SOBRADO DO BARÃO DE ALFIÉ

 

Este é o Sobrado.

Existam outros, mas não se chamem

o Sobrado, peremptoriamente.

 

A escada de duas subidas já define

sua importância: lembra um trono.

É casa de barão, entre plebeus.

 

Sob a cimalha vejo a estatueta

de louça lusitana, vejo os vasos

de azul-vaidade, contra o azul do céu.

 

As sacadas, onde pairam minhas primas

acima das procissões, jovens olímpicas

entre voo e terra.

 

Ó século glorioso 19,

reinante no Sobrado, onde a quadrilha

estronda as tábuas do soalho, mal sabendo

que outro tempo chegou para levar

na dança o que é sobrado e contradança.

 

 

PORTA DA RUA

 

Vive aberta a porta da casa,

ninguém entra para furtar.

Por que se fecharia a casa?

Quem que se lembra de furtar?

 

Pois se há vida na casa, a porta

há de estar, como a vida, aberta.

Só se fecha mesmo esta porta

para quedar, ao sonho, aberta.

 

 

OS TIOS E OS PRIMOS

 

Tios chegam de Joanésia,

trazem primos crescidos e de colo,

três cargueiros pejados de canastras

e alforjes.

Apeiam, tropel-raio, em nossa casa,

batalhão invasor.

 

Pisam duro, de botas,

batem portas-trovão a toda hora,

soltam gargalhadas colossais

e comem comem comem aquele peito

de galinha que é meu de antiga lei.

 

Uma prima bonita? Que me importa.

Se rouba minha cama, é inimiga,

e humilhado vou dormir no chão.

Arrebatado meu lugar na mesa,

profanadas gavetas-santuário

de figurinhas, selos e segredos,

escorraçado no meu reino,

odeio os monstros da família.

 

Uma semana inteira eles passeiam

os pés em minha paz. Serão eternos?

Contrai-se a casa enorme: vira ovo

de gema irada e clara de ciúme.

 

Eis que um dia

arreiam-se cavalos. As canastras

descem as escadas com ribombo.

Os tios volumosos,

os primos estrondeantes se despedem

num triturar de abraços, prometendo

voltar ano que vem. Ah, uma bomba

espanhola, que eu sei pelo jornal,

um breve terremoto

afunde cavaleiros e cavalos

na descida da serra...

Meu Deus, peço o absurdo?

Mas poupe aquela prima

bonita (eu sinto agora)

que deixou no lençol a dobra do seu corpo.

 

Regresso à minha cama, perturbado.

 

 

NOVA MODA

 

Areia

espalhada nas tábuas

do soalho é o maior requinte.

Há de ser branca

fininha

lavada peneirada.

O chão nevoso ringe

e todos se extasiam: Que lindeza.

É, mas andar descalço

já não dá aquele prazer de corpo livre

e à noite a cama é areia

a camisola, areia

o corpo, todo areia

e os sonhos, ah os sonhos são areia.

 

 

NOVO HORÁRIO

 

Rosa trouxe costumes elegantes

da Capital.

Já não se almoça às 9 da manhã

e não se janta às 4.

(O resto, o dia imenso, todo meu.)

Esse café do meio-dia quando sai?

Tudo é mais tarde, lento,

e há uma fome! uma fome!

 

Rosa trouxe a moda, com requintes

de enfeites e maneiras. Há um silêncio

de colégio francês no mastigar.

Certas comidas surgem transformadas,

muda o gosto,

muda a vida.

 

Azulou a divina liberdade.

 

 

MÚSICA

 

O monumento negro do piano

domina a sala de visitas.

É maior do que ela, na imponência

lustrosa de sua massa.

Nele habitam cascatas encadeadas

à espera da manhã.

Tão bom que não falasse.

Mas fala, fala. A casa é caixa

de ressonância. Os pratos vibram.

O ar é som, o cão reage,

trava luta renhida com Czerny

e perde.

O pobre do silêncio refugia-se

no bico do canário.

 

 

TRÊS COMPOTEIRAS

 

Quero três compoteiras

de três cores distintas

que sob o sol acendam

três fogueiras distintas.

 

Não é para pôr doce

em nenhuma das três.

Passou a hora de doce,

não a das compoteiras,

e quero todas três.

 

É para pôr o sol

em igual tempo e ângulo

nas cores diferentes.

É para ver o sol

lavrando no bisel

reflexos diferentes.

 

Mas onde as compoteiras?

Acaso se quebraram?

Não resta nem um caco

de cada uma? Os cacos

ainda me serviam

se fossem três, das três.

 

Outras quaisquer não servem

a minha experiência.

 

O sol é o sol de todos

mas os cristais são únicos,

os sons também são únicos

se bato em cada cor

uma pancada única.

 

Essas três compoteiras,

revejo-as alinhadas

tinindo retinindo

e varadas de sol

mesmo apagado o sol,

mesmo sem compoteiras,

mesmo sem mim a vê-las,

na hora toda sol

em que me fascinaram.

 

 

QUARTO DE ROUPA SUJA

 

Ao quarto de roupa suja

só vou se for obrigado.

No quarto de roupa suja

não há nada que fazer.

O quarto de roupa suja

não é quarto de brincar.

Em quarto de roupa suja

não tem graça me esconder.

O quarto de roupa suja

lembra sujeira de corpo.

Do quarto de roupa suja

não vou querer me lembrar.

No quarto de roupa suja

a roupa suja conversa.

O quarto de roupa suja

não tem fedor especial.

No quarto de roupa suja

cheira a ardido e nem é tanto

mas quarto de roupa suja

é o próprio cascão do sujo.

Do quarto de roupa suja

volto mais só e mais sujo.

No quarto de roupa suja

por que me querem prender?

 

 

QUARTO ESCURO

 

Por que este nome, ao sol?

