de hiatos e de vácuos
de elipses, psius
faz-se, desfaz-se, faz-se
uma incorpórea face,
resumo de existido.
Apura-se o retrato
na mesma transparência:
eliminando cara
situação e trânsito
subitamente vara
o bloqueio da terra.
E chega àquele ponto
onde é tudo moído
no almofariz do ouro:
uma europa, um museu,
o projetado amar,
o concluso silêncio.
Hora de abrir a sessão da Câmara.
O presidente não aparece.
O presidente está impedido.
O presidente está preso
em casa. Monta guarda
junto ao quarto repleto de ouro em pó.
Pode a campainha tilintar,
o sino do Rosário bater e rebater,
o Senado da Câmara implorar
protestar
destituir o faltoso.
O presidente tesoureiro do ouro em pó
tributo do povo à regência trina
vê lá se vai abrir sessão.
Presida quem quiser,
que esse ouro aqui ladrão nenhum virá roubar.
por si mesmo libertado.
Meu avô se foi à Mata
vender burro brabo fiado.
Chega lá, deita no rancho
para pitar descansado.
Duzentas, trezentas léguas
em macho bem arreado,
por muito que um homem seja
de ferro, fica estrompado.
“Vou dormir, sonhar meu sonho
de cobre e mulher trançado.
Por favor ninguém me amole
que trago dependurado
no arção da sela meu coldre
com pau de fogo. Obrigado.”
“Dormir tão cedo, meu amo?
se no rancho do outro lado
do rio tem espetac´lo
que há de ser de vosso agrado.
Faz três dias ninguém cuida
na roça e no povoado
senão de ver esta noite
A Vingança do Passado.”
Nem mais se recorda o velho
que estava mesmo pregado.
Calça bota, arrocha cinto
e já se vê preparado.
De noite, à luz de candeeiro,
o drama tem outra face.
É como se à letra antiga
outro valor se juntasse.
O rosto do ator imerge
de repente na penumbra
e uma pungência maior
entre cangalhas ressumbra.
Metade luz e metade
mistério, a peça caminha
estranha. Dormem lá fora
a tropa e a besta-madrinha.
Na noite gelada a história
fala de nobres de Espanha
e do dote de uma virgem
conspurcada pela sanha
caprina de Dão Fernando.
E depois de mil malícias
o vil exclama: “Calor, ai calor
que abrasa um conde!”
“Que ouço? Que fuça é esta?”
Meu avô salta do banco.
O fidalgo enxuga a testa
que a luz devassa, mostrando
a estelar cicatriz
do seu escravo fugido
bem por cima do nariz.
Empurrando a uns e outros,
meu avô acode à cena
e brandindo seu chicote
(pois anda sempre com ele
em roça, brejão ou vila)
fustiga o conde, sem pena:
“Bacalhau, ai bacalhau
que te abrase o rabo, diabo.
Acaba com esta papeata
senão sou eu que te acabo.”
Era uma vez um artista
pelo berço mui dotado.
Ficou a noite mais triste
na tristidão do calado.
Cada qual se retirando
achava bem acertado.
Cumpre-se a lei. Está escrito:
a cada um o seu gado.
Para um escravo fugido
não há futuro, há passado,
pelo quê lá vai o conde
tocando burro e vigiado.
A tropa vai caminhando
pelo Segundo Reinado.
CRIAÇÃO
A alma dos pobres se vai sem música,
mas a dos grandes é exigente.
A Banda Euterpe, logo chamada
por Monsenhor
para chorar o morto conspícuo
— azar — é nova, sem partitura.
Só se pedir à banda rival...
Henrique Dias (nome da outra)
recusa, egoísta. Defunto à vista
querendo arte. A tarde emurchece
e Monsenhor
espera, aflito, marcha ou o que seja.
Emílio Soares, maestro, fecha-se
no seu quartinho. Dó ré mi sol...
A Musa baixa, ou Santa Cecília,
dita ao maestro o fúnebre arroubo.
Onze da noite. Dormem os fiéis,
não Monsenhor.
Eis, no silêncio, clara, a corneta
do carcereiro chamando os músicos
(são todos guardas municipais)
para ensaiar. A banda valente
acorda o povo, causando pânico
a Monsenhor
e a todo mundo, que novidade
igual nunca houve. Como já sofrem,
amanhecendo, os de Henrique Dias!
Às nove, enterro. À frente, a batina
de Monsenhor.
Lá vai seguido da Banda Euterpe
que toca exausta, com sentimento,
luto orgulhoso, o Líbera-Mé,
favo da noite, glória de Emílio,
dádiva ao morto, que o céu inspira,
por Monsenhor.
Jamais um grande se foi sem música
e jamais teve outra, ungindo os ares,
como esta, grave, de Emílio Soares.
A proclamação da República chegou às 10 horas da noite
em telegrama lacônico.
Liberais e conservadores não queriam acreditar.
Artur Itabirano saiu para a rua soltando foguete.
Dr. Serapião e poucos mais o acompanhavam
de lenço incendiário no pescoço.
Conservadores e liberais recolheram-se ao seu infortúnio.
O Pico do Cauê quedou indiferente (era todo ferro, supunha-se eterno).
Não resta mais testemunha daquela noite
para contar o efeito dos lenços vermelhos
ao suposto luar das montanhas de Minas.
Não restam sequer as montanhas.
e lá em cima
sentir presença de amor.
No Pico do Amor amor não está.
Reina serenidade de nuvens
sussurrando ao coração: Que importa?
Lá embaixo, talvez, amor está,
em lagoa decerto, em grota funda.
Ou? mais encoberto ainda, onde se refugiam
coisas que não são, e tremem de vir a ser.
Flauta e violão na trova da rua
que é uma treva rolando da montanha
fazem das suas.
Não há garrucha que impeça:
A música viola o domicílio
e põe rosas no leito da donzela.
Banheiro de meninos, a Água Santa
lava nossos pecados infantis
ou lembra que pecado não existe?
Água de duas fontes entrançadas,
Uma aquece, outra esfria surdo anseio
de apalpar na laguna a perna, o seio
a forma irrevelada que buscamos
quando, antes de amar, confusamente
amamos.
