Existam outros, mas não se chamem
o Sobrado, peremptoriamente.
A escada de duas subidas já define
sua importância: lembra um trono.
É casa de barão, entre plebeus.
Sob a cimalha vejo a estatueta
de louça lusitana, vejo os vasos
de azul-vaidade, contra o azul do céu.
As sacadas, onde pairam minhas primas
acima das procissões, jovens olímpicas
entre voo e terra.
Ó século glorioso 19,
reinante no Sobrado, onde a quadrilha
estronda as tábuas do soalho, mal sabendo
que outro tempo chegou para levar
na dança o que é sobrado e contradança.
ninguém entra para furtar.
Por que se fecharia a casa?
Quem que se lembra de furtar?
Pois se há vida na casa, a porta
há de estar, como a vida, aberta.
Só se fecha mesmo esta porta
para quedar, ao sonho, aberta.
trazem primos crescidos e de colo,
três cargueiros pejados de canastras
e alforjes.
Apeiam, tropel-raio, em nossa casa,
batalhão invasor.
Pisam duro, de botas,
batem portas-trovão a toda hora,
soltam gargalhadas colossais
e comem comem comem aquele peito
de galinha que é meu de antiga lei.
Uma prima bonita? Que me importa.
Se rouba minha cama, é inimiga,
e humilhado vou dormir no chão.
Arrebatado meu lugar na mesa,
profanadas gavetas-santuário
de figurinhas, selos e segredos,
escorraçado no meu reino,
odeio os monstros da família.
Uma semana inteira eles passeiam
os pés em minha paz. Serão eternos?
Contrai-se a casa enorme: vira ovo
de gema irada e clara de ciúme.
Eis que um dia
arreiam-se cavalos. As canastras
descem as escadas com ribombo.
Os tios volumosos,
os primos estrondeantes se despedem
num triturar de abraços, prometendo
voltar ano que vem. Ah, uma bomba
espanhola, que eu sei pelo jornal,
um breve terremoto
afunde cavaleiros e cavalos
na descida da serra...
Meu Deus, peço o absurdo?
Mas poupe aquela prima
bonita (eu sinto agora)
que deixou no lençol a dobra do seu corpo.
Regresso à minha cama, perturbado.
espalhada nas tábuas
do soalho é o maior requinte.
Há de ser branca
fininha
lavada peneirada.
O chão nevoso ringe
e todos se extasiam: Que lindeza.
É, mas andar descalço
já não dá aquele prazer de corpo livre
e à noite a cama é areia
a camisola, areia
o corpo, todo areia
e os sonhos, ah os sonhos são areia.
Rosa trouxe costumes elegantes
da Capital.
Já não se almoça às 9 da manhã
e não se janta às 4.
(O resto, o dia imenso, todo meu.)
Esse café do meio-dia quando sai?
Tudo é mais tarde, lento,
e há uma fome! uma fome!
Rosa trouxe a moda, com requintes
de enfeites e maneiras. Há um silêncio
de colégio francês no mastigar.
Certas comidas surgem transformadas,
muda o gosto,
muda a vida.
Azulou a divina liberdade.
domina a sala de visitas.
É maior do que ela, na imponência
lustrosa de sua massa.
Nele habitam cascatas encadeadas
à espera da manhã.
Tão bom que não falasse.
Mas fala, fala. A casa é caixa
de ressonância. Os pratos vibram.
O ar é som, o cão reage,
trava luta renhida com Czerny
e perde.
O pobre do silêncio refugia-se
no bico do canário.
de três cores distintas
que sob o sol acendam
três fogueiras distintas.
Não é para pôr doce
em nenhuma das três.
Passou a hora de doce,
não a das compoteiras,
e quero todas três.
É para pôr o sol
em igual tempo e ângulo
nas cores diferentes.
É para ver o sol
lavrando no bisel
reflexos diferentes.
Mas onde as compoteiras?
Acaso se quebraram?
Não resta nem um caco
de cada uma? Os cacos
ainda me serviam
se fossem três, das três.
Outras quaisquer não servem
a minha experiência.
O sol é o sol de todos
mas os cristais são únicos,
os sons também são únicos
se bato em cada cor
uma pancada única.
Essas três compoteiras,
revejo-as alinhadas
tinindo retinindo
e varadas de sol
mesmo apagado o sol,
mesmo sem compoteiras,
mesmo sem mim a vê-las,
na hora toda sol
em que me fascinaram.
só vou se for obrigado.
No quarto de roupa suja
não há nada que fazer.
O quarto de roupa suja
não é quarto de brincar.
Em quarto de roupa suja
não tem graça me esconder.
O quarto de roupa suja
lembra sujeira de corpo.
Do quarto de roupa suja
não vou querer me lembrar.
No quarto de roupa suja
a roupa suja conversa.
O quarto de roupa suja
não tem fedor especial.
No quarto de roupa suja
cheira a ardido e nem é tanto
mas quarto de roupa suja
é o próprio cascão do sujo.
Do quarto de roupa suja
volto mais só e mais sujo.
No quarto de roupa suja
por que me querem prender?
Tudo escurece de súbito na casa. Estou sem olhos.
Aqui decerto guardam-se guardados
sem forma, sem sentido. É quarto feito
pensadamente para me intrigar.
O que nele se põe assume outra matéria
e nunca mais regressa ao que era antes.
