, morte, renascença?

Volúpia de gemer, e do gemido

destilar a canção consoladora

a quantos de consolo careciam

e jamais a fariam por si mesmos?

(Amaldiçoado dia de nascer

que em bênçãos para nós se converteu.)

Já tenho uma palavra pré-escrita

que tudo exprime quanto em mim se turva.

Pelos antigos e pelos vindouros,

foste discurso de geral amor.

Camões — oh som de vida ressoando

em cada tua sílaba fremente

de amor e guerra e sonho entrelaçados…

 

 

O POETA

 

Este, de sua vida e sua cruz

uma canção eterna solta aos ares.

Luís de ouro vazando intensa luz

por sobre as ondas altas dos vocábulos.