Tudo escurece de súbito na casa. Estou sem olhos.

Aqui decerto guardam-se guardados

sem forma, sem sentido. É quarto feito

pensadamente para me intrigar.

O que nele se põe assume outra matéria

e nunca mais regressa ao que era antes.

Eu mesmo, se transponho

o umbral enigmático,

fico outro ser, de mim desconhecido.

 

Sou coisa inanimada, bicho preso

em jaula de esquecer, que se afastou

de movimento e fome. Esta pesada

cobertura de sombra nega o tato,

o olfato, o ouvido. Exalo-me. Enoiteço.

O quarto escuro em mim habita. Sou

o quarto escuro. Sem Lucarna.

Sem óculo. Os antigos

condenam-me a esta forma de castigo.

 

 

BANHO DE BACIA

 

No meio do quarto a piscina móvel

tem o tamanho do corpo sentado.

Água tá pelando! mas quem ouve o grito

deste menino condenado ao banho?

Grite à vontade.

 

Se não toma banho não vai passear.

E quem toma banho em calda de inferno?

Mentira dele, água tá morninha,

só meia chaleira, o resto é da bica.

 

Arrisco um pé, outro pé depois.

Vapor vaporeja no quarto fechado

ou no meu protesto.

A água se abre à faca do corpo

e pula, se entorna em ondas domésticas.

 

Em posição de Buda me ensaboo,

resignado me contemplo.

O mundo é estreito. Uma prisão de água

envolve o ser, uma prisão redonda.

Então me faço prisioneiro livre.

Livre de estar preso. Que ninguém me solte

deste círculo de água, na distância

de tudo mais. O quarto. O banho. O só.

O morno. O ensaboado. O toda-vida.

 

Podem reclamar,

podem arrombar

a porta. Não me entrego

ao dia e seu dever.

 

 

COZINHA

 

O burro e o lenheiro

caminham passo a passo no ofertório

mudo.

O burro, desferrado.

O lenheiro, descalço.

A lenha, outro silêncio.

 

A lenha, o lenheiro, o burro

queimam-se igualmente no fogão

desde que a vila é vila

e o mundo, mundo.

 

O burro, o lenheiro, a lenha

apagam-se, reacendem-se, letreiros

unos em solidão.

 

 

CONVERSA

 

Há sempre uma fazenda na conversa

bois pastando na sala de visitas

divisas disputadas, cercas a fazer

porcos a cevar

a bateção dos pastos

a pisadura da égua

de testa — e vejo o céu — tosta estrelada.

 

Há sempre

uma família na conversa.

A família é toda a história: primos

desde os primeiros degredados

filhos de Eva

até Quinquim Sô Lu Janjão Tatau

Nono Tavinho Ziza Zito

e tios, tios-avós, de tão barbado-brancos

tão seculares, que são árvores.

Seus passos arrastam folhas. Ninhos

na moita do bigode. Aqui presentes

avós há muito falecidos. Mas falecem

deveras os avós?

Alguém deste clã é bobo de morrer?

A conversa o restaura e faz eterno.

 

Há sempre uma fazenda, uma família

entreliçadas na conversa:

a mula & o muladeiro

o casamento, o cocho, a herança, o dote, a aguada

o poder, o brasão, o vasto isolamento

da terra, dos parentes sobre a terra.

 

 

OS GRANDES

 

E falam de negócio.

De escrituras demandas hipotecas

de apólices federais

de vacas paridas

de éguas barganhadas

de café tipo 4 e tipo 7.

 

Incessantemente falam de negócio.

Contos contos contos de réis saem das bocas

circulam pela sala em revoada,

forram as paredes, turvam o céu claro,

perturbando meu brinquedo de pedrinhas

que vale muito mais.

 

 

MEMÓRIA PRÉVIA

 

O menino pensativo

junto à água da Penha

mira o futuro

em que se refletirá na água da Penha

este instante imaturo.

 

Seu olhar parado é pleno

de coisas que passam

antes de passar

e ressuscitam

no tempo duplo

da exumação.

 

O que ele vê

vai existir na medida

em que nada existe de tocável

e por isto se chama

absoluto.

 

Viver é saudade

prévia.

 

 

VERBO SER

 

Que vai ser quando crescer? vivem perguntando em redor. Que é ser? É ter um corpo, um jeito, um nome? Tenho os três. E sou? Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito? Ou a gente só principia a ser quando cresce? É terrível, ser? Dói? É bom? É triste? Ser: pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas? Repito: ser, ser, ser. Er. R. Que vou ser quando crescer? Sou obrigado a? Posso escolher? Não dá para entender. Não vou ser. Não quero ser. Vou crescer assim mesmo. Sem ser. Esquecer.

 

 

MATAR

 

Aprendo muito cedo

a arte de matar.

A formiga se presta

a meu aprendizado.

Tão simples, triturá-la

no trêmulo caminho.

Agora duas. Três.

Milhares de formigas

morrendo, ressuscitam

para morrer de novo

no ofício a ser cumprido.

Intercepto o carreiro,

esmago o formigueiro,

instauro, deus, o pânico,

e sem fervor agrícola,

sem divertir-me, seco,

exercito o poder

de sumário extermínio,

até que a ferroada

na perna me revolta

contra o iníquo protesto

da que não quis morrer

ou cobra sua morte

ferindo a divindade.

A dor insuportável

faz-me esquecer o rito

da vingança devida,

já nem me acode o invento

de supermortes para

imolar ao infinito

imoladas formigas.

Qual outra pena, máxima,

poderia infligir-lhes,

se eu mesmo peno e pulo

nesse queimar danado?

Um deus infante chora

sua impotência. Chora

a traição da formiga

à sorte das formigas

traçada pelos deuses.

 

 

ASSALTO

 

O povo agitado das galinhas

foge à verificação anal

de ovos por botar.

