— Você deve calar urgentemente
as lembranças bobocas de menino.
— Impossível. Eu conto o meu presente.
Com volúpia voltei a ser menino.
de museu.
Hoje são instrumentos de lavoura,
base veludosa do império:
“anjinho”,
gargalheira,
vira-mundo.
Cana, café, boi
emergem ovantes dos suplícios.
O ferro modela espigas
maiores.
Brota das lágrimas e gritos
o abençoado feijão
da mesa baronal comendadora.
Não. Minha terra tem engenhocas de rapadura e cachaça
e açúcar marrom, tiquinho, para o gasto.
Canavial se alastra pela Serra do Onça,
vai ao Mutum, ao Sarcundo,
clareia Morro Escuro, Queixadas, Sete Cachoeiras.
Capitão-do-Mato enverdece de cana madura,
tem cheiro de parati no Bananal e no Lava,
no Piçarrão, nas Cobras, no Toco,
no Alegre, na Mumbaça.
Tem rolete de cana chamando para chupar
nas Abóboras, no Quenta-Sol, nas Botas.
Tem cana-caiana e cana-crioula,
cana-pitu, cana rajada, cana do govemo
e muitas outras canas de garapas,
e bagaço para os porcos em assembleia grunhidora
diante da moenda
movida gravemente pela junta de bois
de sólida tristeza e resignação.
As fazendas misturam dor e consolo
em caldo verde-garrafa
e sessenta mil-réis de imposto fazendeiro.
De chifres de veado é feita esta balança
de pesar carne de vento.
É o peso uma pedra, e outra pedra e outro quilo
vão recortando o boi em severa medida.
Ninguém furta no peso. O sol, o sal da carne
brilham qual brilha a pedra neste jogo
em que o senhor da natureza e do mercado
se curva à fome, juiz maior de outra balança
maior, maior de todas destes matos-dentro.
2o juiz de paz
3o juiz de paz
4o juiz de paz
e nenhuma guerra jamais no município
onde todas as pessoas se entrelaçam,
parentes no sangue e no dinheiro,
e, parentes, se casam, tio-sobrinha,
prima — primo, enviúvam, se recasam
perenemente primos, tios e sobrinhas.
Que fazem os juízes modorrantes
à brisa nas cadeiras da calçada,
esperando uma guerra que não vem?
Brigam talvez aos dois e os outros dois
os separam, revezam-se, no tédio
de paz tão cinza, em vale assim tranquilo?
Ou ficam ansiosos, expectantes,
de ouvido no chamado
para casar com toda a pompa e caixa de cerveja
a filha do guarda-mor, a bela Joana?
Perdão, o próprio guarda-mor
é o 1o juiz de paz, nada a fazer.
LITANIA DAS MULHERES DO PASSADO
Ana Flávia Emiliana
Ana Claudina
Ana Miquelina
Ana Umbelina
Amanda Malvina
Liberalina:
protegei os homens do clã.
Maria Feliciana
Maria Isidora
Maria Narcisa
Maria Presciliana
Maria Senhorinha
Maria Tomásia da Encarnação
Ricardina Honorata:
amai os homens do clã.
Josefina Augusta
Placidina Augusta
Virgínia Augusta
Olímpia Bernardina
Rita Bernardina
Petronilha Carolina
Francisca Bárbara:
exemplai os homens do clã.
não abras.
Pode ser que encontres
o que não buscavas
nem esperavas.
Na escuridão
pode ser que esbarres
no casal em pé
tentando se amar apressadamente.
Pode ser que a vela
que trazes na mão
te revele, trêmula,
tua escrava nova,
teu dono-marido.
Descuidosa, a porta
apenas cerrada
pode te contar
conto que não queres
saber.
e Rua de Baixo
entraram em guerra.
Morador de uma
não sofreu desfeita
de morador da outra.
Ninguém violou
horta de ninguém
pra roubar legume.
Por que foi então
que brigam as duas?
A Rua de Baixo
e a de Santana
tomaram partido
na guerra medonha
russo-japonesa.
Lá os de Santana
são aristocratas,
russófilos feros;
os daqui de Baixo,
povo pé-rapado,
nipoesperançosos.
Discutem, refutam,
atacam, recuam,
contra-atacam, lépidos.
Entre as ruas ferem-se
batalhas navais.
Porto Artur e Mukden
estrondam os ares
municipais.
O desfecho, sabe-se.
Ficaram rompidas
as ruas rivais
mas também ficaram
para sempre ruas
do mundo.
através da cadeia do Espinhaço,
o vazio começa, e tudo acaba
por ser amplo desânimo no espaço.
De meus escravos todos me dispenso
em doação a filhos de três leitos.
Conservarei apenas este lenço
de assoar. Paguem eles os direitos
novos e velhos na Coletoria
enquanto me alcatifo para a morte,
recamado de enjoo e cinza fria.
Não me venham dizer que é muito cedo
e há que merecer o passaporte.
A alma desiste, finda-se o brinquedo.
FAZENDA DOS 12 VINTÉNS
OU DO PONTAL E TERRAS EM REDOR
A fazenda fica perto da cidade.
Entre a fazenda e a cidade
o morro
a farpa de arame
a porteira o eco.
O eco é um ser soturno, acorrentado
na espessura da mata.
E profundamente silencioso
em seu mistério não desafiado.
Passo, não resisto a provocá-lo.
O eco me repete ou me responde?
Forte em monossílabos,
grita ulula blasfema
brinca chalaceia diz imoralidades,
finais de coisas doidas que lhe digo,
e nunca é alegre mesmo quando brinca.
É o último selvagem sobre a Terra.
Todos os índios foram exterminados ou fugiram.
Restou o eco, prisioneiro
de minha voz.
De tanto se entrevar no mato,
já nem sei se é mais índio ou vegetal
ou pedra, na ânsia da passagem
de um som do mundo em boca de menino,
som libertador
som moleque
som perverso,
qualquer som de vida despertada.
O eco, no caminho
entre a cidade e a fazenda,
é no fundo de mim que me responde.
Riacho? Gota d’água em tacho.
Nem necessita pinguela
para chegar à outra margem.
Um salto: salto a corrente.
É ribeirão de presépio,
é mar de quem nunca viu o mar,
nem prevê o mar.
Tão festeiro, tão brincante
de lambaris rabeando
na transparência da linfa.
Tão espelho, tão pedrinhas
de luz chispante em arestas.
Que nome ele tem? Não tem
nome nenhum, tão miudinho
ele é. Pois é, qual riacho
qual nada. Ele é mesmo corgo
ou nem isso. É meu desejo
de água que não me afogue
e onde eu veja minha imagem
me descobrindo, indagando:
Que menino é esse aí?
Que menino é este aqui?
Não sei como responder.
A aguinha treme, trotina
sob o calhau atirado
por meu irmão. Ou por mim?
Melhor é deixar o corgo
brincar de ser rio e ir
passeando lambaris.
No mais seco terreno, o capim-gordura
inunda o pasto de oleoso aroma,
catingueiro de atrair vacas,
afugentar cobras
mais carrapatos.
Seu pendão violáceo, balançante ao vento,
garante leite e carne com fartura,
na voz do agregado que celebra
as mil virtudes do capim-gordura:
“Esse gado todo
vive à custa dele.
Eu mesmo, que vivo
de cuidar do gado,
sou agradecido
ao capim-gordura,
pois além do mais,
na sua brandura,
ele é diurético,
antidisentérico,
antidiarreico.
Para rematar,
dá aos passarinhos
maciez de ninho.
Que na minha frente
ninguém fale mal
do santo capim-
-gordura, criatura
da maior fervura
do meu peito amante!”
a cobra espreita
o belo boi de Cantagalo
trazido com que sacrifício
de longas léguas a pé e lama
para inaugurar novo rebanho
dos sonhos zebus do Coronel.
Por trás da bossa do cupim
a cobra, cipó inerte,
medita cálculo e estratégia,
e o belo boi de Cantagalo
mal sente, sob o céu de Minas,
chegar o segundo-relâmpago
em que o cipó se alteia, se arremessa
e fere e se enrodilha e aperta
e aperta mais, aperta sempre
e mata.
Já não cobrirá as doces vacas
ao seu destino reservadas
o belo boi de Cantagalo,
e queda ali,
monumento desmantelado.
A bossa jaz ao lado da outra bossa,
no imóvel sol do meio-dia.
Chicote
de cabo de prata
lavrada
chicote
de status
não fica entre os outros
de couro e madeira
plebeus.
É guardado à parte,
zelado ao jeito
dos bens de família.
Não risca no flanco
de qualquer animal.
Reserva-se todo
para uso exclusivo
da mulher fazendeira.
O fino cavalo branco
recebe orgulhoso
a chicotada argêntea
de mão feminina.
Os desenhos da Lapa, tão antigos
que nenhum bisavô os viu traçar,
esses riscos na pedra, indecifráveis,
palavras sem palavra, mas falantes
ao surdo ouvido indiferente de hoje,
esse abafado canto das origens
que o professor não sabe traduzir
— à noite (cismo agora) se destacam
da laje fria, espalham-se no campo.
São notícias de índio, religiões
ligando mente e abismo, vida solta
em fantásticos ritos amorosos,
de sangue, de colheita, em meio a deuses
nativos do sertão do mato-dentro.
Cada linha desdobra-se: arabescos
sonoros, e uma festa como nunca
mais se veria em gleba conquistada
por meus antepassados cobiçosos
de ouro, gado, café, recobre a terra
devolvida a seus donos naturais.
Não o boi: o tapir, nem o sitiante
nem porteira-limite nem papéis
marcando posse, prazo, juro, herança.
É um tempo antes do tempo de relógio,
e tudo se recusa a ser História
e a derivar em provas escolares.
Lá vou eu, carregando minha pedra,
meu lápis, minha turva tabuada,
rumo à aula de insípidos ditados,
cismando nesses mágicos desenhos
que bem desenharia, fosse índio.
Que lugar diferente dos lugares,
o Onça!
Custo a crer que exista além da boca,
faladeira de sonhos.
No entanto viajantes vêm do Onça,
apeiam, amarram suas mulas
na argola do mourão
e contam, pachorrentos, da viagem.
Contam de sua gente, de seus matos
e seus rios,
O Onça-Grande, o Onça-Pequeno
me perturbam.
São rios feitos de onça, águas ferozes
de onça encachoeirada?
Nas ruas do Onça passam onças
e pessoas caminham junto a elas?
Uma onça maior governa o Onça,
cada dia um menino é mastigado
em sua mesa rubra a escorrer sangue?
Riem de mim os viajantes
se lhes faço perguntas. Não pergunto.
Não riem. Ouço apenas
as estórias do Onça, corriqueiras.
No Onça não há onças.
É calma, tudo lá. Em mim, tremor.
Em mim é que elas bramem, noite negra.
diz-que sucedem coisas
que a gente não explica.
Tem zunido de vento
mesmo sem ter vento.
Os ouvidos percebem
o gemido parado
no ar imobilizado.
Meio-dia, não bole
sequer o pé de avenca,
mas insiste o sibilo
enquanto a poeira dorme
no chão sem movimento,
Os mais moços indagam.
Os mais velhos se calam,
aceitam como fato
esse vento sem braços,
espalhado em lamento.
Na Barra do Cacunda
cai uma chuva estranha
que molha sem chover.
As roupas respingadas,
as botas encharcadas
fazem parte do dia
vivido no costume
O sol vibra nas pedras,
as paredes gotejam
e rostos femininos
ressumam lentas bagas,
não de choro comum.
As mulheres não choram
na Barra do Cacunda.
A chuva é que lhes dá
a feição deslizante
de úmidas estátuas.
O mais, tudo normal.
Nascem crianças, morrem
os que têm de morrer
por lei da natureza.
Amores se entrelaçam
e outros se desmancham
como no mundo largo.
Barganhas de animais
se ajustam desde sempre.
O trabalho prossegue
na tenda do seleiro,
nos bilros da rendeira,
no tacho da doceira,
no descansado cálice
de branquinha servido
aos eternos fregueses
do botequim escuro.
O canto não cessou
na garganta habituada
a ritmar a tarefa
em pauta musical.
Modinhas despetalam-se
no entardecer mariano,
mesmo se o vento zune,
e a voz humana casa-se
ao zunido sem causa.
Na Barra do Cacunda
se essa chuva invisível
está sempre envolvendo
o vestido engomado,
a saia bem passada,
nem por isso as mulheres,
esculturas molhadas,
desistem de passar
a ferro suas roupas
e sair e banhar-se
na chuva que não cai.
Veio ontem de lá
um viajante e contou:
Na Barra do Cacunda
as pessoas estudam
na aula do mistério.
e as partes negras
do casarão
cortam no meio
meu coração.
Sou um ou outro
móbil caráter
conforme a luz
que me percorre
ou se reduz.
Anjo-esplendor,
mínimo crápula,
não sou quem manda
em mim no escuro
ou na varanda.
Serei os dois
no exato instante
em que abro a porta,
ainda hesitantes,
a porta e eu?
O casarão
de lume e sombra
é que decide
meu julgamento
na opinião
dos grandes, sem
apelação
do eu confuso
no indefinível
entardecer.
O que há de mais moderno? Porta-cartões
pendente da parede
da sala de visitas, junto ao piano.
O porta-cartões, receptáculo de seda
em forma de leque ou coração,
semeado de finas pinturinhas
e bordados:
flores, asas, volutas
por mimosa mão-donzela entretecidas.
No interior do porta-cartões,
postais do Rio, de Vitória e Carangola,
de primos que, sublimes, passearam
no Bois de Boulogne, comprovando
nosso temperamento aventureiro.
(Os argonautas não medem perigos
e lonjuras.)
São paisagens seletas,
belezas e primores do Senhor
esparzidos na Terra.
Também alguns casais envernizados
em decoroso enlevo:
não se beijam (o beijo está nos olhos,
disfarçado?),
estampas tão suaves
e mais cartõezinhos de boas-festas
em recente dezembro
— essa, outra novidade
de que começa a carpir-se João Gonçalves,
tal a sobrecarga de carteiro.
De todos o mais belo, na cidade,
porta-cartões, ainda não se sabe.
Porfiam senhoritas no preparo
de aladas peças, qual mais graciosa,
e escrevem, solicitam, recomendam,
insistem:
venham, venham cartões
formosos, coloridos, a florir
ainda mais a cetínea coleção.
Na sala de visitas, as visitas
terão de confessar que este é o mais lindo
porta-cartões de sala brasileira.
tem a palavra arte, que me ensinam?
A selva ancilosada na parede
da sala de visitas
não me convence
ou vence.
No céu sem moldura,
o arco-íris, brinquedo de olhar, jogo de olhar
e de pegar com a mente,
breve se desfaz, e continua
em mim, fascinador: arte-maior.
O gramofone Biju, com 10 discos artísticos
em que não posso tocar
é música/palavra para espanto global.
Pedras falam, eu sei; converso imagens
de barro e de madeira;
troco sinais com árvores; bichos
trazem para mim notícias do mato-fundo,
É tudo fala, na voz certa
de cada coisa, lugar e vez. Mas quem já viu
máquina falar? e assim tão alto e nervos?
Gigante flor sonora, invenção
do Diabo, talvez; mas o Diabo
tem outras falas, noturnas, ciciadas, que eu distingo.
Não te decifro, gramofone, proibido à ciência de minhas mãos.
Este mundo (pressinto)
vai se tornar terrivelmente complicado.
Respeito silencioso
paira sobre a toalha.
A garrafa espera o gesto,
o saca-rolha espera o gesto,
a família espera o gesto
que há de ser lento e ritual.
Ergue-se o pai, grão-sacerdote,
prende a garrafa entre os joelhos,
gira regira a espira metálica
até o coração do gargalo.
Não faz esforço,
não enviesa,
não rompe a rolha.
É grave, simples,
de velha norma.
Nítido espoca
o ar libertado.
O vinho escorre
sereno, distribuindo-se
em porções convenientes:
copo cheio, os grandes;
a gente, dois dedos.
Bebe o pai primeiro.
Assume a responsabilidade
sacra.
Já podemos todos
saber que o vinho é bom
e piamente degustá-lo.
Mas quem diz que bebo solene?
Meu pensamento é o saca-rolha,
o sonho de abrir garrafa
como ele — só ele — abre.
A roxa mácula no linho,
pecado capital.
Esse menino
não aprende nunca a beber vinho?
(Quero é aprender a abrir o vinho
e nem mesmo posso aspirar
ao direito de abrir o vinho
que incumbe ao pai e a mais ninguém
em nossa antiga religião.)
O gosto do licor começa na ideia
licoreiro.
Digo baixinho: licoreiro. Que sabor
no som, no conhecimento do cristal
independente de licor de leite,
fabricação mui fina da cidade,
segredo da família de Oscarlina.
O licoreiro, vejo-o
delicioso em si, mesmo vazio
à espera de licor, de tal maneira
na forma trabalhada
habita o gosto perfumado
e em cada prisma-luz se distribui
ao paladar da vista já gozando.
— Que tem esse menino, a contemplar
o tempo todo o licoreiro
se dentro dele não há nada?
Meu Deus, esse menino é viciado,
está na pua, só de olhar o licoreiro!
Não apenas alfinetes
de bolinha colorida na ponta.
Há os alfinetes voadores,
mágicos, de pombas
na cabecinha.
Não duvido nada que eles adejem
no quarto vazio.
“Vamos dar uma volta? — os alfinetes se dizem —
até o beiral da igreja, e voltamos.”
“Não. O céu está cinzento,
o meu azul empalideceria.”
“Ora, ora...”
Saem voando. Ninguém percebe
as pombas minúsculas no espaço.
Mamãe entra no quarto,
revolve o estojo de costura:
“Você andou mexendo em minhas coisas, menino?”
Procuro a cor nos mínimos objetos
existentes em casa.
Na fita de seda azul que vai ornar
os cabelos de Rosa, flor suspensa
em campo negro.
Na estampa das peças de morim
amanhã convertidas em lençóis
enquanto a camponesa no trigal
revestida de sol
será rasgada por inútil.
(Tanto que pedi não a rasgassem
e dessem para mim.)
Procuro a cor
nos alfinetes de cabeça redonda.
Amarelo azul verde vermelho
roxo, tão perfeitos,
tão independentes do alfinete,
pequeninos mundos luminosos
contendo toda a cor, toda a linguagem
dos elementos não agrilhoados
à vontade dos grandes.
Cada cabecinha
conta seu poder tranquilo, sua glória.
Começo a pressentir
na cor o quarto reino natural
a enriquecer de vida os outros reinos.
— ouvi o mano falar —
se chama açoita-cavalo e fico logo a cismar.
Vou me sentar na cadeira
a modo de cavalgar,
de costas, pernas em gancho,
segurando no espaldar.
Montaria de madeira,
chicote de castigar.
Cavalo assim tão parado
nunca vi ninguém contar.
Em vão lhe puxo o cabresto
(cabresto de imaginar).
Não se move deste quarto
e por aqui vai ficar.
Já não repito: Upa, upa!
e de tanto esporear,
vou ficando embrabecido,
começo agora a xingar.
Porcaria de cavalo
empacado no lugar!
Nem mesmo com xingamento
se resolve a disparar,
enquanto eu, a sacudi-lo
em doido movimentar,
como último argumento
chicote estalando no ar,
de tanto esforço que faço
nem sei mais me equilibrar
e rolamos embolados
num barulho de espantar.
A madeira da cadeira
não serve para montar,
ou cavalo de madeira
nunca se deve açoitar?
que aqui habitam fantasmas.
Entretanto eles circulam
mesmo sem comprovação.
Não são duendes estranhos,
forasteiros indiscretos.
Têm um traço de família:
todos de nossa nação.
A moça trágica e antiga
quis vir com eles: inútil.
Não pertencendo à família,
foi barrada no porão.
Se teve um caso com o avô,
merecia ser dos nossos.
Insiste, implora. Recusam-lhe
direito à incorporação.
Tem quartos que todos sentem
preferidos, por escuros.
Saem debaixo da cama
ou de escondido alçapão?
Nenhum estalo de tábua
nem arrastar de chinelos.
Vêm conferir os parentes
com a reserva de um ladrão.