Eu mesmo, se transponho
o umbral enigmático,
fico outro ser, de mim desconhecido.
Sou coisa inanimada, bicho preso
em jaula de esquecer, que se afastou
de movimento e fome. Esta pesada
cobertura de sombra nega o tato,
o olfato, o ouvido. Exalo-me. Enoiteço.
O quarto escuro em mim habita. Sou
o quarto escuro. Sem Lucarna.
Sem óculo. Os antigos
condenam-me a esta forma de castigo.
No meio do quarto a piscina móvel
tem o tamanho do corpo sentado.
Água tá pelando! mas quem ouve o grito
deste menino condenado ao banho?
Grite à vontade.
Se não toma banho não vai passear.
E quem toma banho em calda de inferno?
Mentira dele, água tá morninha,
só meia chaleira, o resto é da bica.
Arrisco um pé, outro pé depois.
Vapor vaporeja no quarto fechado
ou no meu protesto.
A água se abre à faca do corpo
e pula, se entorna em ondas domésticas.
Em posição de Buda me ensaboo,
resignado me contemplo.
O mundo é estreito. Uma prisão de água
envolve o ser, uma prisão redonda.
Então me faço prisioneiro livre.
Livre de estar preso. Que ninguém me solte
deste círculo de água, na distância
de tudo mais. O quarto. O banho. O só.
O morno. O ensaboado. O toda-vida.
Podem reclamar,
podem arrombar
a porta. Não me entrego
ao dia e seu dever.
caminham passo a passo no ofertório
mudo.
O burro, desferrado.
O lenheiro, descalço.
A lenha, outro silêncio.
A lenha, o lenheiro, o burro
queimam-se igualmente no fogão
desde que a vila é vila
e o mundo, mundo.
O burro, o lenheiro, a lenha
apagam-se, reacendem-se, letreiros
unos em solidão.
Há sempre uma fazenda na conversa
bois pastando na sala de visitas
divisas disputadas, cercas a fazer
porcos a cevar
a bateção dos pastos
a pisadura da égua
de testa — e vejo o céu — tosta estrelada.
Há sempre
uma família na conversa.
A família é toda a história: primos
desde os primeiros degredados
filhos de Eva
até Quinquim Sô Lu Janjão Tatau
Nono Tavinho Ziza Zito
e tios, tios-avós, de tão barbado-brancos
tão seculares, que são árvores.
Seus passos arrastam folhas. Ninhos
na moita do bigode. Aqui presentes
avós há muito falecidos. Mas falecem
deveras os avós?
Alguém deste clã é bobo de morrer?
A conversa o restaura e faz eterno.
Há sempre uma fazenda, uma família
entreliçadas na conversa:
a mula & o muladeiro
o casamento, o cocho, a herança, o dote, a aguada
o poder, o brasão, o vasto isolamento
da terra, dos parentes sobre a terra.
De escrituras demandas hipotecas
de apólices federais
de vacas paridas
de éguas barganhadas
de café tipo 4 e tipo 7.
Incessantemente falam de negócio.
Contos contos contos de réis saem das bocas
circulam pela sala em revoada,
forram as paredes, turvam o céu claro,
perturbando meu brinquedo de pedrinhas
que vale muito mais.
junto à água da Penha
mira o futuro
em que se refletirá na água da Penha
este instante imaturo.
Seu olhar parado é pleno
de coisas que passam
antes de passar
e ressuscitam
no tempo duplo
da exumação.
O que ele vê
vai existir na medida
em que nada existe de tocável
e por isto se chama
absoluto.
Viver é saudade
prévia.
Que vai ser quando crescer? vivem perguntando em redor. Que é ser? É ter um corpo, um jeito, um nome? Tenho os três. E sou? Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito? Ou a gente só principia a ser quando cresce? É terrível, ser? Dói? É bom? É triste? Ser: pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas? Repito: ser, ser, ser. Er. R. Que vou ser quando crescer? Sou obrigado a? Posso escolher? Não dá para entender. Não vou ser. Não quero ser. Vou crescer assim mesmo. Sem ser. Esquecer.
a arte de matar.
A formiga se presta
a meu aprendizado.
Tão simples, triturá-la
no trêmulo caminho.
Agora duas. Três.
Milhares de formigas
morrendo, ressuscitam
para morrer de novo
no ofício a ser cumprido.
Intercepto o carreiro,
esmago o formigueiro,
instauro, deus, o pânico,
e sem fervor agrícola,
sem divertir-me, seco,
exercito o poder
de sumário extermínio,
até que a ferroada
na perna me revolta
contra o iníquo protesto
da que não quis morrer
ou cobra sua morte
ferindo a divindade.
A dor insuportável
faz-me esquecer o rito
da vingança devida,
já nem me acode o invento
de supermortes para
imolar ao infinito
imoladas formigas.
Qual outra pena, máxima,
poderia infligir-lhes,
se eu mesmo peno e pulo
nesse queimar danado?
Um deus infante chora
sua impotência. Chora
a traição da formiga
à sorte das formigas
traçada pelos deuses.
ASSALTO
foge à verificação anal
de ovos por botar.
A empinada púrpura do galo
protesta contra a invasão do território.
Bateria de gritos
clarim cacarejante musicando
a sombra úmida do poleiro
tapete de titica verde onde escorrega
plaft
o roubador de indez para gemada.
O cachorro em convulsões rola escada abaixo.
