INTIMAÇÃO

 

Você deve calar urgentemente

as lembranças bobocas de menino.

— Impossível. Eu conto o meu presente.

Com volúpia voltei a ser menino.

 

 

BENS DE RAIZ

 

AGRITORTURA

 

Amanhã serão graças

de museu.

 

Hoje são instrumentos de lavoura,

base veludosa do império:

“anjinho”,

gargalheira,

vira-mundo.

 

Cana, café, boi

emergem ovantes dos suplícios.

O ferro modela espigas

maiores.

Brota das lágrimas e gritos

o abençoado feijão

da mesa baronal comendadora.

 

 

FAZENDEIROS DE CANA

 

Minha terra tem palmeiras?

Não. Minha terra tem engenhocas de rapadura e cachaça

e açúcar marrom, tiquinho, para o gasto.

Canavial se alastra pela Serra do Onça,

vai ao Mutum, ao Sarcundo,

clareia Morro Escuro, Queixadas, Sete Cachoeiras.

Capitão-do-Mato enverdece de cana madura,

tem cheiro de parati no Bananal e no Lava,

no Piçarrão, nas Cobras, no Toco,

no Alegre, na Mumbaça.

Tem rolete de cana chamando para chupar

nas Abóboras, no Quenta-Sol, nas Botas.

Tem cana-caiana e cana-crioula,

cana-pitu, cana rajada, cana do govemo

e muitas outras canas de garapas,

e bagaço para os porcos em assembleia grunhidora

diante da moenda

movida gravemente pela junta de bois

de sólida tristeza e resignação.

 

As fazendas misturam dor e consolo

em caldo verde-garrafa

e sessenta mil-réis de imposto fazendeiro.

 

 

BALANÇA

 

De chifres de veado é feita esta balança

de pesar carne de vento.

É o peso uma pedra, e outra pedra e outro quilo

vão recortando o boi em severa medida.

Ninguém furta no peso. O sol, o sal da carne

brilham qual brilha a pedra neste jogo

em que o senhor da natureza e do mercado

se curva à fome, juiz maior de outra balança

maior, maior de todas destes matos-dentro.

 

 

A PAZ ENTRE OS JUÍZES

 

1o juiz de paz

2o juiz de paz

3o juiz de paz

4o juiz de paz

e nenhuma guerra jamais no município

onde todas as pessoas se entrelaçam,

parentes no sangue e no dinheiro,

e, parentes, se casam, tio-sobrinha,

prima — primo, enviúvam, se recasam

perenemente primos, tios e sobrinhas.

 

Que fazem os juízes modorrantes

à brisa nas cadeiras da calçada,

esperando uma guerra que não vem?

Brigam talvez aos dois e os outros dois

os separam, revezam-se, no tédio

de paz tão cinza, em vale assim tranquilo?

 

Ou ficam ansiosos, expectantes,

de ouvido no chamado

para casar com toda a pompa e caixa de cerveja

a filha do guarda-mor, a bela Joana?

 

Perdão, o próprio guarda-mor

é o 1o juiz de paz, nada a fazer.

 

 

LITANIA DAS MULHERES DO PASSADO

 

Ana Esméria

Ana Flávia Emiliana

Ana Claudina

Ana Miquelina

Ana Umbelina

Amanda Malvina

Liberalina:

protegei os homens do clã.

 

Maria Feliciana

Maria Isidora

Maria Narcisa

Maria Presciliana

Maria Senhorinha

Maria Tomásia da Encarnação

Ricardina Honorata:

amai os homens do clã.

 

Josefina Augusta

Placidina Augusta

Virgínia Augusta

Olímpia Bernardina

Rita Bernardina

Petronilha Carolina

Francisca Bárbara:

exemplai os homens do clã.

 

 

CUIDADO

 

A porta cerrada

não abras.

Pode ser que encontres

o que não buscavas

nem esperavas.

 

Na escuridão

pode ser que esbarres

no casal em pé

tentando se amar apressadamente.

 

Pode ser que a vela

que trazes na mão

te revele, trêmula,

tua escrava nova,

teu dono-marido.

 

Descuidosa, a porta

apenas cerrada

pode te contar

conto que não queres

saber.

