(IN) MEMÓRIA

 

De cacos, de buracos

de hiatos e de vácuos

de elipses, psius

faz-se, desfaz-se, faz-se

uma incorpórea face,

resumo de existido.

 

Apura-se o retrato

na mesma transparência:

eliminando cara

situação e trânsito

subitamente vara

o bloqueio da terra.

 

E chega àquele ponto

onde é tudo moído

no almofariz do ouro:

uma europa, um museu,

o projetado amar,

o concluso silêncio.

 

 

CAMINHAR DE COSTAS

 

CAUTELA

 

Hora de abrir a sessão da Câmara.

O presidente não aparece.

O presidente está impedido.

 

O presidente está preso

em casa. Monta guarda

junto ao quarto repleto de ouro em pó.

 

Pode a campainha tilintar,

o sino do Rosário bater e rebater,

o Senado da Câmara implorar

protestar

destituir o faltoso.

 

O presidente tesoureiro do ouro em pó

tributo do povo à regência trina

vê lá se vai abrir sessão.

Presida quem quiser,

que esse ouro aqui ladrão nenhum virá roubar.

 

 

O ATOR

 

Era um escravo fugido

por si mesmo libertado.

Meu avô se foi à Mata

vender burro brabo fiado.

Chega lá, deita no rancho

para pitar descansado.

Duzentas, trezentas léguas

em macho bem arreado,

por muito que um homem seja

de ferro, fica estrompado.

“Vou dormir, sonhar meu sonho

de cobre e mulher trançado.

Por favor ninguém me amole

que trago dependurado

no arção da sela meu coldre

com pau de fogo. Obrigado.”

“Dormir tão cedo, meu amo?

se no rancho do outro lado

do rio tem espetac´lo

que há de ser de vosso agrado.

Faz três dias ninguém cuida

na roça e no povoado

senão de ver esta noite

A Vingança do Passado.”

Nem mais se recorda o velho

que estava mesmo pregado.

Calça bota, arrocha cinto

e já se vê preparado.

De noite, à luz de candeeiro,

o drama tem outra face.

É como se à letra antiga

outro valor se juntasse.

O rosto do ator imerge

de repente na penumbra

e uma pungência maior

entre cangalhas ressumbra.

Metade luz e metade

mistério, a peça caminha

estranha. Dormem lá fora

a tropa e a besta-madrinha.

Na noite gelada a história

fala de nobres de Espanha

e do dote de uma virgem

conspurcada pela sanha

caprina de Dão Fernando.

E depois de mil malícias

o vil exclama: “Calor, ai calor

que abrasa um conde!”

“Que ouço? Que fuça é esta?”

Meu avô salta do banco.

O fidalgo enxuga a testa

que a luz devassa, mostrando

a estelar cicatriz

do seu escravo fugido

bem por cima do nariz.

Empurrando a uns e outros,

meu avô acode à cena

e brandindo seu chicote

(pois anda sempre com ele

em roça, brejão ou vila)

fustiga o conde, sem pena:

“Bacalhau, ai bacalhau

que te abrase o rabo, diabo.

Acaba com esta papeata

senão sou eu que te acabo.”

Era uma vez um artista

pelo berço mui dotado.

Ficou a noite mais triste

na tristidão do calado.

Cada qual se retirando

achava bem acertado.

Cumpre-se a lei. Está escrito:

a cada um o seu gado.

Para um escravo fugido

não há futuro, há passado,

pelo quê lá vai o conde

tocando burro e vigiado.

A tropa vai caminhando

pelo Segundo Reinado.

 

 

CRIAÇÃO

 

A alma dos pobres se vai sem música,

mas a dos grandes é exigente.

A Banda Euterpe, logo chamada

por Monsenhor

para chorar o morto conspícuo

— azar — é nova, sem partitura.

Só se pedir à banda rival...

Henrique Dias (nome da outra)

recusa, egoísta. Defunto à vista

querendo arte. A tarde emurchece

e Monsenhor

espera, aflito, marcha ou o que seja.

Emílio Soares, maestro, fecha-se

no seu quartinho. Dó ré mi sol...

A Musa baixa, ou Santa Cecília,

dita ao maestro o fúnebre arroubo.

Onze da noite. Dormem os fiéis,

não Monsenhor.

Eis, no silêncio, clara, a corneta

do carcereiro chamando os músicos

(são todos guardas municipais)

para ensaiar. A banda valente

acorda o povo, causando pânico

a Monsenhor

e a todo mundo, que novidade

igual nunca houve. Como já sofrem,

amanhecendo, os de Henrique Dias!

Às nove, enterro. À frente, a batina

de Monsenhor.

Lá vai seguido da Banda Euterpe

que toca exausta, com sentimento,

luto orgulhoso, o Líbera-Mé,

favo da noite, glória de Emílio,

dádiva ao morto, que o céu inspira,

por Monsenhor.

Jamais um grande se foi sem música

e jamais teve outra, ungindo os ares,

como esta, grave, de Emílio Soares.

 

 

15 DE NOVEMBRO

 

A proclamação da República chegou às 10 horas da noite

em telegrama lacônico.

Liberais e conservadores não queriam acreditar.

Artur Itabirano saiu para a rua soltando foguete.

Dr. Serapião e poucos mais o acompanhavam

de lenço incendiário no pescoço.

Conservadores e liberais recolheram-se ao seu infortúnio.

O Pico do Cauê quedou indiferente (era todo ferro, supunha-se eterno).

Não resta mais testemunha daquela noite

para contar o efeito dos lenços vermelhos

ao suposto luar das montanhas de Minas.

Não restam sequer as montanhas.

 

VIDA PAROQUIAL

 

AUSÊNCIA

 

Subir ao Pico do Amor

e lá em cima

sentir presença de amor.

 

No Pico do Amor amor não está.

Reina serenidade de nuvens

sussurrando ao coração: Que importa?

 

Lá embaixo, talvez, amor está,

em lagoa decerto, em grota funda.

Ou? mais encoberto ainda, onde se refugiam

coisas que não são, e tremem de vir a ser.

 

 

SERENATA

 

Flauta e violão na trova da rua

que é uma treva rolando da montanha

fazem das suas.

Não há garrucha que impeça:

A música viola o domicílio

e põe rosas no leito da donzela.

 

 

O BANHO

 

Banheiro de meninos, a Água Santa

lava nossos pecados infantis

ou lembra que pecado não existe?

Água de duas fontes entrançadas,

Uma aquece, outra esfria surdo anseio

de apalpar na laguna a perna, o seio

a forma irrevelada que buscamos

quando, antes de amar, confusamente

amamos.

 

A tarde não cai na Água Santa.

Ela pousa na sombra da gameleira,

fica vendo meninos se banharem.

 

 

PROCISSÃO DO ENCONTRO

 

Lá vai a procissão da igreja do Rosário.