Seu vômito verde
colore de morte os degraus.
Comeu bola.
Nunca se saberá quem matou.
O assassino invisível golpeia
a orgulhosa família desarmada.
Passa o tabuleiro de quitanda:
é pão de queijo é rosca é brevidade
é broa de fubá é bolo de feijão
é tudo que é gostoso e eu vou comprar
eu vou comer o dia inteiro a vida inteira
o sortimento deste tabuleiro.
Vem chegando perto. Alva toalha
cobre essas coisas todas que apetecem,
renda e bordado sobre a minha gula.
E como cheira a forno quente a branda
variedade de quitanda oculta!
Corro, suspendo o véu. Horror. Que dor.
Que vejo? Nada vejo. Fico
a olhar para o vazio descoberto.
Já sei. Antes de mim, Nhonhô Bilico
arrematou as amplas coleções
e vai comer o dia inteiro, a vida inteira
o sortimento deste tabuleiro.
Atrás do grupo escolar ficam as jabuticabeiras.
Estudar, a gente estuda. Mas depois,
ei, pessoal; furtar jabuticaba.
Jabuticaba chupa-se no pé.
O furto exaure-se no ato de furtar.
Consciência mais leve do que asa
ao descer,
volto de mãos vazias para casa.
da gabiroba e do jambo,
cor e fragrância do mato,
colhidos no pé. Distintos.
Araticum, araçá,
ananás, bacupari,
jatobá... todos reunidos
congresso verde no mato,
e cada qual separado,
cada fruta, cada gosto
no sentimento composto
das frutas todas do mato
que levo na minha boca
tal qual me levasse o mato.
Aqui, talvez, o tesouro enterrado
há cem anos pelo guarda-mor.
Se tanto o guardou, foi para os trinetos,
principalmente este: o menor.
Cavo com faca de cozinha, cavo
até, no outro extremo, o Japão
e não encontro o saco de ouro
de que tenho a mor precisão
para galopar no lombo dos longes
fugindo a esta vidinha choca.
Mas só encontro, e rabeia, e foge
uma indignada minhoca.
de rara folia.
Não tem aula, quinta,
não tem quadro-negro
tão deveras negro
com suas frações
endemoninhadas,
não tem fila, banco
de calar e ouvir.
Quinta-feira é bom,
é céu quinta-feira.
Só tem um defeito:
quinta-feira cedo
estender os dedos
para cortar unha,
corte de alicate
seco, navalhante.
Quê que tem a unha
crescer toda a vida?
Unha ficar preta
de tanto mexer
em terra e poeira?
Por que minha unha
tem de ser vigiada
e cada semana
passada em revista?
Assim eu crescesse
tão depressa como
a unha aparada:
semana que vem,
chega quinta-feira,
eu é que cortava
a unha dos outros
a fero alicate.
Corto mal, espirra
sangue? Pois espirre
no estalar da poda.
Ruindade dos outros
vira contra eles.
No mais, quinta-feira
é uma lagoa
de escutar sereia,
é uma cascata
de prender o sol,
é o mato virgem
de enfrentar leões
e de cativá-los.
Quinta-feira, viagem
ao país sem leis
de menino livre,
esperando sempre
uma quinta-feira
a chegar um dia.
Quinta-feira é dia
só de imaginar
essa quinta-feira.
O pobre bate à porta, é recebido
como o esperado da semana;
mendigo, não.
Vem recolher a moeda,
sua parte devida e reservada.
A parte do pobre é pobre
mas é sagrada.
Não há mendigos na cidade,
mãos estendidas pelas ruas,
famintos ares.
Há pobres fixos de cada rico,
visitas domiciliares.
Escalado para atendê-los,
miro remiro
esses trocados sobre a mesa.
Bem que me serviriam
para comprar sonhos urgentes
de sensual necessidade.
Mas se furto dinheiro ao pobre,
ao castigo imposto a meu corpo
junta-se
confuso castigo dentro.
Chegam os pobres um a um
com solitária nobreza
no tranquilo gesto dos sábados
que toma a forma de um direito
aureolado de altivez.
Um a um lhes vou passando
a minipercentagem da pobreza.
Sou o pobre distribuidor.
sem navio.
Roupa de fazer visita
sem direito de falar.
Roupa-missa de domingo,
convém não amarrotar.
Roupa que impede brinquedo
e não se pode sujar.
Marinheiro mais sem leme,
se ele nunca viu o mar
salvo em livro,
e vai navegando em seco
por essa via rochosa
com desejo de encontrar
quem inventou merda moda
de costurar esta âncora
no braço
e pendurar esta fita
no gorro.
Ah, se o pudesse pegar!
Como quem diz: Navios... Sair pelo mundo
voando na capa vermelha de Júlio Verne.
Mas por que me deram para livro escolar
a Cultura dos Campos de Assis Brasil?
O mundo é só fosfatos — lotes de 25 hectares
— soja — fumo — alfafa — batata-doce — mandioca —
pastos de cria — pastos de engorda.
Se algum dia eu for rei, baixarei um decreto
condenando este Assis a ler a sua obra.
Somos os leitores do Tico-Tico.
Somos importantes, eu e Luís Camilo.
Cada um em sua rua.
Cada um com sua revista.
O que um sabe, o outro sabe.
Ninguém sabe mais do que sabemos.