Não pregam susto a meninos,
respeitam nossos horários
É quando estamos dormindo
que eles marcam reunião.
No sofá da sala sentam-se,
miram seus próprios retratos
e lançam na escarradeira
o cuspe de ocasião.
Se falam, ninguém escuta.
Se riem, ninguém percebe.
De qualquer modo merecem
toda a consideração.
Já grita seu grito de ouro
o galo da madrugada.
Os aéreos visitantes
assim como chegam, vão.
Mas fica no dia claro
um sabor de assombração.
O canto de sombra e umidade no quintal.
Do muro de pedra escorre o fio d’água,
manso, no verde limoso, eternamente.
Uma gota e outra gota, no silêncio
onde só as formigas trabalham
e dorme um gato e dorme o futuro
das coisas que doerão em mim, desprevenido.
Crescem, rasteiras, plantas sem pretensão
de utilidade ou beleza.
Tudo simples. Anônimo.
O sol é um ouro breve. A paz existe
na lata abandonada de conserva
e no mundo.
de panos de limpar cu de menino.
Sá Maria é quem limpa o cu
e lava o pano.
Cresce o menino.
Assume a responsabilidade
de limpar seu próprio cu
com pedaços de jornal.
Sá Maria é chamada a outros deveres.
BRASÃO
Com tinta de fantasma escreve-se Drummond.
É tudo quanto sei de minha genealogia.
Anabela Drummond foi rainha de Escócia
avó
de soberanos que reinaram por centúrias
em Scótia e Britânia,
minha avozíssima também, como esquecer?
Não consigo entender por que o juiz de direito
o agente executivo, o coletor,
o vigário e demais pessoas gradas
não vêm aqui em casa render vassalagem
aos netos exilados de Anabela.
O cemitério não lhes convém.
Ficam sob o chão da sacristia da Matriz
ou, distinção especial, ao pé dos altares da capela-mor.
Aí estão mais perto de Deus,
e, mesmo não se rezando especialmente por eles,
a reza geral penetra o mármore e a madeira,
embalsama-lhes os ossos dissolvidos,
o pó restante, ou nem isso: o lugar
apenas, debaixo do nome.
São privilegiados diante do Senhor.
Não é qualquer família que o consegue.
As luzes, o incenso, a melopeia gregoriana
confortam lá embaixo uma ausência importante de corpo.
não era para cair no túmulo orgulhoso
do grão-senhor de terras e da tribo.
Devia ser talvez endereçado
à campa de algum pobre pecador
sem glória de família.
Escolher logo esta, romper-lhe a inscrição
de prantos esculpidos com tamanho capricho,
e criar, irrisão, essa frase confusa
em que fama e fazenda já não brilham, estelares,
é castigo, talvez, de culpas não sabidas,
sepultadas mais que os ossos venerandos.
Sepultadas lá onde o sangue se forma,
onde a prima semente esboçou um caráter,
uma forma de rosto, um vinco de soberba
que rói esta linhagem e agora se dissolve
em rachaduras cruéis de pedra esborcinada.
bela branca rica
na terra onde príncipes não saltam
do armorial para pedir-lhe a mão
jamais.
Passam cometas de olhar astuto,
canastras sortidas.
Irão comprar a moça, mercadoria
sem preço na Terra?
Jamais.
Passam fazendeiros, botas esculpidas
no estrume, riso ruidoso
de dentes de ouro.
Cuidam levar a moça para saldar
suas hipotecas?
Jamais.
Passam mulatos de fina lábia
e mil apólices federais.
Como deixar que o sangue cruze
na alva barriga de alvas origens?
Jamais.
Condena-se a moça ao casamento
consigo mesma
na noite alvíssima
eternalmente.
de Sofia?
Do relojoeiro?
Do dentista?
Do primo Augusto?
Do promotor?
Do telegrafista?
Do cabo-comandante do destacamento?
De um dos praças?
Do padre apóstata?
Quem é o pai, quem é o pai
noturnamente encapuzado
(sequer tem rosto)
do filho anônimo de Sofia?
Nenhum deles visto rondando
de Sofia o muro solteiro,
nenhum abrindo de madrugada
a cancela rouca de Sofia.
O pai quem é?
Sofia semilouca de raça ilustre
vai contar quem dormiu
em seu quarto seco de solteirona
e secamente lhe fez o filho?
Vai inventar talvez um pai
que jamais a tenha tocado?
Já se apavoram os homens bons
com a denúncia?
Ninguém confessa ter conhecido
Sofia em fogo ou violentada,
Sofia pura,
Sofia aberta
ao prazer esperado amargamente?
Ou dormiram todos com Sofia
(o que é mesmo que não dormir),
ninguém tem culpa,
ninguém é o pai?
Pai do menino é a cidade?
A loucura é pai do menino?
O menino nasceu do absurdo
propósito de nascer-se, escolheu
o ventre de Sofia como se escolhesse
vaso sem semente, apenas terra?
Sofia não responde. Ri baixinho,
acaricia o pinto do menino.
As tias viúvas vestem pesadas armaduras
de morte e gorgorão. Desde o pescoço
à inviolada ponta dos borzeguins, elas proclamam
rompimento com o século. E nada mais existe
senão a noite dos maridos estampada
em cada gesto de soberba solidão.
Assim as queremos para sempre novamente
virgens, reintegradas na pureza original.
Ai de quem boqueje: As tias são mulheres
sujeitas à lei terrestre do desejo,
e em noites brancas lutam corpo a corpo com duendes.
Uma tia, porém, olvida o mandamento
e casa-se outra vez. O raio na família.
Ela é toda jardim, é pura amendoeira
na alegre doação de outra virgindade.
A família decide: essa tia morreu.
de nossos quartos milenários?
nos mandam passar a noite
sobre colchões de emergência, no chão,
na outra ala da casa, tão distante
de nossos cômodos,
de nossa intimidade com a cama, a cadeira, o penico,
de nosso trato com a bacia e o jarro de cada manhã,
de nossa muda convivência
com as sombras na parede, os sussurros
que vêm da rua, a voz sacramental
do relógio da matriz — é tarde —
batendo nove horas?
Ora, deixa estar que é bom.
Quem vai dormir em noite assim diversa?
Vai é jogar travesseiros um no outro,
criar fantasmas de lençol,
dizer besteiras, contar porcaria
sem perigo de ninguém mais ouvir.
Mas por que, me diz, esse bulício lá dentro,
esse ir e vir de passos abotinados,
esse outro pisar mais leve, mais seguro,
de mulher
(só pode ser da velha que não conhecemos
e que no lusco-fusco entrou em casa)?
Alguém geme, talvez. Alguém
agora está gemendo alto,
está gritando, abala o mundo? Horror
na treva sem explicação.
É ouvir e calar
nossa experiência de pavor.
Deve tudo estar certo, combinado
pelo poder dos grandes, enigmático.
Travesseiros, de cansaço, já não pulam
no escuro.
Gritos sem sentido já se apagam
na areia do cochilo
cochilante.
De manhã cedo, o sol em canto alegre:
“Esta noite
chegou mais uma irmãzinha pra vocês.”
que não me olha de frente.
Se passo por sua porta,
é como se não me visse:
parece que está na Espanha
e eu, velhamente, em Minas.
Até me virando a cara,
a cara é de zombaria.
Se ele pensa que é mais forte
e que pode me bater,
diga logo, vamos ver
o que a tapa se resolve.
A gente briga no beco,
longe dos pais e dos tios,
mas briga de decidir
essa implicância calada.
Qual dos dois, mais importante:
o ramo dele, o meu ramo?
O pai mais rico, quem tem?
Qual o mais inteligente,
eu ou ele, lá na escola?
Namorada mais jeitosa,
é a minha ou é a dele?
Tudo isso liquidaremos
a pescoção, calçapé,
um dia desses, na certa.
Sem motivo, sem aviso,
meu primo declara guerra,
essa guerrinha escondida,
de mim, mais ninguém, sabida.
Pode pois uma família
ser assim tão complicada
que nós dois nos detestamos
por sermos do mesmo sangue?
Nossas paredes internas
são forradas de aversão?
Será que o que eu penso dele
ele é que pensa de mim
e me olha atravessado
porque vê na minha cara
o vinco de zombaria
e um sentimento de força,
vontade de bater nele?
Meu Deus, serei o meu primo,
e a mesma coisa sentimos
como se a sentisse o outro?
Dom Viçoso é o santo da família.
Humilde-forte, quem pode com ele
no céu mineiro,
áureo de legendas?
Não é canonizado? Tanto faz.
E é santo à mão: nosso quase vizinho
de Mariana.
Santinhos, bentinhos encarnados
não multiplicam sua imagem.
Nem verônica nem dia de folhinha
fazem propaganda deste santo.
Mas ele é santo — Papai, que sabe, afirma.
Dom Viçoso, na alpestre
Cartuxa de Mariana,
fica entre a gente e o Paraíso,
ajeitando os negócios de Papai.
menino não sai à rua
sem escovar bem a roupa.
Ninguém fora se escandalize
descobrindo farrapo vil
em nossa calça ou paletó.
Questão de honra, de brasão.
Ninguém sussurre:
A família está decadente?
A escova perdeu os pelos?
A fortuna do Coronel
não dá pra comprar escova?
Toda invisível poeirinha
ameaça-nos a reputação.
Por isso a mãe, sábia, serena,
sabendo que sempre esqueço
ou mesmo escondo, impaciente,
esse objeto sem fascínio,
me inspeciona, me declara
mal preparado para o encontro
com o olho crítico da cidade.
E firme, religiosamente,
vai-me passando, repassando
nos ombros, nas costas, no peito, nas pernas,
na alma talvez (bem que precisava)
a escova purificadora.
Minha mãe que é tão fraca, ela sabe porém
o poder que a palavra imprevista contém.
Hoje me excomungou porque fiz um malfeito.
Não vou crescer feliz, agora não tem jeito.
Excomungado estou por decreto materno.
Pior que amaldiçoado — escrevo no caderno.
Já não sei que fazer, busco dentro de mim.
Desmereço de todo o prato de pudim.
Sinto que me atolei na mais negra peçonha.
Passei a ser um réu coberto de vergonha.
Mas no triste do quarto acende-se um luzeiro.
Copio e botarei sob o seu travesseiro
o já tradicional pedido de perdão:
“Minha mãe, me arrependo. Eu não faço mais não.”
O casamento foi marcado
no ato mesmo da concepção.
Entre os primos, é eleito o primo
que melhor convém ao tratado.
Sem exclusão dos demais primos
perfilados todos à espera
de chamado se a vida muda.
Assim nascem todas as primas,
destinadas a matrimônio
do outro lado da mesma rua.
Os sobradões se comunicam
em passarela de interesses
da vasta empresa de família
que abrange bois, terras, apólices,
paióis de milho e tradição.
Serão multíparas as primas
a primos árdegos unidas.
À noite, no maior recato,
apagado o lampião, arquejos
e repugnâncias abafadas
contribuirão para a grandeza
do eterno tronco familial,
bem mais precioso que as pessoas.
De filhos, netos e bisnetos
o futuro já foi traçado
em firmes letras de escritura:
O país serrano pertença
a primos, primas e mais primos
encomendados com sapiência
pelo conselho soberano
de tios primos entre si.
Para lá dos cerros, a Terra
há de curvar-se ao poderio
deste grupo à sombra de Deus
— o deus especial das terras
dos rebanhos e dos princípios
particulares que dominam
a fortaleza atijolada
em mescla de sangue e dinheiro.
Mas um dia as primas se enervam
de nascer assim programadas
para um fim geral sem prazer.
Já os primos se desencantam
desta sorte a que estão jungidos.
E uma estampa de herói de filme,
outra estampa de estrela nórdica
acicatam insônias púberes.
Eis que aportam rapazes louros,
de um louro claro que deslustra
o banal moreno dos primos.
Vêm a negócios, mas reparam
numas primas ajaneladas
dispostas a romper a lei
da missão sem gosto e sem graça
de funcionárias da família.
Por sua vez os primos ardem
de voraz, incontido ardor
pela equilibrista do circo
e suas nervosas, elásticas
pernas que jamais uma prima
lhes mostrara, se é que possuíra
joias tais sob as circunspectas
multissaias e plurianáguas.
Outro assunto, meses a fio,
não conhece o burgo serrano
senão este, de estarrecer:
Entre as primas, a mais prendada
fugiu com o mais louro moço
entre os ádvenas moços louros
e seu primo compromissado
lá se foi, saltimbanco errático.
A partir de então — adivinha-se —
desimpedidos os primos
de escolher o par a seu gosto,
cada qual atira seus olhos
no rumo sem fim da aventura,
e de seculares raízes,
riquezas, títulos e taras,
nada resta — e ri-se o Diabo.
É cansaço de gerações.
Já não passeia a vista satisfeita
pelo universo de cinco fazendas.
Vende as menores. Doa aos filhos
as duas grandes.
O fazendeiro descansa
de um trabalho que vem de antes
de ter nascido. Vem de índios
e mineradores.
Cumpriu sua lei. Agora os filhos
cumpram a deles.
Mas um não sabe a cor da terra,
nunca aprendeu, nem saberá
a rude física das estações;
o jeito de um boi; a sagração do milho.
Que fará na roça esse herdeiro triste
de um poder antigo?
Desiste. Vai
viver o destino urbano
de qualquer homem.
A mala pronta. A “condução” espera
à porta da casa.
Não, não espera.
Não há “condução”.
Sumiu o cavalo no oco do pasto.
Sumiu a viagem na estrada de barro.
Sumiu a esperança
de chegar a tempo
ao destino urbano.
Só o “camarada”
esperando ordens.
— A gente vai mesmo de-a pé. Eu na frente, como viajante e senhor. Você atrás, com a mala nas costas. Até eu pegar o trem no fim das oito léguas. Combinado?
Combinado. Que remédio?
O filho do fazendeiro
senhor de cinco fazendas
lá vai, pé de lama a fora.
Sobe morro desce morro
passa ponte passa pinguela
passa tropa de cincerro
passa vento passa chuva
passam outros viajantes
imperialmente montados
em prateados corcéis
de crinas mais que argentinas.
Lá vai, degradado, a pé.
E vai com tanta sustância
tal empuxo de chegar
que não percebe, não sente
como os olhos espantados
que cruzam no seu caminho
julgam seu pedestre afã.
(A distância que separa
o empafioso ginete
de um mísero duas-patas!)
— Meu pai, cheguei a salvo e muito de mim contente pela prova de resistência que venci com a graça de Deus e a fibra que o senhor me transmitiu. Que tal?
— Que tal? E ainda tem topete
de perguntar que gostei?
Pode haver maior afronta
para antigo fazendeiro
dono de cinco estirões
de chão coberto de mulas
e cavalos valorosos
que ver seu filho varando
pior que descalço, a pé,
roteiros onde retine
a orgulhosa memória
de seus animais de estima?
Ele que sempre emprestou
montarias de alto porte
a quem delas precisasse?
Por que tanta impaciência?
O pasto, por mais imenso,
não é terra do sem-fim.
Todo cavalo sumido
aparece logo mais.
A vida ensina a esperar
uma hora, duas horas,
até mesmo o dia inteiro.
Já nem sei onde é que estou
que não sumo de mim mesmo,
de tão dorida vergonha
por meu filho desmontado
e por cima se gabando
da condição rebaixada!
Meu pai, meu avô, meu bisa-
vô de nobres equipagens
lá no céu dos fazendeiros
estão despedindo raios
de irada condenação
sobre esse tonto rebento
que nem noção de decoro
conserva em sua tonteza...
Com você, filho, começa
a desabar a família.
O MENINO E OS GRANDES
O que a gente procura muito e sempre não é isto nem aquilo.
É outra coisa.
Se me perguntam que coisa é essa, não respondo, porque não é da conta de ninguém o que estou procurando.
Mesmo que quisesse responder, eu não podia. Não sei o que procuro. Deve ser por isso mesmo que procuro.
Me chamam de bobo porque vivo olhando aqui e ali, nos ninhos, nos caramujos, nas panelas, nas folhas de bananeira, nas gretas do muro, nos espaços vazios.
Até agora não encontrei nada. Ou encontrei coisas que não eram a coisa procurada sem saber, e desejada.
Meu irmão diz que não tenho mesmo jeito, porque não sinto o prazer dos outros na água do açude, na comida, na manja, e procuro inventar um prazer que ninguém sentiu ainda.
Ele tem experiência de mato e de cidade, sabe explorar os mundos, as horas. Eu tropeço no possível, e não desisto de fazer a descoberta do que tem dentro da casca do impossível.
Um dia descubro. Vai ser fácil, existente, de pegar na mão e sentir. Não sei o que é. Não imagino forma, cor, tamanho. Nesse dia vou rir de todos.
Ou não. A coisa que me espera, não poderei mostrar a ninguém. Há de ser invisível para todo mundo, menos para mim, que de tanto procurar fiquei com merecimento de achar e direito de esconder.
se me falam na rua.
Não estou preparado
para conversa-no-ar.
Não sei fazer visita
e dizer as amenas
frases que toda gente
traz no bolso da calça.
A mentira é difícil
e não por ser mentira:
porque exige da gente
a arte de inventar.
À alegria é difícil
de se manifestar,
não por ser alegria.
Porque é forte demais.
O sofrimento é fácil
de se exibir na face.
Tudo dói, tudo queima
sem fósforo aparente.
Os parentes me falam
uma língua só deles.
Eu entendo a linguagem
das pedras sem família.
Tudo é mais complicado
se se tenta explicar.
Um gato me fitou,
percebi tudo: nada.
Já não coleciono selos. O mundo me inquizila.
Tem países demais, geografias demais.
Desisto.
Nunca chegaria a ter um álbum igual ao do Dr. Grisolia,
orgulho da cidade.
E toda gente coleciona
os mesmos pedacinhos de papel.
Agora coleciono cacos de louça
quebrada há muito tempo.
Cacos novos não servem.
Brancos também não.
Têm de ser coloridos e vetustos,
desenterrados — faço questão — da horta.
Guardo uma fortuna em rosinhas estilhaçadas,
restos de flores não conhecidas.
Tão pouco: só o roxo não delineado,
o carmesim absoluto,
o verde não sabendo
a que xícara serviu.
Mas eu refaço a flor por sua cor,
e é só minha tal flor, se a cor é minha
no caco de tigela.
O caco vem da terra como fruto
a me aguardar, segredo
que morta cozinheira ali depôs
para que um dia eu o desvendasse.
Lavrar, lavrar com mãos impacientes
um ouro desprezado
por todos da família. Bichos pequeninos
fogem de revolvido lar subterrâneo.
Vidros agressivos
ferem os dedos, preço
de descobrimento:
a coleção e seu sinal de sangue;
a coleção e seu risco de tétano;
a coleção que nenhum outro imita.
Escondo-a de José, por que não ria
nem jogue fora esse museu de sonho.
minto de vez em quando
ou sempre, por sistema?
Se mentir todo dia,
erguerei um castelo
em alta serrania
contra toda escalada,
e mais ninguém no mundo
me atira seta ervada?
Livre estarei, e dentro
de mim outra verdade
rebrilhará no centro?
Ou mentirei apenas
no varejo da vida,
sem alívio de penas,
sem suporte e armadura
ante o império dos grandes,
frágil, frágil criatura?
Pensarei ainda nisto.
Por enquanto não sei
se me exponho ou resisto,
se componho um casulo
e nele me agasalho,
tomando o resto nulo,
ou adiro à suposta
verdade contingente
que, de verdade, mente.
humilhação de confessá-las
a Dr. Alexandre, sério,
perante irmãos que se divertem
com tua fauna intestinal
em perversas indagações:
“Você vai ao circo assim mesmo?
Vai levando suas lombrigas?
Elas também pagam entrada,
se não podem ver o espetáculo?
E se, ouvindo lá de dentro,
as gabarolas do palhaço,
vão querer sair para fora,
hem? Como é que você se arranja?”
O que é pior: mínimo verme,
quinze centímetros modestos,
não mais — vermezinho idiota —
enquanto Zé, rival na escola,
na queda de braço, em tudo,
se gabando mostra no vidro
o novelo comprovador
de seu justo gabo orgulhoso;
ele expeliu, entre ohs! e ahs!
de agudo pasmo familiar,
formidável tênia porcina:
a solitária de três metros.
esparsos na cidade,
infiltrados na vida de um qualquer:
a noite — caligem, facões de cabo curto
cintilando no negrume
para me matar.