Lá vem a procissão da igreja da Saúde.

O encontro é em frente à casa de João Rosa.

Encontro de Mãe e Filho

trágicos, imóveis nos andores.

Ao ar livre

o púlpito de púrpura drapeja

no entardecer da serra fria.

A voz censura ternamente o Homem

que se deixa imolar por muito amor

e do amor materno se desprende.

Não há nada a fazer para impedi-lo?

A terra abre mão de seu resgate

para salvar o Deus que quis salvá-la.

O ferro da cidade se comove,

não o peito de Cristo.

E o roxo manto, as lágrimas de sangue,

a cruz, as sete espadas

vão navegando sobre ombros

pela rua-teatro, lentamente.

 

 

OS ASSASSINOS

 

Os assassinos vêm de longe.

Vêm do Onça, do Periquito, das Bateias,

da Serra do Alves.

Sangue seco nos dedos, olhar duro,

na roupa o crime escrito.

Os assassinos alçam a foice

na curva da estrada. A gameleira

conta o que viu e foi um brilho desabando

na entranha do inimigo.

Estavam destinados a matar.

Mamaram leite turvo.

Na escola eram diferentes.

As namoradas estranhavam

seus beijos sem doçura.

A terra decidiu que matassem.

Cumpriram, sem discutir.

 

Júri mais concorrido do que missa.

 

 

TERAPIA OCUPACIONAL

 

A enxovia

fascina

a peneira

colorida

a gaiola

de taquara

o boneco

de engonço

o riso

dos presos

o embaixo

da vida.

A enxovia

dando para o ar livre

casamento de luz e miséria

imanta o menino

a voz do assassino

é um curió suave

propondo a venda

de um girassol de trapo.

 

 

CEMITÉRIO DO CRUZEIRO

 

O sol incandesce

mármores rachados.

Entre letras a luz penetra

nossa misturada essência corporal,

atravessando-a.

O ser banha o não ser; a terra é.

Ouvimos o galo do cruzeiro

nitidamente cantar a ressurreição.

Não atendemos à chamada.

 

 

CEMITÉRIO DO ROSÁRIO

 

A beira do córrego, à beira do ouro,

à beira da história,

à beira da beira, os mais esquecidos

inominados

de todos os mortos antigos

dissolvem a ideia de morte

em ausência deliciosa,

lembrança de vinho

em garrafão translúcido.

 

 

FORJA

 

E viva o governo: deu

dinheiro para montar

a forja.

Que faz a forja? Espingardas

e vende para o governo.

Os soldados de espingarda

foram prender criminoso

foram fazer eleição

foram caçar passarinho

foram dar tiros a esmo

e viva o governo e viva

nossa indústria matadeira.

 

 

CENSO INDUSTRIAL

 

Que fabricas tu?

Fabrico chapéu feito de indaiá.

Que fabricas tu?

Queijo, requeijão.

Que fabricas tu?

Faço pão de queijo.

Que fabricas tu?

Bolo de feijão.

Que fabricas tu?

Geleia da branca

e também da preta.

Que fabricas tu?

Curtidor de couro.

Que fabricas tu?

Fabrico selim,

fabrico silhão

só de sola d’anta.

Que fabricas tu?

Eu faço cabresto,

barbicacho e loro.

Que fabricas tu?

Toco uma olaria.

Que fabricas tu?

Santinho de barro.

Que fabricas tu?

Fabrico melado.

Que fabricas tu?

Eu faço garapa.

Que fabricas tu?

Fabrico restilo.

Que fabricas tu?

Sou da rapadura.

Que fabricas tu?

Fabrico purgante.

Que fabricas tu?

Eu torro café.

Que fabricas tu?

Ferradura e cravo.

Que fabricas tu?

Panela de barro.

Que fabricas tu?

Eu fabrico lenha

furtada no pasto.

Que fabricas tu?

Gaiola de arame.

Que fabricas tu?

Fabrico mundéu.

Que fabricas tu?

Bola envenenada

de matar cachorro.

Que fabricas tu?

Faço pau de fogo.

Que fabricas tu?

Facão e punhal

de sangrar capado.

Que fabricas tu?

Caixão de defunto.

Que fabricas tu?

Fabrico defunto

na dobra do morro.

Que fabricas tu?

Não fabrico. Assisto

às fabricações.

 

 

ORDEM

 

Quando a folhinha de Mariana

exata informativa santificada

regulava o tempo, as colheitas,

os casamentos e até a hora de morrer,

o mundo era mais inteligível,

pairava certa graça no viver.

 

Hoje quem é que pode?

 

 

O RESTO

 

No alto da cidade

a boca da mina

a boca desdentada da mina de ouro

onde a lagartixa herdeira única

de nossos maiores

grava em risco rápido

no frio, na erva seca, no cascalho

o epítome-epílogo

da Grandeza.

 

 

MORAR

 

CASA

 

Há de dar para a Câmara,

de poder a poder.

No flanco, a Matriz,

de poder a poder.

Ter vista para a serra,

de poder a poder.

Sacadas e sacadas

comandando a paisagem.

Há de ter dez quartos

de portas sempre abertas

ao olho e pisar do chefe.

Areia fina lavada

na sala de visitas.

Alcova no fundo

sufocando o segredo

de cartas e baús

enferrujados.

Terá um pátio

quase espanhol vazio

pedrento

fotografando o silêncio

do sol sobre a laje,

da família sobre o tempo.

Forno estufado

fogão de muita fumaça

e renda de picumã nos barrotes.

Galinheiro comprido

à sombra de muro úmido.

Quintal erguido

em rampa suave, flores

convertidas em hortaliça

e chão ofertado ao corpo

que adore conviver

com formigas, desenterrar minhocas,

ler revista e nuvem.

Quintal terminando

em pasto infinito

onde um cavalo espere

o dia seguinte

e o bambual receba

telex do vento.

Há de ter tudo isso

mais o quarto de lenha

mais o quarto de arreios

mais a estrebaria

para o chefe apear e montar

na maior comodidade.

Há de ser por fora azul 1911.

Do contrário não é casa.

 

 

DEPÓSITO

 

Há uma loja no sobrado

onde não há comerciante.

Há trastes partidos na loja

para não serem consertados.

Tamborete, marquesa, catre

aqui jogados em outro século,

esquecidos de humano corpo.

Selins, caçambas, embornais,

cangalhas

de uma tropa que não trilha mais

nenhuma estrada do Rio Doce.

A perna de arame do avô

baleado na eleição da Câmara.

E uma ocarina sem Pastor Fido

que à aranha não interessa tocar,

enorme aranha negra, proprietária

da loja fechada.

 

 

VISITA MATINAL

 

É teatral a escada de dois lances

entre a rua e os Andrades.

Armada para ópera? ou ponte

para marcar isolamento?