É nossa propriedade Zé Macaco.
Jagunço vai latindo a nosso lado
e Kaximbown nos leva
convidados especiais ao Polo Norte.
Nossa importância dura até dezembro.
Temos assinaturas anuais.
Amarílio redige e ilustra com capricho
o jornal manuscrito: é conto, é poema, é cor,
que ele tira de onde? Incessante criador,
de si mesmo é que extrai esse mundo de coisas.
Nutro por Amarílio invejoso respeito.
Por mais que me coloque em transe literário
e force a mão e atice a chama de meu peito,
não consigo imitá-lo. Em lugar de escritor,
na confusão da ideia e do vocabulário,
sou apenas constante e humilhado leitor.
Papai, me compra a Biblioteca Internacional de Obras Célebres.
São só 24 volumes encadernados
em percalina verde.
Meu filho, é livro demais para uma criança.
Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo.
Quando crescer eu compro. Agora não.
Papai, me compra agora. É em percalina verde,
só 24 volumes. Compra, compra, compra.
Fica quieto, menino, eu vou comprar.
Rio de Janeiro? Aqui é o Coronel.
Me mande urgente sua Biblioteca
bem acondicionada, não quero defeito.
Se vier com arranhão recuso, já sabe:
quero devolução de meu dinheiro.
Está bem, Coronel, ordens são ordens.
Segue a Biblioteca pelo trem de ferro,
fino caixote de alumínio e pinho.
Termina o ramal, o burro de carga
vai levando tamanho universo.
Chega cheirando a papel novo, mata
de pinheiros toda verde. Sou
o mais rico menino destas redondezas.
(Orgulho, não; inveja de mim mesmo.)
Ninguém mais aqui possui a coleção
das Obras Célebres. Tenho de ler tudo.
Antes de ler, que bom passar a mão
no som da percalina, esse cristal
de fluida transparência: verde, verde.
Amanhã começo a ler. Agora não.
Agora quero ver figuras. Todas.
Templo de Tebas, Osíris, Medusa,
Apolo nu, Vênus nua... Nossa
Senhora, tem disso nos livros?
Depressa, as letras. Careço ler tudo.
A mãe se queixa: Não dorme este menino.
O irmão reclama: Apaga a luz, cretino!
Espermacete cai na cama, queima
a perna, o sono. Olha que eu tomo e rasgo
essa Biblioteca antes que pegue fogo
na casa. Vai dormir, menino, antes que eu perca
a paciência e te dê uma sova. Dorme,
filhinho meu, tão doido, tão fraquinho.
Mas leio, leio. Em filosofias
tropeço e caio, cavalgo de novo
meu verde livro, em cavalarias
me perco, medievo; em contos, poemas
me vejo viver. Como te devoro,
verde pastagem. Ou antes carruagem
de fugir de mim e me trazer de volta
a casa a qualquer hora num fechar
de páginas?
Tudo que sei é ela que me ensina.
O que saberei, o que não saberei
nunca,
está na Biblioteca em verde murmúrio
de flauta-percalina eternamente.
por Luxemburgos, Índias, Quênia-Ugandas.
Com Pedr’Álvares Cabral e Wandenkolk,
aprenda História do Brasil. Colecione.
Mas sem dinheiro?
Devaste os envelopes da família.
Remexa nas gavetas. Há barbosas
efígies imperiais à sua espera.
Mortiças cartas guardam peças raras.
Tudo vasculhe. Um dia
arregalado à sua frente há de luzir
em arabescado fundo negro
o diamante, o sonho, a maravilha
chamada olho de boi
60.
Troque. Vá trocando. Passe a perna,
se possível. Senão, seja enganado
mas acrescente sua coleção
de postas magiares, moçambiques,
osterreiches, japões, e seu prestígio
há de aumentar: o baita
colecionador da rua principal.
E brigue, boca e braço,
ao lhe negarem esta condição.
Até que chegue o tédio de possuir,
a tentação do fósforo e do vento,
o gosto de perder a coleção
para outra vez, daqui a um mês,
recomeçar, humílimo, menor
colecionador da rua principal.
no canteiro
ou desejo na boca?
Tanto beijo nascendo
e colhido
na calma do jardim
nenhum beijo beijado
(como beijar o beijo?)
na boca das meninas
e é lá que eles estão
suspensos
invisíveis.
Como é o corpo da mulher?
Onde começa: aqui no chão
ou na cabeleira, e vem descendo?
Como é a perna subindo,
e vai subindo até onde?
Vê-la num corisco é uma dor
no peito, a terra treme.
Diz-que na mulher tem partes lindas
e nunca se revelam. Maciezas
redondas. Como fazem
nuas, na bacia, se lavando,
para não se verem nuas nuas nuas?
Por que dentro do vestido muitos outros
vestidos e brancuras e engomados,
até onde? Quando é que já sem roupa
é ela mesma, só mulher?
E como que faz
quando que faz
se é que faz
o que fazemos todos porcamente?
de ver as pernas no alto
da escada
as pernas sempre defesas
as sempre sonhadas pernas
as pernas, aparição
no sombrio alto da escada.
Torno a bater. Pá pá pá.
As mãos estalam, desejo
e turva oração: Meu Deus,
as pernas por que me dano!
Ressoam pela cidade
as palmas no corredor.
Nos quatro cantos já sabem
de minha ardência.