A tarde não cai na Água Santa.
Ela pousa na sombra da gameleira,
fica vendo meninos se banharem.
Lá vai a procissão da igreja do Rosário.
Lá vem a procissão da igreja da Saúde.
O encontro é em frente à casa de João Rosa.
Encontro de Mãe e Filho
trágicos, imóveis nos andores.
Ao ar livre
o púlpito de púrpura drapeja
no entardecer da serra fria.
A voz censura ternamente o Homem
que se deixa imolar por muito amor
e do amor materno se desprende.
Não há nada a fazer para impedi-lo?
A terra abre mão de seu resgate
para salvar o Deus que quis salvá-la.
O ferro da cidade se comove,
não o peito de Cristo.
E o roxo manto, as lágrimas de sangue,
a cruz, as sete espadas
vão navegando sobre ombros
pela rua-teatro, lentamente.
Vêm do Onça, do Periquito, das Bateias,
da Serra do Alves.
Sangue seco nos dedos, olhar duro,
na roupa o crime escrito.
Os assassinos alçam a foice
na curva da estrada. A gameleira
conta o que viu e foi um brilho desabando
na entranha do inimigo.
Estavam destinados a matar.
Mamaram leite turvo.
Na escola eram diferentes.
As namoradas estranhavam
seus beijos sem doçura.
A terra decidiu que matassem.
Cumpriram, sem discutir.
Júri mais concorrido do que missa.
fascina
a peneira
colorida
a gaiola
de taquara
o boneco
de engonço
o riso
dos presos
o embaixo
da vida.
A enxovia
dando para o ar livre
casamento de luz e miséria
imanta o menino
a voz do assassino
é um curió suave
propondo a venda
de um girassol de trapo.
mármores rachados.
Entre letras a luz penetra
nossa misturada essência corporal,
atravessando-a.
O ser banha o não ser; a terra é.
Ouvimos o galo do cruzeiro
nitidamente cantar a ressurreição.
Não atendemos à chamada.
A beira do córrego, à beira do ouro,
à beira da história,
à beira da beira, os mais esquecidos
inominados
de todos os mortos antigos
dissolvem a ideia de morte
em ausência deliciosa,
lembrança de vinho
em garrafão translúcido.
dinheiro para montar
a forja.
Que faz a forja? Espingardas
e vende para o governo.
Os soldados de espingarda
foram prender criminoso
foram fazer eleição
foram caçar passarinho
foram dar tiros a esmo
e viva o governo e viva
nossa indústria matadeira.
Fabrico chapéu feito de indaiá.
Que fabricas tu?
Queijo, requeijão.
Que fabricas tu?
Faço pão de queijo.
Que fabricas tu?
Bolo de feijão.
Que fabricas tu?
Geleia da branca
e também da preta.
Que fabricas tu?
Curtidor de couro.
Que fabricas tu?
Fabrico selim,
fabrico silhão
só de sola d’anta.
Que fabricas tu?
Eu faço cabresto,
barbicacho e loro.
Que fabricas tu?
Toco uma olaria.
Que fabricas tu?
Santinho de barro.
Que fabricas tu?
Fabrico melado.
Que fabricas tu?
Eu faço garapa.
Que fabricas tu?
Fabrico restilo.
Que fabricas tu?
Sou da rapadura.
Que fabricas tu?
Fabrico purgante.
Que fabricas tu?
Eu torro café.
Que fabricas tu?
Ferradura e cravo.
Que fabricas tu?
Panela de barro.
Que fabricas tu?
Eu fabrico lenha
furtada no pasto.
Que fabricas tu?
Gaiola de arame.
Que fabricas tu?
Fabrico mundéu.
Que fabricas tu?
Bola envenenada
de matar cachorro.
Que fabricas tu?
Faço pau de fogo.
Que fabricas tu?
Facão e punhal
de sangrar capado.
Que fabricas tu?
Caixão de defunto.
Que fabricas tu?
Fabrico defunto
na dobra do morro.
Que fabricas tu?
Não fabrico. Assisto
às fabricações.
exata informativa santificada
regulava o tempo, as colheitas,
os casamentos e até a hora de morrer,
o mundo era mais inteligível,
pairava certa graça no viver.
Hoje quem é que pode?
a boca da mina
a boca desdentada da mina de ouro
onde a lagartixa herdeira única
de nossos maiores
grava em risco rápido
no frio, na erva seca, no cascalho
o epítome-epílogo
da Grandeza.
de poder a poder.
No flanco, a Matriz,
de poder a poder.
Ter vista para a serra,
de poder a poder.
Sacadas e sacadas
comandando a paisagem.
Há de ter dez quartos
de portas sempre abertas
ao olho e pisar do chefe.
Areia fina lavada
na sala de visitas.
Alcova no fundo
sufocando o segredo
de cartas e baús
enferrujados.
Terá um pátio
quase espanhol vazio
pedrento
fotografando o silêncio
do sol sobre a laje,
da família sobre o tempo.
Forno estufado
fogão de muita fumaça
e renda de picumã nos barrotes.
Galinheiro comprido
à sombra de muro úmido.
Quintal erguido
em rampa suave, flores
convertidas em hortaliça
e chão ofertado ao corpo
que adore conviver
com formigas, desenterrar minhocas,
ler revista e nuvem.
Quintal terminando
em pasto infinito
onde um cavalo espere
o dia seguinte
e o bambual receba
telex do vento.
Há de ter tudo isso
mais o quarto de lenha
mais o quarto de arreios
mais a estrebaria
para o chefe apear e montar
na maior comodidade.
Há de ser por fora azul 1911.
Do contrário não é casa.
onde não há comerciante.
Há trastes partidos na loja
para não serem consertados.
Tamborete, marquesa, catre
aqui jogados em outro século,
esquecidos de humano corpo.
Selins, caçambas, embornais,
cangalhas
de uma tropa que não trilha mais
nenhuma estrada do Rio Doce.
A perna de arame do avô
baleado na eleição da Câmara.
E uma ocarina sem Pastor Fido
que à aranha não interessa tocar,
enorme aranha negra, proprietária
da loja fechada.