 

Bater à porta da rua, tanto vale

gritar do Amazonas

a um homem que passeia na Moldávia.

 

Carece entrar, subir a escada

com fortes pés batendo as fortes tábuas.

 

— Que cavalo escoiceia desse jeito?

pergunta meu pai no entressono.

Meu Deus: é o doutor juiz de direito!

 

 

RECINTO DEFESO

 

Por trás da porta hermética

a sala de visitas

espera longamente

visitas.

 

O sofá recusa

traseiros vulgares.

 

As escarradeiras

querem cuspe fino.

 

Ai, espelho nobre,

não miras qualquer.

 

Assim tão selada,

cheirando a santuário,

por que me negas, sala,

teu luxo?

 

Por favor, visitas,

vinde, vinde rápido

pra que eu também visite

a sala de visitas!

 

 

RESUMO

 

Nunca ouvi o assobio do tapir

que desafiava os Coroados

e desafia os caçadores de anta nas matas do Carmo.

Vi o tapir estirado na sala, reduzido a tapete,

montei o tapir, na sela com enfeites de prata.

Que sei do tapir

senão sua derrota?

 

 

ESCAPARATE

 

Sobre o escaparate

preto

o vidro de óleo de rícino

a caixinha de cápsulas

o copo facetado e

a colher inclinada.

 

Sobre o escaparate

o relógio de algibeira

o bentinho vermelho

e o terço da aflição

a chama

da vela de espermacete vigiando

no castiçal de prata.

 

Dentro do escaparate

o ágate expectante do penico.

 

Em volta do escaparate

a negra cólica da noite. Estou morrendo.

 

 

COPO D’ÁGUA NO SERENO

 

O copo no peitoril

convoca os eflúvios da noite.

 

Vem o frio nevoso

da serra.

Vêm os perfumes brandos

do mato dormindo.

Vem o gosto delicado

da brisa.

 

E pousam na água.

 

 

LITANIA DA HORTA

 

Horta dos repolhos, horta do jiló,

horta da leitura, horta do pecado,

horta da evasão, horta do remorso,

horta do caramujo e do sapo e do caco

de tigela de cor guardado por lembrança,

horta de deitar no chão e possuir a terra,

e de possuir o céu, quando a terra me cansa.

 

 

CISMA

 

Este pé de café, um só, na tarde fina,

e a sombra que ele faz, uma sombra menina

entre pingos vermelhos.

Sentado, vejo o mundo

abrir e reabrir o seu leque de imagens.

Que riqueza, viver no tempo e fora dele.

Eis desce lentamente o tronco e me contempla,

a embeber-se no meu e no sonho geral,

extasiada escultura, uma cobra-coral.

 

 

LIQUIDAÇÃO

 

A casa foi vendida com todas as lembranças

todos os móveis todos os pesadelos

todos os pecados cometidos ou em via de cometer

a casa foi vendida com seu bater de portas

com seu vento encanado sua vista do mundo

seus imponderáveis

por vinte, vinte contos.

 

 

BOTA E ESPORA

 

CHAMADO GERAL

 

Onças, veados, capivaras, pacas, tamanduás da corografia do Padre Ângelo de 1881, cutias, quatis, raposas, preguiças, papa-méis, onde estais, que vos escondeis?

 

Mutuns, jacus, jacutingas, siriemas, araras, papagaios, periquitos, tuins, que não vejo nem ouço, para onde voastes que vos dispersastes?

 

Inhapins, gaturamos, papa-arrozes, curiós, pintassilgos de silva amena, onde tanto se oculta vosso canto, e eu aqui sem acalanto?

 

Vinde feras e vinde pássaros, restaurar em sua terra este habitante sem raízes,

 

que busca no vazio sem vaso os comprovantes de sua essência rupestre.

 

 

AR LIVRE

 

Sopra do Cutucum

uma aragem de negras

derrubadas na vargem.

Venta do Cutucum

um calor de sovacos

e ancas abrasadas.

A cama é a terra toda

e o amor um espetáculo

oferecido às vacas

que não olham e pastam.

A carne sobre farpas,

pedrinhas e formigas,

dói que dói e não sente,

na urgência de cumprir

o estatuto do corpo.

E todo o Cutucum

é corpo preto e branco

enlaçado em si mesmo

e chupando, e chupado.

 

 

MULINHA

 

A mulinha carregada de latões

vem cedo para a cidade

vagamente assistida pelo leiteiro.

Para à porta dos fregueses

sem necessidade de palavra

ou de chicote.

Aos pobres serve de relógio.

Só não entrega ela mesma a cada um o seu litro de leite

para não desmoralizar o leiteiro.

 

Sua cor é sem cor.

Seu andar, o andar de todas as mulas de Minas.

Não tem idade — vem de sempre e de antes —

nem nome: é a mulinha do leite.

É o leite, cumprindo ordem do pasto.

 

 

O FAZENDEIRO E A MORTE

 

I

 

Bate na vaca, bate.

Bater até que ela adote

a cria da vaca morta

como sua cria morta.

 

Batebate na vaca, bate.

 

Bota couro sobre couro

na ilusão de cheiro-pelo.

Se não vale,

bate na recusa, bate

naquilo que te rebate.

 

No desencontro da vaca

e do bezerro e das mortes

enlaçáveis

bate, debate, combate.

Em ti mesmo estás batendo

o deus que não vence o boi.

 

II

 

Não queres perder a cria,

é justo, é justo.

Não queres ver desfalcado

teu difícil gado suado.

E amas em cada bezerro

o boi eterno

na eterna pastagem, sangue

de teu viver.

E bates desesperado

porque a morte não deserta

o curral sujo.

A morte não te obedece

nem a teu amor de dono.

Não tem a morte piedade

de bezerro, a morte é leite

censurado.

Estás batendo na morte

com chicote apaixonado.

O criador ama a cria

como se fosse seu filho.

Aos filhos que tu perdeste

soma-se

o bezerro já morto junto ao ubre.

 

 

SURPRESA

 

Estes cavalos fazem parte da família

e têm orgulho disto.

Não podem ser vendidos nem trocados.

Não podem ser montados por qualquer.

Devem morrer de velhos, campo largo.

 

Cada um de nós tem seu cavalo e há de cuidá-lo

com finura e respeito.

É manso para o dono e mais ninguém.

Meu cavalo me sabe seu irmão,

seu rei e seu menino.

Por que, no vão estreito

(por baixo de seu pescoço eis que eu passava)

os duros dentes crava

em minhas costas, grava este protesto?

 

Coro fazendeiro:

 

O cavalo mordeu o menino?

Por acaso o menino ainda mama?

Vamos rir, vamos rir do cretino,

e se chora, que chore na cama.

 

 

BOITEMPO

 

Entardece na roça

de modo diferente.