Já me condenam, me prendem
e nunca verei as pernas
sublimes no alto da escada.
Mas bato. Bato rebato.
Latindo mais do que as palmas
o cão no degrau primeiro
destroça minha ambição.
Volto amanhã. Bato tanto
que o velho atende. Resmunga
pigarro surdo confuso.
Torno a voltar. A bater.
O longo vestido longo
da velhíssima senhora
frufrulha no alto da escada.
Pá pá pá em quantos dias
de tantas doidas esperas.
Um dia
as palmas farão surgir
no celeste alto da escada
as pernas totais, as pernas
que a mente no descompasso
do coração nem ousara
tão lunas imaginar.
Um dia, mas quando? As palmas
batebatendo se esgarçam
em Minas.
lar de escorpiões,
procura-se a greta entre as tábuas
do soalho
por onde se surpreenda a florescência
do corpo das mulheres
na sombra de vestidos refolhados
que cobrem até os pés
a escultura cifrada.
Entro rastejante
dobro o corpo em dois
à procura da greta reveladora
de não sei que mistério radioso
ou sombrio
só a homens ofertado
em sigilo de quarto e noite alta.
Encontro, mina de ouro?
Contenho a respiração.
Dispara o coração
no fim de longa espera
ao rumor de saias lá em cima
ai de mim, que nunca se devassam
por mais que o desejo aguce a vista
e o sangue implore uma visão
de céu e terra encavalados.
Nada
nada
nada
senão a sola negra dos sapatos
tapando a greta do soalho.
Saio rastejante
olhos tortos
pescoço dolorido.
A triste polução foi adiada.
é tudo quanto tenho a meu alcance
para provar o primeiro gosto
da primeira mulher.
Uma negrinha, sem cama
salvo a escassa grama
do quintal, sem fogo
além do que vai queimando
por dentro o menino inexperiente
de todo jogo.
Ai medo de não saber
o que fazer na hora de fazer.
Me ajude, primo igual a mim.
Seremos dois a navegar
o crespo rio subterrâneo.
No chão, à luz da tarde, a tentativa
de um, de outro, em vão, no chão
sobre a fria negrinha indiferente.
Em meio à indiferença dos repolhos,
das formigas que seguem seu trabalho,
eis que a montanha
de longe nos reprova, toda ferro.
que Hortênsia é saxifragácea.
Mas no moreno de Hortênsia,
na cabeleira de Hortênsia,
no busto e buço de Hortênsia,
O que eu diviso é uma graça
mais estranha que a palavra
saxifragácea.
Hortênsia, jardim trancado
onde sei que o namorado
percorre umbrosos canteiros,
contando depois pra gente.
Oi namorada dos outros,
oi outros que não se calam,
fazem só para contar!
O namorado de Hortênsia
me ensina coisas diversas
do ensino da escola pública.
Eu sei, eu percebo, eu sinto
que Hortênsia (existe a palavra?)
é sexifragrância.
Dizem que à noite Márgara passeia
vestida de homem da cabeça aos pés.
Vai de terno preto, de chapéu de lebre
na cabeça enterrado, assume
o ser diverso que nela se esconde,
ser poderoso: compensa
a fragilidade de Márgara na cama.
Ela vai em busca de quê? de quem?
De ninguém, de nada, senão de si mesma,
farta de ser mulher. A roupa veste-lhe
outra existência por algumas horas.
Em seu terno preto, foge das lâmpadas
denunciadoras; foge das persianas
abertas; a tudo foge
Márgara homem só quando noite.
Calças compridas, cigarro aceso
(Márgara fuma, vestida de homem)
corta, procissão sozinha, as ruas
que jamais viram mulher assim.
Nem eu a vejo, que estou dormindo.
Sei, que me contam. Não a viu ninguém?
Mas é voz pública: chapéu desabado,
casimira negra, negras botinas,
talvez bengala,
talvez? revólver.
Esta noite — já decidi — acordo,
saio solerte, surpreendo Márgara,
olho bem para ela
e não exclamo, reprovando
a clandestina veste inconcebível.
Sou seu amigo, sem desejo,
amigo-amigo puro,
desses de compreender sem perguntar.
Não precisa contar-me o que não conte
a seu marido nem a seu amante.
A(o) esquiva Márgara sorri
e de mãos dadas vamos
menino-homem, mulher-homem,
de noite pelas ruas passeando
o desgosto do mundo malformado.
Certas palavras não podem ser ditas
em qualquer lugar e hora qualquer.
Estritamente reservadas
para companheiros de confiança,
devem ser sacralmente pronunciadas
em tom muito especial
lá onde a polícia dos adultos
não adivinha nem alcança.
Entretanto são palavras simples:
definem
partes do corpo, movimentos, atos
do viver que só os grandes se permitem
e a nós é defendido por sentença
dos séculos.
E tudo é proibido. Então, falamos.
a mão de Deus
a mão do céu
beijo a mão do medo
de ir para o inferno
o perdão
de meus pecados passados e futuros
a garantia de salvação
quando o padre passa na rua
e meu destino passa com ele
negro
sinistro
irretratável
se eu não beijar a sua mão.
CONFISSÃO
não conta seu pecado.
É terrível demais para contar
nem merece perdão.
Conta as faltas simples
e guarda seu segredo de seu mundo.
A eterna penitência:
três padre-nossos, três ave-marias.