É teatral a escada de dois lances
entre a rua e os Andrades.
Armada para ópera? ou ponte
para marcar isolamento?
Bater à porta da rua, tanto vale
gritar do Amazonas
a um homem que passeia na Moldávia.
Carece entrar, subir a escada
com fortes pés batendo as fortes tábuas.
— Que cavalo escoiceia desse jeito?
pergunta meu pai no entressono.
Meu Deus: é o doutor juiz de direito!
a sala de visitas
espera longamente
visitas.
O sofá recusa
traseiros vulgares.
As escarradeiras
querem cuspe fino.
Ai, espelho nobre,
não miras qualquer.
Assim tão selada,
cheirando a santuário,
por que me negas, sala,
teu luxo?
Por favor, visitas,
vinde, vinde rápido
pra que eu também visite
a sala de visitas!
que desafiava os Coroados
e desafia os caçadores de anta nas matas do Carmo.
Vi o tapir estirado na sala, reduzido a tapete,
montei o tapir, na sela com enfeites de prata.
Que sei do tapir
senão sua derrota?
preto
o vidro de óleo de rícino
a caixinha de cápsulas
o copo facetado e
a colher inclinada.
Sobre o escaparate
o relógio de algibeira
o bentinho vermelho
e o terço da aflição
a chama
da vela de espermacete vigiando
no castiçal de prata.
Dentro do escaparate
o ágate expectante do penico.
Em volta do escaparate
a negra cólica da noite. Estou morrendo.
convoca os eflúvios da noite.
Vem o frio nevoso
da serra.
Vêm os perfumes brandos
do mato dormindo.
Vem o gosto delicado
da brisa.
E pousam na água.
Horta dos repolhos, horta do jiló,
horta da leitura, horta do pecado,
horta da evasão, horta do remorso,
horta do caramujo e do sapo e do caco
de tigela de cor guardado por lembrança,
horta de deitar no chão e possuir a terra,
e de possuir o céu, quando a terra me cansa.
Este pé de café, um só, na tarde fina,
e a sombra que ele faz, uma sombra menina
entre pingos vermelhos.
Sentado, vejo o mundo
abrir e reabrir o seu leque de imagens.
Que riqueza, viver no tempo e fora dele.
Eis desce lentamente o tronco e me contempla,
a embeber-se no meu e no sonho geral,
extasiada escultura, uma cobra-coral.
A casa foi vendida com todas as lembranças
todos os móveis todos os pesadelos
todos os pecados cometidos ou em via de cometer
a casa foi vendida com seu bater de portas
com seu vento encanado sua vista do mundo
seus imponderáveis
por vinte, vinte contos.
Onças, veados, capivaras, pacas, tamanduás da corografia do Padre Ângelo de 1881, cutias, quatis, raposas, preguiças, papa-méis, onde estais, que vos escondeis?
Mutuns, jacus, jacutingas, siriemas, araras, papagaios, periquitos, tuins, que não vejo nem ouço, para onde voastes que vos dispersastes?
Inhapins, gaturamos, papa-arrozes, curiós, pintassilgos de silva amena, onde tanto se oculta vosso canto, e eu aqui sem acalanto?
Vinde feras e vinde pássaros, restaurar em sua terra este habitante sem raízes,
que busca no vazio sem vaso os comprovantes de sua essência rupestre.
uma aragem de negras
derrubadas na vargem.
Venta do Cutucum
um calor de sovacos
e ancas abrasadas.
A cama é a terra toda
e o amor um espetáculo
oferecido às vacas
que não olham e pastam.
A carne sobre farpas,
pedrinhas e formigas,
dói que dói e não sente,
na urgência de cumprir
o estatuto do corpo.
E todo o Cutucum
é corpo preto e branco
enlaçado em si mesmo
e chupando, e chupado.
vem cedo para a cidade
vagamente assistida pelo leiteiro.
Para à porta dos fregueses
sem necessidade de palavra
ou de chicote.
Aos pobres serve de relógio.
Só não entrega ela mesma a cada um o seu litro de leite
para não desmoralizar o leiteiro.
Sua cor é sem cor.
Seu andar, o andar de todas as mulas de Minas.
Não tem idade — vem de sempre e de antes —
nem nome: é a mulinha do leite.
É o leite, cumprindo ordem do pasto.
I
Bater até que ela adote
a cria da vaca morta
como sua cria morta.
Batebate na vaca, bate.
Bota couro sobre couro
na ilusão de cheiro-pelo.
Se não vale,
bate na recusa, bate
naquilo que te rebate.
No desencontro da vaca
e do bezerro e das mortes
enlaçáveis
bate, debate, combate.
Em ti mesmo estás batendo
o deus que não vence o boi.
II
Não queres perder a cria,
é justo, é justo.
Não queres ver desfalcado
teu difícil gado suado.
E amas em cada bezerro
o boi eterno
na eterna pastagem, sangue
de teu viver.
E bates desesperado
porque a morte não deserta
o curral sujo.
A morte não te obedece
nem a teu amor de dono.
Não tem a morte piedade
de bezerro, a morte é leite
censurado.
Estás batendo na morte
com chicote apaixonado.
O criador ama a cria
como se fosse seu filho.
Aos filhos que tu perdeste
soma-se
o bezerro já morto junto ao ubre.
Estes cavalos fazem parte da família
e têm orgulho disto.
Não podem ser vendidos nem trocados.
Não podem ser montados por qualquer.
Devem morrer de velhos, campo largo.
Cada um de nós tem seu cavalo e há de cuidá-lo
com finura e respeito.
É manso para o dono e mais ninguém.
Meu cavalo me sabe seu irmão,
seu rei e seu menino.
Por que, no vão estreito
(por baixo de seu pescoço eis que eu passava)
os duros dentes crava
em minhas costas, grava este protesto?
Coro fazendeiro:
O cavalo mordeu o menino?
Por acaso o menino ainda mama?
Vamos rir, vamos rir do cretino,
e se chora, que chore na cama.
de modo diferente.
A sombra vem nos cascos,
no mugido da vaca
separada da cria.