A sombra vem nos cascos,

no mugido da vaca

separada da cria.

O gado é que anoitece

e na luz que a vidraça

da casa fazendeira

derrama no curral

surge multiplicada

sua estátua de sal,

escultura da noite.

Os chifres delimitam

o sono privativo

de cada rês e tecem

de curva em curva a ilha

do sono universal.

No gado é que dormimos

e nele que acordamos.

Amanhece na roça

de modo diferente.

A luz chega no leite,

momo esguicho das tetas

e o dia é um pasto azul

que o gado reconquista.

 

 

ESTRADA

 

O cavalo sabe todos os caminhos,

o cavaleiro não.

 

A trompa

ecoa no azul longe

e no peito do viajante perdido.

Afinal os homens se encontram,

ninguém na terra é sozinho.

 

Caçadores chegam em festa

barbas faíscam ao sol

entre veados mortos

e ladridos.

 

O braço aponta o rumo

o braço goza a turbação.

Oi neto de boiadeiros

oi filho de fazendeiros

que nem sabes teus carreiros!

Que mais sabes?

 

Foge o tropel da trompa na poeira.

Tudo na terra é sozinho.

 

 

 

NOTÍCIAS DE CLÃ

 

HERANÇA

 

De mil datas minerais

com engenhos de socar de lavras lavras e mais lavras

e sesmarias

de bestas e vacas e novilhas

de terras de semeadura

de café em cereja (quantos alqueires?)

de prata em obras (quantas oitavas?)

de escravos, de escravas e de crias

de ações da Companhia de Navegação do Alto Paraguai

da aurifúlgida comenda no baú

enterrado no poço da memória

restou, talvez? este pigarro.

 

 

O BANCO QUE SERVE A MEU PAI

 

O Banco Mercantil

do Rio de Janeiro:

seu envelope azul

anuncia dinheiro

que um vitoriano

o dr. João Ribeiro

guarda para meu pai.

Seu piso de ladrilho

pisado por viúvas

sagrados senadores

e quantos possuírem

apólices debêntures

valores in aeternum

é sólido sem brilho.

Na incerteza de tudo

só é certo em janeiro

colher o dividendo

flor de longo trabalho

na pedrosa fazenda

de gadinho leiteiro

e se o país empenha

sua alma aos Rothschilds

nanja o velho mineiro

de ferro cauteloso

que tem seu mealheiro

no Banco Mercantil

todo modéstia e força

do Rio de Janeiro

o banco que é bem bom

o de Santos Dumont

e Pereira Carneiro.

 

 

OS CHAMADOS

 

Elias vive 8 dias.

Sua biografia está em duas linhas paroquiais

e já surge Lincoln

chamado a viver 3 meses e 23 dias.

Antônio resiste

1 ano, 5 meses, 3 dias.

João de Deus: 2 anos, 9 dias.

Vem Sílvio: 4 meses e 3 dias.

E vem Olavo: 1 ano e 17.

Geraldo vive uma eternidade: 3 anos, 5 dias.

Flávia não vai além de 27.

É tempo de parar

e chorar.

Os outros seis, que deus os vai poupando,

acenando que esperem — para quê?

 

 

DRAMA SECO

 

O noivo desmanchou o casamento.

Que será da noiva — toma hábito

ou se consagra à renda de bilro para sempre?

 

Tranca-se ao jeito das viúvas trágicas.

 

O noivo fica noivo novamente,

de outra moça, em outra rua.

A noiva antiga que dirá

em seu quartinho negro, à hora em que...?

 

À hora em que

passar a pé

o noivo com

seu cortejo, braço dado a braço dado,

rumo da noiva nova,

diz-que da antiga casa de noivado

a água descerá, em punição.

 

Lá vai o cortejo

todo ressabiado,

temo noivo

temo novo

preto de medo,

 

vestido novo

branco de medo,

olho de medo

no céu da casa.

 

Todas as janelas secamente fechadas,

sequer uma lágrima

pinga na lapela do noivo.

 

 

ROSA ROSAE

 

Rosa

e todas as rimas

Rosa

e os perfumes todos

Rosa

no florindo espelho

Rosa

na brancura branca

Rosa

no carmim da hora

Rosa

no brinco e pulseira

Rosa

no deslumbramento

Rosa

no distanciamento

Rosa

no que não foi escrito

Rosa

no que deixou de ser dito

Rosa

pétala a pétala

despetalirosada

 

 

O CRIADOR

 

A mão de meu irmão desenha um jardim

e ele surge da pedra. Há uma estrela no pátio.

Uma estrela de rosa e de gerânio.

Mas seu perfume não me encanta a mim.

O que respiro é a glória de meu mano.

 

 

CANTIGUINHA

 

Era um brinquedo maria

era uma estória maria

era uma nuvem maria

era uma graça maria

era um bocado maria

era um mar de amor maria

era uma vez era um dia

maria

 

 

O PREPARADO

 

Por que morreu aquele irmão

que há pouco brincava no quarto

sem qualquer signo na testa?

 

Há pouco brincava no quarto.

 

Foi só tempo de arder em febre

e de o doutor lhe receitar

um preparado que não havia.

 

O preparado que não havia.

 

A longa espera da encomenda

pelo correio, e quando veio

em lombo de burro, no chouto,

 

a morte beijara o menino.

Sá Maria diz que é o destino.

 

 

UM

 

ETIQUETA

 

Carlos Correia

Carlos Conceição

 

Carlos Laje

Carlos Alvarenga

 

Carlos Freitas

Carlos Ataíde

 

Carlos Henriques

Carlos Silveira

 

Carlos Carvalho

Carlos Meneses

 

Carlos Godói

Carlos Guimarães

 

Carlos Teixeira

Carlos Moreira

 

Carlos Paula

Carlos Monteiro

 

Carlos Chassim

Carlos Drummond

 

Carlos Andrade

Carlos apenas

 

Carlos demais

 

 

SIGNO

 

Fugias do escorpião

lá no quarto de guardados

como quem foge do Cão

sem perceber que o trazias

desde o primeiro vagido

oculto em teu coração,

e por onde quer que fosses,

julgando que te guiavas,

era dele a direção,

e tudo que amas, iluso

de uma ilusória opção,

é ele que te sugere,

te comanda, sorrateiro,

com seu veneno e ferrão,

de tal sorte que, mordido,

e mordente, na aflição,

de nada valeu, confessa,

fugires de escorpião.

 

 

BRASÃO

 

Duas serpentes enlaçadas

no timbre espanhol de Andrade

em vermelho e ouro decretam

a guerra dentro de teu corpo

sem vitória de qualquer lado.

Ao ataque de duas línguas

bífidas, todo te contrais

e na dupla, ardente picada,

a alegria te invade ao veres

sobre a pele de teu destino

que uma pulseira inquebrantável

surge do abraço viperino.