A empinada púrpura do galo

protesta contra a invasão do território.

Bateria de gritos

clarim cacarejante musicando

a sombra úmida do poleiro

tapete de titica verde onde escorrega

plaft

o roubador de indez para gemada.

 

 

ATENTADO

 

O cachorro em convulsões rola escada abaixo.

Seu vômito verde

colore de morte os degraus.

Comeu bola.

Nunca se saberá quem matou.

O assassino invisível golpeia

a orgulhosa família desarmada.

 

 

TABULEIRO

 

Passa o tabuleiro de quitanda:

é pão de queijo é rosca é brevidade

é broa de fubá é bolo de feijão

é tudo que é gostoso e eu vou comprar

eu vou comer o dia inteiro a vida inteira

o sortimento deste tabuleiro.

 

Vem chegando perto. Alva toalha

cobre essas coisas todas que apetecem,

renda e bordado sobre a minha gula.

E como cheira a forno quente a branda

variedade de quitanda oculta!

Corro, suspendo o véu. Horror. Que dor.

 

Que vejo? Nada vejo. Fico

a olhar para o vazio descoberto.

Já sei. Antes de mim, Nhonhô Bilico

arrematou as amplas coleções

e vai comer o dia inteiro, a vida inteira

o sortimento deste tabuleiro.

 

 

FRUTA-FURTO

 

Atrás do grupo escolar ficam as jabuticabeiras.

Estudar, a gente estuda. Mas depois,

ei, pessoal; furtar jabuticaba.

 

Jabuticaba chupa-se no pé.

O furto exaure-se no ato de furtar.

Consciência mais leve do que asa

ao descer,

volto de mãos vazias para casa.

 

 

ANTOLOGIA

 

Guardo na boca os sabores

da gabiroba e do jambo,

cor e fragrância do mato,

colhidos no pé. Distintos.

Araticum, araçá,

ananás, bacupari,

jatobá... todos reunidos

congresso verde no mato,

e cada qual separado,

cada fruta, cada gosto

no sentimento composto

das frutas todas do mato

que levo na minha boca

tal qual me levasse o mato.

 

 

ACHADO

 

Aqui, talvez, o tesouro enterrado

há cem anos pelo guarda-mor.

Se tanto o guardou, foi para os trinetos,

principalmente este: o menor.

 

Cavo com faca de cozinha, cavo

até, no outro extremo, o Japão

e não encontro o saco de ouro

de que tenho a mor precisão

 

para galopar no lombo dos longes

fugindo a esta vidinha choca.

Mas só encontro, e rabeia, e foge

uma indignada minhoca.

 

 

QUINTA-FEIRA

 

Quinta-feira é dia

de rara folia.

Não tem aula, quinta,

não tem quadro-negro

tão deveras negro

com suas frações

endemoninhadas,

não tem fila, banco

de calar e ouvir.

Quinta-feira é bom,

é céu quinta-feira.

Só tem um defeito:

quinta-feira cedo

estender os dedos

para cortar unha,

corte de alicate

seco, navalhante.

Quê que tem a unha

crescer toda a vida?

Unha ficar preta

de tanto mexer

em terra e poeira?

Por que minha unha

tem de ser vigiada

e cada semana

passada em revista?

Assim eu crescesse

tão depressa como

a unha aparada:

semana que vem,

chega quinta-feira,

eu é que cortava

a unha dos outros

a fero alicate.

Corto mal, espirra

sangue? Pois espirre

no estalar da poda.

Ruindade dos outros

vira contra eles.

No mais, quinta-feira

é uma lagoa

de escutar sereia,

é uma cascata

de prender o sol,

é o mato virgem

de enfrentar leões

e de cativá-los.

Quinta-feira, viagem

ao país sem leis

de menino livre,

esperando sempre

uma quinta-feira

a chegar um dia.

Quinta-feira é dia

só de imaginar

essa quinta-feira.

 

 

RITO DOS SÁBADOS

 

Sábado é dia de conciliação.

 

O pobre bate à porta, é recebido

como o esperado da semana;

mendigo, não.

 

Vem recolher a moeda,

sua parte devida e reservada.

A parte do pobre é pobre

mas é sagrada.

 

Não há mendigos na cidade,

mãos estendidas pelas ruas,

famintos ares.

Há pobres fixos de cada rico,

visitas domiciliares.

 

Escalado para atendê-los,

miro remiro

esses trocados sobre a mesa.

Bem que me serviriam

para comprar sonhos urgentes

de sensual necessidade.

Mas se furto dinheiro ao pobre,

ao castigo imposto a meu corpo

junta-se

confuso castigo dentro.

 

Chegam os pobres um a um

com solitária nobreza

no tranquilo gesto dos sábados

que toma a forma de um direito

aureolado de altivez.

 

Um a um lhes vou passando

a minipercentagem da pobreza.

 

Sou o pobre distribuidor.

 

 

MARINHEIRO

 

A roupa de marinheiro

sem navio.

Roupa de fazer visita

sem direito de falar.

Roupa-missa de domingo,

convém não amarrotar.

Roupa que impede brinquedo

e não se pode sujar.

Marinheiro mais sem leme,

se ele nunca viu o mar

salvo em livro,

e vai navegando em seco

por essa via rochosa

com desejo de encontrar

quem inventou merda moda

de costurar esta âncora

no braço

e pendurar esta fita

no gorro.

Ah, se o pudesse pegar!

 

 

INICIAÇÃO LITERÁRIA

 

Leituras! Leituras!

Como quem diz: Navios... Sair pelo mundo

voando na capa vermelha de Júlio Verne.

 

Mas por que me deram para livro escolar

a Cultura dos Campos de Assis Brasil?

O mundo é só fosfatos — lotes de 25 hectares

— soja — fumo — alfafa — batata-doce — mandioca —

pastos de cria — pastos de engorda.