O gado é que anoitece
e na luz que a vidraça
da casa fazendeira
derrama no curral
surge multiplicada
sua estátua de sal,
escultura da noite.
Os chifres delimitam
o sono privativo
de cada rês e tecem
de curva em curva a ilha
do sono universal.
No gado é que dormimos
e nele que acordamos.
Amanhece na roça
de modo diferente.
A luz chega no leite,
momo esguicho das tetas
e o dia é um pasto azul
que o gado reconquista.
O cavalo sabe todos os caminhos,
o cavaleiro não.
A trompa
ecoa no azul longe
e no peito do viajante perdido.
Afinal os homens se encontram,
ninguém na terra é sozinho.
Caçadores chegam em festa
barbas faíscam ao sol
entre veados mortos
e ladridos.
O braço aponta o rumo
o braço goza a turbação.
Oi neto de boiadeiros
oi filho de fazendeiros
que nem sabes teus carreiros!
Que mais sabes?
Foge o tropel da trompa na poeira.
Tudo na terra é sozinho.
com engenhos de socar de lavras lavras e mais lavras
e sesmarias
de bestas e vacas e novilhas
de terras de semeadura
de café em cereja (quantos alqueires?)
de prata em obras (quantas oitavas?)
de escravos, de escravas e de crias
de ações da Companhia de Navegação do Alto Paraguai
da aurifúlgida comenda no baú
enterrado no poço da memória
restou, talvez? este pigarro.
do Rio de Janeiro:
seu envelope azul
anuncia dinheiro
que um vitoriano
o dr. João Ribeiro
guarda para meu pai.
Seu piso de ladrilho
pisado por viúvas
sagrados senadores
e quantos possuírem
apólices debêntures
valores in aeternum
é sólido sem brilho.
Na incerteza de tudo
só é certo em janeiro
colher o dividendo
flor de longo trabalho
na pedrosa fazenda
de gadinho leiteiro
e se o país empenha
sua alma aos Rothschilds
nanja o velho mineiro
de ferro cauteloso
que tem seu mealheiro
no Banco Mercantil
todo modéstia e força
do Rio de Janeiro
o banco que é bem bom
o de Santos Dumont
e Pereira Carneiro.
Sua biografia está em duas linhas paroquiais
e já surge Lincoln
chamado a viver 3 meses e 23 dias.
Antônio resiste
1 ano, 5 meses, 3 dias.
João de Deus: 2 anos, 9 dias.
Vem Sílvio: 4 meses e 3 dias.
E vem Olavo: 1 ano e 17.
Geraldo vive uma eternidade: 3 anos, 5 dias.
Flávia não vai além de 27.
É tempo de parar
e chorar.
Os outros seis, que deus os vai poupando,
acenando que esperem — para quê?
O noivo desmanchou o casamento.
Que será da noiva — toma hábito
ou se consagra à renda de bilro para sempre?
Tranca-se ao jeito das viúvas trágicas.
O noivo fica noivo novamente,
de outra moça, em outra rua.
A noiva antiga que dirá
em seu quartinho negro, à hora em que...?
À hora em que
passar a pé
o noivo com
seu cortejo, braço dado a braço dado,
rumo da noiva nova,
diz-que da antiga casa de noivado
a água descerá, em punição.
Lá vai o cortejo
todo ressabiado,
temo noivo
temo novo
preto de medo,
vestido novo
branco de medo,
olho de medo
no céu da casa.
Todas as janelas secamente fechadas,
sequer uma lágrima
pinga na lapela do noivo.
e todas as rimas
Rosa
e os perfumes todos
Rosa
no florindo espelho
Rosa
na brancura branca
Rosa
no carmim da hora
Rosa
no brinco e pulseira
Rosa
no deslumbramento
Rosa
no distanciamento
Rosa
no que não foi escrito
Rosa
no que deixou de ser dito
Rosa
pétala a pétala
despetalirosada
A mão de meu irmão desenha um jardim
e ele surge da pedra. Há uma estrela no pátio.
Uma estrela de rosa e de gerânio.
Mas seu perfume não me encanta a mim.
O que respiro é a glória de meu mano.
era uma estória maria
era uma nuvem maria
era uma graça maria
era um bocado maria
era um mar de amor maria
era uma vez era um dia
maria
que há pouco brincava no quarto
sem qualquer signo na testa?
Há pouco brincava no quarto.
Foi só tempo de arder em febre
e de o doutor lhe receitar
um preparado que não havia.
O preparado que não havia.
A longa espera da encomenda
pelo correio, e quando veio
em lombo de burro, no chouto,
a morte beijara o menino.
Sá Maria diz que é o destino.
Carlos Conceição
Carlos Laje
Carlos Alvarenga
Carlos Freitas
Carlos Ataíde
Carlos Henriques
Carlos Silveira
Carlos Carvalho
Carlos Meneses
Carlos Godói
Carlos Guimarães
Carlos Teixeira
Carlos Moreira
Carlos Paula
Carlos Monteiro
Carlos Chassim
Carlos Drummond
Carlos Andrade
Carlos apenas
Carlos demais
lá no quarto de guardados
como quem foge do Cão
sem perceber que o trazias
desde o primeiro vagido
oculto em teu coração,
e por onde quer que fosses,
julgando que te guiavas,
era dele a direção,
e tudo que amas, iluso
de uma ilusória opção,
é ele que te sugere,
te comanda, sorrateiro,
com seu veneno e ferrão,
de tal sorte que, mordido,
e mordente, na aflição,
de nada valeu, confessa,
fugires de escorpião.
no timbre espanhol de Andrade
em vermelho e ouro decretam
a guerra dentro de teu corpo
sem vitória de qualquer lado.
Ao ataque de duas línguas
bífidas, todo te contrais
e na dupla, ardente picada,
a alegria te invade ao veres
sobre a pele de teu destino
que uma pulseira inquebrantável
surge do abraço viperino.
não de poder ou glória
mas de soltar a coisa
oculta no seu peito
escreve no caderno
e vagamente conta
à maneira de sonho
sem sentido nem forma
aquilo que não sabe.