 

 

PRIMEIRO CONTO

 

O menino ambicioso

não de poder ou glória

mas de soltar a coisa

oculta no seu peito

escreve no caderno

e vagamente conta

à maneira de sonho

sem sentido nem forma

aquilo que não sabe.

 

Ficou na folha a mancha

do tinteiro entornado,

mas tão esmaecida

que nem mancha o papel.

Quem decifra por baixo

a letra do menino,

agora que o homem sabe

dizer o que não mais

se oculta no seu peito?

 

 

O DIABO NA ESCADA

 

Chego tarde, o lampião de querosene está de pavio apagado.

Subir direto à cozinha e embalar no colo da preta velha a consciência pesada.

Travando o caminho em breu, a coisa imóvel na escada.

É ela! pressinto. Veio esperar-me no degrau do meio, cúmplice e camarada.

Acaricio-lhe o pescoço, que tilinta de medalhas bentas, e o som familiar soa diverso, abafado.

Sá Maria! chamo baixinho, como no escuro se chama. Dá um jeito deu não ser castigado.

Não secunda. Apalpo as carnes murchas, doces, de uma doçura cansada.

Se está ali por minha causa, por que não me liga nem nada?

Sacudo, sacudo em vão. Uma notícia me corta, de muito longe soprada.

É o Diabo postado em pé no negrume da escada.

Ele, nenhum outro sabe tão bem se disfarçar para ferir a alma enganada.

Subo correndo os degraus que sobem em mim que me precipito na copa: água! água! secura desesperada.

A talha fria me acode, já posso ir à cozinha, onde, imperialmente sentada,

Sá Maria cachimbando desde a eternidade me espera. — Que Diabo mais parecido contigo acabei de encontrar na escada!

Ela cospe no borralho — Cruiz, credo — e na fumaça do cachimbo a do Diabo vai sumindo.

 

 

DIDÁTICA

 

Cafas-leão é terrível. Come um boi

no almoço, uma boiada no jantar.

Seu arroto fulmina; sua bota

esmaga distraídos no caminho.

Ai de quem

bole com ele e quem não bole.

Cafas, o mais-que-tudo, o gigantão...

Meu pai conta-lhe os feitos e estremeço

e rio.

Meu pai me ensina o medo e a rir do medo.

 

 

FIM

 

Por que dar fim a histórias?

Quando Robinson Crusoé deixou a ilha,

que tristeza para o leitor do Tico-Tico.

 

Era sublime viver para sempre com ele e com Sexta-Feira,

na exemplar, na florida solidão,

sem nenhum dos dois saber que eu estava aqui.

 

Largaram-me entre marinheiros-colonos,

sozinho na ilha povoada,

mais sozinho que Robinson, com lágrimas

desbotando a cor das gravuras do Tico-Tico.

 

 

TORTURA

 

Carretel não entra

em rabo de gato?

Não importa: este

há de entrar, exato.

Que anel mais estranho,

ornato insensato,

se tinge de sangue

no rabo do gato.

 

Unha, presa, fúria,

felino aparato,

nada pode contra

a mão e seu ato.

 

Foge o bicho, tonto?

Carretel, no mato,

nunca mais que sai

de rabo de gato.

 

Não, não foge: esconde-se

na cova do rato.

Outra mão, piedosa,

cure, salve o gato,

que esta sabe apenas

torturar exato.

 

 

QUEDA

 

Cair de cavalo manso:

coisa que só acontece

uma vez em cada século.

 

Por que, no século 20,

logo a este acontecer?

naquela rua?

 

Que sombração no dia claro

espaventa esse cavalo?

Que diabo invisível faz cócega

em suas ventas, no vento?

 

Ferraduras faíscam forjas

no galope desenfreado

e pelas portas das vendas

corre um oh de susto gozado.

 

De repente estaca o baio

em frente à casa costumeira,

atirando à calçada vil

o bagaço de cavaleiro.

 

Num relâmpago

Hermengarda, de heril semblante,

assoma ao rendilhado balcão

e contempla

— mau uso de belos olhos —

minha total humilhação.

 

 

DESCOBERTA

 

Cadete grava para a Casa Édison, Rio de Janeiro.

O reizinho de Portugal retira-se para a Inglaterra.

O cometa já não viaja para Oliveira Vale & Cia.,

agora ocupa o céu inteiro na noite de 19 de março.

O Ministro da Guerra vira Presidente,

vasos de guerra bombardeiam a Capital,

marinheiros degolam almirantes,

o mundo vai acabar

mas eu sigo a pé para a aula de Mestre Zeca e descubro a letra A, rainha das letras.

 

 

ORION

 

A primeira namorada, tão alta

que o beijo não a alcançava,

o pescoço não a alcançava,

nem mesmo a voz a alcançava.

Eram quilômetros de silêncio.

 

Luzia na janela do sobradão.

 

 

1914

 

Desta guerra mundial

não se ouve uma explosão

sequer nem mesmo o grito

do soldado partido

em dois no campo raso.

Nenhum tanque perdido

ou avião de caça

rente ao Poço da Penha

por um momento passa.

Vem tudo no jornal

ilustrado longínquo.

O mundo finaliza

na divisa do Carmo

ao Norte

ao Sul em Santa Bárbara.

Reparo: o que habitamos

território encravado

não é o mundo, é o branco.

Um branco povoado

como se mundo fosse.

Bem cedo se vestiu

Sinhá Americano

e chega de mantilha

à missa de 6 horas.

Nhonhô Bilico serve

água e alpiste aos canários.

Já desce Minervino

ao cartório. Amarílio

deixa de lado o Morse

e burila sonetos.

Resmunga Romãozinho

a limpar as vidraças

gaguejado vissungo.

Abre Quinca Custódio

sua coletoria.

Ouço zumbir a mosca

imóvel esmeralda

sobre o pé de camélia.

Ouço portas rangerem

como rangem as portas

sem medo de invasão.

Pacapá-pacapá

o cavaleiro célere

regressa a Pau de Angu

levando na garupa

duas sacas de sal

quatro maços de fósforos.

A vida é sempre igual

a si mesma a si sempre

mesmo quando o correio

traz na mala amarela

esse enxofre de guerra estranha

guerra estranha que não muda o lugar

de uma besta de carga

dormindo entre cem bestas

no Rancho do Monteiro;

que não altera o gosto

da água pedida à fonte

para dormir na talha

uma espera de sede;

que não suspende a aula

de misteriaritmética

e nem a procissão

em seu eterno giro

na rua principal

tão lerdo a ponto de

tornar abominável

a própria eternidade.

Entretanto essa guerra

invisível assética

assalta pelas fotos

e títulos vermelhos.

No escuro me desvenda

seu maligno diadema

de fogos invectivas

e cava uma trincheira

à beira de meu catre.