 

 

GUERRA DAS RUAS

 

Rua de Santana

e Rua de Baixo

entraram em guerra.

Morador de uma

não sofreu desfeita

de morador da outra.

Ninguém violou

horta de ninguém

pra roubar legume.

Por que foi então

que brigam as duas?

A Rua de Baixo

e a de Santana

tomaram partido

na guerra medonha

russo-japonesa.

Lá os de Santana

são aristocratas,

russófilos feros;

os daqui de Baixo,

povo pé-rapado,

nipoesperançosos.

Discutem, refutam,

atacam, recuam,

contra-atacam, lépidos.

Entre as ruas ferem-se

batalhas navais.

Porto Artur e Mukden

estrondam os ares

municipais.

O desfecho, sabe-se.

Ficaram rompidas

as ruas rivais

mas também ficaram

para sempre ruas

do mundo.

 

 

TESTAMENTO-DESENCANTO

 

Nesta comarca do Piracicaba,

através da cadeia do Espinhaço,

o vazio começa, e tudo acaba

por ser amplo desânimo no espaço.

 

De meus escravos todos me dispenso

em doação a filhos de três leitos.

Conservarei apenas este lenço

de assoar. Paguem eles os direitos

 

novos e velhos na Coletoria

enquanto me alcatifo para a morte,

recamado de enjoo e cinza fria.

 

Não me venham dizer que é muito cedo

e há que merecer o passaporte.

A alma desiste, finda-se o brinquedo.

 

 

FAZENDA DOS 12 VINTÉNS
OU DO PONTAL E TERRAS EM REDOR

 

O ECO

 

A fazenda fica perto da cidade.

Entre a fazenda e a cidade

o morro

a farpa de arame

a porteira o eco.

 

O eco é um ser soturno, acorrentado

na espessura da mata.

E profundamente silencioso

em seu mistério não desafiado.

 

Passo, não resisto a provocá-lo.

O eco me repete ou me responde?

Forte em monossílabos,

grita ulula blasfema

brinca chalaceia diz imoralidades,

finais de coisas doidas que lhe digo,

e nunca é alegre mesmo quando brinca.

 

É o último selvagem sobre a Terra.

Todos os índios foram exterminados ou fugiram.

Restou o eco, prisioneiro

de minha voz.

 

De tanto se entrevar no mato,

já nem sei se é mais índio ou vegetal

ou pedra, na ânsia da passagem

de um som do mundo em boca de menino,

 

som libertador

som moleque

som perverso,

qualquer som de vida despertada.

 

O eco, no caminho

entre a cidade e a fazenda,

é no fundo de mim que me responde.

 

 

AQUELE CÓRREGO

 

Tão alegre este riacho.

Riacho? Gota d’água em tacho.

Nem necessita pinguela

para chegar à outra margem.

Um salto: salto a corrente.

É ribeirão de presépio,

é mar de quem nunca viu o mar,

nem prevê o mar.

 

Tão festeiro, tão brincante

de lambaris rabeando

na transparência da linfa.

Tão espelho, tão pedrinhas

de luz chispante em arestas.

Que nome ele tem? Não tem

nome nenhum, tão miudinho

ele é. Pois é, qual riacho

qual nada. Ele é mesmo corgo

ou nem isso. É meu desejo

de água que não me afogue

e onde eu veja minha imagem

me descobrindo, indagando:

Que menino é esse aí?

 

Que menino é este aqui?

Não sei como responder.

A aguinha treme, trotina

sob o calhau atirado

por meu irmão. Ou por mim?

Melhor é deixar o corgo

brincar de ser rio e ir

passeando lambaris.

 

 

MELINIS MINUTIFLORA

 

No mais seco terreno, o capim-gordura

inunda o pasto de oleoso aroma,

catingueiro de atrair vacas,

afugentar cobras

mais carrapatos.

Seu pendão violáceo, balançante ao vento,

garante leite e carne com fartura,

na voz do agregado que celebra

as mil virtudes do capim-gordura:

 

“Esse gado todo

vive à custa dele.

Eu mesmo, que vivo

de cuidar do gado,

sou agradecido

ao capim-gordura,

pois além do mais,

na sua brandura,

ele é diurético,

antidisentérico,

antidiarreico.