Ficou na folha a mancha
do tinteiro entornado,
mas tão esmaecida
que nem mancha o papel.
Quem decifra por baixo
a letra do menino,
agora que o homem sabe
dizer o que não mais
se oculta no seu peito?
Chego tarde, o lampião de querosene está de pavio apagado.
Subir direto à cozinha e embalar no colo da preta velha a consciência pesada.
Travando o caminho em breu, a coisa imóvel na escada.
É ela! pressinto. Veio esperar-me no degrau do meio, cúmplice e camarada.
Acaricio-lhe o pescoço, que tilinta de medalhas bentas, e o som familiar soa diverso, abafado.
Sá Maria! chamo baixinho, como no escuro se chama. Dá um jeito deu não ser castigado.
Não secunda. Apalpo as carnes murchas, doces, de uma doçura cansada.
Se está ali por minha causa, por que não me liga nem nada?
Sacudo, sacudo em vão. Uma notícia me corta, de muito longe soprada.
É o Diabo postado em pé no negrume da escada.
Ele, nenhum outro sabe tão bem se disfarçar para ferir a alma enganada.
Subo correndo os degraus que sobem em mim que me precipito na copa: água! água! secura desesperada.
A talha fria me acode, já posso ir à cozinha, onde, imperialmente sentada,
Sá Maria cachimbando desde a eternidade me espera. — Que Diabo mais parecido contigo acabei de encontrar na escada!
Ela cospe no borralho — Cruiz, credo — e na fumaça do cachimbo a do Diabo vai sumindo.
Cafas-leão é terrível. Come um boi
no almoço, uma boiada no jantar.
Seu arroto fulmina; sua bota
esmaga distraídos no caminho.
Ai de quem
bole com ele e quem não bole.
Cafas, o mais-que-tudo, o gigantão...
Meu pai conta-lhe os feitos e estremeço
e rio.
Meu pai me ensina o medo e a rir do medo.
Quando Robinson Crusoé deixou a ilha,
que tristeza para o leitor do Tico-Tico.
Era sublime viver para sempre com ele e com Sexta-Feira,
na exemplar, na florida solidão,
sem nenhum dos dois saber que eu estava aqui.
Largaram-me entre marinheiros-colonos,
sozinho na ilha povoada,
mais sozinho que Robinson, com lágrimas
desbotando a cor das gravuras do Tico-Tico.
em rabo de gato?
Não importa: este
há de entrar, exato.
Que anel mais estranho,
ornato insensato,
se tinge de sangue
no rabo do gato.
Unha, presa, fúria,
felino aparato,
nada pode contra
a mão e seu ato.
Foge o bicho, tonto?
Carretel, no mato,
nunca mais que sai
de rabo de gato.
Não, não foge: esconde-se
na cova do rato.
Outra mão, piedosa,
cure, salve o gato,
que esta sabe apenas
torturar exato.
coisa que só acontece
uma vez em cada século.
Por que, no século 20,
logo a este acontecer?
naquela rua?
Que sombração no dia claro
espaventa esse cavalo?
Que diabo invisível faz cócega
em suas ventas, no vento?
Ferraduras faíscam forjas
no galope desenfreado
e pelas portas das vendas
corre um oh de susto gozado.
De repente estaca o baio
em frente à casa costumeira,
atirando à calçada vil
o bagaço de cavaleiro.
Num relâmpago
Hermengarda, de heril semblante,
assoma ao rendilhado balcão
e contempla
— mau uso de belos olhos —
minha total humilhação.
DESCOBERTA
Cadete grava para a Casa Édison, Rio de Janeiro.
O reizinho de Portugal retira-se para a Inglaterra.
O cometa já não viaja para Oliveira Vale & Cia.,
agora ocupa o céu inteiro na noite de 19 de março.
O Ministro da Guerra vira Presidente,
vasos de guerra bombardeiam a Capital,
marinheiros degolam almirantes,
o mundo vai acabar
mas eu sigo a pé para a aula de Mestre Zeca e descubro a letra A, rainha das letras.
que o beijo não a alcançava,
o pescoço não a alcançava,
nem mesmo a voz a alcançava.
Eram quilômetros de silêncio.
Luzia na janela do sobradão.
não se ouve uma explosão
sequer nem mesmo o grito
do soldado partido
em dois no campo raso.
Nenhum tanque perdido
ou avião de caça
rente ao Poço da Penha
por um momento passa.
Vem tudo no jornal
ilustrado longínquo.
O mundo finaliza
na divisa do Carmo
ao Norte
ao Sul em Santa Bárbara.
Reparo: o que habitamos
território encravado
não é o mundo, é o branco.
Um branco povoado
como se mundo fosse.
Bem cedo se vestiu
Sinhá Americano
e chega de mantilha
à missa de 6 horas.
Nhonhô Bilico serve
água e alpiste aos canários.
Já desce Minervino
ao cartório. Amarílio
deixa de lado o Morse
e burila sonetos.
Resmunga Romãozinho
a limpar as vidraças
gaguejado vissungo.
Abre Quinca Custódio
sua coletoria.
Ouço zumbir a mosca
imóvel esmeralda
sobre o pé de camélia.
Ouço portas rangerem
como rangem as portas
sem medo de invasão.
Pacapá-pacapá
o cavaleiro célere
regressa a Pau de Angu
levando na garupa
duas sacas de sal
quatro maços de fósforos.
A vida é sempre igual
a si mesma a si sempre
mesmo quando o correio
traz na mala amarela
esse enxofre de guerra estranha
guerra estranha que não muda o lugar
de uma besta de carga
dormindo entre cem bestas
no Rancho do Monteiro;
que não altera o gosto
da água pedida à fonte
para dormir na talha
uma espera de sede;
que não suspende a aula
de misteriaritmética
e nem a procissão
em seu eterno giro
na rua principal
tão lerdo a ponto de
tornar abominável
a própria eternidade.
Entretanto essa guerra
invisível assética
assalta pelas fotos
e títulos vermelhos.
No escuro me desvenda
seu maligno diadema
de fogos invectivas
e cava uma trincheira
à beira de meu catre.
Provoca-me
suspende-me em silêncio
por sobre a Mantiqueira
e diz-me dura: “Olha.