Provoca-me

suspende-me em silêncio

por sobre a Mantiqueira

e diz-me dura: “Olha.

Olha longe e decide.”

Serei fraco iletrado

pálido mineirinho

o juiz da contenda?

Tenho numa balança

de sopesar os ódios

e de optar por um deles?

O nulo entendimento

cede à vertiginosa

tentação de escolher.

Escolhendo me isolo,

um somente a sentir

no oco paroquial

o peso desta guerra

universal e minha.

Um só? Engano. Somos

dois terríveis arcanjos

a passear a chama

de nossas durindanas.

O moço postalista

Fernandinho irradia

o seu furor teutônico

ao meu entrelaçado.

Um varão, um menino

unidos pela causa

mas que causa? em que campo?

a causa de Hohenzollern

na agência do correio

ou o combate ideal

entre mim mesmo e o mal?

E derrota e vitória

Flandres Verdun Champagne

enervante compasso

de espera se articula

no sem fim dessa guerra.

De tanto esperar tanto

navios brasileiros

afundam

sob o tiro solerte

de nossos submarinos.

Estremece a consciência

cortada de remorsos.

Isso não, Fernandinho.

Já não posso mais ser

o exato germanófilo.

Fernandinho me encara

com silente desprezo

enquanto adiro ao velho

sentimento de pátria.

Pátria, morrer por ti

ou pelo menos te

ofertar este ramo

de palavras ardentes.

Vou à rua, peroro

com voz de calça curta

ordeno ao município

que marche resoluto

a combater os boches.

A meus olhos esfuma-se

o imaginário limite

do bem e da justiça

que a palavra traçara

e paixão e interesse

entre cercas de arame

farpado se entrecruzam

tecendo o labirinto

sinistro a percorrer

na incerteza da história.

Nunca mais reaprendo

o que é a verdade.

 

 

GESTO E PALAVRA

 

Tomar banho, pentear-se

calçar botina apertada

ir à missa, que preguiça.

 

A manhã imensa escurecendo

no banco de igreja

duro ajoelhar

imunda reflexão dos mesmos pecados

de sempre.

 

Manhã que prometia caramujos

músicos

mágicos

maduros sabores

de tato, barco de leituras

secretas sereias...

apodrecida.

Não vai? Pois não vai à missa?

Ele precisa é de couro.

 

Ó Coronel, vem bater,

vem ensinar a viver

a exata forma de vida.

No rosto não!

Ah, no rosto não!

 

Que mão se ergue em defesa

da sagrada parte do ser?

Vai reagir, tem coragem

de atacar o pátrio poder?

 

Nunca se viu coisa igual

no mundo, na Rua Municipal.

 

— Parricida! Parricida!

alguém exclama entre os dois.

Abaixa-se a mão erguida

e fica o nome no ar.

 

Por que se inventam palavras

que furam como punhal?

Parricida! Parricida!

Com essa te vais matar

por todo o resto da vida.

 

 

REPETIÇÃO

 

Volto a subir a Rua de Santana.

De novo peço a Ninita Castilho

a Careta com versos de Bilac.

É toda musgo a tarde itabirana.

 

Passando pela Ponte, Luís Camilo

(o velho) vejo em seu laboratório-

-oficina, de mágico sardônico.

Na Penha, o ribeirão fala tranquilo

 

que Joana lava roupa desde o Império

e não se alforriou desse regime

por mais que o anil alveje a nossa vida.

 

Ô de casa!... Que casa? Que menino?

Quando foi, se é que foi — era submersa

que me torna, de velho, pequenino?

 

 

A PUTA

 

Quero conhecer a puta.

A puta da cidade. A única.

A fornecedora.

Na Rua de Baixo

onde é proibido passar.

 

Onde o ar é vidro ardendo

e labaredas torram a língua

de quem disser: Eu quero

a puta

quero a puta quero a puta.

 

Ela arreganha dentes largos

de longe. Na mata do cabelo

se abre toda, chupante

boca de mina amanteigada

quente. A puta quente.

 

É preciso crescer

esta noite a noite inteira sem parar

de crescer e querer

a puta que não sabe

o gosto do desejo do menino

o gosto menino

que nem o menino

sabe, e quer saber, querendo a puta.

 

 

PERCEPÇÕES

 

ÁGUA-COR

 

O País da Cor é liquido e revela-se

na anilina dos vasos de farmácia.

Basta olhar, e flutuo sobre o verde

não verde-mata, o verde-além-do-verde.

 

E o azul é uma enseada na redoma.

Quisera nascer lá, estou nascendo.

Varo a laguna de ouro do amarelo.

A cor é o existente; o mais, falácia.

 

 

TRÊS GARRAFAS DE CRISTAL

 

Na sombra da copa, as garrafas

escondem sua cintilação.

Esperam jantares de família

que nunca se realizarão.

 

A verde-clara, a rósea, a que refrange

todos os tons da transparência,

sem vinho que as anime,

calam o menor tinido de existência.

 

Cristais letárgicos, como as belas

nos bosques, e as joias nas malas,

antiquários ainda não nasceram

que virão um dia buscá-las.

 

 

FLOR-DE-MAIO

 

Não na Loja das Flores, de João Rosa:

no parapeito da varanda aberta

às cartas do sereno, é que te vejo,

meu vaso em flor de seda,

meu agora só meu, que o tempo rói

o tempo,

nem anda na varanda mais ninguém

e o parapeito é vácuo neste peito,

meu cacto miniatura a florescer

nos olhos de uma antiga jardineira

que agora os tem fechados

e sem maio.

 

 

CONCERTO

 

O cravo, a cravina, a violeta eram instrumentos de música

ou eram flores?

Na terra úmida filtrava-se

não sei que melodia de câmara

em múrmuro ostinato

e o jardim era uma sonata que não se sabia sonata.

 

 

PAÍS DO AÇÚCAR

 

Começar pelo canudo,

passar ao branco pastel

de nata, doçura em prata,

e terminar no pudim?

 

Pois sim.

E o que boia na esmeralda

da compoteira:

molengos figos em calda,

e o que é cristal em laranja,

pêssego, cidra — vidrados?

 

A gula, faz tanto tempo,

cristalizada.

 

 

TEMPESTADE

 

O raio

iluminou o mundo inteiro

até o fundo das almas.

Vida e inferno em relâmpago

se embolaram.

Depressa ao quarto! ao quarto escuro!

De joelhos diante da cama.

Santa Bárbara na parede, valei-nos!

Nunca mais pecaremos nunca mais

havemos de merecer este castigo

de elétrica justiça.

 

A Santa escuta os pecadores

e sobre a enxurrada no cascalho

íris em arco, céu clemente,

celebra-se o casamento da raposa.