 

Se algum dia eu for rei, baixarei um decreto

condenando este Assis a ler a sua obra.

 

 

ASSINANTES

 

Somos os leitores do Tico-Tico.

Somos importantes, eu e Luís Camilo.

Cada um em sua rua.

Cada um com sua revista.

O que um sabe, o outro sabe.

Ninguém sabe mais do que sabemos.

É nossa propriedade Zé Macaco.

Jagunço vai latindo a nosso lado

e Kaximbown nos leva

convidados especiais ao Polo Norte.

Nossa importância dura até dezembro.

Temos assinaturas anuais.

 

 

PRIMEIRO JORNAL

 

Amarílio redige e ilustra com capricho

o jornal manuscrito: é conto, é poema, é cor,

que ele tira de onde? Incessante criador,

de si mesmo é que extrai esse mundo de coisas.

Nutro por Amarílio invejoso respeito.

Por mais que me coloque em transe literário

e force a mão e atice a chama de meu peito,

não consigo imitá-lo. Em lugar de escritor,

na confusão da ideia e do vocabulário,

sou apenas constante e humilhado leitor.

 

 

BIBLIOTECA VERDE

 

Papai, me compra a Biblioteca Internacional de Obras Célebres.

São só 24 volumes encadernados

em percalina verde.

Meu filho, é livro demais para uma criança.

Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo.

Quando crescer eu compro. Agora não.

Papai, me compra agora. É em percalina verde,

só 24 volumes. Compra, compra, compra.

Fica quieto, menino, eu vou comprar.

 

Rio de Janeiro? Aqui é o Coronel.

Me mande urgente sua Biblioteca

bem acondicionada, não quero defeito.

Se vier com arranhão recuso, já sabe:

quero devolução de meu dinheiro.

Está bem, Coronel, ordens são ordens.

Segue a Biblioteca pelo trem de ferro,

fino caixote de alumínio e pinho.

Termina o ramal, o burro de carga

vai levando tamanho universo.

 

Chega cheirando a papel novo, mata

de pinheiros toda verde. Sou

o mais rico menino destas redondezas.

(Orgulho, não; inveja de mim mesmo.)

Ninguém mais aqui possui a coleção

das Obras Célebres. Tenho de ler tudo.

Antes de ler, que bom passar a mão

no som da percalina, esse cristal

de fluida transparência: verde, verde.

Amanhã começo a ler. Agora não.

 

Agora quero ver figuras. Todas.

Templo de Tebas, Osíris, Medusa,

Apolo nu, Vênus nua... Nossa

Senhora, tem disso nos livros?

Depressa, as letras. Careço ler tudo.

A mãe se queixa: Não dorme este menino.

O irmão reclama: Apaga a luz, cretino!

Espermacete cai na cama, queima

a perna, o sono. Olha que eu tomo e rasgo

essa Biblioteca antes que pegue fogo

na casa. Vai dormir, menino, antes que eu perca

a paciência e te dê uma sova. Dorme,

filhinho meu, tão doido, tão fraquinho.

 

Mas leio, leio. Em filosofias

tropeço e caio, cavalgo de novo

meu verde livro, em cavalarias

me perco, medievo; em contos, poemas

me vejo viver. Como te devoro,

verde pastagem. Ou antes carruagem

de fugir de mim e me trazer de volta

a casa a qualquer hora num fechar

de páginas?

 

Tudo que sei é ela que me ensina.

O que saberei, o que não saberei

nunca,

está na Biblioteca em verde murmúrio

de flauta-percalina eternamente.

 

 

PRAZER FILATÉLICO

 

Colecione selos e viaje neles

por Luxemburgos, Índias, Quênia-Ugandas.

Com Pedr’Álvares Cabral e Wandenkolk,

aprenda História do Brasil. Colecione.

Mas sem dinheiro?

Devaste os envelopes da família.

Remexa nas gavetas. Há barbosas

efígies imperiais à sua espera.

Mortiças cartas guardam peças raras.

Tudo vasculhe. Um dia

arregalado à sua frente há de luzir

em arabescado fundo negro

o diamante, o sonho, a maravilha

chamada olho de boi

60.

 

Troque. Vá trocando. Passe a perna,

se possível. Senão, seja enganado

mas acrescente sua coleção

de postas magiares, moçambiques,

osterreiches, japões, e seu prestígio

há de aumentar: o baita

colecionador da rua principal.

E brigue, boca e braço,

ao lhe negarem esta condição.

Até que chegue o tédio de possuir,

a tentação do fósforo e do vento,

o gosto de perder a coleção

para outra vez, daqui a um mês,

recomeçar, humílimo, menor

colecionador da rua principal.

 

 

BEIJO-FLOR

 

O beijo é flor

no canteiro

ou desejo na boca?

Tanto beijo nascendo

e colhido

na calma do jardim

nenhum beijo beijado

(como beijar o beijo?)

na boca das meninas

e é lá que eles estão

suspensos

invisíveis.

 

 

INDAGAÇÃO

 

Como é o corpo?

Como é o corpo da mulher?

Onde começa: aqui no chão

ou na cabeleira, e vem descendo?

Como é a perna subindo,

e vai subindo até onde?

Vê-la num corisco é uma dor

no peito, a terra treme.

Diz-que na mulher tem partes lindas

e nunca se revelam. Maciezas

redondas. Como fazem

nuas, na bacia, se lavando,

para não se verem nuas nuas nuas?

Por que dentro do vestido muitos outros

vestidos e brancuras e engomados,

até onde? Quando é que já sem roupa

é ela mesma, só mulher?

E como que faz

quando que faz

se é que faz

o que fazemos todos porcamente?

 

 

AS PERNAS

 

Bato palmas. Na esperança

de ver as pernas no alto

da escada

as pernas sempre defesas

as sempre sonhadas pernas

as pernas, aparição

no sombrio alto da escada.