Não diz o padre, é como se dissesse:
— Peque o simples, menino, e vá com Deus.
O pecado graúdo
acrescido do outro de omiti-lo
aflora noite alta
em avenidas úmidas de lágrimas,
escorpião mordendo a alma
na pequena cidade.
Cansado de estar preso
um dia se desprende no colégio
e se confessa, hediondo.
— Mas você tem certeza de que fez
o que pensa que fez, ou sonha apenas?
Há pecados maiores do que nós.
Em vão tentamos cometê-los, ainda é cedo.
Vá em paz com seus pecados simples,
reze três padre-nossos, três ave-marias.
Deus na boca
céu no céu
da boca
não machucar
não triturar
não bobear
não pensar coisas
de satanás
deixar que desça
deslize intato
pelo canal
pelo sinal
de salvação
de teus pecados
tão variados
tão revoltados
que não permitem
sorver em paz
a quinta-essência
do corpo ázimo
da carne branca
da alma redonda
do Deus de trigo
que tens na boca
e fere e arde
em ferro e brasa
torna mais viva
tua sujeira
de criminoso
sem nenhum crime.
Hóstia de fogo
boca de inferno
na in
na ex
comunhão.
Ai Deus, que duro
usando o corpo
salvar a alma.
ASPIRAÇÃO
A folha de malva no livro de reza
perfuma o pensamento de Deus.
O céu cheirando a malva: santamente.
A vida deve ter, a vida pura,
esse cheiro de malva, e meus pecados
até os meus pecados
em malva se dissolvam, perfumosos.
O próprio inferno, por que não? com esse cheiro...
E a malva, que me salva, me condena.
Há um momento em que viro anjo.
O par de asas e a túnica branca
operam a metamorfose.
Ser filho do Coronel é garantia
de uma perfeita aeroindumentária.
Sou anjo e desfilo ao longo do tempo
sem imperativo de voar.
Sigo entre anjos e virgens alvas, compenetrado
de minha celeste condição.
Apenas esta tarde. O anjo é breve
e não fala, não conta de onde veio.
Vai lento, musical.
Esta manhã não era anjo: só eu mesmo,
o desatinado, o tonto. Resplandeço
nas ruas principais. O calçamento
ignora a planta leve de meus pés
e machuca.
Entre sinos, a volta
já desbotando o sol, as asas
pesando na fadiga de ser anjo.
E na porta de Deus a recompensa:
o cartucho de amêndoas.
Deus te abençoe. Não vá se esquecer
de arear os dentes e lavar os pés
antes de deitar.
Sim senhora. E não vá dormir
sem rezar um padre-nosso, três ave-marias,
uma salve-rainha.
Rezo. Não vá se esquecer de apagar a luz antes de dormir.
Fogo pegou
no quarto de Juquinha de Sá Mira
porque ele dormiu de vela acesa. Apago.
Dorme bem, meu filho. Não fique pensando
bobagens no escuro. O mais é com Deus.
Mas fico.
Abença papai, abença mamãe.
Já te dei abença. Vai dormir. Não tenho
sono bastante para cochilar.
Espera quietinho que o resto vem.
Vou contar estrela. Não. Conto passarinho
que já tive ou tenho ou terei um dia.
Conto, reconto
vistas de cigarros, minha coleção
é fraca. Nomes de países. 27 só.
Ai, essa geografia.
Nomes de meninas. Todas são Lurdes,
Carmos, Rosários, faço confusão.
Abença papai. Vai dormir, já chega.
Estou sem sono. Pois dorme assim mesmo.
Como que posso, se não posso. Então
cale essa boca. Abença mamãe.
Deus te abençoe, obedece seu pai.
Hora de dormir não é de caçoada.
Hora de dormir, todo menino dorme.
Mesmo sem sono? Dorme sem pensar.
Mas estou pensando. Penso mulher nua.
Penso na morte. Se eu morrer agora?
Sem ver mulher nua, só imaginando?
Morro, vou pro inferno. Talvez não. Meu anjo
me puxa de lá, leva ao purgatório.
A cama rangendo. Abença papai.
Você não sossega? Pera aí que eu te ensino.
Mas eu não fiz nada. Só pedi abença.
Deus te abençoe, diabo, senão,
senão tu me paga.
Que noite mais comprida desde que nasci.
Viajando parado. O escuro me leva
sem nunca chegar. Sem pedir abença
como vou saber que não vou sozinho?
Que o mundo está vivo? Abença papai
abença mamãe. Mas falta coragem
e peço pra dentro. Dentro não responde.
À meia-noite, como de costume,
passa o Cavaleiro
todo de ferro e horror. Passa ou não passa?
Duvido. (E tenho medo.)
Hoje não durmo. Hei de escutar
o som das ferraduras na gelada
Rua Municipal,
o estalar do chicote na garupa
do cavalo-fantasma.
Escuto, protegido
em cobertor de casa-fortaleza
de família importante. Passa, passa,
anda, passa, Cavaleiro, estás com medo
do medo meu, quem sabe, da garrucha
do Coronel?
O Cavaleiro anda atrasado.
Vai esperar o sono me vencer
para aparecer dentro do sono?
Chego à janela. A branca
escuridão (o frio é branco)
não filtra nem um grilo de ruído.
Massa de cidade e serra: breu silente.