 

 

TERRORES

 

Na Rua do Matadouro

e no Beco do Calvário

a nuvem de mau agouro

e o clarão extraordinário

vão gritando o fim do mundo

mal a vida começara

e o corpo, esse trem imundo

que em pecado se atolara,

não tem tempo de lavar-se

para o Dia do Juízo

nem de vestir o disfarce

que cause dó sob riso.

Nas lajes de ferro e medo

os pés correm desvairados

sentindo chegar tão cedo

a morte em seus véus queimados.

Fuge, fuge, itabirano,

que embora o raio te pegue

na porta de Emerenciano,

o Diabo não te carregue

antes que vejas teu pai

e lhe passes num olhar

o que da boca não sai

mas se conta sem falar.

A procissão corta

o passo.

São vultos encapuzados

são fantasmas alinhados

pesadelos esticados

fantoches tochas fachos

almas uivando

todos os antepassados

sem missa

presos

da cadeia em ruínas

soltos em bando

o assassino do Carmo

e sua faca relâmpago

enorme, sobre a igreja,

os anjinhos que vão sendo carregados

tão depressa que é um apostar corrida

de caixões brancos no escuro

da Rua do Matadouro

rumo ao Beco do Calvário

onde te espera o carrasco

e o Capeta com seu casco

de fogo ao pé do carrasco.

 

 

RELAÇÕES HUMANAS

 

CORTESIA

 

Mil novecentos e pouco.

Se passava alguém na rua

sem lhe tirar o chapéu

Seu Inacinho lá do alto

de suas cãs e fenestra

murmurava desolado

— Este mundo está perdido!

Agora que ninguém porta

nem lembrança de chapéu

e nada mais tem sentido,

que sorte Seu Inacinho

já ter ido para o céu.

 

 

IMPERADOR

 

O Imperador Francisco José, dobrado a reveses

de guerra, de família, de toda sorte,

antes que a Áustria-Hungria se despedaçasse

no caos de 1914,

largou tudo, foi ser agente do correio

no município perdido de Minas

sob outro nome imperial: Fernando III.

Sem a trágica pinta dos Habsburgos

vira outro homem, entrega

as cartas com zombaria doce, diverte-se

falando de passarinhos e de pacas.

Só é reconhecível pelas suíças venerandas.

 

 

SUUM CUIQUE TRIBUERE

 

O vigário decreta a lei do domingo

válida por toda a semana:

— Dai a César o que é de César.

Zé Xanela afundado no banco

vem à tona d’água

ardente

acrescenta o parágrafo:

— Se não encontrar César, pode dar a Sá Cota Borges que é mãe dele.

 

 

VISITA À CASA DE TATÁ

 

A casa de Tatá é um silêncio perto da igreja.

Silêncio de lençóis engomados

para sua única pessoa.

A viuvez tão antiga que virou de nascença

derrama brancura em tudo.

O presépio de Tatá emerge de Belém como flor

cheirando a cânfora e alfazema.

Na ordem dos anjos e animais, a ordem estrita

de Deus.

O melhor da casa é a arca,

o melhor da arca, suspiros

feitos da brancura mesma de Tatá,

brancura surda.

 

 

EI, BEXIGA!

 

Os chocolates em túnica de prata,

justa, recendem. A hortelã

das balas pincela um frio verdoendo

na boca.

Tudo vem de longe, de São Paulo,

para Seu Foscarini, distribuidor de delícias.

 

E um homem desses vai morrer de varíola?

 

A Idade Média enrola a cidade

em cobertor de pânico.

Sete dias se fecham as portas

se acendem velas

sem leite sem pão sem saúde pública

joelhos em terra exortam a sagrada ira

a poupar os que não são italianos e fundaram

este chão de Deus sem bexigas.

Pereça, coitado, Seu Foscarini,

mas as velhas famílias se salvem.

 

Levam Seu Foscarini para o lazareto

que não é lazareto, é um casebre desbeiçado

no campo onde a cobra pasta

vírgulas de tédio.

 

Nunca mais chocolates, licorinos

caramelos, magia de São Paulo?

 

 

FLORA MÁGICA NOTURNA

 

A casa de Dr. Câmara é encantada.

No jardim cresce a árvore de moedas.

As pratinhas reluzem entre folhas.

O menino ergue o braço e fica rico

ao luar.

 

Dr. Câmara sorri sob os bigodes

de bom padrinho. Sente-se criador

de uma espécie botânica sem par.

A crença do menino agora é dele,

ao luar.

 

 

CULTURA FRANCESA

 

Com mestre Emílio aprendi

esse pouco de francês

que deu para ler Jarry.

 

Murilo, diabo na aula,

tinha gestos impossíveis,

que nem macaco na jaula.

 

Mestre Emílio, tão severo

não via no último banco

o aluno de moral zero.

 

Os verbos irregulares

saltavam do meu Halbout,

perdiam-se pelos ares.

 

Nunca mais os encontrei...

Talvez Brigitte Bardot

me ensinasse o que não sei.

 

 

ORGULHO

 

Com toda a sua pomada

e seu horror a pedir,

ao ver a Agência fechada,

Manduca diz, soberano:

“Meu tio, quer me emprestar

um selinho de cem réis?”

“Pois não, lhe empresto, sobrinho.”

A carta segue seu rumo,

passa um dia, um mês, um ano

e Manduca, muito ancho,

se gaba de não dever

nem um tostão a ninguém.

“Alto lá, sobrinho, então

eu não lhe emprestei um selo

justamente de tostão?

Se me pagar nesta hora,

prometo não desmenti-lo,

dispenso juro de mora,

mas você fica devendo

o preço desta lição.”

 

 

PRIMEIRO POETA

 

O poeta Astolfo Franklin, como o invejo:

tem tipografia em que ele mesmo

imprime seus poemas simbolistas

em tinta verde e violeta: Maio...

é seu jornal, e a letra rara orna seu nome

que tilinta na bruma, enquanto o resto

some.

 

 

PRIMEIRA ELEIÇÃO

 

Marechal Hermes

e Rui Barbosa

lá vêm guerreando

pela montanha.

 

Olha a trovoada!

A pena, a espada,

qual perde, ganha?

E na sacada

 

o brado rouco,

o retintim,

a espora, a hora

do boletim.

 

Toda a cidade

se apaixonando.

Mas das mulheres

o voto, quando?

 

Menino vota

no faz de conta.

Ruísta, hermista,

sangue na crista!

 

Somos de Rui

os vexilários.

Já tudo rui

entre os contrários.

 

O formidando

som da vitória:

ao município

tamanha glória.

 

Doces projetos,

altos propósitos,

sonhos urbanos,

ideais humanos.

 

Rui vencedor.

Viva o Brasil

... de Hermes na posse.

Tosse? Bromil.

 

 

OS EXCÊNTRICOS

 

1

Chega a uma fazenda, apeia do cavalinho, ô de casa! pede que lhe sirvam leitão assado, e retira-se, qualquer que seja a resposta.