 

Torno a bater. Pá pá pá.

As mãos estalam, desejo

e turva oração: Meu Deus,

as pernas por que me dano!

 

Ressoam pela cidade

as palmas no corredor.

Nos quatro cantos já sabem

de minha ardência.

Já me condenam, me prendem

e nunca verei as pernas

sublimes no alto da escada.

 

Mas bato. Bato rebato.

Latindo mais do que as palmas

o cão no degrau primeiro

destroça minha ambição.

Volto amanhã. Bato tanto

que o velho atende. Resmunga

pigarro surdo confuso.

Torno a voltar. A bater.

O longo vestido longo

da velhíssima senhora

frufrulha no alto da escada.

 

Pá pá pá em quantos dias

de tantas doidas esperas.

Um dia

as palmas farão surgir

no celeste alto da escada

as pernas totais, as pernas

que a mente no descompasso

do coração nem ousara

tão lunas imaginar.

 

Um dia, mas quando? As palmas

batebatendo se esgarçam

em Minas.

 

 

LE VOYEUR

 

No úmido porão, terra batida,

lar de escorpiões,

procura-se a greta entre as tábuas

do soalho

por onde se surpreenda a florescência

do corpo das mulheres

na sombra de vestidos refolhados

que cobrem até os pés

a escultura cifrada.

 

Entro rastejante

dobro o corpo em dois

à procura da greta reveladora

de não sei que mistério radioso

ou sombrio

só a homens ofertado

em sigilo de quarto e noite alta.

 

Encontro, mina de ouro?

Contenho a respiração.

Dispara o coração

no fim de longa espera

ao rumor de saias lá em cima

ai de mim, que nunca se devassam

por mais que o desejo aguce a vista

e o sangue implore uma visão

de céu e terra encavalados.

 

Nada

nada

nada

senão a sola negra dos sapatos

tapando a greta do soalho.

 

Saio rastejante

olhos tortos

pescoço dolorido.

A triste polução foi adiada.

 

 

TENTATIVA

 

Uma negrinha não apetecível

é tudo quanto tenho a meu alcance

para provar o primeiro gosto

da primeira mulher.

 

Uma negrinha, sem cama

salvo a escassa grama

do quintal, sem fogo

além do que vai queimando

por dentro o menino inexperiente

de todo jogo.

 

Ai medo de não saber

o que fazer na hora de fazer.

 

Me ajude, primo igual a mim.

Seremos dois a navegar

o crespo rio subterrâneo.

 

No chão, à luz da tarde, a tentativa

de um, de outro, em vão, no chão

sobre a fria negrinha indiferente.

 

Em meio à indiferença dos repolhos,

das formigas que seguem seu trabalho,

eis que a montanha

de longe nos reprova, toda ferro.

 

 

HORTÊNSIA

 

A professora me ensina

que Hortênsia é saxifragácea.

Mas no moreno de Hortênsia,

na cabeleira de Hortênsia,

no busto e buço de Hortênsia,

O que eu diviso é uma graça

mais estranha que a palavra

saxifragácea.

 

Hortênsia, jardim trancado

onde sei que o namorado

percorre umbrosos canteiros,

contando depois pra gente.

Oi namorada dos outros,

oi outros que não se calam,

fazem só para contar!

O namorado de Hortênsia

me ensina coisas diversas

do ensino da escola pública.

Eu sei, eu percebo, eu sinto

que Hortênsia (existe a palavra?)

é sexifragrância.

 

 

MULHER VESTIDA DE HOMEM

 

Dizem que à noite Márgara passeia

vestida de homem da cabeça aos pés.

Vai de terno preto, de chapéu de lebre

na cabeça enterrado, assume

o ser diverso que nela se esconde,

ser poderoso: compensa

a fragilidade de Márgara na cama.

 

Ela vai em busca de quê? de quem?

De ninguém, de nada, senão de si mesma,

farta de ser mulher. A roupa veste-lhe

outra existência por algumas horas.

Em seu terno preto, foge das lâmpadas

denunciadoras; foge das persianas

abertas; a tudo foge

Márgara homem só quando noite.

 

Calças compridas, cigarro aceso

(Márgara fuma, vestida de homem)

corta, procissão sozinha, as ruas

que jamais viram mulher assim.

Nem eu a vejo, que estou dormindo.

Sei, que me contam. Não a viu ninguém?

Mas é voz pública: chapéu desabado,

casimira negra, negras botinas,

talvez bengala,

talvez? revólver.

 

Esta noite — já decidi — acordo,

saio solerte, surpreendo Márgara,

olho bem para ela

e não exclamo, reprovando

a clandestina veste inconcebível.

Sou seu amigo, sem desejo,

amigo-amigo puro,

desses de compreender sem perguntar.

 

Não precisa contar-me o que não conte

a seu marido nem a seu amante.

A(o) esquiva Márgara sorri

e de mãos dadas vamos

menino-homem, mulher-homem,

de noite pelas ruas passeando

o desgosto do mundo malformado.

 

 

CERTAS PALAVRAS

 

Certas palavras não podem ser ditas

em qualquer lugar e hora qualquer.

Estritamente reservadas

para companheiros de confiança,

devem ser sacralmente pronunciadas

em tom muito especial

lá onde a polícia dos adultos

não adivinha nem alcança.

 

Entretanto são palavras simples:

definem

partes do corpo, movimentos, atos

do viver que só os grandes se permitem

e a nós é defendido por sentença

dos séculos.

 

E tudo é proibido. Então, falamos.

 

 

O PADRE PASSA NA RUA

 

Beijo a mão do padre

a mão de Deus

a mão do céu

beijo a mão do medo

de ir para o inferno

o perdão

de meus pecados passados e futuros

a garantia de salvação

quando o padre passa na rua

e meu destino passa com ele

negro

sinistro

irretratável

se eu não beijar a sua mão.