Boca seca, trêmulo,
não vejo o Cavaleiro, estou ouvindo
em mim o Cavaleiro, em mim é que ele passa,
sempre passou e passa sempre e não acaba
de passar. É isso. Vou dormir.
Dou descanso ao cavalo e ao Cavaleiro.
Não quero este pão — Quinquim atira
o pão no chão.
A mesa vira vidro, transparente de
emoção.
Quem ousa fazer isso em pleno almoço?
Pede castigo
o pão jogado ao chão.
O Castigador decreta:
Agora de joelhos você vai
apanhar este pão.
Vai trazer um barbante e amarrar
o pão no seu pescoço
e vai ficar o dia todo
de pão no peito, expiação.
Quinquim perdeu a força da revolta.
Apanha o pão, amarra o pão
no pescoço humilhado
e ostenta o dia todo
a condecoração.
FUGA
De repente você resolve: fugir.
Não sabe para onde nem como
nem por quê (no fundo você sabe
a razão de fugir; nasce com a gente).
É preciso FUGIR.
Sem dinheiro sem roupa sem destino.
Esta noite mesmo. Quando os outros
estiverem dormindo.
Ir a pé, de pés nus.
Calçar botina era acordar os gritos
que dormem na textura do soalho.
Levar pão e rosca; para o dia.
Comida sobra em árvores
infinitas, do outro lado do projeto:
um verdor
eterno, frutescente (deve ser).
Tem à beira da estrada, numa venda.
O dono viu passar muitos meninos
que tinham necessidade de fugir
e compreende.
Toda estrada, uma venda
para a fuga.
Fugir rumo da fuga
que não se sabe onde acaba
mas começa em você, ponta dos dedos.
Cabe pouco em duas algibeiras
e você não tem mais do que duas.
Canivete, lenço, figurinhas
de que não vai se separar
(custou tanto a juntar).
As mãos devem ser livres
para pesos, trabalhos, onças
que virão.
Fugir agora ou nunca. Vão chorar,
vão esquecer você? ou vão lembrar-se?
(Lembrar é que é preciso,
compensa toda fuga.)
Ou vão amaldiçoá-lo, pais da Bíblia?
Você não vai saber. Você não volta
nunca.
(Essa palavra nunca, deliciosa.)
Se irão sofrer, tanto melhor.
Você não volta nunca nunca nunca.
E será esta noite, meia-noite,
em ponto.
Você dormindo à meia-noite.
Vou apanhar e vou sangrar
mas vou brigar.
Tenho de lutar contigo, tenho
de gritar bem alto nomes feios
que sobem à garganta.
Eles crescerão no ar da rua,
subirão às sacadas dos sobrados
e todos ouvirão.
Fui eu quem disse. O magricela. O triste.
Tenho de brigar,
rolar no chão contigo, intimamente
abraçados na raiva. Tenho de
a pontapé ferir o teu escroto.
Pouco importa me batas pelo dobro.
Pouco importa me arrases. Meu irmão
não chamo a socorrer-me. Quero ser
o perdedor que ganha de seu medo.
Tristes aniversários. O presente,
briga de boca, repetida.
O presente,
sensação de vida torta sem conserto.
O presente,
arrependimento de nascer.
O presente,
ânsia de fugir sem para onde ir.
O presente,
pudim de choro em calda.
O presente,
ideia de morte, liquidação de todo aniversário,
morte que ninguém ouse
comemorar.
com deslumbrado horror de sua cauda
que vai bater na Terra e o mundo explode.
Não estou preparado. Quem está,
para morrer? O céu é dia, um dia
mais bonito do que o dia.
O sentimento crava unhas
em mim: não tive tempo
nem mesmo de pecar, ou pequei bem?
Como irei para Deus sem boas obras,
e que são boas obras? O cometa
chicoteia de luz a minha vida
e tudo que não fiz brilha em diadema
e tudo é lindo.
Ninguém chora
nem grita.
A luz total
de nossas mortes faz um espetáculo.
Ó João Jiló, fiscal da Câmara,
por que foste cortar a água
do sobrado do Coronel?
A pena d’água estava paga
o Coronel estava ausente.
As panelas escureceram,
os meninos morrem de sede,
as camisas morrem de sujo.
Foi por vingança, João Jiló?
Foi por política, não foi?
Ah, Jiló, isto não se faz
com o Coronel nem com o sobrado.
Sá Maria, machado em punho,
já segue no teu encalço,
pelos botecos te procura
e pelos becos te reclama.
A empregada do Coronel
ofensas tais não admite.
Quando a encontrares, toma tento,
foge, foge, João Jiló,
ou antes, não fujas: abre
a água para o Coronel.
Não abres? Recusas? João,
ó João, insensato João,
já se ergue o fero machado
de rachar lenha e cabeça.
Invocas a autoridade,
a lei, a prisão perpétua?
Que importa, se Sá Maria,
acima da lei, é a própria
leoa negra do sobrado,
anjo-guerreiro da família
do Coronel.
Relumeia o ferro no espaço
e logo baixa, relampeante
sobre registro e encanamento.
Então pensavas, João Jiló,
que era para te matar,
a ti, simples fiscal da Câmara?
A água rebenta, libertada
da carceragem da política
e vai direta, vai esperta
para as panelas, os banheiros
e os meninos do Coronel.
Guerra.
Guerra
a Dodona.
Pedra
na telha
pedra
na cara
pedra
na alma.