 

2

Diz: “Vou para o Japão” e tranca-se no quarto, só abrindo para que lhe levem alimento e bacia de banho, e retirem os excretos. No fim de seis meses, regressa da viagem.

 

3

Cola duas asas de fabricação doméstica nas costas e projeta-se do sobrado, na certeza-esperança de voo. Todas as costelas partidas.

 

4

Apaixona-se pela moça, que casa com outro. Persegue o casal em todas as cidades para onde este se mude. O marido, desesperado, atira nele, pela janela. No outro lado da rua, de outra janela, dá uma gargalhada e desaparece: a bala acerta no boneco que o protege sempre.

 

5

Data suas cartas de certo lugar: “Meio do mundo, encontro das tropas, idas e vindas”. Ao terminar, saúda: “Dãodarãodão-dão” e assina: “Dr. Manuel Buzina, que não mata mas amofina”.

 

 

REALIDADE

 

Macedônio botou o dinheiro na mesa, comprou a velha fazenda

do Ribeirão.

Nunca fui lá, mas sentia a terra pertinho de mim,

a água mineira borbulhando com vontade de ser rio,

refletindo a criação.

 

Macedônio é de mandar.

Seu primeiro ato de proprietário foi um decreto:

“Dagora em diante esta é a Fazenda da Palestina.”

 

Tudo se desmancha a essa voz:

a água corre para a Bíblia,

a terra foge no tempo-espaço,

a fazenda vira presépio.

 

 

COQUEIRO DE BATISTINHA

 

Ausente de meu querido torrão natal, havia

muitos anos, quis rever os sítios amenos...

Revoltou-me não rever mais o encantador

e quase secular coqueiro do saudoso também Batistinha.

 

Do volante assinado “Um itabirano”,
remetido ao autor em 1955.

 

Já não vejo onde se via

AQUELE ESBELTO COQUEIRO

de Batistinha.

 

Batistinha não nascera,

o coqueiro ali pousava

a esperá-lo.

 

Queria ser seu amigo.

Com lentidão de coqueiro

espiava ele crescer.

 

Amizade que não fala

mas se irradia por tudo

que é silêncio de verdura.

 

Até que alguém lhe decifra

esse bem-querer de palmas

e chama-lhe:

Coqueiro de Batistinha.

 

Batistinha vai à Europa,

vê Paris de antes da guerra,

vê o mundo

e a luz que o mundo tinha.

 

O coqueiro, mui sisudo,

jamais saiu a passeio.

Tomava conta da loja

de Batistinha.

 

Vem Batistinha contando

as maravilhas da terra.

Maravilha outra, a escutá-lo,

o coqueiro

era coqueiro-viajante

nos passos de Batistinha.

 

O dia se repetindo

dez mil dias, Batistinha

tem esse amigo a seu lado.

 

Já se finou Batistinha

com tudo que tinha visto

em giros de mocidade.

 

Sua loja está fechada.

E resta ao coqueiro? Nada.

 

De manhã cedo, pois

cedo começa o rodar mineiro,

passando por lá não vejo

nem retrato de coqueiro.

 

A Prefeitura o cortou?

Ou o raio o siderou,

o caterpilar levou?

 

No perguntar-se geral,

sabe menos cada qual

do que saberia um coco.

 

Tão simples,

e ninguém viu:

sem razão de estar ali,

privado de Batistinha,

o seu coqueiro

sumiu.

 

 

A ALFREDO DUVAL

 

Meu santeiro anarquista na varanda

da casinha do Bongue, maquinando

revoluções ao tempo em que modelas

o Menino Jesus, a Santa Virgem

e burrinhos de todas as lapinhas;

aventureiro em roupa de operário

que me levas à Ponte dos Suspiros

e ao Pátio dos Milagres, no farrancho

de Michel Zevaco, dos Pardaillan,

Buridan, Triboulet (e de Nick Carter),

ouço-te a rouca voz chamar Eurico

de nazarena barba caprichada

e retê-lo a posar horas e horas

para a imagem de Cristo em que se afirme

tua ânsia artesanal de perdurar.

Perdura, no frontispício do Teatro,

a águia que lá fixaste sobre o globo

azul da fama, no total desmaio

do teu, do nosso tempo itabirano?

Quem sabe de teus santos e teus bichos,

de tua capa e espada imaginária,

quando vagões e caminhões desterram

mais que nosso minério, nossa alma?

Eu menino, tu homem: uma aliança

faz-se, no tempo, à custa de gravuras

de semanais fascículos românticos...

 

 

OUTRAS SERRAS

 

PARQUE MUNICIPAL

 

I

 

O portão do colégio abre-se em domingo.

Toda a cidade é tua e verde.

O Parque o barco o banco o leque

do pavão em grito e cor fremindo o lago

sem que as estruturas de silêncio

desmoronem.

Quem passa? Nada passa. Aqui o tempo

aqui o ramo aqui o caracol

em ar benigno se entrelaçam, duram

eternamente a vez de contemplá-los.

Voltar? Para onde e que, se existe

onde além deste? se em vão as matemáticas,

as químicas, preceitos...

És o Parque, total.

Nem desejas ser planta, estás embaixo

de toda planta, simples terra.

Por que se destaca da palmeira

o pederasta

e faz o gesto lúbrico, sorri?

 

II

 

A natureza é imóvel.

A natureza, tapeçaria

onde o verde silente se reparte

entre caminhos que não levam a nenhum lugar.

São caminhos parados. De propósito.

O lago, tranquilidade oferecida.

A pontezinha rústica de cimento

não é feita para ninguém passar

de um ponto a outro.

A pontezinha sou eu ficar imóvel

por cima da água imóvel

na tapeçaria imóvel para sempre.

O barquinho da margem devia ser queimado.

 

 

ENGATE

 

O morto no sobrado

no porão a mulata

a pausa no velório

o beijo no escurinho

a pressa de engatar

o sentido da morte

na cor de teu desejo

que clareia o porão.

 

O morto nem ligando.

 

 

RESULTADO

 

No emblema do amor

o fogo

no bloco da vida

a fenda

na blindagem do medo

o fato.

 

Íntimos badalos balem

vergonha tristeza asco

blen blen blen

orragia.

 

 

O PEQUENO COFRE DE FERRO

 

Arrombado

vazio. Quem roubou?

Eu, talvez,

que me acuso de todos os pecados

antes que alguém me acuse e me condene.

Não fui eu ou fui eu?

Quem sabe mais de mim do que meu dentro?

E meu dentro se cala

omite seu obscuro julgamento

deixando-me na dúvida

dos crimes praticados por meu fora.

 

 

MESTRE

 

Arduíno Bolivar, o teu latim

não foi, não foi perdido para mim.

Muito aprendi contigo: a vida é um verso

sem sentido talvez, mas com que música!