Olha longe e decide.”
Serei fraco iletrado
pálido mineirinho
o juiz da contenda?
Tenho numa balança
de sopesar os ódios
e de optar por um deles?
O nulo entendimento
cede à vertiginosa
tentação de escolher.
Escolhendo me isolo,
um somente a sentir
no oco paroquial
o peso desta guerra
universal e minha.
Um só? Engano. Somos
dois terríveis arcanjos
a passear a chama
de nossas durindanas.
O moço postalista
Fernandinho irradia
o seu furor teutônico
ao meu entrelaçado.
Um varão, um menino
unidos pela causa
mas que causa? em que campo?
a causa de Hohenzollern
na agência do correio
ou o combate ideal
entre mim mesmo e o mal?
E derrota e vitória
Flandres Verdun Champagne
enervante compasso
de espera se articula
no sem fim dessa guerra.
De tanto esperar tanto
navios brasileiros
afundam
sob o tiro solerte
de nossos submarinos.
Estremece a consciência
cortada de remorsos.
Isso não, Fernandinho.
Já não posso mais ser
o exato germanófilo.
Fernandinho me encara
com silente desprezo
enquanto adiro ao velho
sentimento de pátria.
Pátria, morrer por ti
ou pelo menos te
ofertar este ramo
de palavras ardentes.
Vou à rua, peroro
com voz de calça curta
ordeno ao município
que marche resoluto
a combater os boches.
A meus olhos esfuma-se
o imaginário limite
do bem e da justiça
que a palavra traçara
e paixão e interesse
entre cercas de arame
farpado se entrecruzam
tecendo o labirinto
sinistro a percorrer
na incerteza da história.
Nunca mais reaprendo
o que é a verdade.
calçar botina apertada
ir à missa, que preguiça.
A manhã imensa escurecendo
no banco de igreja
duro ajoelhar
imunda reflexão dos mesmos pecados
de sempre.
Manhã que prometia caramujos
músicos
mágicos
maduros sabores
de tato, barco de leituras
secretas sereias...
apodrecida.
Não vai? Pois não vai à missa?
Ele precisa é de couro.
Ó Coronel, vem bater,
vem ensinar a viver
a exata forma de vida.
No rosto não!
Ah, no rosto não!
Que mão se ergue em defesa
da sagrada parte do ser?
Vai reagir, tem coragem
de atacar o pátrio poder?
Nunca se viu coisa igual
no mundo, na Rua Municipal.
— Parricida! Parricida!
alguém exclama entre os dois.
Abaixa-se a mão erguida
e fica o nome no ar.
Por que se inventam palavras
que furam como punhal?
Parricida! Parricida!
Com essa te vais matar
por todo o resto da vida.
Volto a subir a Rua de Santana.
De novo peço a Ninita Castilho
a Careta com versos de Bilac.
É toda musgo a tarde itabirana.
Passando pela Ponte, Luís Camilo
(o velho) vejo em seu laboratório-
-oficina, de mágico sardônico.
Na Penha, o ribeirão fala tranquilo
que Joana lava roupa desde o Império
e não se alforriou desse regime
por mais que o anil alveje a nossa vida.
Ô de casa!... Que casa? Que menino?
Quando foi, se é que foi — era submersa
que me torna, de velho, pequenino?
A puta da cidade. A única.
A fornecedora.
Na Rua de Baixo
onde é proibido passar.
Onde o ar é vidro ardendo
e labaredas torram a língua
de quem disser: Eu quero
a puta
quero a puta quero a puta.
Ela arreganha dentes largos
de longe. Na mata do cabelo
se abre toda, chupante
boca de mina amanteigada
quente. A puta quente.
É preciso crescer
esta noite a noite inteira sem parar
de crescer e querer
a puta que não sabe
o gosto do desejo do menino
o gosto menino
que nem o menino
sabe, e quer saber, querendo a puta.
O País da Cor é liquido e revela-se
na anilina dos vasos de farmácia.
Basta olhar, e flutuo sobre o verde
não verde-mata, o verde-além-do-verde.
E o azul é uma enseada na redoma.
Quisera nascer lá, estou nascendo.
Varo a laguna de ouro do amarelo.
A cor é o existente; o mais, falácia.
Na sombra da copa, as garrafas
escondem sua cintilação.
Esperam jantares de família
que nunca se realizarão.
A verde-clara, a rósea, a que refrange
todos os tons da transparência,
sem vinho que as anime,
calam o menor tinido de existência.
Cristais letárgicos, como as belas
nos bosques, e as joias nas malas,
antiquários ainda não nasceram
que virão um dia buscá-las.
Não na Loja das Flores, de João Rosa:
no parapeito da varanda aberta
às cartas do sereno, é que te vejo,
meu vaso em flor de seda,
meu agora só meu, que o tempo rói
o tempo,
nem anda na varanda mais ninguém
e o parapeito é vácuo neste peito,
meu cacto miniatura a florescer
nos olhos de uma antiga jardineira
que agora os tem fechados
e sem maio.
O cravo, a cravina, a violeta eram instrumentos de música
ou eram flores?
Na terra úmida filtrava-se
não sei que melodia de câmara
em múrmuro ostinato
e o jardim era uma sonata que não se sabia sonata.
passar ao branco pastel
de nata, doçura em prata,
e terminar no pudim?
Pois sim.
E o que boia na esmeralda
da compoteira:
molengos figos em calda,
e o que é cristal em laranja,
pêssego, cidra — vidrados?
A gula, faz tanto tempo,
cristalizada.
iluminou o mundo inteiro
até o fundo das almas.
Vida e inferno em relâmpago
se embolaram.
Depressa ao quarto! ao quarto escuro!
De joelhos diante da cama.
Santa Bárbara na parede, valei-nos!
Nunca mais pecaremos nunca mais
havemos de merecer este castigo
de elétrica justiça.