Dodona
louca,
loucos
moleques
contra
Dodona.
Dodona
eterna
fera
enjaulada
uiva
às pedradas,
amaldiçoa
cada moleque
cada família
pedradamente.
Ambrósio Lopes, que fez Ambrósio Lopes?
Matou-se.
Pior é que não se matou com faca rápida,
mas com lenta lâmina indecisa.
Leva uma semana agonizando
em algum sobrado, longe.
A notícia chega em telegrama verde:
Ambrósio está nas últimas.
Vamos todos visitar sua mulher e filhos
que esperam na sala o telegrama definitivo.
Quando vem a morte? Virá hoje?
Até amanhã resiste Ambrósio Lopes?
Serve-se café com biscoitos.
Conversa-se.
A espera, toda espera, é eternidade.
Os assuntos viram polvilho mastigado,
resto de açúcar na xícara.
Chega afinal o mensageiro trágico.
Explode um grito, pranto em coro.
Abraçamo-nos todos, e derramo
também minhas lágrimas de visita.
Por entre o nevoeiro vejo a mulher de Ambrósio Lopes
marmorizar-se viúva, estátua
de véu-negrume para sempre.
Os filhos de Ambrósio Lopes adquirem num segundo
caras despedaçadas de órfãos.
Eu mesmo, orfandade e viuvez nas entranhas,
assumo completamente
o suicídio a faca de Ambrósio Lopes.
O inglês da mina é bom freguês.
Secos e molhados finíssimos
seguem uma vez por mês
rumo da serra onde ele mora.
Inglês invisível, talvez
mais inventado que real,
mas come bem, bebendo bem,
paga melhor. O inglês existe
além do bacon, do pâté,
do White Horse que o projetam
no nevoento alto da serra
que um caixeirinho imaginoso
vai compondo, enquanto separa
cada botelha, cada lata
para o grande consumidor?
Que desejo de ver de perto
o inglês bebendo, o inglês comendo
tamanho lote de comibebes.
Ele sozinho? Muitos ingleses
surgem de pronto na mesa longa
posta na serra. Comem calados.
Calados bebem, num só inglês.
Talvez um dia? Talvez. Na vez.
Nem sentiu chegar a morte
quando à vida se abraçava
nem a morte o castigou.
Enquanto beijava o amor
a morte o foi transportando
nos braços do amor gozoso
sem desatar-se a cadeia
de vida enganchada em vida.
Aquele morreu? Quem sabe
o que foi feito do amante
alçado em coche de chamas
ou carruagem de cinzas
no ato pleno de amar?
Não corrigiu a postura,
não voltou aos intervalos
de solitude na espera,
não repetiu mais os gestos
fora do rito amoroso.
Morreu completo, no êxtase
de estar no mundo e extramundo.
Que sabe a morte do abraço
paralisado na luz
do quarto aberto ao amor
e defeso a tudo mais?
E se continua vivo
e mais do que vivo amando
sem paredes e sem ossos
nos vazios espaciais,
não sei como, não sei quem?
Vem a americana com seu fox terrier,
vestido róseo desenvolto,
loura em mata morena, sol de milho,
sorriso aberto em português estropiado
mas tão linda!
linda de soluçar
de apunhalar
meu assombro caipira colegial.
Vem a americana com o marido,
visita
as famílias importantes dos senhores de terras.
Seu sorriso compra as terras, compra tudo
fácil, no deslumbramento.
O americano, mero aposto circunstancial.
O americano, que me importa?
Daria, se tivesse, um reino inteiro
para ter esta mulher a vida inteira
sorrindo a boca inteira
só para mim na sala de visitas.
Se triste é ir para o colégio distante,
fica mais triste ainda
ao ver Sebastião Ramos chorando no ombro de meu pai:
“Estou perdido! Nunca mais levanto!
A quebra dessa casa é a minha morte”.
O fragor do trem martela seu desespero,
ou seu desespero rilha nos trilhos
e, na caldeira, queima?
Ei, Sebastião Ramos, faz assim não na minha frente!
Também estou perdido: morte no internato.
Morrer vivo o ano inteiro é mais morrer
embora ninguém perceba
e ficarei sem ombro
para acalentar a minha morte.
Ó Sebastião Ramos, você roubou meu ombro.
José entra resmungando no Paraíso.
Lança os olhos em torno:
— Pensei que fosse maior.
O azul das paredes está desbotado.
Então é isto, o Céu?
Os anjos entreolham-se: — Ah, José!
Estávamos tão contentes com sua vinda...
José procura o recanto menos luminoso
para encastelar-se com sua canastra:
— Ninguém me bula nisto.
O serafim-ecônomo sorri:
— Sossegue, José. Aqui todas as coisas
viram essência.
Você terá a essência de sua canastra.
A taciturnidade de José causa espécie aos velhos santos
que pulam carniça, brincam de roda:
— Não quer vir conosco? A amarelinha
vai ser uma coisa louca...
Leve acenos de cabeça e: — Obrigado
(entredentes) é resposta de José.
São Pedro coça a barba: como fazer
José sentir-se realmente no Paraíso?
É sua casa natural, José foi bom,
foi ríspido mas bom.
Carece varrer do íntimo de José as turvas imagens
de desconfiança e solidão.
— Não há outro remédio, suspira São Pedro.
Vou contar-lhe uma piada fescenina.
E José sorri ouvindo a piada.