No Hotel dos Viajantes se hospeda
incógnito.
Lá não é ele, é um mais-tarde
sem direito de usar a semelhança.
Não sai para rever, sai para ver
o tempo futuro
que secou as esponjeiras
e ergueu pirâmides de ferro em pó
onde uma serra, um clã, um menino
literalmente desapareceram
e surgem equipamentos eletrônicos.
Está filmando
seu depois.
O perfil da pedra
sem eco.
Os sobrados sem linguagem.
O pensamento descarnado.
A nova humanidade deslizando
isenta de raízes.
Entre códigos vindouros
a nebulosa de letras
indecifráveis nas escolas:
seu nome familiar
é um chiar de rato
sem paiol
na nitidez do cenário
solunar.
Tudo registra em preto e branco
afasta o adjetivo da cor
a cançoneta da memória
o enternecimento disponível na maleta.
A câmara
olha muito olha mais
e capta
a inexistência abismal
definitiva/infinita.
Estou nascendo em Vila Nova da Rainha,
cresço no rasto dos primeiros exploradores,
com esta capela por cima, esta mina por baixo.
Os liberais me empurram pra frente,
os conservadores me dão um tranco,
se é que todos não me atrapalham.
E as alianças de família,
o monsenhor, a Câmara, os seleiros,
os bezerros mugindo no clariscuro, a bota,
o chão vendido, o laço, a louça azul chinesa,
o leite das crioulas escorrendo no terreiro,
a procissão de fatos repassando, calcando
minha barriga retardatária,
as escrituras da consciência, o pilão
de pilar lembranças. Não é fácil
nascer e aguentar as consequências
vindas de muito longe preparadas
em caixote de ferro e letra grande.
Nascer de novo? Tudo foi previsto
e proibido
no Antigo Testamento do Brasil.
Foi Saint-Hilaire, o sábio-amante
da natureza, o vê-tudo,
o anotador, quem disse
(não os mentirosos da cidade):
Aqui até os relâmpagos são diferentes
dos que fulguram na Europa.
Formam no horizonte
imensa claridade.
O ar é todo prata
e uma luz mais faiscante
no centro se alevanta,
foguete esplendoroso
que no clarão floresce
e no clarão perece.
Era noite, e Saint-Hilaire
parou na serra o seu cavalo,
sob a chuva e a bofetada do trovão,
europicamente
deslumbrado.
(segundo Varnhagen, von Ihering e Colbaccini)
Vou te contar uma anta, meu irmão.
Mede dois metros bem medidos
e pesa doze arrobas.
Há um tremor indeciso nas linhas
do pelo do filhote
que depois vai ficando bruno-pardo
para melhor se dissolver
no luscofúsculo da mata.
Orelhas móveis de cavalo
e força de elefante.
Estraçalha cachorros,
derruba caçador e árvores,
com estrondalhão
e deixa-se prender
no laço à flor do rio.
Senão,
capriche bem no tiro, meu irmão.
Mata-se e esfola-se
distribuindo mocotós como troféus.
A anta esquarteja-se
em seis pedaços, ritualmente:
dois quartos traseiros
(divididos em gordas cinco partes);
cabeça e espinhaço completo;
costelas;
pernas dianteiras;
carnes entre pernas traseiras;
parte anterior do peito.
No vale do Rio Doce a anta mergulha
em profundezas de gravura
antiga, desbotada.