A Santa escuta os pecadores
e sobre a enxurrada no cascalho
íris em arco, céu clemente,
celebra-se o casamento da raposa.
e no Beco do Calvário
a nuvem de mau agouro
e o clarão extraordinário
vão gritando o fim do mundo
mal a vida começara
e o corpo, esse trem imundo
que em pecado se atolara,
não tem tempo de lavar-se
para o Dia do Juízo
nem de vestir o disfarce
que cause dó sob riso.
Nas lajes de ferro e medo
os pés correm desvairados
sentindo chegar tão cedo
a morte em seus véus queimados.
Fuge, fuge, itabirano,
que embora o raio te pegue
na porta de Emerenciano,
o Diabo não te carregue
antes que vejas teu pai
e lhe passes num olhar
o que da boca não sai
mas se conta sem falar.
A procissão corta
o passo.
São vultos encapuzados
são fantasmas alinhados
pesadelos esticados
fantoches tochas fachos
almas uivando
todos os antepassados
sem missa
presos
da cadeia em ruínas
soltos em bando
o assassino do Carmo
e sua faca relâmpago
enorme, sobre a igreja,
os anjinhos que vão sendo carregados
tão depressa que é um apostar corrida
de caixões brancos no escuro
da Rua do Matadouro
rumo ao Beco do Calvário
onde te espera o carrasco
e o Capeta com seu casco
de fogo ao pé do carrasco.
Se passava alguém na rua
sem lhe tirar o chapéu
Seu Inacinho lá do alto
de suas cãs e fenestra
murmurava desolado
— Este mundo está perdido!
Agora que ninguém porta
nem lembrança de chapéu
e nada mais tem sentido,
que sorte Seu Inacinho
já ter ido para o céu.
O Imperador Francisco José, dobrado a reveses
de guerra, de família, de toda sorte,
antes que a Áustria-Hungria se despedaçasse
no caos de 1914,
largou tudo, foi ser agente do correio
no município perdido de Minas
sob outro nome imperial: Fernando III.
Sem a trágica pinta dos Habsburgos
vira outro homem, entrega
as cartas com zombaria doce, diverte-se
falando de passarinhos e de pacas.
Só é reconhecível pelas suíças venerandas.
O vigário decreta a lei do domingo
válida por toda a semana:
— Dai a César o que é de César.
Zé Xanela afundado no banco
vem à tona d’água
ardente
acrescenta o parágrafo:
— Se não encontrar César, pode dar a Sá Cota Borges que é mãe dele.
A casa de Tatá é um silêncio perto da igreja.
Silêncio de lençóis engomados
para sua única pessoa.
A viuvez tão antiga que virou de nascença
derrama brancura em tudo.
O presépio de Tatá emerge de Belém como flor
cheirando a cânfora e alfazema.
Na ordem dos anjos e animais, a ordem estrita
de Deus.
O melhor da casa é a arca,
o melhor da arca, suspiros
feitos da brancura mesma de Tatá,
brancura surda.
Os chocolates em túnica de prata,
justa, recendem. A hortelã
das balas pincela um frio verdoendo
na boca.
Tudo vem de longe, de São Paulo,
para Seu Foscarini, distribuidor de delícias.
E um homem desses vai morrer de varíola?
A Idade Média enrola a cidade
em cobertor de pânico.
Sete dias se fecham as portas
se acendem velas
sem leite sem pão sem saúde pública
joelhos em terra exortam a sagrada ira
a poupar os que não são italianos e fundaram
este chão de Deus sem bexigas.
Pereça, coitado, Seu Foscarini,
mas as velhas famílias se salvem.
Levam Seu Foscarini para o lazareto
que não é lazareto, é um casebre desbeiçado
no campo onde a cobra pasta
vírgulas de tédio.
Nunca mais chocolates, licorinos
caramelos, magia de São Paulo?
A casa de Dr. Câmara é encantada.
No jardim cresce a árvore de moedas.
As pratinhas reluzem entre folhas.
O menino ergue o braço e fica rico
ao luar.
Dr. Câmara sorri sob os bigodes
de bom padrinho. Sente-se criador
de uma espécie botânica sem par.
A crença do menino agora é dele,
ao luar.
esse pouco de francês
que deu para ler Jarry.
Murilo, diabo na aula,
tinha gestos impossíveis,
que nem macaco na jaula.
Mestre Emílio, tão severo
não via no último banco
o aluno de moral zero.
Os verbos irregulares
saltavam do meu Halbout,
perdiam-se pelos ares.
Nunca mais os encontrei...
Talvez Brigitte Bardot
me ensinasse o que não sei.
e seu horror a pedir,
ao ver a Agência fechada,
Manduca diz, soberano:
“Meu tio, quer me emprestar
um selinho de cem réis?”
“Pois não, lhe empresto, sobrinho.”
A carta segue seu rumo,
passa um dia, um mês, um ano
e Manduca, muito ancho,
se gaba de não dever
nem um tostão a ninguém.
“Alto lá, sobrinho, então
eu não lhe emprestei um selo
justamente de tostão?
Se me pagar nesta hora,
prometo não desmenti-lo,
dispenso juro de mora,
mas você fica devendo
o preço desta lição.”
O poeta Astolfo Franklin, como o invejo:
tem tipografia em que ele mesmo
imprime seus poemas simbolistas
em tinta verde e violeta: Maio...
é seu jornal, e a letra rara orna seu nome
que tilinta na bruma, enquanto o resto
some.
e Rui Barbosa
lá vêm guerreando
pela montanha.
Olha a trovoada!
A pena, a espada,
qual perde, ganha?
E na sacada
o brado rouco,
o retintim,
a espora, a hora
do boletim.
Toda a cidade
se apaixonando.
Mas das mulheres
o voto, quando?
Menino vota
no faz de conta.
Ruísta, hermista,
sangue na crista!
Somos de Rui
os vexilários.
Já tudo rui
entre os contrários.
O formidando
som da vitória:
ao município
tamanha glória.
Doces projetos,
altos propósitos,
sonhos urbanos,
ideais humanos.
Rui vencedor.
Viva o Brasil
... de Hermes na posse.
Tosse? Bromil.
1
Chega a uma fazenda, apeia do cavalinho, ô de casa! pede que lhe sirvam leitão assado, e retira-se, qualquer que seja a resposta.