O cavaleiro-assombração
que diminui o trote
para
apeia
atravessa a porta aferrolhada
chega ao meu quarto e —
(o mais nem imagino).
O indiscutível lobisomem
saltando da boca narradeira de Sá Maria
em casos acontecidos muito perto
(amanhã será comigo?).
O morfético de Sete Cachoeiras
que estende o coto de mão pedindo água
(água não se deve recusar)
para infetar a cuia.
Maior de todos,
o salamaro sal catártico.
Maior, maior que ele ainda,
a poaia.
O mais ligado à gente, o sem-remédio,
areia amarela no copo grande
— toma, se não apanha!
humilhando a garganta
ofendendo o gosto que se tem pelo gostoso,
solução ou castigo de meus males
estômaco-morais ?
A mão imperiosa
decide meu destino:
“Apanha e toma; é pra teu bem.”
(Sempre que apanho é pra meu bem.)
Entre chinela e poaia
entre poaia e náusea,
irrompe, gêiser, a flor do vômito.
A INCÔMODA COMPANHIA DO JUDEU ERRANTE
Não durmo sem pensar no Judeu Errante.
A esta hora,
onde estará, não estará,
pois caminha eterno, e seus passos ressoam
neste quarto, embaixo da cama,
na gaveta do armário, na porta do sono?
Para que foram me contar essa história de Judeu Errante
que tem começo e nunca terá fim?
Não sei se é pena ou medo
ou medopenamedo
o que sinto por ele.
Sei que me atinge. Me fere. Não há banco
nem cama para o Judeu Errante.
Come no ar. Não para.
Vestido de preto. Anda. Olhos sombrios. Anda.
Deixa marca de pés? Como é a sua voz?
E anda e anda e pisa no meu sonho.
Que mal fiz eu
para viver acorrentado à sua imagem?
O dia dura menos que um dia.
O corpo ainda não parou de brincar
e já estão chamando da janela:
É tarde.
Ouço sempre este som: é tarde, tarde.
A noite chega de manhã?
Só existe a noite e seu sereno?
O mundo não é mais, depois das cinco?
É tarde.
A sombra me proíbe.
Amanhã, mesma coisa.
Sempre tarde antes de ser tarde.
Chame-se covarde ao contendor.
Ele olhe nos olhos e:
— Repete.
Repita-se: — Covarde.
Então ele recite, resoluto:
— Puta que pariu.
— A sua, fio da puta.
Cessem as palavras. Bofetão.
Articulem-se os dois no braço a braço.
Soco de lá soco de cá
pontapé calço rasteira
unha, dente, sérios, aplicados
na honra de lutar:
um corpo só de dois que se embolaram.
Dure o tempo que durar
a resistência de um.
Não desdoura apanhar, mas que se cumpra
a lei da briga, simples.
adoçado a rapadura bem escura,
deve ser servido na tigela
de flores de três cores,
flores pegando fogo, de tão quente
deve ser o café pra ser café
oferecível.
Queimo os dedos, viram cacos
as cores das três flores,
molho a calça, queimo a perna,
me envergonho:
Este café tem plenas condições
de ser bebido com prazer e continência,
e não correspondi à etiqueta
de beber café pelando em casa alheia.
O rumor vem de longe. Vem da Rua de Baixo,
onde é tudo diverso e pode acontecer?
Do Areão? De não sei onde vem.
No vento, no entressono fevereiro.
É a caixa de guerra.
A caixa enorme, a caixa repetida
que não deixa dormir,
surda, longínqua, tão presente
no breu do quarto, agora.
O som penetra o cobertor,
cola-se à carne. Quem estará rufando
este convite, este brado, esta ameaça?
Operários rebelados
contra o sossego de coronéis e coletores?
Há quantas noites se repete
e amanhã risco nenhum no céu lavado,
nenhum sinal na rua,
do zabumba-fantasma desta hora.
O nome, o nome vago
sonolento se esboça: Zé-Pereira,
de ninguém conhecido, não é primo,
não é irmão de Tonho, de Justino,
de Salatiel Pereira, clã sortido.
Um Zé sem cara que é o próprio bumbo
a soar na hora morta do meu catre.
Dizer que é carnaval chegando nada explica.
Há uma força chamando e só à noite
é que ele escuta o chamado?
Deus diferente, diabo manhoso,
só virá se a batida chega ao ponto,
e é preciso insistir, noturno apelo renitente?
Se eu pudesse sair,
sem ranger de botina,
sem pigarro do Velho me espreitando,
no rastro deste apelo, susto embora!
O sentido das coisas mora longe.
O bando cigano, vadio, pedinchão.
Fantasia, mãe da gente é quem faz.
Tento modelar a máscara feroz
na prática artesã:
sai porcaria.
Então o pai ajuda nos preparativos.
Vá lá. Cuidado, menino,
não me faça maluquice.
E Vlã, posso comprar?
Olha só que absurdo. Lança-perfume nos olhos
cega por toda a vida!
Compro limão de cheiro
que é barato e engraçado na pele dos outros,
mas geralmente os outros é que me ensopam.
O bando sai mal preparado como sempre,
não dá aquele prazer imaginado
na hora de formar o bando.
(Um dia alguém me ensinará
que há carnavais subjetivos.
O meu é subjetivo sem saber.)
Somos irreconhecíveis em nossos disfarces
e toda gente nos conhece.
Na noite de terça-feira,
com empadões e pastéis fornecidos pelos familiares,
mastigamos melancólicos a essência do carnaval.
vivo o couro
a presença do couro
o couro dos arreios
dos alforjes das botas
das botinas amarelas
dos únicos tapetes consentidos
sobre o chão de tabuões que são sem dúvida
formas imemoriais de couro.
Vivo o cheiro do couro,
bafo da oficina do seleiro
suspenso no quarto de arreios.
Surpreendo, apalpo o cheiro futuro
dos bois sacrificados
olhando
a parada estrutura dos bois vivos.
Aspiro, adivinhando-o,
o cheiro do couro nonato
da cria na barriga da vaca Tirolesa
que um dia será carneada.
O couro cheira há muitas gerações.
A cidade cheira a couro.
É um cheiro de família, colado aos nomes.
do lado de lá.
Meninos, meninos,
do lado de cá.”
Por que sempre dois lados,
corredor no meio,
professora em frente,
e o sonho de um tremor de terra
que só acontece em Messina,
jamais, jamais em Minas,
para, entre escombros, me ver
junto de Conceição até o fim do curso?
Pés contentes na manhã de março.
ó vida! Ó quinta-feira inteira!
pisando a areia que canta, o barro que clapeclape,
a poça d’água que rebrilha.
Há de ser sempre assim, não vou crescer,
não vou ser feito os grandes, apressados,
aflitos, de fumo no chapéu,
esporas galopantes.
O dia é todo meu. E este caminho,
estas pedras, estes passarinhos, este sol espalhado
em cima de minha roupa, de minhas unhas.
Tenho canivete Rodger, geleia, pão de queijo
para comer quando quiser.
Posso devassar o mato grande até Guanhães,
descobrir tesouro, bichos nunca vistos,
quem sabe se um feiticeiro, um ermitão,
a ondina ruiva do Rio do Tanque.
Igual aos índios. Igual a mim mesmo, quando sonho.
O perfeito negociante vende tudo.
Vende a seda mais fina de Lyon,
o áspero pano da fábrica da Pedreira,
a renda de Malines e a do Norte.
Todas as miudezas de armarinho.
Todos os gêneros do país.
Chapéus de sol e de cabeça.
Toda espécie de calçados,
inclusive o “Andarilho”:
não produz calos nem os oprime,
sola impermeabilizada por processo novo,
dispensa graxas e pomadas.
À direita uma parede inteira
ostenta licores importados,
conservas inglesas, molhos raros
para os Messers da mina, altos clientes.
(Escondo por trás dessas riquezas
a barra de chocolate sonegada
ao olho distraído do patrão,
e de longe em longe, disfarçando,
mastigo este salário extraordinário.)
Ao fundo, em úmida sombra,
mantas de toucinho rosa-sal,
caixotes de milho, barricas de batatas,
sacos de feijão, ferragens rudes
(enxadas: curvo destino nacional).
É provação dominical, antes da missa,
(falta descobrir a semana inglesa)
tropeçar os dedos na massa trêmula do porco,
recortar a facão
e pesar cinco quilos de toucinho.
Por que escolheste vida de caixeiro,
vida de cachorro, o trocadilho exato,
quando podias bem ficar no casarão
em ocioso bem-bom de filho de Coronel?
Bobagens: quem explica
as que a gente faz?
Eu sei: foi para, em longas horas estagnadas,
em que ninguém compra, mas conversa
à beira arranhada do balcão
— as horas quase todas do comércio —
discutir a guerra de 14 que lavra lá no longe
e em que te empenhas tanto do mau lado.
Não é fero o patrão.
Decerto preferia
que falasses menos, trabalhasses mais.
E se perceber que o chocolate some,
sem sabor e fumaça, no papel prateado?
Se descobrir? Se te pilhar?
Erram pesadelos de caixeirinho
na noite gelada montanhesa.
não é o vinho constelado de medalhas.
É o brinde oculto, destinado a quem? A mim,
caixeiro de armazém de secos e molhados.
A martelo e formão desventra-se o caixote.
Nas botelhas deitadas dorme vago torpor.
Papel de seda branco envolve esse letargo.
Onde o brinde? O canivete, a tesourinha,
a peça portuguesa de cerâmica, onde, onde
comigo brinca de esconder?
E se acaso esqueceram lá no Porto
de colocar meu brinde aí dentro?
Se em alto-mar — ó caixa balançando
entre ondas atlânticas iradas —
um marinheiro a violou,
roubou meu brinde lusitano?
O patrão acompanha os gestos de pesquisa:
— Olhe lá, não vá quebrar uma garrafa.
Me dará o que for? Guardará para um filho?
Vou lhe pedir? Surripiar
quando um freguês o chame, num segundo?
Melhor talvez do que pedir
e sofrer um não.
Ele volta, pergunta,
vendo a caixa vazia, as mãos vazias:
— Como é? O que foi que encontrou?
As mãos vazias lhe respondem: Nada.
a sacola vermelho-desbotada:
— Esmola para as almas.
Difícil recusar: no Purgatório
as almas espiam
escutam
reparam.
Estão confiantes as almas, vigilantes as almas.
Muito se aborrecerão
se eu lhes negar o solitário níquel da algibeira.
Que fazem as almas com dinheiro?
Por que precisam de dinheiro as almas?
Acaso não preciso mais na Terra?
Todo menino aqui tem dívidas
e as almas não querem saber disso.
— Como é? Não dá esmola para as almas?
Despojo-me, resignado.
É voz corrente, voz na carne:
Das almas não se pode esconder nada.
Pede-se esmola por amor de Deus,
não por favor.
O cobre é dado por amor de Deus,
40 réis de amor e caridade.
Mas a mulher é velha, manca, enxerga mal.
Vou acompanhá-la pela rua afora.
A mão pega-lhe o braço, vai guiando
ou quase.
— Não careço de ajuda.
Me larga, menino, por amor de Deus.
Domingo. Tarde. Consistório da
Matriz. Luz escassa no adro verde.
Comprida toalha vermelho-vinho
amacia a mesa das deliberações.
Ao derradeiro raio de sol
bailam corpúsculos no ar.
A Conferência Vicentina
considera a vida dos pobres.
O pai não veio desta vez.
Mandou-me em seu lugar. Sou grande,
já não sou menino estabanado
ao cuidar da vida dos pobres.
Mas que sei da vida dos pobres
senão que vivem: sempre, sempre,
como a água, a pedra, o costume?
Se São Vicente manda ver
no rosto deles o do Cristo,
o que vejo é a comum pobreza
resignada, consentida,
tão natural como sinal
na pele.
Estendo a mão com gravidade
na hora de contribuir.
Não é meu dinheiro? É meu o gesto.
Não salvo o mundo. Mas me salvo.
A calcinha (que é calça) de morim-cambraia,
nada transparente, de babados,
deve chegar até quase os joelhos.
A gente espera, a gente fica prelibando,
mas nem isto se vê
na rapidez do balanço que só revela em primeiro plano
a imensidão instantânea da sola dos sapatinhos brancos.
nudez rindo fugindo!
Relampeia no escuro,
até no dia claro!
Ai corpos e delícias,
mar de ondas imóveis!
Labareda a lamber-me
por dentro, e não parece...
Tão perto, seios longe!
À míngua de senti-los,
nem sequer o direito
de contar esta febre...
Ao menos se uma vez
os olhos apalpassem
o pelo, a mão tocasse
o frondoso carvão!
Pegar na realidade
o que vejo, invisível!
Não e nunca... Flanelas!
Linhos indevassáveis!
Quando crescer (e cresço?)
tudo estará presente?
Ou perco para sempre
isto que não mereço?
xô xô mosquitinho
xô xô mosquitinho
a moça da casa verde
xô xô mosquitinho
arregaçando o vestido
xô xô mosquitinho
descerrando as pernas brancas
xô xô mosquitinho
mais acima dos joelhos
xô xô mosquitinho
as coxas se arredondando
xô xô mosquitinho
entre as coxas se formando
xô xô mosquitinho
o escuro encaracolado
xô xô mosquitinho
bosque, floresta encantada
xô xô mosquitinho
que eu nunca vi, me contaram
xô xô mosquitinho
a minha mão vai subindo
xô xô mosquitinho
vai apalpando, alisando
xô xô mosquitinho
até chegar a essa mata
xô xô mosquitinho
que me deixa emaranhado
xô xô mosquitinho
na noite mais pegajosa
xô xô mosquitinho
e sinto que estou queimando
xô xô mosquitinho
nesse carvão incendiado
xô xô mosquitinho
vou ardendo vou morrendo
xô xô mosquitinho
xô... xô...
mosquitinho
Ai!
Amo demais, sem saber que estou amando,
as moças a caminho da reza.
No entardecer.
Elas também não se sabem amadas
pelo menino de olhos baixos mas atentos.
Olho uma, olho outra, sinto
o sinal silencioso de alguma coisa
que não sei definir — mais tarde saberei.
Não por Hermínia apenas, ou Marieta
ou Dulce ou Nazaré ou Carmen.
Todas me ferem — doce,
passam sem reparar. O lusco-fusco
já decompõe os vultos, eu mesmo
sou uma sombra na janela do sobrado.
Que fazer deste sentimento
que nem posso chamar de sentimento?
Estou me preparando para sofrer
assim como os rapazes estudam para médico ou advogado.
Não estudei ainda o código
de amor.
Inventar, não posso.
Falar, não sei.
Balbuciar, não ouso.
Fico de olhos baixos
espiando, no chão, a formiga.
Você sentada na cadeira de palhinha.
Se ao menos você ficasse aí nessa posição
perfeitamente imóvel, como está,
uns quinze anos (só isso)
então eu diria:
Eu te amo.
Por enquanto sou apenas o menino
diante da mulher que não percebe nada.
Será que você não entende, será que você é burra?
I
Pecar, eu peco todo santo dia.
Às vezes mais. Outras nem tanto.
Mas sempre a sombra, na consciência,
visão de inferno, crepitante,
subimpressa nos atos, nos lugares.
Sei todos os pecados e cometo-os.
Todos os arrependimentos.
Todas as prosternadas confissões,
previstas penitências:
Três padre-nossos,
três ave-marias,
três creiemdeuspadres.
Saio puríssimo para pecar de novo.
Padre Olímpio não se cansa,
não me canso,
jamais se cansa o inferno
de aparecer em brasas nítidas.
Como pode durar o ano inteiro
este jogo de deus e de diabo
em peito de menino?
II
Chegam os missionários estrangeiros
corados
rudes
ininteligíveis.
Festa na cidade, medo em mim:
Entenderão os meus pecados?
Trazem um inferno mais terrível
da Itália, da Espanha, da Alemanha?
A Inquisição — me lembro de gravuras
com fogaréus sinistros alumiando
uma praça de olhares —
baixou talvez em Minas, sou a vítima.
Os pecadores não fazem fila.
O mar de pecados
envolve três confessionários
em suor arrependido.
Homens e mulheres exalam
vapor de crimes contra o Céu.
Valho tão pouco, eu!
Outra forma de medo me visita:
Meu Deus, terei pecado
à altura dos Inquisidores,
ou vão me desprezar, incompetente?
Castiga depois.
Seu olho-triângulo
devassa o país do mato-dentro.
No escuro me vê
e me assusta.
No claro me deixa sozinho
sem um sinal, um só
que me previna.
O que faço de errado,
principalmente o que faço
de gostoso,
tudo lhe merece
a mesma indiferença
enquanto vou fazendo.
Tarde é que ele mostra
sua condenação.
Interrogo-me, sinto
que dói dentro de mim.
Não devia ter feito.
Como poderia evitar de fazer?
Só agora percebo
que condenado fui
a fazer e provar
a pena interior.
Seu nome (e tremo) é Deus do catecismo.
REPERTÓRIO URBANO
bira |
|
pedra luzente |
candeia seca |
pedra empinada |
sono em decúbito |
pedra pontuda |
tempo e desgaste |
pedra falante |
sem confidência |
pedra pesante |
paina de ferro |
por toda a vida |
viva vivida |
pedra
mais nada
A fábrica de café de João Acaiaba
a fábrica de sabão de Custódio Ribeiro
a fábrica de vinho de João Castilho
a fábrica de meias de François Boissou
a fábrica de chapéus de Monsenhor Felicíssimo
a fábrica de tecidos de Doutor Guerra
a fábrica de ferro do Jirau do Capitão Aires
a fábrica de sonho de cada morador
a fábrica de nãos do governo longínquo
a fábrica de quê? na intérmina conversa
que rumina o milagre
e cospe de esquerda
no chão.
DESFILE
as terras abandonadas
onde o ferro cochilava
e o mato-dentro adentrava.
Foram muito bem(?) vendidas
aos amáveis emissários
de Rothschild, Barry & Brothers
e compadres Iron Ore.
O dinheiro recebido
deu pra saldar hipotecas,
velhas contas de armarinho
e de secos e molhados.
Inda sobrou um bocado
pra gente se divertir
no faz de conta da vida
que devendo ser alegre
nem sempre é — quem, culpado?
Então se funda o galhardo
Clube Casaca Vermelha,
o qual todo encasacado
e todo rubro-pelintra
vem montado em seus cavalos
de vasta crina e arreata
de nobre prata e fulgor.
Desfila pela cidade
entre clarins triunfais
que clarinam mundo afora
nossa riqueza e poder.
Beleza do nunca visto
nunca sonhado ou contado:
são duzentos, são trezentos
quatrocentos cavaleiros,
serão mais, se não deliro,
altaneiros e pimpões,
medievais, século-vintes,
dizendo ao mundo: “Nós somos,
nós temos, nós imperamos!”
A povama deslumbrada
já nem abre mais a boca
de tão aberta que está,
e o cortejo vai passando
rumo à glória, rumo à história,
vão os cavalos deixando
no chão de pedra o lembrete
estercorário da cena,
vão deixando, vão tinindo
as ferraduras festivas...
Aproveitem, meus casacas,
é só esta volta, e pronto:
ano que vem, nunca mais.
em nossa belle époque.
Em casa de João Torres
há saraus constantes.
Na de Chico Cândido,
na de Emílio Novais,
na de Zé Carvalho,
a valsa espirala
suas curvas lentas.
Sempre a serenata
prateia o silêncio
dos casarões altivos.
A flauta flautíssima
de Mário Terceiro
faz terremotos líricos.
Vavá, Clinton, Astolfo,
mais Totoque e Lilingue
rogam suavemente
que Stela abra a janela
e abrigue corações
transidos de frio,
desfeitos em música.
Quem ousa, noturno,
furtar jabuticabas
em quintais caninos,
é para deixá-las,
votivas,
no peitoril das deusas
de boa família,
anonimamente.
Já de madrugada
os meigos ladrões
e magos cantores
lá vão degustar
os pastéis de queijo
de João Bicudo,
o licor discutível
de Zé Pereira.