 

 

CONFISSÃO

 

Na pequena cidade

não conta seu pecado.

É terrível demais para contar

nem merece perdão.

Conta as faltas simples

e guarda seu segredo de seu mundo.

 

A eterna penitência:

três padre-nossos, três ave-marias.

Não diz o padre, é como se dissesse:

— Peque o simples, menino, e vá com Deus.

 

O pecado graúdo

acrescido do outro de omiti-lo

aflora noite alta

em avenidas úmidas de lágrimas,

escorpião mordendo a alma

na pequena cidade.

 

Cansado de estar preso

um dia se desprende no colégio

e se confessa, hediondo.

— Mas você tem certeza de que fez

o que pensa que fez, ou sonha apenas?

Há pecados maiores do que nós.

Em vão tentamos cometê-los, ainda é cedo.

 

Vá em paz com seus pecados simples,

reze três padre-nossos, três ave-marias.

 

 

A IMPOSSÍVEL COMUNHÃO

 

Hóstia na boca

Deus na boca

céu no céu

da boca

não machucar

não triturar

não bobear

não pensar coisas

de satanás

deixar que desça

deslize intato

pelo canal

pelo sinal

de salvação

de teus pecados

tão variados

tão revoltados

que não permitem

sorver em paz

a quinta-essência

do corpo ázimo

da carne branca

da alma redonda

do Deus de trigo

que tens na boca

e fere e arde

em ferro e brasa

torna mais viva

tua sujeira

de criminoso

sem nenhum crime.

Hóstia de fogo

boca de inferno

na in

na ex

comunhão.

Ai Deus, que duro

usando o corpo

salvar a alma.

 

 

ASPIRAÇÃO

 

A folha de malva no livro de reza

perfuma o pensamento de Deus.

O céu cheirando a malva: santamente.

A vida deve ter, a vida pura,

esse cheiro de malva, e meus pecados

até os meus pecados

em malva se dissolvam, perfumosos.

 

O próprio inferno, por que não? com esse cheiro...

E a malva, que me salva, me condena.

 

 

ANJO

 

Há um momento em que viro anjo.

O par de asas e a túnica branca

operam a metamorfose.

Ser filho do Coronel é garantia

de uma perfeita aeroindumentária.

Sou anjo e desfilo ao longo do tempo

sem imperativo de voar.

Sigo entre anjos e virgens alvas, compenetrado

de minha celeste condição.

Apenas esta tarde. O anjo é breve

e não fala, não conta de onde veio.

Vai lento, musical.

Esta manhã não era anjo: só eu mesmo,

o desatinado, o tonto. Resplandeço

nas ruas principais. O calçamento

ignora a planta leve de meus pés

e machuca.

Entre sinos, a volta

já desbotando o sol, as asas

pesando na fadiga de ser anjo.

E na porta de Deus a recompensa:

o cartucho de amêndoas.

 

 

NOTURNO

 

Abença papai, abença mamãe.

Deus te abençoe. Não vá se esquecer

de arear os dentes e lavar os pés

antes de deitar.

Sim senhora. E não vá dormir

sem rezar um padre-nosso, três ave-marias,

uma salve-rainha.

Rezo. Não vá se esquecer de apagar a luz antes de dormir.

Fogo pegou

no quarto de Juquinha de Sá Mira

porque ele dormiu de vela acesa. Apago.

Dorme bem, meu filho. Não fique pensando

bobagens no escuro. O mais é com Deus.

Mas fico.

 

Abença papai, abença mamãe.

Já te dei abença. Vai dormir. Não tenho

sono bastante para cochilar.

Espera quietinho que o resto vem.

Vou contar estrela. Não. Conto passarinho

que já tive ou tenho ou terei um dia.

Conto, reconto

vistas de cigarros, minha coleção

é fraca. Nomes de países. 27 só.

Ai, essa geografia.

Nomes de meninas. Todas são Lurdes,

Carmos, Rosários, faço confusão.

 

Abença papai. Vai dormir, já chega.

Estou sem sono. Pois dorme assim mesmo.

Como que posso, se não posso. Então

cale essa boca. Abença mamãe.

Deus te abençoe, obedece seu pai.

Hora de dormir não é de caçoada.

Hora de dormir, todo menino dorme.

Mesmo sem sono? Dorme sem pensar.

Mas estou pensando. Penso mulher nua.

 

Penso na morte. Se eu morrer agora?

Sem ver mulher nua, só imaginando?

Morro, vou pro inferno. Talvez não. Meu anjo

me puxa de lá, leva ao purgatório.

A cama rangendo. Abença papai.

Você não sossega? Pera aí que eu te ensino.

Mas eu não fiz nada. Só pedi abença.

Deus te abençoe, diabo, senão,

senão tu me paga.

 

Que noite mais comprida desde que nasci.

Viajando parado. O escuro me leva

sem nunca chegar. Sem pedir abença

como vou saber que não vou sozinho?

Que o mundo está vivo? Abença papai

abença mamãe. Mas falta coragem

e peço pra dentro. Dentro não responde.

 

 

O CAVALEIRO

 

À meia-noite, como de costume,

passa o Cavaleiro

todo de ferro e horror. Passa ou não passa?

Duvido. (E tenho medo.)

Hoje não durmo. Hei de escutar

o som das ferraduras na gelada

Rua Municipal,

o estalar do chicote na garupa

do cavalo-fantasma.

Escuto, protegido

em cobertor de casa-fortaleza

de família importante. Passa, passa,

anda, passa, Cavaleiro, estás com medo

do medo meu, quem sabe, da garrucha

do Coronel?

 

O Cavaleiro anda atrasado.

Vai esperar o sono me vencer

para aparecer dentro do sono?