Para rematar,

dá aos passarinhos

maciez de ninho.

Que na minha frente

ninguém fale mal

do santo capim-

-gordura, criatura

da maior fervura

do meu peito amante!”

 

 

O BELO BOI DE CANTAGALO

 

Por trás da bossa do cupim

a cobra espreita

o belo boi de Cantagalo

trazido com que sacrifício

de longas léguas a pé e lama

para inaugurar novo rebanho

dos sonhos zebus do Coronel.

 

Por trás da bossa do cupim

a cobra, cipó inerte,

medita cálculo e estratégia,

e o belo boi de Cantagalo

mal sente, sob o céu de Minas,

chegar o segundo-relâmpago

em que o cipó se alteia, se arremessa

e fere e se enrodilha e aperta

e aperta mais, aperta sempre

e mata.

 

Já não cobrirá as doces vacas

ao seu destino reservadas

o belo boi de Cantagalo,

e queda ali,

monumento desmantelado.

A bossa jaz ao lado da outra bossa,

no imóvel sol do meio-dia.

 

 

PRIVILÉGIO

 

Chicote

de cabo de prata

lavrada

chicote

de status

não fica entre os outros

de couro e madeira

plebeus.

É guardado à parte,

zelado ao jeito

dos bens de família.

Não risca no flanco

de qualquer animal.

Reserva-se todo

para uso exclusivo

da mulher fazendeira.

O fino cavalo branco

recebe orgulhoso

a chicotada argêntea

de mão feminina.

 

 

INSCRIÇÕES RUPESTRES NO CARMO

 

Os desenhos da Lapa, tão antigos

que nenhum bisavô os viu traçar,

esses riscos na pedra, indecifráveis,

palavras sem palavra, mas falantes

ao surdo ouvido indiferente de hoje,

esse abafado canto das origens

que o professor não sabe traduzir

— à noite (cismo agora) se destacam

da laje fria, espalham-se no campo.

São notícias de índio, religiões

ligando mente e abismo, vida solta

em fantásticos ritos amorosos,

de sangue, de colheita, em meio a deuses

nativos do sertão do mato-dentro.

Cada linha desdobra-se: arabescos

sonoros, e uma festa como nunca

mais se veria em gleba conquistada

por meus antepassados cobiçosos

de ouro, gado, café, recobre a terra

devolvida a seus donos naturais.

Não o boi: o tapir, nem o sitiante

nem porteira-limite nem papéis

marcando posse, prazo, juro, herança.

É um tempo antes do tempo de relógio,

e tudo se recusa a ser História

e a derivar em provas escolares.

Lá vou eu, carregando minha pedra,

meu lápis, minha turva tabuada,

rumo à aula de insípidos ditados,

cismando nesses mágicos desenhos

que bem desenharia, fosse índio.

 

 

MITOLOGIA DO ONÇA

 

Que lugar diferente dos lugares,

o Onça!

Custo a crer que exista além da boca,

faladeira de sonhos.

No entanto viajantes vêm do Onça,

apeiam, amarram suas mulas

na argola do mourão

e contam, pachorrentos, da viagem.

Contam de sua gente, de seus matos

e seus rios,

O Onça-Grande, o Onça-Pequeno

me perturbam.

São rios feitos de onça, águas ferozes

de onça encachoeirada?

Nas ruas do Onça passam onças

e pessoas caminham junto a elas?

Uma onça maior governa o Onça,

cada dia um menino é mastigado

em sua mesa rubra a escorrer sangue?

Riem de mim os viajantes

se lhes faço perguntas. Não pergunto.

Não riem. Ouço apenas

as estórias do Onça, corriqueiras.

No Onça não há onças.

É calma, tudo lá. Em mim, tremor.

Em mim é que elas bramem, noite negra.

 

 

NA BARRA DO CACUNDA

 

Na Barra do Cacunda

diz-que sucedem coisas

que a gente não explica.

Tem zunido de vento

mesmo sem ter vento.

Os ouvidos percebem

o gemido parado

no ar imobilizado.

Meio-dia, não bole

sequer o pé de avenca,

mas insiste o sibilo

enquanto a poeira dorme

no chão sem movimento,

Os mais moços indagam.