Manhã rósea, passa
o batalhão infantil
(Minervino comanda)
e bate continência
às gentis moçoilas.
Tudo é mimo, graça.
Belle époque é fato
da história mineira.
O seu nome-roseira
já é flor e trescala
só de o ouvirmos na sala.
A excelsa brilhantina
em potes de Paris
embalsama noivados
no sofá dos sobrados.
Jiqui, perfume nobre,
há de estar bem à vista
entre jarro e bacia
da rural burguesia.
As botas onde o estrume
deixa visível marca,
em chegando à cidade
cedem à amenidade
que os moços fazendeiros
sabem criar em volta
de um sólido namoro
de perfumes em coro.
Qual mais recendente
a sândalo e jasmim,
ele e ela, abraçados
em cheiros conjugados,
sem se tocarem (nada
autoriza a licença
do beijo corporal)
praticam sem detença
— ai! — o sexo aromal.
com os do lado de lá.
Não foi briga de xingar,
não foi rixa de bater
nem de sacar o revólver.
É briga de não falar
e de cerrar a janela
devagar e sem ranger,
se passa alguém do outro lado.
Briga de não conhecer
quem antes se conhecia,
se estimava, se tratava
com a maior civilidade,
quem antes se convidava
pra festa de batizado
e primeira comunhão,
casamento, aniversário
ou pra simples assustado,
a quem, se acaso surgisse
gente demais no jantar,
emprestado se pedia
meia dúzia de cadeiras
e meia dúzia de copos,
e que também recorria
com toda sem-cerimônia
à vizinhança amistosa
em noite de dor na perna
e de farmácia fechada
com vistas ao milagroso
vidrinho de Pronto-Alívio
ou em outro qualquer aperto
que costuma suceder
nos lares mais bem providos.
Troca-troca se fazia
de doces, frutas, temperos,
receitas de forno e bilro,
mimos de mil qualidades
no vai e volta de cestas,
terrinas e tabuleiros.
Crianças das duas casas
unidas num só brinquedo
de chicotinho queimado,
carniça, gata-parida
e manja, roda, cantigas
lusamente brasileiras,
ou melhor, universais.
Té se faz de mentirinha,
casamento de meninos
que talvez se torne um dia
matrimônio de verdade
em gorda concentração
de fortunas e de afetos.
(O mundo, calmo, autoriza
esperar dez, quinze anos.)
Eis de súbito alterado
o panorama gentil
de tão grata convivência.
Não se tira mais chapéu
nem mais se exibem risonhos
dentes de cordialidade,
já se finge não haver,
dos dois lados desta rua,
ninguém morando por perto.
Há um vazio de cem léguas
na estreiteza das calçadas.
Pequenos brinquem no quarto,
o velocípede novo
rode da saia à cozinha
muito embora atropelando
grandes de todo respeito,
e quem fizer um aceno
para vulto de outro lado
entra feio na chinela
de ramagem verde hostil.
No grupo escolar, cuidado:
ninguém vá se misturar.
Que foi que houve, que não
houve, se nada sabemos?
Quem por acaso decifra
o que pode haver no ar
ou na cabeça dos grandes
reticentes, sigilosos?
Do lado de lá não sabem;
do lado de cá, também.
Não se filtra explicação.
Cala a boca! é a resposta
a quem demais especule.
E todo o mundo virou
cofre estranho de mistério
exemplarmente fechado
a mãos, olhares, perguntas...
Mas a velha cozinheira
peça antiga da família,
que tudo sabe e resmunga
seu misto de língua longe
e de estalar de panela,
cospe de lado e define:
— Candonga, gente. Candonga.
de chegar à janela, espiar a rua.
Nenhum passante veja o instante
em que a janela se oferece
para emoldurar o morador.
De onde surgiu, de que etérea
paragem, nublado sótão,
como pousou, quedou ali,
recortado em penumbra?
Modo particularíssimo de ficar
e não ficar ao mesmo tempo
debruçado à janela
diante da segunda-feira
e das eternidades da semana.
De frente? De lado? De nenhum
ângulo? Está e não está
presente, é ilusão de pessoa,
vaso-begônia, objeto que mofou,
exposto ao ar?
A janela e o vulto imobilizado
proíbem qualquer indagação.
A laranja, prazer redondo.
A laranja, prazer fechado.
A laranja, prazer de faca.
Ou canivete. Cada golpe
anuncia: já se aproxima
o íntimo prazer da laranja,
que não se dá sem sacrifício.
A laranja não se espedace,
para mais intenso prazer.
A laranja fique redonda,
mesmo sem casca: esfera branca.
Então corte rápido a lâmina
um dos polos; a mão aperte,
e a boca sorverá, sensual,
a líquida alma da laranja.
Quem foi que, anônimo, inventou
o prazer de chupar laranja
em forma global de mamucha?
Gerações antigas sorriem
neste mestrado de volúpia.
O andar é lento porque é lento
desde lentos tempos de antanho.
Se alguém corre, fica marcado
infrator da medida justa.
É o lento passo dos enterros
como é o passo dos casamentos.
O pausado som das palavras.
O tranquilo abrir de uma carta.
Há lentidão em dar o leite
da lenta mama a um sem pressa
neném que mama lentamente,
na lenta espera de um destino.
Não é lenta a vida. A vida é ritmo
assim de bois e de pessoas,
no andar que convém andar
como sugere a eternidade.
Agora em junho a gente não se enxerga
nítido, no espelho embaciado.
A manhãzinha são nevoeiros
móveis, flocos aspirando
a se tornarem cabrito, padeiro, bicicleta
a um metro de distância.
A fala, brancura de ar. Nem montanha
nem casas em redor.
O tempo suprimiu os estatutos
da vida real. A liberdade
de meus passos faz-se bruma, eu próprio
sou alvo fantasminha divertido.
Experiência de não ser. Mas sendo para ver.
Na casa de Chiquito a mesa é farta
mas Chiquito prefere comer terra.
Olho espantado para ele.
“Terra tem um gosto...” Me convida.
Recuso. “Gosto de quê?” “Ora, de terra,
de raiz, de profundo, de Japão.
Você vai mastigando, vai sentindo
o outro lado do mundo. Experimenta.
Só um torrãozinho.” Que fazer?
Insiste, mas resisto.
Prefiro comer nuvem, chego ao céu
melhor que o aeroplano.
no centenário banco de farmácia,
discutem passarinho
como se fosse política municipal.
Carece discutir alguma coisa,
senão o tempo vira mármore
gelado
e todas as pessoas viram mármore
roído, desbotado; de jazigo.
Discute-se a vária cor do sabiá,
o voo particular do sabiá,
o canto divino do sabiá,
superior à flauta de Lilingue.
Protesta Lilingue,
retira-se, flautista indignado.
Silêncio de sem jeito.
Seu Paulinho Apóstolo rompe o mal-estar:
— De todos os sabiás da redondeza
(e abrange, mãos em concha, o orbe terráqueo),
desde o coleira ao laranjeira,
o que eu destaco pela melodia,
que é dom de Deus, sei lá, de anjos cantores,
é o sabiacica.
Todos se erguem, estupefatos:
— Mas não é sabiá! É papagaio!
Só imita sabiá, o porcaria!
Seu Paulinho Apóstolo sorri
de tamanha besteira:
— Bobagem de vocês, o sabiá
é que vive imitando sabiacica.
Passam a vida lenta decifrando
novíssimas,
sincopadas,
logogrifos.
Mandam soluções para o Almanaque Bertrand
e quedam à espera do navio de Lisboa que não vem,
não atracará nunca no Rio Doce,
trazendo em nova edição os nomes dos aficionados
triunfadores.
Chega a besta rústica do Correio.
Na mala, do volume encharcado de chuva,
não salta nenhuma vitória para a cidade,
salvo no ano esplendoroso de 1909
em que Juquinha Gago tirou menção honrosa.
Pobre (rico?) de mim
que nunca fui além das cartas enigmáticas,
sem conclusão e sem prêmio,
mas também não sou nunca derrotado.
Todos nasceram velhos — desconfio.
Em casas mais velhas que a velhice,
em ruas que existiram sempre — sempre!
assim como estão hoje
e não deixarão nunca de estar:
soturnas e paradas e indeléveis
mesmo no desmoronar do Juízo Final.
Os mais velhos têm 100, 200 anos
e lá se perde a conta.
Os mais novos dos novos,
não menos de 50 — enorm’idade.
Nenhum olha para mim.
A velhice o proíbe. Quem autorizou
existirem meninos neste largo municipal?
Quem infringiu a lei da eternidade
que não permite recomeçar a vida?
Ignoram-me. Não sou. Tenho vontade
de ser também um velho desde sempre.
Assim conversarão
comigo sobre coisas
seladas em cofre de subentendidos
a conversa infindável
de monossílabos, resmungos,
tosse conclusiva.
Nem me veem passar. Não me dão confiança.
Confiança! Confiança!
Dádiva impensável
nos semblantes fechados,
nos felpudos redingotes,
nos chapéus autoritários,
nas barbas de milênios.
Sigo, seco e só, atravessando
a floresta de velhos.
Dom Silvério em visita pastoral
fala pouco, está cansado, levanta a mão
lenta e abençoa.
Entre bambus e arcos triunfais
é o primeiro bispo (arcebispo) que eu vejo.
Não tem a rude casca do vigário
nem a expressão de diabo-crítico de Padre Júlio.
É manso, está cansado, olha de longe,
de um palácio esfumado de Mariana
o povo circunflexo.
São Jorge imenso espera o cavalo
que ainda não foi arreado,
ainda não foi raspado,
ainda não foi escolhido
entre os vinte melhores da redondeza.
São Jorge fora de altar
(não cabe nele)
espera o dia da procissão
em canto discreto da Matriz.
São Jorge é meu espanto.
Ainda não vi santo montado.
Santos naturalmente andam a pé,
atravessam rios a vau e a pé,
fazem milagres a pé.
Usam sandálias
de luz e poeira como os deuses
da gravura.
São Jorge usa botas como os fazendeiros
de minha terra.
E não é fazendeiro. São botas de guerra.
São Jorge mata o dragão. Mata os inimigos
de Deus na bacia do Rio Doce?
Fica longamente na penumbra
esperando cavalo e procissão
só um dia no ano: ele é São Jorge
mesmo.
No mais, uma espera colossal.
Nunca vou esquecer a palavra ingrediente
no plural.
À tarde, Arabela conversava
com Teresa, na sala de visitas.
Passei perto, ouvi:
— Custódio tem todos os ingredientes
para ser bom marido.
Se me pedir a mão, papai não nega.
— Quais são os ingredientes?
a outra lhe pergunta.
Arabela sorri, sem responder.
Guardo a palavra com cuidado,
corro ao dicionário:
continua o mistério.
Suicida-se o noivo de Carmela,
antes noivo de Isaura.
Desfeito o primeiro compromisso,
Carmela esperava-o do alto da sacada.
Para entrar, não precisa bater palmas
o amor. De uma rua
a outra rua, transita, pesquisando.
É Carmela a escolhida. E agora o noivo mata-se
com insabido veneno, sem uma palavra.
Duas moças vivendo a morte muda.
Nenhuma vai ao enterro. Proibido
chorar em público morte de infiel.
Cada uma em seu quarto solteiríssimo,
escurecido em quarto de viúva.
Isaura: Se não havia de ser meu,
nenhum dedo terá sua aliança.
Carmela: Todas duas fomos derrotadas
ou ninguém perdeu,
ganhou ninguém?
As fronhas são esponjas
de lágrimas secretas.
Falam tanto dessa moça. Ninguém viu,
todos juram.
Cada qual conta coisa diferente,
e todas concordantes.
Dizem que à noite, ela. Ela o quê?
E com quem? Com viajantes
que somem sem rastro
gabando no caminho
os espasmos secretos (tão públicos) da moça.
Sobe a moça
a ladeira da igreja
para a reza de todas as tardes.
De branco perfeitíssimo,
alta, superior, inabordável
(luxúria de mil-folhas sob o véu,
murmura alguém).
À noite é que acontecem coisas
no quarto escuro. Ganidos de prazer,
escutados por quem? se ninguém passa
na rua de altas horas-muro?
Pouco importa, a moça está marcada,
marca de rês na anca, ferro em brasa
de língua popular.
A servente da escola mora no Campestre,
longe, sai de casa sem café.
Desce a ladeira, vai parando,
assuntando o que se passa na Rua de Santana
e em toda parte.
Última estação: aqui em casa.
Toma café reforçado, conta
o que há ou não há ou pode haver
sob as telhas escuras da cidade.
Conta naturalmente, sem malícia,
jornal falado das nove horas.
E ao serviço, antes que toque
a sineta irrevogável de Mestre Emílio.
Ficamos sabendo de tudo de todos.
Ficarão sabendo tudo de nós,
amanhã, de manhã,
na Rua de Santana e em qualquer parte?
Largou a venda, largou o dinheiro,
largou a amante sem se despedir.
Foi para o Rio fazer o quê?
Sentar no banco em frente ao Supremo
Tribunal Federal,
estourar a tiro a própria cabeça,
fazendo justiça
a si mesmo, crime
ignorado até de si mesmo.
A carta de suicida
— “Me firmo Abraão Elias” —
nada esclarece.
Já vou dormir, não vou dormir.
No silente Caminho Novo,
sete tiros de carabina.
Eu nada escuto do meu quarto.
Ninguém escuta, de tão longe.
Mas adivinho sete tiros
estampados na noite fria.
É João Pupini festejando
seu natalício italiano,
atirando contra as estrelas
o chumbo gaio de estar vivo.
É João Pupini ameaçando
o sono azul do município,
o equilíbrio e a paz do mundo.
Já se eriça, irado, o bigode
marcial de Guilherme 2o
O czar, o king George, Francisco
José e mais altas potências
protestam contra o despropósito
de João Pupini fazer anos
declarando guerra mundial.
O delegado de polícia,
sentinela internacional,
convoca seu destacamento:
“Eia, sus, ao Caminho Novo,
a prender o guerreiro doido,
que além de ser mau elemento
vota sempre na oposição.”
Sua casa logo arrombada
a coronha, facão e ombro,
João Pupini dá o sumiço
pelos fundos de treva e brejo,
embolado mais a família,
pois lutar contra a Força Pública,
nem o ousara Napoleão.
Mas é preso nos vãos atalhos
em que zaranza atarantado,
e recolhido à enxovia
o formidando atirador.
Nem Deus te salva, João Pupini!
(fico cismando, no sem sono
de carabina, junho e noite.)
Solitário, incomunicável,
Pupini diz: “Vou suplicar
à autoridade justiciosa
o direito de fazer anos
e jovialmente celebrá-lo”.
Mas retrucam-lhe: “Assine e sele
petição na forma da lei”.
Onde papel, no úmido escuro
do xadrez todo enxadrezado
de feros ferros e ferrolhos?
Onde estampilha, Deus do céu,
se só uma barata sela,
no chão da cela, madrugada,
a prova de estar acordada?
Sem requerer, como provar
que entre mil mortos e feridos
pela arma-fúria de Pupini,
estão todos salvos, tranquilos?
Como explicar ao Presidente,
a Hermes, Pinheiro, Jangote,
que ninguém fez mal a ninguém?
Tiro de noite é novidade
na cidade sem distração
e noite por demais comprida?
O rádio está por inventar,
a televisão, nem se fala.
Quem tem fogo vai despejá-lo
na horta gelada, por que não?
Ainda há dias, rente ao quartel,
no rancho insone do Thiers,
tiros sem alvo pipocaram,
ninguém foi preso, até foi bom
ouvir alguém vencer o tédio
detonando a salva nervosa
que infundia vida ao mar morto.
Mas João Pupini, suspeitado
(suspeita, não: certeza plena)
de sorrir para os perdedores
da eleição presidencial;
João ruísta, João subversivo,
João celebrar seu nascimento
a poder de bala, o bandido?
Lá dorme João no chão sem lã.
Estou sentindo: a poucos passos
da cadeia ali bem em frente,
e dormirá tempos e luas,
se mistas alvoroçados
não soltarem pelas quebradas
o latino grito: Habeas corpus.
(Que só mais tarde entenderei.
Por enquanto, perto de mim,
algo se passa, impercebido,
como sempre se passam coisas
no deserto Caminho Novo
ou
neste menino peito ansioso.)
Não passa de janeiro.
Ou cai agora ou não me chamo
Flordualdo.
— Esta ponte cair? Meu avô foi quem fez.
Ninguém vivo, atual, dura mais do que ela.
Esta ponte é de Deus,
é Deus quem toma conta
da madeira e dos ferros,
eterno, tudo eterno.
— Pois eu digo que sim.
Repare nos buracos
Você passa e ela treme
de velhice. O caruncho
alastrado nas vigas.
Esta ponte é o diabo,
ela está condenada
só você que não sabe.
— Alto lá.
Esta ponte é sagrada.
É ponte de família
que meu pai ajudou
a tirar da cabeça
e a dominar as águas.
Ela há de viver
nos séculos dos séculos
contra caruncho e raio,
dinamite e praga.
E pra encurtar conversa,
eu Mateus te afianço:
antes que a ponte caia,
você cairá da ponte
com esta bala certeira:
toma.
bunda de tanajura torradinha?
— De tanajura, cumpádi,
inté hoje não.
não tosse.
Não precisa tossir
para provar que continua tísico.
Rosto esverdinhado, barba por fazer,
pescoço envolto em lã xadrez,
roupa de brim dançante no esqueleto,
o tísico da cidade quando morre?
Cumprimentado de longe,
ninguém lhe aperta a mão.
Alguém já viu micróbios passeando
em seus ossudos dedos pré-defuntos.
Sua voz mal ouvida é som de longe, de onde
ninguém volta, ou só voltou
em véus de assombração. Terá morrido
o tísico, e transita,
pausado, de brim cáqui, em dia azul?
Morre de congestão o velho indagador,
de ataque morre súbito o fortudo
professor de ginástica. Morrem outros
de 20 anos, rapazes não marcados.
O tísico, vai tossindo, enterra todos.
De tanto ouvir falar, já decorei
e me arrepio.
Cancro gálico ozena
três nódoas indeléveis
no andar, na roupa, na lembrança.
Pior do que matar.
Pior até do que furtar.
Ninguém aperte a mão
daquele que tiver
cancro
gálico
ozena.
Só se cumprimente de longe
sem tocar na aba do chapéu.
Todo medo é pouco.
Não apenas o corpo:
o próprio nome do infeliz
fica nojento.
pelas almas do Purgatório,
rezai a Salve-Rainha,
Padre-Nosso, Ave-Maria,
as rezas que decorastes
no tempinho de criança.
Pelas almas,
pelas almas do Purgatório,
atirai vossas migalhas
sobre o vazio da Praça.
Têm fome de Deus as almas
e enquanto o não vão comendo
se consolam com esses restos.
Pelas almas,
pelas almas do Purgatório,
desapertai vossas bolsas,
na sacola esfarrapada
quando bate à vossa porta
em nome da eternidade
o aleijado irmão das almas.
Pelas pobrinhas das almas.
I
E chega a hora negra de estudar.
Hora de viajar
rumo à sabedoria do colégio.
Além, muito além de mato e serra,
fica o internato sem doçura.
Risos perguntando, maliciosos
no pátio de recreio, imprevisível.
O colchão diferente.
O despertar em série (nunca mais
acordo individualmente, soberano).
A fisionomia indecifrável
dos padres professores.
Até o céu diferente: céu de exílio.
Eu sei, que nunca vi, e tenho medo.
Vou dobrar-me à regra nova de viver.
Ser outro que não eu, até agora
musicalmente agasalhado
na voz de minha mãe, que cura doenças,
escorado
no bronze de meu pai, que afasta os raios.
Ou vou ser — talvez isso — apenas eu
unicamente eu, a revelar-me
na sozinha aventura em terra estranha?
Agora me retalha
o canivete desta descoberta:
eu não quero ser eu, prefiro continuar
objeto de família.
II
o cavalo arreado, o alforje
da matalotagem,
o burrinho de carga,
o camarada-escudeiro, que irá
na retaguarda,
meu pai-imperador, o Abre-Caminho.
Os olhos se despedem da paisagem
que não me retribui.
A casa, a própria casa me ignora.