Chego à janela. A branca

escuridão (o frio é branco)

não filtra nem um grilo de ruído.

Massa de cidade e serra: breu silente.

Boca seca, trêmulo,

não vejo o Cavaleiro, estou ouvindo

em mim o Cavaleiro, em mim é que ele passa,

sempre passou e passa sempre e não acaba

de passar. É isso. Vou dormir.

Dou descanso ao cavalo e ao Cavaleiro.

 

 

REVOLTA

 

Não quero este pão — Quinquim atira

o pão no chão.

 

A mesa vira vidro, transparente de

emoção.

Quem ousa fazer isso em pleno almoço?

Pede castigo

o pão jogado ao chão.

 

O Castigador decreta:

Agora de joelhos você vai

apanhar este pão.

Vai trazer um barbante e amarrar

o pão no seu pescoço

e vai ficar o dia todo

de pão no peito, expiação.

 

Quinquim perdeu a força da revolta.

Apanha o pão, amarra o pão

no pescoço humilhado

e ostenta o dia todo

a condecoração.

 

 

FUGA

 

De repente você resolve: fugir.

Não sabe para onde nem como

nem por quê (no fundo você sabe

a razão de fugir; nasce com a gente).

 

É preciso FUGIR.

Sem dinheiro sem roupa sem destino.

Esta noite mesmo. Quando os outros

estiverem dormindo.

Ir a pé, de pés nus.

Calçar botina era acordar os gritos

que dormem na textura do soalho.

 

Levar pão e rosca; para o dia.

Comida sobra em árvores

infinitas, do outro lado do projeto:

um verdor

eterno, frutescente (deve ser).

Tem à beira da estrada, numa venda.

O dono viu passar muitos meninos

que tinham necessidade de fugir

e compreende.

Toda estrada, uma venda

para a fuga.

 

Fugir rumo da fuga

que não se sabe onde acaba

mas começa em você, ponta dos dedos.

Cabe pouco em duas algibeiras

e você não tem mais do que duas.

Canivete, lenço, figurinhas

de que não vai se separar

(custou tanto a juntar).

As mãos devem ser livres

para pesos, trabalhos, onças

que virão.

 

Fugir agora ou nunca. Vão chorar,

vão esquecer você? ou vão lembrar-se?

(Lembrar é que é preciso,

compensa toda fuga.)

Ou vão amaldiçoá-lo, pais da Bíblia?

Você não vai saber. Você não volta

nunca.

(Essa palavra nunca, deliciosa.)

Se irão sofrer, tanto melhor.

Você não volta nunca nunca nunca.

E será esta noite, meia-noite,

em ponto.

 

Você dormindo à meia-noite.

 

 

INIMIGO

 

Vou brigar contigo.

Vou apanhar e vou sangrar

mas vou brigar.

Tenho de lutar contigo, tenho

de gritar bem alto nomes feios

que sobem à garganta.

Eles crescerão no ar da rua,

subirão às sacadas dos sobrados

e todos ouvirão.

Fui eu quem disse. O magricela. O triste.

 

Tenho de brigar,

rolar no chão contigo, intimamente

abraçados na raiva. Tenho de

a pontapé ferir o teu escroto.

Pouco importa me batas pelo dobro.

Pouco importa me arrases. Meu irmão

não chamo a socorrer-me. Quero ser

o perdedor que ganha de seu medo.

 

 

COMEMORAÇÃO

 

Tristes aniversários. O presente,

briga de boca, repetida.

O presente,

sensação de vida torta sem conserto.

O presente,

arrependimento de nascer.

O presente,

ânsia de fugir sem para onde ir.

O presente,

pudim de choro em calda.

O presente,

ideia de morte, liquidação de todo aniversário,

morte que ninguém ouse

comemorar.

 

 

COMETA

 

Olho o cometa

com deslumbrado horror de sua cauda

que vai bater na Terra e o mundo explode.

Não estou preparado. Quem está,

para morrer? O céu é dia, um dia

mais bonito do que o dia.

O sentimento crava unhas

em mim: não tive tempo

nem mesmo de pecar, ou pequei bem?

Como irei para Deus sem boas obras,

e que são boas obras? O cometa

chicoteia de luz a minha vida

e tudo que não fiz brilha em diadema

e tudo é lindo.

Ninguém chora

nem grita.

A luz total

de nossas mortes faz um espetáculo.

 

 

ANJO-GUERREIRO

 

Ó João Jiló, fiscal da Câmara,

por que foste cortar a água

do sobrado do Coronel?

A pena d’água estava paga

o Coronel estava ausente.

As panelas escureceram,

os meninos morrem de sede,

as camisas morrem de sujo.

Foi por vingança, João Jiló?

Foi por política, não foi?

Ah, Jiló, isto não se faz

com o Coronel nem com o sobrado.

 

Sá Maria, machado em punho,

já segue no teu encalço,

pelos botecos te procura

e pelos becos te reclama.

A empregada do Coronel

ofensas tais não admite.

Quando a encontrares, toma tento,

foge, foge, João Jiló,

ou antes, não fujas: abre

a água para o Coronel.

 

Não abres? Recusas? João,

ó João, insensato João,

já se ergue o fero machado

de rachar lenha e cabeça.

Invocas a autoridade,

a lei, a prisão perpétua?

Que importa, se Sá Maria,

acima da lei, é a própria

leoa negra do sobrado,

anjo-guerreiro da família

do Coronel.

 

Relumeia o ferro no espaço

e logo baixa, relampeante

sobre registro e encanamento.

Então pensavas, João Jiló,

que era para te matar,

a ti, simples fiscal da Câmara?

A água rebenta, libertada

da carceragem da política

e vai direta, vai esperta

para as panelas, os banheiros

e os meninos do Coronel.

 

 

DODONA GUERRA

 

Dodona

Guerra.