Os mais velhos se calam,

aceitam como fato

esse vento sem braços,

espalhado em lamento.

Na Barra do Cacunda

cai uma chuva estranha

que molha sem chover.

As roupas respingadas,

as botas encharcadas

fazem parte do dia

vivido no costume

O sol vibra nas pedras,

as paredes gotejam

e rostos femininos

ressumam lentas bagas,

não de choro comum.

As mulheres não choram

na Barra do Cacunda.

A chuva é que lhes dá

a feição deslizante

de úmidas estátuas.

O mais, tudo normal.

Nascem crianças, morrem

os que têm de morrer

por lei da natureza.

Amores se entrelaçam

e outros se desmancham

como no mundo largo.

Barganhas de animais

se ajustam desde sempre.

O trabalho prossegue

na tenda do seleiro,

nos bilros da rendeira,

no tacho da doceira,

no descansado cálice

de branquinha servido

aos eternos fregueses

do botequim escuro.

O canto não cessou

na garganta habituada

a ritmar a tarefa

em pauta musical.

Modinhas despetalam-se

no entardecer mariano,

mesmo se o vento zune,

e a voz humana casa-se

ao zunido sem causa.

Na Barra do Cacunda

se essa chuva invisível

está sempre envolvendo

o vestido engomado,

a saia bem passada,

nem por isso as mulheres,

esculturas molhadas,

desistem de passar

a ferro suas roupas

e sair e banhar-se

na chuva que não cai.

Veio ontem de lá

um viajante e contou:

Na Barra do Cacunda

as pessoas estudam

na aula do mistério.

 

 

MORAR NESTA CASA

 

CASA E CONDUTA

 

As partes claras

e as partes negras

do casarão

cortam no meio

meu coração.

 

Sou um ou outro

móbil caráter

conforme a luz

que me percorre

ou se reduz.

 

Anjo-esplendor,

mínimo crápula,

não sou quem manda

em mim no escuro

ou na varanda.

 

Serei os dois

no exato instante

em que abro a porta,

ainda hesitantes,

a porta e eu?

 

O casarão

de lume e sombra

é que decide

meu julgamento

na opinião

dos grandes, sem

apelação

do eu confuso

no indefinível

entardecer.

 

 

PORTA-CARTÕES

 

O que há de mais moderno? Porta-cartões

pendente da parede

da sala de visitas, junto ao piano.

 

O porta-cartões, receptáculo de seda

em forma de leque ou coração,

semeado de finas pinturinhas

e bordados:

flores, asas, volutas

por mimosa mão-donzela entretecidas.

 

No interior do porta-cartões,

postais do Rio, de Vitória e Carangola,

de primos que, sublimes, passearam

no Bois de Boulogne, comprovando

nosso temperamento aventureiro.

(Os argonautas não medem perigos

e lonjuras.)

São paisagens seletas,

belezas e primores do Senhor

esparzidos na Terra.

 

Também alguns casais envernizados

em decoroso enlevo:

não se beijam (o beijo está nos olhos,

disfarçado?),

estampas tão suaves

e mais cartõezinhos de boas-festas

em recente dezembro

— essa, outra novidade

de que começa a carpir-se João Gonçalves,

tal a sobrecarga de carteiro.

 

De todos o mais belo, na cidade,

porta-cartões, ainda não se sabe.

Porfiam senhoritas no preparo

de aladas peças, qual mais graciosa,

e escrevem, solicitam, recomendam,

insistem:

venham, venham cartões

formosos, coloridos, a florir

ainda mais a cetínea coleção.

Na sala de visitas, as visitas

terão de confessar que este é o mais lindo

porta-cartões de sala brasileira.

 

 

O ARCO SUBLIME

 

Pintura... Que sentido

tem a palavra arte, que me ensinam?

 

A selva ancilosada na parede

da sala de visitas

não me convence

ou vence.

 

No céu sem moldura,

o arco-íris, brinquedo de olhar, jogo de olhar

e de pegar com a mente,

breve se desfaz, e continua

em mim, fascinador: arte-maior.