Nenhuma xícara ou porta me deseja
boa viagem.
Só o lenço de minha mãe fala comigo
e já se recolheu.
III
no universo sem estradas.
São morros de não-acaba
e trilhas de tropa lenta
a nos barrar a passagem.
Pequenos rios de barro
sem iaras, sem canoas
e uns solitários coqueiros
vigiando mortas casas
de falecidas fazendas.
Ou são mergulhos na lama
de patas que não têm pressa
de chegar a Santa Bárbara.
Quando termina a viagem,
se por acaso termina,
pois vai sempre se adiando
o pouso que o pai promete
a consolar o menino?
Que imenso país é este
das Minas fora do mapa
contido no meu caderno?
Que Minas sem fim nem traço
de resmungo entre raríssimos
roceiros que apenas roçam
mão na aba do chapéu
em saudação de passante?
O cavalgar inexperto
martiriza o corpo exausto.
Se bem que macia a sela,
deixa o traseiro esfolado.
Até que afinal, hosana!
apeando em São Gonçalo
diante da suspirada
venda de Augusto Pessoa,
meu pai, descansando, estende-me
o copo quente e divino
de uma cerveja Fidalga.
Bebi. Bebemos. Avante.
IV
Tenho que assimilar a singularidade
do trem de ferro.
Sua bufante locomotiva, seus estertores,
seus rangidos, a angustiante
ou festiva mensagem do seu apito.
Ah, seus assentos conjugados de palhinha
sobre o estofo.
Nunca viajei em bloco, a vida
começa a complicar-se.
Novidade intrigante, o sabonete
preso na corrente.
Minha terra era livre, e meu quarto infinito.
na ponta da língua,
tão fácil de falar
e de entender.
A linguagem
na superfície estrelada de letras,
sabe lá o que ela quer dizer?
Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,
e vai desmatando
o amazonas de minha ignorância.
Figuras de gramática, esquipáticas,
atropelam-me, aturdem-me, sequestram-me.
Já esqueci a língua em que comia,
em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a prima.
O português são dois; o outro, mistério.
Cette Hélène qui trouble et l’Europe et l’Asie,
mas o professor é distraído,
não vê que a classe inteira se aliena
das severas belezas de Racine.
Cochicham, trocam bilhetes e risadas.
Este desenha a eterna moça nua
que em algum país existe, e nunca viu.
Outro some debaixo da carteira.
Os bárbaros. Será que vale a pena
ofertar o sublime a estes selvagens?
O Professor Arduíno Bolivar
fecha a cara, abre o livro.
Ele não os despreza. Ama-os até.
Podem fazer o que quiserem.
Ele navega só, em mar antigo,
a doce navegação de estar sozinho.
Tine a campainha.
Acabou a viagem, no fragor
de carteiras e pés.
O professor regressa ao rígido
sistema métrico decimal das ruas de Belo Horizonte.
Irmão Paulo, encarregado da livraria
e do ensino de Goethe a principiantes,
leu um único livro em sua vida:
Arte de Dar Cascudos,
que ele pratica bem, mas não ensina.
Os lábios assustados ficam mudos
para sempre, em germânico.
Declina a tarde sobre o match
indefinido.
O Instituto Fundamental envolve o adversário.
A taça já é sua, questão de minutos.
Mas Abgar, certeiro, irrompe
de cabeçada,
conquista o triunfo para o deprimido
team confuso do Colégio Arnaldo.
Olha aí o Instituto siderado!
Despe Abgar o atlético uniforme,
simples recolhe-se ao salão de estudo
para burilar um dolorido
soneto quinhentista:
Em vão apuro a minha fortitude,
Senhora, por vencer o meu amor...
O Meirinho, o Meirão. Um é craque na bola,
o outro, caricaturista. A vontade que sinto
de ter nascido J. Carlos e vencê-lo.
Dos três irmãos Lins, Ivan ainda não conhece
Auguste Comte e já se mostra sábio.
Capanema, o estudante
três vezes estudante, e completo.
O completo vadio,
ignoro se sou. Sei que não sei
estudar, e isto é grave. Jamais aprenderei.
Vou rasgando papéis pelo pátio varrido.
Todos riem baixinho. Volto-me,
pressentimento.
Atrás de mim Padre Piquet vem, passo a passo,
pousa em meu ombro a punição.
Que vais fazer no dia de saída?
Acaso vais reinventar a vida?
Dizendo adeus a negras matemáticas,
nunca mais voltar ao colégio férreo?
Montar em pelo o macho Trintapatas
e galopar no rumo do Insondável?
Buscar destino de cigano ou pária,
livre pra lá da Serra do Curral?
Vais procurar o que é vedado e chama:
a pedra, o som, o signo, a senha, o sumo?
— Vou visitar os tios e os padrinhos.
Vou chateá-los e chatear-me, apenas.
(Preceito Dez, das Tábuas da Família.)
Por que ruas tão retas?
Meu passo torto
foi regulado pelos becos tortos
de onde venho.
Não sei andar na vastidão simétrica
implacável.
Cidade grande é isso?
Cidades são passagens sinuosas
de esconde-esconde
em que as casas aparecem-desaparecem
quando bem entendem
e todo mundo acha normal.
Aqui tudo é exposto
evidente
cintilante. Aqui
obrigam-me a nascer de novo,
desarmado.
PARQUE MUNICIPAL
I
O portão do colégio abre-se em domingo.
Toda a cidade é tua e verde.
O Parque o barco o banco o leque
Do pavão em grito e cor fremindo o lago
sem que as estruturas de silêncio
desmoronem.
Quem passa? Nada passa. Aqui o tempo
aqui o ramo aqui o caracol
em ar benigno se entrelaçam, duram
eternamente a vez de contemplá-los.
Voltar? Para onde e que, se existe onde
além deste? se em vão as matemáticas,
as químicas, preceitos...
És o Parque, total.
Nem desejas ser planta, estás embaixo
de toda planta, simples terra.
Por que se destaca da palmeira
o pederasta
e faz o gesto lúbrico, sorri?
II
A natureza é imóvel.
A natureza, tapeçaria
onde o verde silente se reparte
entre caminhos que não levam a nenhum lugar.
São caminhos parados. De propósito.
O lago, tranquilidade oferecida.
A pontezinha rústica de cimento
não é feita para ninguém passar
de um ponto a outro.
Feita para não passar.
A pontezinha sou eu ficar imóvel
por cima da água imóvel
na tapeçaria imóvel para sempre.
O barquinho da margem devia ser queimado.
O deslizante cisne destas águas,
nem simbolista nem parnasiano;
a tartaruga em si mesma trancada;
as rêmiges de fogo no viveiro;
o cris da areia em solas transeuntes;
o guarda que de inerte se assemelha
às árvores, e árvore é com sua farda;
o macaco brincando de ser gente;
a foto de jornal sobre o canteiro;
essa flor que nasceu sem dar aviso
nos ferros rendilhados do gradil;
a caixa envidraçada de empadinhas
e cocadas baianas logo à entrada;
o ver, em si, como ato de viver;
o perder-se e encontrar-se nas aleias,
no entrelaçar de curvas sombreadas,
de onde espero surgir alguma ninfa
sem que surja nenhuma (e continuo
procurando a metáfora do sonho);
o barquinho alugado por sessenta
minutos, e o perfume, que é gratuito,
de resinosos troncos tutelares
desta gentil paisagem recolhida;
uma cantiga — ó minha Carabu...
entoada à distância e logo extinta;
o torpor que a meu ser eis se afeiçoa
na vontade, de relva, de reflexo,
de sopro, de sussurro me tomar;
a ausência de relógio e de colégio,
de obrigação, de ação, de tudo vão.
Primeira livraria, Rua da Bahia.
A Carne de Jesus, por Almáquio Diniz
(não leiam! obra excomungada pela Igreja)
rutila no aquário da vitrina.
Terror visual na tarde de domingo.
Volto para o colégio. O título sacrílego
relampeja na consciência.
Livraria, lugar de danação,
lugar de descoberta.
Um dia, quando? vou entrar naquela casa,
vou comprar
um livro mais terrível que o de Almáquio
e nele me perder — e me encontrar.
perdi o domingo.
Posso saber tudo
das ciências todas,
dar quinau em aula,
espantar a sábios
professores mil:
comportei-me mal,
não saio domingo.
Fico vendo mosca
zanzar e zombar
de minha prisão.
Um azul bocejo
derrama-se leve
em pó de fubá
no pátio deserto.
Não há futebol,
não quero leitura,
conversa não quero,
vai-se meu domingo.
Lá fora a cidade
é mais provocante
e seu pálio aberto
recobre ignorantes
dóceis ao preceito.
Que aventura doida
no domingo livre
estarão desfiando
enquanto eu sozinho
contemplo escorrer
a lesma infindável
do meu não domingo?
Digo nomes feios
(calado, está visto).
Não vá ser-me imposta
a perda total
de quantos domingos
Deus for programando
em Minas Gerais.
Abomino a ordem
que confisca tempo,
que confisca vida
e ensaia tão cedo
a prisão, perpétua
do comportamento.
Resumo do Brasil no pátio de areia fina.
Sotaques e risos estranhos.
Continente de almas a descobrir
palmo a palmo, rosto a rosto,
número a número,
ferida a ferida.
Mal nos conhecemos, a palavra-mistério
na pergunta-sussurro
é pedrada na testa:
— Você gosta de foder?
Sou anarquista. Declaro honestamente.
(A tarde vai cerzindo no recreio
o pano de entrecortada confissão.)
Espanto, susto. Como?
O quê? Por quê? Explica essa besteira.
A solução é a anarquia. Sou
anarquista. Nem de longe vocês captam
o sublime anarquismo. Sou.
Com muita honra. Mas vocês, que são?
Vocês são uns carneiros
de lã obediente.
Zombam de mim. Me vaiam: Anarquista
a-nar-quis-tá a-nar-quis-tá-tá!
(Medo de mim, oculto em gozação?)
O bicho mau, o monstro repelente
conspurcando o jardim de Santo Inácio.
Avançam. Topo a briga. Me estraçalho
lutando contra todos. Furor mil.
Morro ensanguentado. Não. Não mato algum
nem me tocam sequer.
Negro e veloz, chegou a tempo
o Padre, e me salva do massacre
porém não do apelido: o Anarquista.
imediatamente.
Diz a Papai que venha me buscar.
Não fico aqui, Mamãe, é impossível.
Eu fujo ou não sei não, mas é tão duro
este infinito espaço ultrafechado.
Esta montanha aqui eu não entendo.
Estas caras não são caras da gente.
E faz um frio e tem jardins fantásticos mas sem
o monsenhor, o beijo, a crisandália
que são nossos retratos de jardim.
Da comida não queixo, é regular
mas falta a minha xícara, guardou
para quando eu voltar?
Ai Mamãe, minha Mãe, o travesseiro
eu ensopei de lágrimas ardentes
e se durmo é um sonhar de estar em casa
que a sineta corta ao meio feito pão:
hora de banho madrugadora
de chuveiro gelado, todo mundo.
Nunca tomei banho assim, sou infeliz
longe de minhas coisas, meu chinelo,
meu sono só meu, não nesta estepe
de dormitório que parece um hospital.
Mamãe, o dia passou, mas tão comprido
que não acaba nunca de passar.
Um ano à minha frente? Não aguento.
Mas vou fazer o impossível. Me abençoe.
E faz um frio... A caneta está gelada.
Não te mando esta carta
que um padre leria certamente
e me põe de castigo uma semana
(e nem tenho coragem de escrever).
Esta carta é só pensada.
ao dinheiro do “bolsinho”
para comprar gulodices
e outros gastos fantasistas.
Mas o bolso do uniforme
jamais viu esse dinheiro
fornecido pelos pais.
Fica na tesouraria.
Sexta-feira a gente faz
o pedido por escrito:
“Quero quatro bons-bocados
e um pote de brilhantina.”
Domingo no pátio a hora
de entrega das encomendas:
“Não se encontrou bom-bocado,
aqui estão quatro mães-bentas.
Quanto à brilhantina, excede
o limite do bolsinho
e as dimensões da vaidade.
Poupe mais o seu dinheiro.”
já prelibando a gostosura,
e o doce cai no chão de areia, droga!
Olha em redor. Os outros viram.
Logo aquele doce cobiçado
a semana inteira, e pago do seu bolso!
Irá deixá-lo ali, só porque os outros
estão presentes, vigilantes?
A mão se inclina, pega o doce, limpa-o
de toda areia e mácula do chão.
“Se fosse em casa eu não pegava não,
mas aqui no colégio, que mal faz?”
de fervor maquinal.
Em fila religiosa penetramos
na haendeliana atmosfera do órgão,
no incenso do recinto.
Cada um de nós pensa em outra
coisa diferente de Deus.
Ai, nosso Deus compulsório!
Proibido olhar o fundo da capela
onde rezam as moças de Friburgo,
as inacessíveis, castelanárias
moças friorentas de Friburgo.
Alguma delas me vê, sabe que existo?
Um dia notará que penso nela,
sem que eu saiba sequer em qual eu penso?
Se acaso, prosternado,
eu virasse o pescoço e vislumbrasse
entre rostos o rosto que me espera
e ele me sorrisse,
a vida era de súbito radiante,
o colégio era a Grécia, a Pérsia, o Não Narrável.
Baixo, entanto, a cabeça,
ouço a voz do oficiante, monocórdia.
Convida-me a pastar arrependimento
de faltas nem de longe cometidas,
obscuros crimes em ser.
Moça alguma verei no só relance
de entrada e saída, em fila cega.
plangem veteranos:
“Nosso jornalzinho
não é mais aquele.
Foi-se a Academia
de jovens talentos.
Os restantes árcades
jogam futebol.
Agora, estilistas,
só na arte do pé.
Somem os poetas,
vão-se os prosadores.
Não há mais cultura
e se depender
dessa geração
de racha-piões,
que irá restar
do nosso idioma
e nossa tradição?
Ah, nos velhos tempos
isso aqui andava
cheio dos Camões,
dos Ruis, dos Bilacs
e dos Castros Lopes...
a aurora de dedos róseos
pousava todas as manhãs
por obrigação.
Não assim tão róseos.
Nossa aurora particular baixa num vapor
de frio do alto da serra, e mal nos vemos,
errantes, no recreio, em meio a rolos
de névoa.
Outra aurora eu namoro: a Colegial.
Quatro páginas. Quinzenal. 300 réis.
“Periódico da Divisão dos Maiores.”
Quero escrever, quero emitir clarões
de astro-rei literário em suas edições.
Dão-me, que esplendor, primeira página,
primeira, soberbíssima coluna.
É a glória, entre muros, mas a glória.
Contemplo, extasiado,
o meu próprio talento em letras públicas.
Ler? Não leio não.
Quero é sentir meu nome, com a notinha:
“Aluno do segundo ginasial.”
Já são quatro da tarde.
Até agora ninguém
veio gabar-me a nobre criação.
Ninguém gastou 300 réis para me ler?
Será que meu escrito
não é lá uma peça tão sublime?
Decido-me a encará-lo mais a fundo.
Vou me ler a mim mesmo. Decepção.
O padre-redator introduziu
certas mimosas flores estilísticas
no meu jardim de verbos e adjetivos.
Aquilo não é meu. Antes assim,
ninguém me admirar.
Que vem fazer este ratão sem rabo
no rancho dos Maiores, provocando
tamanha bulha que derruba a mesa
de pingue-pongue em pleno jogo
e entra o center-forward com bola e tudo
no goal-post sem goalkeeper
e arregaça o prefeito a negra túnica
para correr atrás do bicho insólito
e a disciplina se desfaz em pândega?
Que quer dizer esse rabão sem rato
na ratoeira do pátio dos Médios
despojada de queijo,
senão que nos Médios ninguém sabe
pegar de um rato mais que seu apêndice?
A pau e pontapé vamos caçá-lo e,
está claro, vivo devolvê-lo
com os nossos cumprimentos
ao sítio de onde veio
para que, unindo rabo e rato, aqueles frouxos
saibam matar um rato por inteiro.
na mão.
Que vantagem, pegar em cobra morta?
Decerto nem foi ele quem matou.
Achou a cobra inanimada,
exibe-a qual troféu.
É uma cobra verde — reparamos,
admirável cobrinha toda verde,
lustroso verde nítido novinho
como não é qualquer planta que o possui.
Estaco, deslumbrado.
Se eu pudesse guardá-la para mim,
enfeitar a carteira com seu corpo...
— Você me vende essa bichinha?
A caminho do refeitório, admiramos pela vidraça
o leque vertical do pavão
com toda a sua pompa
solitária no jardim.
De que vale esse luxo, se está preso
entre dois blocos do edifício?
O pavão é, como nós, interno do colégio.
Queria por toda lei
desaparecer num relâmpago.
Foi encurralada
e é recolhida,
orelhas em pânico,
ao pátio dos pavões estupefatos.
Lá está, infeliz, roendo o tempo.
Eu faço o mesmo.
Bicanca, Sapo Inchado, Caveira Elétrica,
Pistola Dupla, Zé Macaco, Apara Aí,
Quisira,
Marreco,
Massa Bruta...
Ainda bem que o apelido de Anarquista
tem certa dignidade assustadora.
Isso consola?
Lorena, contemplado com malícia,
deixa-se estar, languidamente efebo.
Bailam, sob a atração de luz ambígua,
em seu redor, mutucas de desejo.
E Lorena sorri, sua cabeça
responde não aos gestos insistentes.
Que matéria excitante para o arpejo
noturno, antes-depois da penitência!
Dormir sonham os Grandes com Lorena,
mas onde? quando? se este ano letivo
dura uma eternidade, pelo menos,
e depois vem o tempo, o tempo livre
de viajar na coxa das mulheres,
e Lorena se esgarça na lembrança?
Maestro Azevedo, em hora de inspiração,
compõe a Marcha de Continência
que a banda executa com bravura
dócil.
Vêm depois Salut au Drapeau, de Van Gael,
Per la Bandiera, de Lamberti.
Sem esquecer, meu Deus, a Canção do Soldado
que nos acompanha até no passeio geral,
espontânea, sem banda, imperiosa,
no garganteio, no assobio.
As bandas!
Para isto existem elas
e também para dispensar de aula
os músicos na hora de ensaiar.
Se eu soubesse tocar alguma coisa
no mínimo instrumento (ao menos fingir que...)
Nada, rendosamente nada.
Tenho que marchar, canhestro, em continência.
Strutt e Mancini, os dois maestros,
me levam para o outro lado da música.
O cisne de Saint-Saëns é um lírio no lago
do violino.
Grieg ressoa em primavera.
Manon
Massenet
minueto
mais a sonata de Corelli, a Berceuse de Weber.
e já bêbados
de celeste piano e de sublimes cordas,
ouvimos, cochilando,
o Noturno de Chopin e o noturno de Strutt
pela mesma orquestra, sob a mesma
chuva estrelada de palmas das famílias presentes.
o violoncelo de Luís Eduardo,
o violino de Clibas,
quem, entre Grandes, Médios e Menores,
suplantará?
O piano, talvez, de Luís Cintra?
O violoncelo de Henrique?
O violino de Vítor Saraiva?
Alguém, ainda, que vai nascer?
Empate. Empate. Empate. O jeito
é fazer com que toquem sempre aos pares,
imbatíveis.
Não gostei do Martírio de São Sebastião.
Pouco realista.
Se caprichassem um tanto mais?...
Prefiro mil vezes Max Linder Asmático.
Ah, que não tarde a vir do Rio
o anunciado Catástrofe Justiceira.
Deve ser formidável.
Repito baixinho:
Catástrofe Justiceira. Catástrofe.
Que pensamento diabólico se insinua
no gozo destas sílabas?
Até agora só tivemos coisas como O Berço Vazio,
O Pequeno Proletário,
Visita ao Jardim Zoológico de Paris.
Não me interessam documentários insípidos.
Quero uma boa catástrofe bem proparoxítona,
mesmo não justiceira. Mesmo injusta.
Será que na sessão do mês que vem
terei este prazer?
Há os que assobiam Meu Boi Morreu,
os que cantarolam Luar do Sertão.
O 48, da Divisão dos Médios,
embala o pensamento repetindo:
Santo Inácio de Loiola,
fundador desta gaiola
Vai distraído pelo pátio.