2
Diz: “Vou para o Japão” e tranca-se no quarto, só abrindo para que lhe levem alimento e bacia de banho, e retirem os excretos. No fim de seis meses, regressa da viagem.
3
Cola duas asas de fabricação doméstica nas costas e projeta-se do sobrado, na certeza-esperança de voo. Todas as costelas partidas.
4
Apaixona-se pela moça, que casa com outro. Persegue o casal em todas as cidades para onde este se mude. O marido, desesperado, atira nele, pela janela. No outro lado da rua, de outra janela, dá uma gargalhada e desaparece: a bala acerta no boneco que o protege sempre.
5
Data suas cartas de certo lugar: “Meio do mundo, encontro das tropas, idas e vindas”. Ao terminar, saúda: “Dãodarãodão-dão” e assina: “Dr. Manuel Buzina, que não mata mas amofina”.
Macedônio botou o dinheiro na mesa, comprou a velha fazenda
do Ribeirão.
Nunca fui lá, mas sentia a terra pertinho de mim,
a água mineira borbulhando com vontade de ser rio,
refletindo a criação.
Macedônio é de mandar.
Seu primeiro ato de proprietário foi um decreto:
“Dagora em diante esta é a Fazenda da Palestina.”
Tudo se desmancha a essa voz:
a água corre para a Bíblia,
a terra foge no tempo-espaço,
a fazenda vira presépio.
Ausente de meu querido torrão natal, havia
muitos anos, quis rever os sítios amenos...
Revoltou-me não rever mais o encantador
e quase secular coqueiro do saudoso também Batistinha.
Do volante assinado “Um itabirano”,
remetido ao autor em 1955.
AQUELE ESBELTO COQUEIRO
de Batistinha.
Batistinha não nascera,
o coqueiro ali pousava
a esperá-lo.
Queria ser seu amigo.
Com lentidão de coqueiro
espiava ele crescer.
Amizade que não fala
mas se irradia por tudo
que é silêncio de verdura.
Até que alguém lhe decifra
esse bem-querer de palmas
e chama-lhe:
Coqueiro de Batistinha.
Batistinha vai à Europa,
vê Paris de antes da guerra,
vê o mundo
e a luz que o mundo tinha.
O coqueiro, mui sisudo,
jamais saiu a passeio.
Tomava conta da loja
de Batistinha.
Vem Batistinha contando
as maravilhas da terra.
Maravilha outra, a escutá-lo,
o coqueiro
era coqueiro-viajante
nos passos de Batistinha.
O dia se repetindo
dez mil dias, Batistinha
tem esse amigo a seu lado.
Já se finou Batistinha
com tudo que tinha visto
em giros de mocidade.
Sua loja está fechada.
E resta ao coqueiro? Nada.
De manhã cedo, pois
cedo começa o rodar mineiro,
passando por lá não vejo
nem retrato de coqueiro.
A Prefeitura o cortou?
Ou o raio o siderou,
o caterpilar levou?
No perguntar-se geral,
sabe menos cada qual
do que saberia um coco.
Tão simples,
e ninguém viu:
sem razão de estar ali,
privado de Batistinha,
o seu coqueiro
sumiu.
Meu santeiro anarquista na varanda
da casinha do Bongue, maquinando
revoluções ao tempo em que modelas
o Menino Jesus, a Santa Virgem
e burrinhos de todas as lapinhas;
aventureiro em roupa de operário
que me levas à Ponte dos Suspiros
e ao Pátio dos Milagres, no farrancho
de Michel Zevaco, dos Pardaillan,
Buridan, Triboulet (e de Nick Carter),
ouço-te a rouca voz chamar Eurico
de nazarena barba caprichada
e retê-lo a posar horas e horas
para a imagem de Cristo em que se afirme
tua ânsia artesanal de perdurar.
Perdura, no frontispício do Teatro,
a águia que lá fixaste sobre o globo
azul da fama, no total desmaio
do teu, do nosso tempo itabirano?
Quem sabe de teus santos e teus bichos,
de tua capa e espada imaginária,
quando vagões e caminhões desterram
mais que nosso minério, nossa alma?
Eu menino, tu homem: uma aliança
faz-se, no tempo, à custa de gravuras
de semanais fascículos românticos...
I
O portão do colégio abre-se em domingo.
Toda a cidade é tua e verde.
O Parque o barco o banco o leque
do pavão em grito e cor fremindo o lago
sem que as estruturas de silêncio
desmoronem.
Quem passa? Nada passa. Aqui o tempo
aqui o ramo aqui o caracol
em ar benigno se entrelaçam, duram
eternamente a vez de contemplá-los.
Voltar? Para onde e que, se existe
onde além deste? se em vão as matemáticas,
as químicas, preceitos...
És o Parque, total.
Nem desejas ser planta, estás embaixo
de toda planta, simples terra.
Por que se destaca da palmeira
o pederasta
e faz o gesto lúbrico, sorri?
II
A natureza, tapeçaria
onde o verde silente se reparte
entre caminhos que não levam a nenhum lugar.
São caminhos parados. De propósito.
O lago, tranquilidade oferecida.
A pontezinha rústica de cimento
não é feita para ninguém passar
de um ponto a outro.
A pontezinha sou eu ficar imóvel
por cima da água imóvel
na tapeçaria imóvel para sempre.
O barquinho da margem devia ser queimado.
no porão a mulata
a pausa no velório
o beijo no escurinho
a pressa de engatar
o sentido da morte
na cor de teu desejo
que clareia o porão.
O morto nem ligando.
o fogo
no bloco da vida
a fenda
na blindagem do medo
o fato.
Íntimos badalos balem
vergonha tristeza asco
blen blen blen
orragia.
vazio. Quem roubou?
Eu, talvez,
que me acuso de todos os pecados
antes que alguém me acuse e me condene.
Não fui eu ou fui eu?
Quem sabe mais de mim do que meu dentro?
E meu dentro se cala
omite seu obscuro julgamento
deixando-me na dúvida
dos crimes praticados por meu fora.
não foi, não foi perdido para mim.
Muito aprendi contigo: a vida é um verso
sem sentido talvez, mas com que música!