 

 

O SOM ESTRANHO

 

O gramofone Biju, com 10 discos artísticos

em que não posso tocar

é música/palavra para espanto global.

 

Pedras falam, eu sei; converso imagens

de barro e de madeira;

troco sinais com árvores; bichos

trazem para mim notícias do mato-fundo,

É tudo fala, na voz certa

de cada coisa, lugar e vez. Mas quem já viu

máquina falar? e assim tão alto e nervos?

 

Gigante flor sonora, invenção

do Diabo, talvez; mas o Diabo

tem outras falas, noturnas, ciciadas, que eu distingo.

 

Não te decifro, gramofone, proibido à ciência de minhas mãos.

Este mundo (pressinto)

vai se tornar terrivelmente complicado.

 

 

O VINHO

 

O vinho à mesa, liturgia.

 

Respeito silencioso

paira sobre a toalha.

A garrafa espera o gesto,

o saca-rolha espera o gesto,

a família espera o gesto

que há de ser lento e ritual.

 

Ergue-se o pai, grão-sacerdote,

prende a garrafa entre os joelhos,

gira regira a espira metálica

até o coração do gargalo.

Não faz esforço,

não enviesa,

não rompe a rolha.

É grave, simples,

de velha norma.

 

Nítido espoca

o ar libertado.

O vinho escorre

sereno, distribuindo-se

em porções convenientes:

copo cheio, os grandes;

a gente, dois dedos.

 

Bebe o pai primeiro.

Assume a responsabilidade

sacra.

Já podemos todos

saber que o vinho é bom

e piamente degustá-lo.

 

Mas quem diz que bebo solene?

Meu pensamento é o saca-rolha,

o sonho de abrir garrafa

como ele — só ele — abre.

 

A roxa mácula no linho,

pecado capital.

Esse menino

não aprende nunca a beber vinho?

(Quero é aprender a abrir o vinho

e nem mesmo posso aspirar

ao direito de abrir o vinho

que incumbe ao pai e a mais ninguém

em nossa antiga religião.)

 

 

O LICOREIRO

 

O gosto do licor começa na ideia

licoreiro.

Digo baixinho: licoreiro. Que sabor

no som, no conhecimento do cristal

independente de licor de leite,

fabricação mui fina da cidade,

segredo da família de Oscarlina.

 

O licoreiro, vejo-o

delicioso em si, mesmo vazio

à espera de licor, de tal maneira

na forma trabalhada

habita o gosto perfumado

e em cada prisma-luz se distribui

ao paladar da vista já gozando.

 

— Que tem esse menino, a contemplar

o tempo todo o licoreiro

se dentro dele não há nada?

Meu Deus, esse menino é viciado,

está na pua, só de olhar o licoreiro!

 

 

ESTOJO DE COSTURA

 

Tesouro da vista.

Não apenas alfinetes

de bolinha colorida na ponta.

Há os alfinetes voadores,

mágicos, de pombas

na cabecinha.

Não duvido nada que eles adejem

no quarto vazio.

“Vamos dar uma volta? — os alfinetes se dizem —

até o beiral da igreja, e voltamos.”

“Não. O céu está cinzento,

o meu azul empalideceria.”

“Ora, ora...”

Saem voando. Ninguém percebe

as pombas minúsculas no espaço.

Mamãe entra no quarto,

revolve o estojo de costura:

“Você andou mexendo em minhas coisas, menino?”

 

 

PESQUISA

 

Procuro a cor nos mínimos objetos

existentes em casa.

Na fita de seda azul que vai ornar

os cabelos de Rosa, flor suspensa

em campo negro.

Na estampa das peças de morim

amanhã convertidas em lençóis

enquanto a camponesa no trigal

revestida de sol

será rasgada por inútil.

(Tanto que pedi não a rasgassem

e dessem para mim.)

Procuro a cor

nos alfinetes de cabeça redonda.

Amarelo azul verde vermelho

roxo, tão perfeitos,

tão independentes do alfinete,

pequeninos mundos luminosos

contendo toda a cor, toda a linguagem

dos elementos não agrilhoados

à vontade dos grandes.

Cada cabecinha

conta seu poder tranquilo, sua glória.

Começo a pressentir

na cor o quarto reino natural

a enriquecer de vida os outros reinos.