Escutam-no, levam-no à cafua.
Em vão tenta explicar
que o verso não é seu,
é de todo mundo,
é de ninguém.
Fica em solidão o tempo necessário
para aprender, contrito,
que com Santo Inácio não se brinca
nesta gaiola.
Não entendo, não engulo este latim:
Perinde ac cadaver.
“Você tem que obedecer como um cadáver.”
Cadáver obedece?
Tanto vale morrer como viver?
Para isso nos chamam, nos modelam?
Bem faz Padre Filippo:
cansado de obedecer, vai dar o fora
para viver no mundo largo
a fascinante experiência de só receber ordens
do seu tumultuoso coração.
e guris, que obedecem,
entre aulas a dar
o mês inteiro, a vida inteira, a inteira eternidade
(não cresça o Brasil afastado da ciência
nem do Senhor acima de toda ciência)
e sob a esperança do Paraíso,
o padre português, no confessionário,
antes que o pecador
debulhe seus pecados
indaga:
“Quantas vezes mexeste no pirolito?”
Finda a obrigação,
recolhe-se ao quarto ascético,
dedica-se ao aperfeiçoamento
de sua invenção, o ovoscópio,
que identifica os ovos chocos
e os separa dos bons,
assim como Deus, no Juízo Final,
vai separar as almas santas e as corruptas.
com a mesma nitidez.
Não aprende Alaor
a modelar o som.
Rotina de internato
era esperar o toque
tornado familiar
até para acordar.
O tocador bisonho
lanha nosso equilíbrio.
Éramos resignados,
eis-nos hoje assustados.
Que nos promete o dobre
irregular e seco?
O som antigo evola-se,
deixa baixar o medo.
chegar talvez aos pés de Lídio, o sábio,
que todas as medalhas arrebata
e mais arrebatara se as houvera,
terei de decifrar no jornalzinho
enigmas como este:
Quel est le célèbre empereur romain
qui n’avait pas le nez pointu?
Como saber, Jesus, se eles são mil
e nunca reparei em seus narizes?
Se o compêndio não dá senão uns raros
rostos glabros, de nariz romano?
Qual será: Calígula, Tibério?
Vitélio, Petrônio Máximo, Elagábalo?
Desisto de encontrar
a linha de um nariz,
a marca de um perfil,
a sorte de um aplauso.
— Néron (nez rond) sorri, piscando o olho,
o Padre Rubillon
ao avaliar a rasa superfície
de minha rasa ignorância.
em aula, no recreio, em qualquer parte
pois num país civilizado
entre estudantes civilizadíssimos,
a nata do Brasil,
o canivete é mesmo indesculpável.
Recolham-se pois os canivetes
sob a guarda do irmão da Portaria.
Fica permitido o canivete
nos passeios à chácara
para cortar algum cipó
descascar laranja
e outros fins de rural necessidade.
Restituam-se pois os canivetes
a seus proprietários
com obrigação de serem recolhidos
na volta do passeio, e tenho dito.
Só que na volta do passeio
verificou-se com surpresa:
no matinho ralo da chácara
todos os canivetes tinham sumido.
Não é à toa que Sabino, dos Maiores,
à falta de instrumentos confessáveis,
monta a indústria do caxerenguengue.
E afia fino o fio enferrujado,
alisa a lâmina sem cabo
que encontrou não sei onde, obstinado
à procura de ferro-aço cortante.
Trabalhando em surdina, já prepara
três caxerenguengues razoáveis.
Vou aperfeiçoar — diz ele — o meu produto,
é claro, não já por um mil-réis.
Cada cliente dele, sub-reptício,
porta em sigilo a arma bem brunida
que um dia servirá para ajudar
Nat Pinkerton na luta contra Raffles
o gatuno elegante,
ou, quem sabe? Raffles contra Nat,
além de préstimos menores e pacíficos.
Exemplo: o doce préstimo
de ter algo escondido em nossa vida.
café da manhã
com pão e manteiga.
Nesse pão de sempre
a manteiga é signo
de um dia feliz.
Uma vez por mês
passeio geral.
Saímos aos três
em fila informal,
vigilante ao lado,
no rumo sabido:
chácara do Braga.
Manhãzinha branca,
fantasmas nevoentos
saindo da bruma,
passamos na ponte
do Rio Bengalas.
Latões de tutu,
de linguiça e arroz
vão na carrocinha.
Uma vez por mês
é a liberdade
ou seu faz de conta
por algumas horas:
água, mato, riso,
canto, bola, gruta
onde se penetra
um de cada vez
e só entra quem
no peito escorraça
outro candidato.
Lá dentro gritamos
sob o teto baixo
chamando o paciente
mistério do eco.
Diverte-se o medo
na volta instantânea
ao adormecido
homem da caverna.
Que estrondo lá fora
transforma o brinquedo
em puro terror?
Os maximalistas
chegam a Friburgo
instaurando a guerra
em pleno passeio?
Saio a quatro pernas:
o boneco estranho,
o bicho-preguiça
que o Irmão Primavera
preparou com arte
e gordo recheio
de bombas e traques
explode na luz
qual fosse o demônio.
Uma vez por mês
acontecem coisas
não convencionais.
Sentados no chão
ou em tocos de árvore
nosso piquenique
é comer de deuses.
Come-se dobrado,
come-se com fome
de comer o raro
prazer do ar livre.
Mas que é isso? Um pingo,
outro pingo, pingos
na minha comida
que já se derrete
sob a chuva forte.
Depressa, correr
e pedir abrigo
na casa do Braga
onde uma sanfona
acompanha lenta
o chicote rápido
da chuva nas folhas.
Uma vez por mês
essa expectativa
de um dia feliz
ou dia frustrado.
Vigilante ao lado,
em fila de três
depois da estiada
a volta na lama
do chão encharcado.
Todo um mês à frente
a passar na espera
dessa vez por mês.
148 generais à frente de três Divisões
— Pequenos, Médios e Maiores.
Incontável o número de coronéis.
Estarei no colégio ou isto é o Exército?
Se os coronéis anelam promoção,
podem os generais ser rebaixados,
Cada patente não dura mais que dois meses.
Eu, general, neste bimestre?
Só porque estudei cem réis de geografia,
duzentos réis de português?
Meu Deus, é muita glória
para tão frágeis ombros ignorantes.
Jamais serei general em aritmética.
Bota parafuso no bico do pião.
Bota prego limado, bota tudo
pra rachar o pião competidor.
Roda, pião!
Racha, pião!
Se você não pode rachar este colégio
nem o mundo nem a vida,
racha pelo menos o pião!
(Mas eu não sei, nunca aprendi
rachar pião. Imobilizo-me.)
Noite azul-baço no dormitório onde três lâmpadas
de tom velado, controlam minha ensimesmada quietude.
Que faço aqui, longe de Minas e meus guardados,
neste castelo de aulas contínuas e rezas longas?
Prisão de luxo, todo conforto, luz inspetora
de sonhos ilícitos. Joelho esticado: nenhuma saliência
a transgredir a horizontal postura de sono puro.
Fria Friburgo, mas aqui dentro a paz de feltro.
No azul mortiço de oitenta camas, boiam saudades
de longes Estados, distintas casas, tantas pessoas.
Incochilável, o irmão-vigilante também passeia
sob cortinas sua memória particular?
Uns já roncando. O azul nublado envolve em rendas
de morte vaga os degredados filhos-família.
Fugir, nem penso. Mas fujo insone, meu pensamento
alcança o longe, apalpo-me egresso do grande cárcere.
Vou correndo, vou voando,
chego em casa de surpresa,
assusto meu pai-e-mãe:
— Não quero, não quero mais,
não quero mais voltar lá.
(É tudo que sai da boca,
é tudo que sei dizer.)
— Que papelão!
Se não voltar, te castigo,
te deserdo, te renego.
O dinheiro posto fora,
as esperanças frustradas,
botarei na tua conta
em cifras de maldição.
— O que o senhor fizer
está bem-feito, acabou-se,
mas não me tire de junto
da família e do meu quarto.
Me ponha tangendo gado
ou pregando ferradura,
me faça catar café,
aos capados dar lavagem,
mas eu não volto mais lá.
É bom demais para mim,
é tudo superior,
mas lá eu sou infeliz,
lá eu aprendo obrigado,
não por gosto de aprender.
Tem hora de liberdade
e hora de cativeiro
mas a segunda é total,
a primeira, imaginária.
Tem hora de se explicar,
hora de pedir desculpa,
hora de ganhar medalha,
hora de engolir chacota
(é a hora de ler a nota
do nosso comportamento),
hora de não reclamar,
hora de...
Por Deus, não quero voltar
a esse estranho paraíso
calçado de pão de ló,
futebol e humilhação.
— Já disse: está decidido.
Some da minha presença.
— Papai!...
A tosse ao lado me traz de volta ao azul-penumbra.
Quando termina, se é que termina, o meu exílio?
Que tempo é novembro, se ainda há novembro no calendário?
Na noite infinda, por que minha noite ainda é maior?
Fugir não adianta. Não adianta senão: dormir.
vem, ondulante, frequentar-me,
eu que não fumo.
Bem que o pai podia consentir:
“O 74 está crescido,
pode fumar dois Sônia por semana.”
Assim decide a lei,
aos Grandes permissiva,
quando o pai autoriza esse limite.
Privilégio de Grandes, e sou Grande.
Hei de fingir que fumo, se puder
levar à boca este direito
e à vista de todos a eminência
de ser fumante às claras.
Mas se eu pedir ao pai e ele me nega?
Pior: se ele concede?
Não sei, não sei tragar
(tragar, essencial entre varões).
Abomino o que sonho, me divido
e dividido entro na conjura
escusa dos fumantes clandestinos.
Atento às numerosas portas de privadas,
o Prefeito não vê que em cada uma
no tampo da latrina
um toco de cigarro está à espera
de ser fumado e conservado
para outro fumante e mais um outro
até que apenas cinza
desapareça na descarga.
Um infinito resto de cigarro,
mais duradouro que o cigarro inteiro,
e ai de quem esgote essa riqueza
ainda a tantos outros destinada.
Mas qual o desgraçado
a sair de boca aberta, revelando
o cheiro do prazer, ou que lá dentro
fez soltar a treda fumacinha
que a discrição das portas atravessa
e acaba com a festa das baganas
antes que eu (e sou Grande) participe?
Lá vou eu, de castigo, contemplar
por meia hora o ermo da parede.
Meia hora de pé, ante o reboco,
na insensibilidade das colunas
de ferro (inaciano?) me resgata.
Eis que eu mesmo converto-me em coluna,
e já não é castigo, é fuga e sonho.
Não me atinge a sentença punitiva.
Se pensam condenar-me, estão ilusos.
A liberdade invade minha estátua
e no recreio ganho a azul distância.
que vamos delineando no recreio
há de ser celebrado toda a vida
como arte maior do nosso tempo.
O risco não é nosso. Irmão Luís
concebeu o mirífico traçado,
mas se ajudo na obra estou feliz.
Cada bloco amarelo é meu florão.
Medieval já me sinto a construir
a catedral em ouro friburguense,
em parte, pelo menos, coisa minha.
Contemplo a criação. Deus fez o mesmo?
Talvez. E enciumado, num momento,
destrói nosso tapete a chuva e vento.
— Otávio, Otávio, que negócio é este?
Vadias ano inteiro e te despedes
com o peito faiscando de medalhas.
— É, troquei-as por bombas e brioches
semana após semana, mês a mês,
e muito me custou esta grandeza.
Passei fome... e alimento-me de glória.
ESPLENDOR E DECLÍNIO DA RAPADURA
Os meninos cariocas e paulistas
de alta prosopopeia
nunca tinham comido rapadura.
Provam com repugnância o naco oferecido pelo mineiro.
Pedem mais.
Mais.
Ao acabar, há um pequeno tumulto.
Daí por diante todos encomendam rapadura.
Fazem-se negócios em torno de rapadura.
Há furtos de rapadura.
Conflitos por causa de rapadura.
Até que o garoto de Botafogo parte um dente
da cristalina coleção que Deus lhe deu
e a rapadura é proscrita
como abominável invenção de mineiros.
parecem pressurosas
de ofertar
ao amado Reitor
ao bondoso Ministro
ao querido Prefeito
a fragrância de suas pétalas.
Colhei-as e aspirai-as
e que o suave olor
por elas derramado
vos permita esquecer
pequenos dissabores
passageiros desgostos
que nossa irreflexão
já vos tenham causado.
Arrependidos pois,
ousamos implorar
um indulto completo,
bem assim prometemos
envidar mil esforços
para que dora em diante
nosso procedimento
só vos desperte júbilo
como indenização
pelo passado.
Feliz aniversário,
muitas felicidades!”
São festejados com discursos.
Fazem anos os padres importantes.
Envolve-os o aroma de discursos.
Convalescem os padres de sombrias
pneumonias duplas.
Em discursos a alta se proclama.
Que fizeram de imenso?
Chegaram,
aniversariaram,
enfermaram,
escaparam.
A oratória celebra estes prodígios
em tropos sublimes. Como falam
bonito meus colegas.
Que anástrofes, metáforas, perífrases,
que Cíceros, Demóstenes e Ruis.
Na aula de Português eles nem tanto.
Mas é soltar o verbo, e jorram
estrelas em forma de vocábulos
para saudar nossos amados guias.
O espírito da eloquência
baixa de não sei onde e lhes inspira
rasgos terreais de Mont’Alverne.
É pena: ainda não vi
ninguém fazer um discursinho mesmo chocho
ao Irmão Falcão, enaltecendo
a grata, oportuna cervejinha
por ele fabricada.
fala do céu, essa infinita aurora
a que seremos todos transportados
se.
Fala também do abismo arquimedonho
em que, a gordurosas culpas amarrado,
de ponta-cabeça irei precipitar-me
se.
Nem preciso escutá-lo.
É pregador tão célebre, sua prédica
penetra na consciência sem passar
por distraída orelha.
Já deliberei: a santidade
é meu destino.
Juiz não quero ser, nem artilheiro,
médico, romancista ou navegante.
Quero ser e vou ser: apenas santo.
Pode voltar, Padre Natuzzi, descansado.
Em beatitude sorvo o almo silêncio
do pátio onde passeiam pensativos
os de ontem ruidosos palradores.
A alma! A alma! Que beleza é a alma!
Ela salva! E eu salvo com ela...
se não fosse
esse colega aí, rangente, a remoer
em voz informativa autorizada
vidas de santos, único a falar,
perturbando a minha salvação.
E santo já não sou,
mas barro e palavrão,
humana falha, signo terrestre.
fundando Nova Friburgo,
pois um século depois
esta semana de festas
celebra o acontecimento.
Menos aulas; mais saídas.
Vamos cantar pelas ruas
louvores a Deus e à Pátria,
mas vamos principalmente
ver as doces friburguenses
com quem sonhamos à noite
e mesmo durante o dia,
sonhamos... sem esperança.
Barcos no Rio Bengalas
despertam admiração
e mitos venezianos.
Pudéssemos nós levar
essas meninas nos barcos
e de rio em rio até
às ondas do mar infindo
para cruzeiros bem longe
dos padres que nos vigiam...
Carlos, não pense mais nisso,
contente-se em ver as flores
desabrochadas adrede
para exaltar os suíços.
Entre os alunos, cantores
de bela voz empostada
na missa campal entoam
motetes bem ensaiados.
Têm seu minuto de glória.
Você não sabe cantar.
Pegou então a espingarda,
saiu fardado e chibante
(não muito, é claro), formando
no batalhão escolar,
Tenente Brasil à frente,
nessa rude caminhada
ao ritmo da Pátria Amada.
Dor nas costas! A que vieram
esses suíços? Fundaram
sua colônia, e um colégio
depois se plantou aqui?
Estava bem descansado
em meu sobrado mineiro,
era rei da minha vida,
imperador de mim mesmo,
e agora essa confusão.
Friburgo Futebol Clube
acolhe nossos dois times.
Por 4 a 1 os vermelhos
ganham folgado dos pretos.
Você nem é dos vencidos.
Que faz aí, de boboca?
Já vem a sombra caindo
sobre o musgo das encostas
e os alados movimentos
e os bigarrados vestidos
das moças perturbadoras
em grupos pelos canteiros.
E quando a tarde falece
fica tudo mais difícil
no peito de aluno interno.
Adeus, cidade, adeus, vida
cá fora rumorejante.
Pior ainda na tarde,
pois já se acendem os fogos
da noite festejadora.
Toda Friburgo relumbra
de luzes especiais
e nós só podemos vê-las
do interior do chatô
como os cativos de Antero,
lidos em livro escondido,
contemplam o firmamento.
É nisso que dão leituras
de poesias sombrias.
A noite do centenário
da chegada dos suíços
é noite maior na gente.
Sentir que lá fora estão
se divertindo fagueiros,
que há risos, beijos, cerveja
e não sei mais que delícias,
e eu aqui me torturando
com tábua de logaritmos...
Vão pro inferno os centenários!
I
neste grande educandário,
o nosso aluno mineiro,
pacato, aplicado, ordeiro,
sai louvado com justiça,
por ter galgado na liça
este sonhado ouropel:
o posto de coronel
em francês, inglês, latim.
Que Deus o conserve assim.
II
após rigoroso exame
escrito, oral e o que mais,
de resultados cabais,
o nosso caro estudante
discreto, pouco falante,
conquistou em Português,
sem mas, porém ou talvez,
o ápice colegial
dos galões de general.
III
em cada hora e momento,
seja em aula ou no recreio,
na capela ou no passeio,
acordado e até no sono
(do que todos dão abono),
receberá hoje ufano
o prêmio maior do ano,
e que em silêncio não passe:
medalha de prima classe.
IV
no adiantado da hora
de nossa faina escolar
em forma complementar
com relação a este aluno
e que se torne oportuno
para melhor prepará-lo
qual adestrado cavalo,
da vida no páreo duro?
Que seja expulso — no escuro.
I
vivida sob inspeção,
dois anos jogados fora
ou dentro de um caldeirão
em que se fritam destinos
e se derrete a ilusão.
Já preparo minha trouxa
e durmo na solidão.
Amanhã cedo retiro-me,
pego o trem da Leopoldina,
vou ser de novo mineiro.
Da angústia a lâmina fina
começa a me cutucar.
É uma angústia menina,
ganhará forma de cruz
ou imagem serpentina.
Sei lá se sou inocente
ou sinistro criminoso.
Se rogo perdão a Deus
ou peço abrigo ao Tinhoso.
Que será do meu futuro
se o vejo tão amargoso?
Sou um ser estilhaçado,
que faz do medo o seu gozo.
II
Nada mais insuportável do que essa viagem de trem.
Se me atirassem no vagão de gado a caminho do matadouro
talvez eu me soubesse menos infeliz.
Seria o fim, e há no fim uma gota de delícia,
um himalaia de silêncio para sempre.
Não quero ouvir falar de mim.
Não quero eu mesmo estar em mim.
Quero ser o barulho das ferragens me abafando,
quero evaporar-me na fumaça,
quero o não querer, quero o não quero.
Como custa a chegar o chão de Minas.
Será que se mudou ou se perdeu?
Olho para um lado. Para outro.
O esvoaçar de viuvez
no todo preto da senhora à esquerda,
no preto dos vestidos, das meias e sapatos
de duas mocinhas de olhos baixos,
não tão baixos assim. Essa os levanta
cruza com os meus, detêm-se. O luto evola-se.
É um dealbar no trem tristonho,
sonata em miosótis, aragem na avenca
súbito surginte
em jarra cristalina.
Cuidados meus, desgraças minhas,
eia, fugi para bem longe.
O idílio dos olhos vos expulsa,
como expulso fui eu, ainda há pouco,
de outra forma — que forma? nem me lembra.
Vem do céu a menina e a ele me leva,
leves, levíssimos os dois.
Palavra não trocamos: impossível,
mãe presente.
E para que trocá-las, se nem sei
se vigoram palavras nesta esfera
diáfana, a que me vejo transportado?
Nem ideia de amor acode à mente,
que o melhor de amar não é dizer-se,
nem mesmo sentir-se: é nos abrir
a mais sublime porta subterrânea.