Guerra

a Dodona.

Pedra

na telha

pedra

na cara

pedra

na alma.

Dodona

louca,

loucos

moleques

contra

Dodona.

Dodona

eterna

fera

enjaulada

uiva

às pedradas,

amaldiçoa

cada moleque

cada família

pedradamente.

 

 

A NOTÍCIA

 

Ambrósio Lopes, que fez Ambrósio Lopes?

Matou-se.

Pior é que não se matou com faca rápida,

mas com lenta lâmina indecisa.

Leva uma semana agonizando

em algum sobrado, longe.

 

A notícia chega em telegrama verde:

Ambrósio está nas últimas.

Vamos todos visitar sua mulher e filhos

que esperam na sala o telegrama definitivo.

 

Quando vem a morte? Virá hoje?

Até amanhã resiste Ambrósio Lopes?

Serve-se café com biscoitos.

Conversa-se.

 

A espera, toda espera, é eternidade.

Os assuntos viram polvilho mastigado,

resto de açúcar na xícara.

 

Chega afinal o mensageiro trágico.

Explode um grito, pranto em coro.

Abraçamo-nos todos, e derramo

também minhas lágrimas de visita.

 

Por entre o nevoeiro vejo a mulher de Ambrósio Lopes

marmorizar-se viúva, estátua

de véu-negrume para sempre.

Os filhos de Ambrósio Lopes adquirem num segundo

caras despedaçadas de órfãos.

 

Eu mesmo, orfandade e viuvez nas entranhas,

assumo completamente

o suicídio a faca de Ambrósio Lopes.

 

 

O INGLÊS DA MINA

 

O inglês da mina é bom freguês.

Secos e molhados finíssimos

seguem uma vez por mês

rumo da serra onde ele mora.

Inglês invisível, talvez

mais inventado que real,

mas come bem, bebendo bem,

paga melhor. O inglês existe

além do bacon, do pâté,

do White Horse que o projetam

no nevoento alto da serra

que um caixeirinho imaginoso

vai compondo, enquanto separa

cada botelha, cada lata

para o grande consumidor?

Que desejo de ver de perto

o inglês bebendo, o inglês comendo

tamanho lote de comibebes.

Ele sozinho? Muitos ingleses

surgem de pronto na mesa longa

posta na serra. Comem calados.

Calados bebem, num só inglês.

Talvez um dia? Talvez. Na vez.

 

 

MORTO VIVENDO

 

Aquele morreu amando.

Nem sentiu chegar a morte

quando à vida se abraçava

nem a morte o castigou.

Enquanto beijava o amor

a morte o foi transportando

nos braços do amor gozoso

sem desatar-se a cadeia

de vida enganchada em vida.

Aquele morreu? Quem sabe

o que foi feito do amante

alçado em coche de chamas

ou carruagem de cinzas

no ato pleno de amar?

Não corrigiu a postura,

não voltou aos intervalos

de solitude na espera,

não repetiu mais os gestos

fora do rito amoroso.

Morreu completo, no êxtase

de estar no mundo e extramundo.

Que sabe a morte do abraço

paralisado na luz

do quarto aberto ao amor

e defeso a tudo mais?

E se continua vivo

e mais do que vivo amando

sem paredes e sem ossos

nos vazios espaciais,

não sei como, não sei quem?

 

 

MRS. CAWLEY

 

Vem a americana com seu fox terrier,

vestido róseo desenvolto,

loura em mata morena, sol de milho,

sorriso aberto em português estropiado

mas tão linda!

linda de soluçar

de apunhalar

meu assombro caipira colegial.

 

Vem a americana com o marido,

visita

as famílias importantes dos senhores de terras.

Seu sorriso compra as terras, compra tudo

fácil, no deslumbramento.

 

O americano, mero aposto circunstancial.

O americano, que me importa?

Daria, se tivesse, um reino inteiro

para ter esta mulher a vida inteira

sorrindo a boca inteira

só para mim na sala de visitas.

 

 

OMBRO

 

Se triste é ir para o colégio distante,

fica mais triste ainda

ao ver Sebastião Ramos chorando no ombro de meu pai:

 

“Estou perdido! Nunca mais levanto!

A quebra dessa casa é a minha morte”.

O fragor do trem martela seu desespero,

ou seu desespero rilha nos trilhos

e, na caldeira, queima?

 

 

Ei, Sebastião Ramos, faz assim não na minha frente!

Também estou perdido: morte no internato.

Morrer vivo o ano inteiro é mais morrer

embora ninguém perceba

e ficarei sem ombro

para acalentar a minha morte.

Ó Sebastião Ramos, você roubou meu ombro.

 

 

NOVA CASA DE JOSÉ

 

José entra resmungando no Paraíso.

Lança os olhos em torno:

— Pensei que fosse maior.

O azul das paredes está desbotado.

Então é isto, o Céu?

 

Os anjos entreolham-se: — Ah, José!

Estávamos tão contentes com sua vinda...

José procura o recanto menos luminoso

para encastelar-se com sua canastra:

— Ninguém me bula nisto.

O serafim-ecônomo sorri:

— Sossegue, José. Aqui todas as coisas

viram essência.

Você terá a essência de sua canastra.

 

A taciturnidade de José causa espécie aos velhos santos

que pulam carniça, brincam de roda:

— Não quer vir conosco? A amarelinha

vai ser uma coisa louca...

Leve acenos de cabeça e: — Obrigado

(entredentes) é resposta de José.

 

São Pedro coça a barba: como fazer

José sentir-se realmente no Paraíso?

É sua casa natural, José foi bom,

foi ríspido mas bom.

Carece varrer do íntimo de José as turvas imagens

de desconfiança e solidão.

— Não há outro remédio, suspira São Pedro.

Vou contar-lhe uma piada fescenina.

 

E José sorri ouvindo a piada.