 

 

AÇOITA-CAVALO

 

A madeira da cadeira

— ouvi o mano falar —

se chama açoita-cavalo e fico logo a cismar.

Vou me sentar na cadeira

a modo de cavalgar,

de costas, pernas em gancho,

segurando no espaldar.

Montaria de madeira,

chicote de castigar.

Cavalo assim tão parado

nunca vi ninguém contar.

Em vão lhe puxo o cabresto

(cabresto de imaginar).

Não se move deste quarto

e por aqui vai ficar.

Já não repito: Upa, upa!

e de tanto esporear,

vou ficando embrabecido,

começo agora a xingar.

Porcaria de cavalo

empacado no lugar!

Nem mesmo com xingamento

se resolve a disparar,

enquanto eu, a sacudi-lo

em doido movimentar,

como último argumento

chicote estalando no ar,

de tanto esforço que faço

nem sei mais me equilibrar

e rolamos embolados

num barulho de espantar.

A madeira da cadeira

não serve para montar,

ou cavalo de madeira

nunca se deve açoitar?

 

 

REUNIÃO NOTURNA

 

Jamais foi reconhecido

que aqui habitam fantasmas.

Entretanto eles circulam

mesmo sem comprovação.

 

Não são duendes estranhos,

forasteiros indiscretos.

Têm um traço de família:

todos de nossa nação.

 

A moça trágica e antiga

quis vir com eles: inútil.

Não pertencendo à família,

foi barrada no porão.

 

Se teve um caso com o avô,

merecia ser dos nossos.

Insiste, implora. Recusam-lhe

direito à incorporação.

 

Tem quartos que todos sentem

preferidos, por escuros.

Saem debaixo da cama

ou de escondido alçapão?

 

Nenhum estalo de tábua

nem arrastar de chinelos.

Vêm conferir os parentes

com a reserva de um ladrão.

 

Não pregam susto a meninos,

respeitam nossos horários

É quando estamos dormindo

que eles marcam reunião.

 

No sofá da sala sentam-se,

miram seus próprios retratos

e lançam na escarradeira

o cuspe de ocasião.

 

Se falam, ninguém escuta.

Se riem, ninguém percebe.

De qualquer modo merecem

toda a consideração.

 

Já grita seu grito de ouro

o galo da madrugada.

Os aéreos visitantes

assim como chegam, vão.

 

Mas fica no dia claro

um sabor de assombração.

 

 

CANTO DE SOMBRA

 

O canto de sombra e umidade no quintal.

Do muro de pedra escorre o fio d’água,

manso, no verde limoso, eternamente.

Uma gota e outra gota, no silêncio

onde só as formigas trabalham

e dorme um gato e dorme o futuro

das coisas que doerão em mim, desprevenido.

Crescem, rasteiras, plantas sem pretensão

de utilidade ou beleza.

Tudo simples. Anônimo.

O sol é um ouro breve. A paz existe

na lata abandonada de conserva

e no mundo.

 

 

HIGIENE CORPORAL

 

Junto à latrina, o caixote

de panos de limpar cu de menino.

Sá Maria é quem limpa o cu

e lava o pano.

 

Cresce o menino.

Assume a responsabilidade

de limpar seu próprio cu

com pedaços de jornal.

Sá Maria é chamada a outros deveres.

 

 

NOTÍCIAS DE CLÃ

 

 

BRASÃO

 

Com tinta de fantasma escreve-se Drummond.

É tudo quanto sei de minha genealogia.

 

 

CONTO DE REIS

 

Anabela Drummond foi rainha de Escócia

avó

de soberanos que reinaram por centúrias

em Scótia e Britânia,

minha avozíssima também, como esquecer?

Não consigo entender por que o juiz de direito

o agente executivo, o coletor,

o vigário e demais pessoas gradas

não vêm aqui em casa render vassalagem

aos netos exilados de Anabela.

 

 

REPOUSO NO TEMPLO

 

Não se enterram a céu aberto.

O cemitério não lhes convém.

Ficam sob o chão da sacristia da Matriz

ou, distinção especial, ao pé dos altares da capela-mor.