Estou iluminado
por dentro, no passado,
no futuro mais longínquo
e meu presente é não estar no tempo
e alçar-me de toda contingência.
De banco de palhinha a banco de palhinha,
entre fagulhas de carvão
fosforescentes na vidraça,
entre conversas e pigarros,
diante do chefe de trem que picota bilhetes,
torna-se a vida bem não desgastável
se a menina sorri
quase sem perceber que está sorrindo.
Nem a irmã reparou. Mas eu colhi
a laranja de flores deste instante
que vou mastigando como um deus.
Foi preciso sofrer por merecê-la?
Agora que a alcancei, não deixo mais
este comboio, este sol...
III
a estação de Entre Rios?
E por que se exige aqui baldeação
aos que precisam de Minas?
Já não preciso mais. Vou neste trem
até o infinito dos seus olhos,
Advertem-me glacialmente:
“Tome o trem da Central e vá com Deus.”
Como irei, se vou sozinho e sem mim mesmo
se nunca mais, se nunca mais na vida
verei essa menina?
Expulso de sua vista
volto a saber-me expulso do colégio
e o Brasil é dor em mim por toda parte.
A casa não é mais de guarda-mor ou coronel.
Não é mais o Sobrado. E já não é azul.
É uma casa, entre outras. O diminuto alpendre
onde oleoso pintor pintou o pescador
pescando peixes improváveis. A casa tem degraus de mármore
mas lhe falta aquele som dos tabuões pisados de botas,
que repercute no Pará. Os tambores do clã.
A casa é em outra cidade,
em diverso planeta onde somos, o quê? numerais moradores.
Tem todo o conforto, sim. Não o altivo desconforto
do banho de bacia e da latrina de madeira.
Aqui ninguém bate palmas. Toca-se campainha.
As mãos batiam palmas diferentes.
A batida era alegre ou dramática ou suplicante ou serena.
A campainha emite um timbre sem história.
A casa não é mais a casa itabirana.
Tenho que me adaptar? Tenho que viver a casa
ao jeito da outra casa, a que era eterna.
Mobiliá-la de lembranças, de cheiros, de sabores,
de esconderijos, de pecados, de signos,
só de mim sabidos. E de José, de mais ninguém.
Transporto para o quarto badulaques-diamante
de um século. Transporto umidade, calor,
margaridas esmaltadas fervendo
no bule. E mais sustos, pavores, maldições
que habitavam certos cômodos — era tudo sagrado.
Aqui ninguém morreu, é amplamente
o vazio biográfico. Nem veio de noite a parteira
(vinha sempre de noite, à hora de nascer)
enquanto a gente era levada para cômodos distantes,
e tanta distância havia dentro, infinito, da casa,
que mal se escutava gemido e choro de alumbramento,
e de manhã o sol era menino novo.
Faltam os quadros dos quatro (eram quatro) continentes:
América Europa Ásia África mulheres
voluptuosamente reclinadas
em coxins de pressentidas safadezas.
A fabulosa copa onde ânforas
dormiam desde a festa de 1898
guardando seus tinidos subentendidos,
guardando a própria cor enclausurada.
O forno abobadal, o picumã
rendilhando barrotes na cozinha.
E o que era sigilo nos armários.
E o que era romance no sigilo.
Falta...
Falto, menino eu, peça da casa.
Tão estranho crescer, adolescer
com alma antiga, carregar as coisas
que não se deixam carregar.
A indelével casa me habitando, impondo
sua lei de defesa contra o tempo.
Sou o corredor, sou o telhado
sobre a estrebaria sem cavalos mas nitrindo
à espera de embornal. Casa-cavalo,
casa de fazenda na cidade,
o pasto, ao Norte; ao Sul, quarto de arreios,
e esse mar de café rolando em grão
na palma de sua mão — o pai é a casa,
e a casa não é mais, nem sou a casa térrea,
terrestre, contingente,
suposta habitação de um eu moderno.
Rua Silva Jardim, ou silvo em mim?
é dormir sem feras
rugiameaçando.
(A Floresta, bairro
de jardins olentes
com leões cerâmicos
a vigiar portões
e sonhos burgueses
de alunas internas
do Santa Maria.)
Dormir na Floresta
é dormir em paz
de família mineira
para todo o sempre
garantida em bancos
e gado de corte,
seguro de vida
na Equitativa,
crédito aberto
no Parc Royal,
guarda-chuva-e-vento
do PRM,
indulgência plena
do Vaticano.
E ter a certeza,
na manhã seguinte,
de bom leite gordo
manado de vacas
da própria Floresta,
de bom pão cheiroso
cozido nos fornos
da Floresta próvida.
Dormir na Floresta
é esquecer Lenine,
o Kaiser, a crise,
a crase, o ginásio,
restaurar as fontes
do ser primitivo
que era todo lúdico
antes de sofrer
o esbarro, a facada
de pensar o mundo.
Mas de madrugada
ou talvez ainda
na curva das onze
(pois se dorme cedo
na Floresta calma,
de cedo acordar),
um lamento lúgubre,
um longo gemido,
um uivo trevoso
de animal sofrendo
corta o sono ao meio
e todo o sistema
de azul segurança
da Floresta rui.
Que dor se derrama
sobre nossas camas
e embebe o lençol
de temor e alarma?
Que notícia ruim
do resto da Terra
não compendiado
em nossos domínios
invade o fortim
da noite serena?
Logo nossas vidas
e mais seus problemas
despem-se, descarnam-se
de todo ouropel.
Já não somos os
privilegiados
príncipes da paz.
Já somos viventes
intranquilos, pávidos,
como os da Lagoinha
ou de Carlos Prates,
à mercê de furtos,
de doenças, fomes,
letras protestadas,
e pior do que isso,
carregando o mundo
e seus desconcertos
em ombros curvados,
Eis que se repete
o pungente guai,
perfurando as ruas
e casas e mentes
com seu aflitivo
doer dor sem nome.
De onde vem, aonde
vai, se vai ou vem?
Triste, ferroviário
apito de máquina
da Oeste de Minas
manobrando insone,
paralelo ao rouco
ir e vir arfante
de locomotiva
da Central, rasgando
a seda sem ruga
de dormir sem dívidas,
cobrando a vigília,
o amargo remoer
da consciência turva.
Não parte, não volta
de nenhum destino
o trem espectral,
roda sem horário,
passageiro ou carga,
senão nossa carga
interior, pesada,
de carvão, minério,
queijo de incertezas,
milho de perguntas
? ? ? ? ? ? ? ?
gado de omissões.
Fero trem noturno
a semear angústia
na relva celeste
da Floresta em flor.
natural de Ouro Preto,
ninguém mais fala nele.
Desistiu; apagou.
Nos lentos, velhos tempos
cumpria seu destino
com toda a sisudez.
Era grave, pontual,
a ninguém assustava.
Surgia à meia-noite
e trinta, ponderado,
no nevoeiro de junho,
a pessoas seletas
que voltavam de festa.
Deixava-se ficar
junto a portões de chácaras
e lembrava sem gesto
a convivial presença
das almas-do-outro-mundo
no coração mineiro.
Há muito ninguém volta
de festa na Floresta
ou qualquer outro bairro.
A rua embalsamada
permanece vestida
de solidão-magnólia.
Por falta de assistentes,
retira-se o fantasma
rumo ao País do Tédio.
Chega a vez do avantesma
da popular Lagoinha,
noutro extremo da vida.
Sinal de coisas novas.
É excêntrico, forja
diabruras cruéis.
Espanta motorneiros
sentando-se entre os trilhos
sem mover uma palha
se o bonde tilintante
desce a rampa. Conserva-se
em calmo desafio
à potência rangente.
O motorneiro, morto,
de pavor, pula fora,
o condutor imita-o,
os raros passageiros
dessa hora glacial
aos gritos se levantam,
e no tremendo instante
de esmagar o duende
ou de morrermos todos,
ele, o senhor de preto,
sem rosto, mas sarcástico
na postura insolente,
dissolve-se qual sonho
que não quer ser sonhado.
Em estrondar de rodas
de súbito freadas,
o pesadelo extingue-se.
Apenas se distingue
no interior do bonde
o convulsivo choro,
e na rua-teatro
ao sol da lua-cheia,
vago cheiro de enxofre.
fora das estampas e dos contos.
São três.
Bebem água publicamente
servida por uma sereia,
pois que também existem as sereias
na composição de verde e mármore
e é tudo fantástico no jardim
em frente do Palácio do Governo.
em torno deste bar rústico
vão tornando mais ilustre
o consumo de cerveja.
Mas são ciprestes pirâmides
e castanheiros truncados
em volta de mãos vorazes,
tecendo ramas polêmicas.
Como se papa um sanduíche,
a decoração se come?
Este lugar, eu o amo
ou não se fala mais nisto?
Os derradeiros carros de praça
recolhem seus rocinantes esquálidos
à cocheira do esquecimento.
Os próprios cocheiros se desvanecem
no crepúsculo da Serra do Curral.
Meia dúzia de automóveis à sombra dos fícus
espera meia dúzia de privilegiados
que vão cumprimentar o Presidente do Estado
em seu bastião florido da Praça da Liberdade.
O mais? Andar a pé
quilômetros de terra vermelha sossegada,
e bondes.
Os caluniados bondes da Empresa Carvalho de Brito,
os admiráveis bondes, botas de sete léguas
de estudantes, funcionários, operários,
desembargadores, poetas, caixeiros.
O bonde, sede da democracia em movimento,
esperado com pachorra no Bar do Ponto
nos abrigos Pernambuco e Ceará,
o arejado, pacífico, oportuníssimo
salão onde se leem de cabo a rabo
o expediente das nomeações e demissões
nas páginas sagradas do Minas Gerais
e as verrinas amarelas dos jornalecos da oposição.
Bonde onde se conversa
a lenta conversa mineira de Ouro Preto,
Pirapora, Guanhães, Itapecerica.
Onde se namora debaixo do maior respeito,
com olhares furtivos que o pai da moça não percebe.
(Ah! se percebesse!...)
Bonde turístico, antes que o turismo seja inventado.
Vamos dar a volta-Ceará?
Por um tostão passamos em revista
palacetes art-nouveau novinhos em folha,
penetramos no verde mistério abissal da Serra,
onde cada inseto é uma nota de música
e as águas gorgolejam em partita de Bach.
Por um tostão as lonjuras do Prado Mineiro,
onde ainda se escuta, se nascemos nostálgicos,
o pacapacá dos cavalinhos brincando de Derby.
Um tusta apenas e é a ridente Floresta,
seu Colégio Santa Maria, cheio de meninas
(ainda não se usa a palavra garota)
que vão num bonde mágico e nele retornam
para o rápido cruzamento em que, do nosso bonde,
sentimos passar a graça das sílfides
e o esvoaçar das libélulas
inalcançáveis.
É tudo inalcançável na cidade,
por isso mais lindo.
Viajamos pelos países modestos de Carlos Prates
e Lagoinha, pelo país violáceo do Bonfim,
vejo minhas primas meninas
se arredondarem no Calafate,
e há sempre uma cor a descobrir,
um costume singelo, o portão de um alpendre
com pinturas a óleo de castelos
que são o outro lado de Minas: o irreal.
Andar de bonde é meu programa,
voltar do fim da linha,
mudando eu mesmo o banco para a frente.
Confiro os postes, as pessoas
pontuais na hora de subir.
Adoro o bonde deserto das madrugadas
que abre um clarão nas rampas e, rangendo
nas curvas, rasga o sono,
impondo o mandamento de viver,
até mesmo no túnel da noite.
Suave bonde burocrático, atrasado bonde sob a chuva
que molha os bancos sob cortinas emperradas,
bonde amarrado à vida de 50
mil passageiros, minha gôndola,
meu diário bergantim, meu aeroplano,
minha casa particular aberta ao povo,
eu te saúdo, te agradeço; e em pé no estribo,
agarrado ao balaústre,
de modesto que és, faço-te ilustre.
O funcionário smart da Delegacia do Tesouro Nacional,
o escrevente do cartório de protesto de títulos,
o moço bacharel violento mas generoso,
o poeta revisor do Minas Gerais,
o chefe político do Mutum aguardando há seis meses
(falhou na última eleição)
ser recebido no Palácio da Liberdade,
os velhos e novos frequentadores da noite,
lenta noite apitada de guardas-civis nas esquinas de sono,
as moças do cabaré com seus últimos bocejantes clientes
estão todos sentados
no Restaurante Guarani da madrugada
comendo o mesmo indefectível,
arquitetônico, monumental
bife a cavalo de 1920.
A qualquer hora do dia ou da noite,
o ano inteiro, a vida inteira,
os padres da Boa Viagem,
os padres de Santa Efigênia dos Militares
atendem a chamados para confissão de agonizantes.
Sai aviso no Minas
e a morte, que paira sobre Belo Horizonte
e sobre todas as cidades, em qualquer tempo,
sente limitado o seu poder.
Já não chega à traição,
já não golpeia sem que o pecador
possa arrepender-se
e na mão de Deus, na sua mão direita,
como queria Antero, apascentar-se.
A noite mineira é mais tranquila:
convida, camarada,
a pecar mais um momento, um só, bem lento.
PRESÉPIO MECÂNICO DO PIPIRIPAU
em refolho sigiloso da Floresta,
bairro com alguma coisa de rural.
Tudo nasce, tudo mexe, tudo gira
em torno do menino sobre o capim-mimoso.
A paisagem é movimento
contínuo, circular.
Jesus aciona todas as forças
do homem. Ninguém parado.
Organiza-se a indústria em seu redor.
Jesus determina a vida em expansão.
Lutadores de boxe trocam murros
para maior glória do menino.
Seu Raimundo, criador do presépio,
revela Deus-motor.
Pipiripau, presépio modernista de 1927.
Não alcancei o Clube das Violetas,
delicado demais para durar.
À minha frente só o Clube Belo Horizonte,
onde dançam o belo Ferolla, o formoso Dario
com senhoritas mui prendadas
sob o olhar magnético de pais, mães, irmãos,
e o invisível mas ubíquo e potente
estatuto mineiro de costumes.
Dançam no segundo andar as valsas lânguidas
que o violino de Flausino faz etéreas.
Não sei dançar.
O Clube não frequento.
É meu clube a calçada.
A calçada sem música.
A porta do cinema, a porta do Giácomo
a porta sem espera, a porta sem esperança
a porta.
Também não alcancei os Jardineiros do Ideal,
mocidade-morta de Belo Horizonte.
Não conheci os Raros,
os Magnificentes
— oh que delícia: os Malditos,
do tempo em que o autor falava a leitores hipotéticos:
“Este é um livro de estreia. Caluniai-o.”
Resta, de tantas brumas, o velho Horácio
e seu ceticismo sorridente
na cartorária redação do Diário de Minas.
Não me conta do Barão do Sete-Estrelo
nem do Cavaleiro da Rosa-Cruz.
Os tempos já não são os tempos. Ou nunca foram?
Governa, de pince-nez, Raul Soares,
vem aí Melo Viana, e Bernardes domina,
do alto dos altos, de pince-nez redondo,
o céu nacional.
Horácio? Sorri apenas,
diz alguma coisa que não entendo bem,
nem é para entender: suave cortesia
de quem pressente em mim um novo Raro,
novo Maldito, novo Magnificente,
ocupando na promíscua Pensão Alves um castelo de nuvens.
Não, meu, nosso castelo, a Confeitaria Estrela
é bem terrestre, com sua vitrina de salgadinhos,
e já não somos nem Raros nem Malditos
mas simples Doidinhos de nova espécie,
arrancadores de placas de advogados e dentistas
em noites de pouca ronda,
pequenos incendiários sem tutano
de atear completas labaredas.
Somos o que somos, mestre Horácio.
Cada manhã, a Liga pela Moralidade,
serviçal, pontual,
indica os filmes que podemos ver,
os prejudiciais,
os com reserva,
os inofensivos.
A Mulher de Cláudio, com Pina Menichelli,
tem decotes inconvenientíssimos.
Quando o coração quer, com Francesca Bertini,
é coleção de cenas sensuais.
Remorsos do Cura, não sei com quem,
imoralíssimo.
Alta imoralidade, em Pacto infernal,
2o episódio: adultério à vista.
Dorothy Dalton. O Dom da fascinação,
bem, pode ser visto com algumas reservas.
É tão farto o cardápio, que vacilo:
Não posso ir a todos os cinemas,
e é só uma noite cada filme.
Meu Deus, ajudai-me neste passo:
Vejo a Bertini? Vejo a Menichelli?
Vejo Intolerância, de Griffith,
no Cinema Pathé.
Estudante já não vale nada.
Pago entrada comum, preço incomum:
2 mil-réis e mais 100 réis de imposto.
Os habitués foram preparados
por anúncios maiores no Minas Gerais:
“Procurem compreender, não somos gananciosos.
O filme tem 50 mil comparsas,
15 mil cavalos, 30 artistas
famosos, quatro romances, 14 partes.
Construiu-se um templo colossal
(1500 metros de fundo),
a orquestra executa partitura
escrita especialmente...”
Intolerância
ou a luta do amor através das idades,
Cristo, Babilônia, São Bartolomeu noturno...
É grandioso demais para a minúscula
visão minha da História, e tudo aquilo
se passa num mundo estranho a Minas
e à nossa ordem sacramental, sob a tutela
do nosso bom Governo, iluminado
por Deus.
Esmaga-me esse monstro de mil patas.
Saio em fragmentos, respiro o ar
puríssimo de todas as montanhas.
Intolerância? Aqui no alto, não,
desde que se vote no Governo.
rebrilha de gente fina.
Fico do lado de fora.
Não tenho dinheiro agora.
Agora ou toda a semana?
O mês inteiro? Meus livros
troquei por alguns mil-réis:
eram dedos, não anéis.
Não deu para ver a fita
da ofídica Theda Bara.
Que importa a fita? Importante
é a cicuta deste instante.
A moça de meus cuidados,
mas de mim tão descuidada,
surge, camélia ridente.
Finjo ser indiferente.
Entra, nuvem colorida,
entra, música de corpo.
Mal sabe que estou ali,
hirto, magro, como um I.
Nem me vê. Não me verá.
Cada pétala de seda
do seu todo natural
me faz delicioso mal.
Não tem sentido, ou tem muito,
esperar por duas horas
que ela saia do cinema
como sai, de mim, o poema.
Aprendo a lição tortuosa
de curtir a dor das coisas.
O que ela viu, tela e enredo,
não vale este meu brinquedo,
o pungitivo brinquedo
de pensar na moça em vão,
do lado de fora, o lado
que ficará do passado
e vige ainda: poder
de sentir, mais que o vivido,
o que pudera ter sido,
o que é, sem jamais ser.
os peixinhos do lago, na sala de espera,
ou foram eles, os minúsculos, insones peixinhos,
que fizeram acordar Sweet Georgia Brown
entre Body and Soul, para o tea for two,
enquanto não se abrem, rascantes, as portas da segunda sessão?
dobrou o preço do ingresso.
Alega que a nova fita
é de beleza infinita.
Aos estudantes recusa
direito de meia-entrada,
esse direito imortal,
escrito na lei falada.
Tamanho abuso levanta
as pedrinhas do passeio.
Até mancebos serenos
protestam; nem é pra menos.
Vamos entrar assim mesmo,
protestar não adianta,
e a fita, diz Cena Muda,
tem um mistério que espanta.
Mas tamanho desagrado
na algibeira estudantil
gera rumor, logo mil
ruídos vão se encorpando.
Ninguém vê o preto e branco
enrolo das peripécias
do dramalhão Paramount.
A bagunça, num arranco,
toma conta do recinto,
malhando cadeira e tudo
quanto é peça de madeira.
Acende-se a luz. E sinto
que é hora de grande alvitre:
levar essa massa humana
para a reforma do mundo.
Começar? Já, num segundo,
deixar a sala-ratoeira
(pois a Polícia é finória)
e sair, queimando bondes
que nada têm com essa história.
Os bondes, mas logo os bondes,
providência de estudantes?
Isso mesmo: velho impulso,
a destruição dos amantes.
Do cinema em polvorosa,
na turba, sai o anarquista.
A noite, incendida rosa,
abre um clarão na Lagoinha.