Aí estão mais perto de Deus,

e, mesmo não se rezando especialmente por eles,

a reza geral penetra o mármore e a madeira,

embalsama-lhes os ossos dissolvidos,

o pó restante, ou nem isso: o lugar

apenas, debaixo do nome.

 

São privilegiados diante do Senhor.

Não é qualquer família que o consegue.

As luzes, o incenso, a melopeia gregoriana

confortam lá embaixo uma ausência importante de corpo.

 

 

AQUELE RAIO

 

Aquele raio

não era para cair no túmulo orgulhoso

do grão-senhor de terras e da tribo.

Devia ser talvez endereçado

à campa de algum pobre pecador

sem glória de família.

Escolher logo esta, romper-lhe a inscrição

de prantos esculpidos com tamanho capricho,

e criar, irrisão, essa frase confusa

em que fama e fazenda já não brilham, estelares,

é castigo, talvez, de culpas não sabidas,

sepultadas mais que os ossos venerandos.

Sepultadas lá onde o sangue se forma,

onde a prima semente esboçou um caráter,

uma forma de rosto, um vinco de soberba

que rói esta linhagem e agora se dissolve

em rachaduras cruéis de pedra esborcinada.

 

 

A CONDENADA

 

Impossível, casar a moça

bela branca rica

na terra onde príncipes não saltam

do armorial para pedir-lhe a mão

jamais.

 

Passam cometas de olhar astuto,

canastras sortidas.

Irão comprar a moça, mercadoria

sem preço na Terra?

Jamais.

 

Passam fazendeiros, botas esculpidas

no estrume, riso ruidoso

de dentes de ouro.

Cuidam levar a moça para saldar

suas hipotecas?

Jamais.

 

Passam mulatos de fina lábia

e mil apólices federais.

Como deixar que o sangue cruze

na alva barriga de alvas origens?

Jamais.

 

Condena-se a moça ao casamento

consigo mesma

na noite alvíssima

eternalmente.

 

 

O FILHO

 

De quem, de quem o filho

de Sofia?

 

Do relojoeiro?

Do dentista?

Do primo Augusto?

Do promotor?

Do telegrafista?

Do cabo-comandante do destacamento?

De um dos praças?

Do padre apóstata?

 

Quem é o pai, quem é o pai

noturnamente encapuzado

(sequer tem rosto)

do filho anônimo de Sofia?

 

Nenhum deles visto rondando

de Sofia o muro solteiro,

nenhum abrindo de madrugada

a cancela rouca de Sofia.

O pai quem é?

 

Sofia semilouca de raça ilustre

vai contar quem dormiu

em seu quarto seco de solteirona

e secamente lhe fez o filho?

Vai inventar talvez um pai

que jamais a tenha tocado?

 

Já se apavoram os homens bons

com a denúncia?

Ninguém confessa ter conhecido

Sofia em fogo ou violentada,

Sofia pura,

Sofia aberta

ao prazer esperado amargamente?

 

Ou dormiram todos com Sofia

(o que é mesmo que não dormir),

ninguém tem culpa,

ninguém é o pai?

 

Pai do menino é a cidade?

A loucura é pai do menino?

O menino nasceu do absurdo

propósito de nascer-se, escolheu

o ventre de Sofia como se escolhesse

vaso sem semente, apenas terra?

 

Sofia não responde. Ri baixinho,

acaricia o pinto do menino.

 

 

A NOVA PRIMAVERA

 

As tias viúvas vestem pesadas armaduras

de morte e gorgorão. Desde o pescoço

à inviolada ponta dos borzeguins, elas proclamam

rompimento com o século. E nada mais existe

senão a noite dos maridos estampada

em cada gesto de soberba solidão.

 

Assim as queremos para sempre novamente

virgens, reintegradas na pureza original.

Ai de quem boqueje: As tias são mulheres

sujeitas à lei terrestre do desejo,

e em noites brancas lutam corpo a corpo com duendes.

 

Uma tia, porém, olvida o mandamento

e casa-se outra vez. O raio na família.

Ela é toda jardim, é pura amendoeira

na alegre doação de outra virgindade.

 

A família decide: essa tia morreu.