Fechado o Cinema Odeon, na Rua da Bahia.
Fechado para sempre.
Não é possível, minha mocidade
fecha com ele um pouco.
Não amadureci ainda bastante
para aceitar a morte das coisas
que minhas coisas são, sendo de outrem,
e até aplaudi-la, quando for o caso.
(Amadurecerei um dia?)
Não aceito, por enquanto, o Cinema Glória,
maior, mais americano, mais isso e aquilo.
Quero é o derrotado Cinema Odeon,
o miúdo, fora de moda Cinema Odeon.
A espera na sala de espera. A matinê
com Buck Jones, tombos, tiros, tramas.
A primeira sessão e a segunda sessão da noite.
A divina orquestra, mesmo não divina,
costumeira. O jornal da Fox. William S. Hart.
As meninas de família na plateia.
A impossível (sonhada) bolinação,
pobre sátiro em potencial.
Exijo em nome da lei ou fora da lei
que se reabram as portas e volte o passado
musical, waldemarpissilândico, sublime agora
que para sempre submerge em funeral de sombras
neste primeiro lutulento de janeiro
de 1928.
apura ainda mais o Cravo temperadíssimo
em dó menor, em mi menor, prelúdio, fuga.
Mas que há com as tercinas?
Não fluem fácil como fio d’água.
Som intempestivo criva a sala.
Há mal-estar, rostos inquietos,
entre os seletos do Municipal.
Não se dá conta Rosa deste agravo
à pureza de Bach, e vai levando
os stretti, as leves colcheias, os alados
acordes melancólicos ou gaios?
A plateia começa a resmungar:
— Assim não! Mas que coisa! Está demais!
Está demais o grilo subversivo
que no teatro cheio põe cricrilos
nos arpejos celestes.
O guarda percorre camarotes,
corredores, lanterninha na mão, à sua caça,
e o ruído da caça se acasala
com Bach e grilo e riso incontrolável
dos melômanos: a Polícia vai prender
o grilo, tem gaiola para isto?
Caro João Sebastião, desculpe: em Minas
até os grilos amam fazer música.
Alucinação de um sonho?
Canhoto domina o palco da Rua Caetés.
Seu violão cava um abismo de rosas
no triste carnaval de Belo Horizonte.
O maestro Aschermann, violinista,
dirige o requintado quinteto de cordas.
Guadagnin, segundo violino. Gioglia na viola.
O violoncelo é de Targino.
Ao piano, Nazinha Prates.
Haydn flutua no ar da Rua da Bahia.
Por que maligna inclinação,
vou ver o melodrama dos Garridos
no palco-poeira do Cinema Floresta?
Que bom ouvir João Luso nesta sala
discorrer sobre a graça feminina!
Será que escuto? Alguém presta atenção?
A graça feminina está presente,
sorri, olha discreta, abana o leque,
imune à conferência.
A graça tem consciência de ser graça
e a si mesma dedica-se, enlevada.
Meu primeiro banquete literário.
O espelho art-nouveau do Hotel Avenida
reflete doze ilustres escritores.
Convidado! sento à mesa dos ilustres,
ilustre me tornando em potencial,
representante da escola, por nascer,
dos bárbaros futuristas do Curral.
Osvaldo de Araújo, Aldo Delfino,
Mário Mendes Campos, cristais, flores,
Abílio Barreto, Silva Guimaraens,
Rangel Coelho, quem mais? Não os distingo,
pois nem distingo a mim, de tão repleta
esta hora (o vinho, a carne) de horizontes.
Qual a razão do bródio? Precisa haver razão
para bródios? As letras mandam
comer, sorver a glória deste instante,
Agripa de Vasconcelos, o poeta,
recém-eleito acadêmico mineiro,
oferece-nos o prândio. Na verdade
nós é que devíamos prestar-lhe
este preito ritual.
Mas ele paga. E recita
à sobremesa, com voz clara:
“O meu destino... onde me levará?”
A pergunta ressoa (garfos, copos)
e ninguém na mesa em festa ousa fazer
de si para si mesmo
a grave indagação.
Quedamos importantes, paralisados,
na foto de magnésio.
JORNAL FALADO NO SALÃO VIVACQUA
Garotas de Cachoeiro civilizam
nosso mineiro burgo relaxado.
No salão todo luz chega o perfume
das roseiras da Praça. Burburinho.
Aqui, a se sorrirem, vejo os máximos
escritores da nova geração.
São jornalistas esta noite. A bela Angélica,
a suave Edelmira, a grácil Mariquinha
assim o determinam. Milton Campos
abre o Jornal Falado. Flui a verve
de seu editorial. Na sua voz,
a política é um jogo divertido
de punhais cetinosos que se cravam
sem derrame de sangue — e a vítima nem sabe,
perremisticamente golpeada,
que já morreu: continua deputado.
De Abgar, primeira página, o soneto,
mais lapidado que diamante,
recebe aplausos invejosos. Oh, quem soubera
tanger assim o lírico instrumento,
decerto conquistara
todas as do planeta moças lindas!
Um êmulo romântico se aproxima:
é Batista decassílabo Santiago:
“Ah, saudade que vive me enganando
e faz que eu ouça a tua voz, ouvindo
as folhas mortas em que vou pisando…”
Jornal é só poesia? Nada disso.
João Dornas traça a viva reportagem
urbana. Que parada,
achar acontecimentos onde nada
acontece, depois de Rui Barbosa!
Ele inventa, ele cria? Fatos raros
baixam do lustre, pulam no tapete
e Nava, prodigioso desenhista,
risca os perfis, os gestos, os lugares.
Delorizano, grave,
fala de ciência
e Romeu de Avelar conta do Norte.
Aquiles é o cronista social:
noivados e potins e flertes surpreendidos
na segunda sessão do Odeon... Caluda!
Alguém pode não gostar. João Guimarães
é o nosso humorista, João Alphonsus
inicia o romance-folhetim:
em minutos tem princípio, meio e fim.
Eis chega a minha vez. A minha vez?
Mas como? se eu esperava não chegasse
e lá pela meia-noite o sono embaciasse
os anúncios da quarta página, final...
Não sei o que dizer. Digo: “Um acidente
nas oficinas impediu
saísse a minha crônica. Perdeu-se. Até amanhã”.
Com anúncios de página inteira
(coisa nunca vista nos sertões)
inaugura-se na Rua da Bahia
o fabuloso Parc Royal.
Três andares das mais finas futilidades
vindas diretamente da Rue de la Paix.
Seu Teotônio Caldeira, gerente,
manipula novas técnicas de vender.
As virgens loucas compram compram compram
e as mães das virgens loucas, outro tanto.
Pais de família, em pânico,
veem germinar no solo imáculo de Minas
a semente de luxo e desperdício.
Nada podem fazer, cruzam os braços:
O Parc Royal tem como padroeira
nada menos que Nossa Senhora da Conceição.
— Meu pai, posso botar na sua conta
três camisas de seda, um alfinete de gravata?
— Até você, meu filho, até você?!
No café semideserto a mosca tenta
pousar no torrão de açúcar sobre o mármore.
Enxoto-a. Insiste. Enxoto-a.
A luz é triste, amarela, desanimada.
Somos dois à espera
de que o garçom, mecânico, nos sirva.
Olho para o companheiro até a altura da gravata.
Não ouso subir ao rosto marcado.
Fixo-me na corrente do relógio
presa ao colete; velhos tempos.
Pouco falamos. O som das xícaras,
quase uma conversa. Tão raro
assim nos encontrarmos frente
a frente mais que por minutos.
Mais raro ainda, na banalidade do café.
A mosca volta.
Já não a espanto. Queda entre nós,
partícipe de mútuo entendimento.
Então, é este o mesmo homem
de antes de eu nascer e de amanhã e sempre?
Curvado.
Seu olhar é cansaço de existência,
ou sinto já (nem pensar) a sua morte?
Este estar juntos no café,
não hei de esquecê-lo nunca, de tão seco
e desolado — os três
eu, ele, a mosca —:
imagens de mera circunstância
ou do obscuro
irreparável sentido de viver.
ENCONTRO
Vi claramente visto, com estes olhos
que a terra há de comer se os não cremarem,
o carro de bois subir, insofismável,
esta soberba Rua da Bahia,
sofridamente puxado
por sete juntas de bois.
Vi claramente visto o cupê de João Luís Alves,
Secretário de Estado de Bernardes,
descer esta rua soberba da Bahia,
cruzar o carro de bois,
no dia claro, e o espírito de Minas
fundindo sabiamente
a dupla imagem.
O jornalzinho oposicionista da Praça da Estação,
onde exalo vagidos literários,
xinga o Presidente, xinga seus Secretários,
xinga o Prefeito. Sem mais ninguém
para xingar,
xinga Leopoldo Fróis, que no seu entender,
apresentando peças de gênero livre no Municipal,
todas as noites ofende a família mineira
em casas lotadas e entusiásticas.
tão bem servida de moças de chapéu
e sombrinha,
de fícus, palacetes, lagos, horizontes,
tão limpa, tão verdinha, tão serena,
e vem Great Michelin
jejuar sete dias, agressivo!
Levo soco no estômago. Que ideia,
vender entradas para o espetáculo da fome
no Cine Comércio tão alegre.
Dois metros abaixo do chão a cova aberta
e a tampa de vidro
mostra o rosto cadavérico
do jejuador profissional.
De domingo a domingo esta visão
soturna comercial atrai burgueses
bem alimentados, secretamente desejosos
de que a experiência tenha fim
com a morte do Great Michelin.
No sétimo dia ressuscita
abre-se o caixão no palco, lavra-se ata
firmada por médicos, delegados, jornalistas,
palmas, palmas, vivas,
discurso do artista Koytakisis
e do próprio Michelin mal falecido.
Dias depois ei-lo fazendo
conferência científica sobre a arte
de ganhar a vida em morte semanal.
15% da renda, generoso,
dá para o Orfanato Santo Antônio.
E aprendo esta verdade: jejuador
nenhum morre de jejum se souber vender a sua fome.
I
Vejo o Rei passar na Avenida Afonso Pena
onde só passam dia e noite, mês a mês e ano,
burocratas, estudantes, pés-rapados.
Primeiro rei entre renques de fícus e aplausos,
primeiro rei (e verei outros?) na minha vida.
Não tem coroa de rei, barbas formidáveis
de rei, armadura de rei, resplandecente
ao sol da Serra do Curral.
Não desembainha a espada para enfrentar
como fazia há pouco os hunos invasores
de sua pátria.
É um senhor alto, formal, de meia-idade,
metido em uniforme belga,
ao lado de outro senhor de pince-nez
que conheço de retrato: o Presidente do Estado.
Não vem na carruagem de ouro e rubis das estampas.
Não é um Carlos-Magno.
Vem no carro a Daumont de dois cocheiros
e quatro cavalinhos mineiros bem tratados.
No carro seguinte, como convém eternamente
às mulheres, vejo a Rainha,
não aparição sublime das iluminuras
(ai, que falta nos faz a Idade Média),
mas a distinta burguesa ao lado
do Presidente compenetrado da República.
Então é isso: tudo igual,
sangue azul e plebeu?
Pompas republicanas: moderadas.
Tenho de recriar — reminiscências literárias —
vera imagem de Rei, no rei em carne e vida.
II
A coroa lá está, na Praça do Poder
(não sei por que, se chama Liberdade).
Coroa imensa, de dez mil
lampadazinhas elétricas multicores.
À noite, é tudo festa na cidade.
Cinema grátis para o povo
na efervescente Praça Doze.
Fogos de artifício e de feitiço
para susto de cisnes e marrecos
no Parque Municipal.
Bandas de música explodem
em cada coreto, mesmo sem coreto.
Clarinar de paradas militares,
multiplicadas pelo ouvido e olhar.
De Norte a Sul, de Leste a Oeste,
mesmo do separatista Triângulo irredutível
que não corteja Belo Horizonte,
acodem povos a conferir o Rei.
Jorra cerveja nos cabarés enfumaçados de cigarro
Madame Olímpia, a respeitável,
faz a mais gorda féria do seu Éden.
Ao Rei não chega esta alegria. Ele visita
monocordicamente, bravamente,
quartéis, escolas, tribunais e o mais.
Há um discurso em cada fraque,
um vivelerroá em cada boca
e o desaponto de encontrar
no rei-lendário o homem comum.
(Eu não disse que os reis não são mais reis?)
III
— Majestade, aceite esta garrafa de licor
estomacal, do meu fabrico.
O Rei aceita: vai provar (mas em Bruxelas)
o presente do farmacêutico Artur Viana.
Antes, na mesa oficial, degusta
macucos truffés à la Royale
e dorme cedo. Amanhã cedinho
irá a Morro Velho conhecer
o sombrio trabalho subterrâneo
que produz ouro para o mundo
e morte precoce para mineiros.
Voltando à superfície, Mister Chalmers
oferta-lhe desta vez,
macucos truffés à jus d’orange.
É comida diária no Brasil?
Resta algum macuco pra contar?
O Rei repousa a vista
no quadro que lhe deu Honório Esteves.
Escuta, sonolento,
a orquestra vinda do Rio expressamente
para abemolar sua visita.
Silêncio: Sua Majestade vai dormir
em cama de Napoleão 1o, cópia exata
feita por Leandro Martins & Companhia.
IV
as refeições de Suas Majestades,
quem serve é a Pascoal do Rio de Janeiro.
Os landolés de seus passeios
vêm da Garage Batista do Rio de Janeiro.
A Casa Lucas, do Rio de Janeiro,
multilumina as ruas e fachadas.
A charuteira com enfeites de ouro de 24 quilates,
regalada ao Rei,
é obra de arte de Oscar Machado,
joalheiro do Rio de Janeiro
(mas a madeira de lei é pura Minas).
Pura Minas, o solitário da Rainha
trabalhado no Rio de Janeiro
pelo mesmo Machado, mas brotando
do chão mineiro de Coromandel.
Não foi possível, é pena, vir do Rio
o Pão de Açúcar nem o Corcovado
nem a baía... mas demos ao Rei
o mais perturbador, o mais fantástico
entardecer da cidade-coleção
de crepúsculos indescritíveis.
V
E assim todos vivemos nossa vida,
nossa vidinha, como é nosso dizer,
entrelaçada no viver do Rei.
A metros de distância um Rei respira,
almoça, fuma, escova os dentes,
coça a cabeça como nós coçamos.
Falta somente o Rei aparecer
no Bar do Ponto e junto ao Professor
Zé Eduardo, de ferino verbo,
comentar os erros de francês
dos oradores a quem a lição
de Mestre Jacob pouco aproveitou.
Não é de muita fala o Rei, parece,
mas quem resiste ao calmo prosear
daquele centro da malícia urbana?
Tome um café, Seu Rei. Sente-se e vamos
ponderar os túrbidos sucessos
de Manhuaçu: três ou quatro mortes
por questões de terras ou de política.
Isso também ocorre lá nas Flandres?
Como é, o câmbio? É, está baixando,
quase não exportamos, e trazemos
tudo da Europa, desde o sabonete
e o vinho até as polonesas...
Seu Rei e nosso amigo, vamos
mudar de assunto?
VI
Afinal segue o Rei, segue a Rainha,
seguem condes, barões e diplomatas
rumo a São Paulo.
Que alívio, suspender tanta folia,
tanto protocolo misturado
ao nosso visceral esteja a gosto.
Descansa o Rei de nós,
e dele descansamos.
Mas uma coisa fica em mim,
espectador quase-repórter.
Uma coisa entre rosas, no jardim
versaillescamente plantado em seu honor.
É um som infantil, puro, no ar,
e não se desvanece:
coro de seis mil vozes entoando
o hino ensaiado com capricho
o mês inteiro nas escolas:
Aprédessiécles desclavage
lebelgesortáditombô...
lerroá laloá lalibertê.
Ao ouvi-lo o Rei empalidece,
a Rainha derrama duas lágrimas.
Crianças de 1920: a Brabançonne
casa-se com Ipirangasmargensplácidas,
e na Pensão de Dona Teresinha,
à noite, solitário no meu quarto,
não lembro o Rei, lembro o coral.
Vejo o Conde d’Eu no Grande Hotel.
Fala francês com Dr. Rodolfo Jacob.
O fantasma da Monarquia
é o terceiro invisível, interlocutor.
Lá fora o sol encandece, republicano.
Ah, nunca pensei que o passado existisse
assim tocável, a mexer-se.
Existe. E fala baixo. Daqui a pouco
toma o trem da Central, rumo ao silêncio.
congrega na estação
da Central do Brasil
a fina flor política.
Dez horas da manhã,
desembarcam sublimes
estadistas do Rio.
Quatro e vinte da tarde,
despedem-se conspícuos
estadistas locais.
A plataforma zumbe
de abraços e cochichos.
Lá vai o deputado
amigo do Palácio-
-em-flor da Liberdade
e chega o senador
comensal do Catete.
Coronel ajudante
de ordens, rutilante
na farda feita lírio
de imácula brancura,
mostra o grau de prestígio
de quem sai ou quem vem:
o Senhor Presidente
faz-se representar.
Sensação: desta vez
o próprio Presidente
do valoroso Estado
calca seus borzeguins
no ladrilho vulgar.
A música festeira
extravasa da banda
militar requintada
e leva a toda Minas
o som do alto poder
que domina montanhas
e elege candidatos
mesmo à falta de votos.
Que emérita figura
de altíssimo coturno
tira Sua Excelência
da torre oficial?
O Chefe da Nação?
O Papa? O imperador
de algum remoto Império?
O banqueiro londrino
que veio ver de perto
as arras prometidas
ao desejado empréstimo?
Tento em vão acercar-me
do círculo dileto
que usufrui a presença
do egrégio titular
emanador de eflúvios
benignos. Em muralha,
casimiras escuras
e notórios secretas
em seu redor me barram
o horizonte visual.
Sei que perto de mim,
contudo inatingível,
astro do empíreo cívico,
o Presidente espera
outro deus, outro astro,
na estação convertida
em sacro belvedere.
Somem carregadores,
jornaleiros, cambistas
de palpites lotéricos.
Viajantes banais
esgueiram-se, dissolvem-se
na pompa do espetáculo.
A Central do Brasil
é ara, catedral
do mineiro mistério
do Poder com pê grande,
o Poder Triunfal.
ODE AO PARTIDO REPUBLICANO MINEIRO
onde estás, que não vejo, mas te sinto
circular pelas veias da cidade?
Poder sutil, punhos de aço, terno abrigo
dos que à tua sombra se aninharam
na direção do público negócio!
Sogro gentil, pai amoroso
de bacharéis, de médicos, engenheiros
em começo indeciso de carreira,
tu dás o pão, dás a pancada
conforme o nosso vário proceder:
aos correligionários, pão de ló,
aos adversários, pontapé
em sensível, recôndito lugar.
Ai de quem infringir
teu estatuto sacrossanto, vigente
sobre as serranias e no interior mesmo do magma.
Pobres filhos de Eva, deserdados
do teu peito, os trânsfugas jazem mudos
à porta lacrada dos bancos
ou no corredor deserto da farmácia
da oposição.
Os bem-amados, estes, já se empossam
em parlamentos de bater palmas, palmas, palmas
à Comissão Divina Executiva
e, mais alto ainda, ao inatingível
Senhor Governador das Milícias e das Coletorias.
És a fonte, és a linfa, és a flórea
mansão dos deuses, entre renques de palmeiras
moldurada.
Teu espírito invisível e concreto
paira sobre os crepúsculos magnificentes
da Capital e nos guia, nos adverte, nos fulmina.
Ó PRM, estás em cada paralelepípedo,
em cada fícus-benjamim, em cada xícara
de café do Bar do Ponto: ouves, registras,
despedes teu raio sem o mínimo trovão,
e como ele reboa no interior da vítima!
Bem, contra ti me levanto, pigmeu,
gritando em frente à sacada política do Grande Hotel
os morras que é de uso em comícios inflamados
antes que irrompa a cavalaria.
E nem me vês a mim, verme-plantinha,
tão alto te agigantas.
Afinal, sem eu mesmo saber como,
por mão de Alberto serei teu redator
no obscuro jornal que em teu nome se imprime.
(A perfeita ironia: a mão tece ditirambos
ao partido terrível. E ele me sustenta.)