 

 

CHEGADA

 

Por que nos despejam

de nossos quartos milenários?

nos mandam passar a noite

sobre colchões de emergência, no chão,

na outra ala da casa, tão distante

de nossos cômodos,

de nossa intimidade com a cama, a cadeira, o penico,

de nosso trato com a bacia e o jarro de cada manhã,

de nossa muda convivência

com as sombras na parede, os sussurros

que vêm da rua, a voz sacramental

do relógio da matriz — é tarde —

batendo nove horas?

 

Ora, deixa estar que é bom.

Quem vai dormir em noite assim diversa?

Vai é jogar travesseiros um no outro,

criar fantasmas de lençol,

dizer besteiras, contar porcaria

sem perigo de ninguém mais ouvir.

 

Mas por que, me diz, esse bulício lá dentro,

esse ir e vir de passos abotinados,

esse outro pisar mais leve, mais seguro,

de mulher

(só pode ser da velha que não conhecemos

e que no lusco-fusco entrou em casa)?

 

Alguém geme, talvez. Alguém

agora está gemendo alto,

está gritando, abala o mundo? Horror

na treva sem explicação.

É ouvir e calar

nossa experiência de pavor.

Deve tudo estar certo, combinado

pelo poder dos grandes, enigmático.

Travesseiros, de cansaço, já não pulam

no escuro.

Gritos sem sentido já se apagam

na areia do cochilo

cochilante.

 

De manhã cedo, o sol em canto alegre:

“Esta noite

chegou mais uma irmãzinha pra vocês.”

 

 

REJEIÇÃO

 

Não sei o que tem meu primo

que não me olha de frente.

Se passo por sua porta,

é como se não me visse:

parece que está na Espanha

e eu, velhamente, em Minas.

Até me virando a cara,

a cara é de zombaria.

Se ele pensa que é mais forte

e que pode me bater,

diga logo, vamos ver

o que a tapa se resolve.

A gente briga no beco,

longe dos pais e dos tios,

mas briga de decidir

essa implicância calada.

Qual dos dois, mais importante:

o ramo dele, o meu ramo?

O pai mais rico, quem tem?

Qual o mais inteligente,

eu ou ele, lá na escola?

Namorada mais jeitosa,

é a minha ou é a dele?

Tudo isso liquidaremos

a pescoção, calçapé,

um dia desses, na certa.

Sem motivo, sem aviso,

meu primo declara guerra,

essa guerrinha escondida,

de mim, mais ninguém, sabida.

Pode pois uma família

ser assim tão complicada

que nós dois nos detestamos

por sermos do mesmo sangue?

Nossas paredes internas

são forradas de aversão?

Será que o que eu penso dele

ele é que pensa de mim

e me olha atravessado

porque vê na minha cara

o vinco de zombaria

e um sentimento de força,

vontade de bater nele?

Meu Deus, serei o meu primo,

e a mesma coisa sentimos

como se a sentisse o outro?

 

 

SANTO PARTICULAR

 

Dom Viçoso é o santo da família.

Humilde-forte, quem pode com ele

no céu mineiro,

áureo de legendas?

Não é canonizado? Tanto faz.

E é santo à mão: nosso quase vizinho

de Mariana.

 

Santinhos, bentinhos encarnados

não multiplicam sua imagem.

Nem verônica nem dia de folhinha

fazem propaganda deste santo.

Mas ele é santo — Papai, que sabe, afirma.

 

Dom Viçoso, na alpestre

Cartuxa de Mariana,

fica entre a gente e o Paraíso,

ajeitando os negócios de Papai.

 

 

IMPORTÂNCIA DA ESCOVA

 

Gente grande não sai à rua,

menino não sai à rua

sem escovar bem a roupa.

Ninguém fora se escandalize

descobrindo farrapo vil

em nossa calça ou paletó.

 

Questão de honra, de brasão.

Ninguém sussurre:

A família está decadente?

A escova perdeu os pelos?

A fortuna do Coronel

não dá pra comprar escova?

 

Toda invisível poeirinha

ameaça-nos a reputação.

Por isso a mãe, sábia, serena,

sabendo que sempre esqueço

ou mesmo escondo, impaciente,

esse objeto sem fascínio,

me inspeciona, me declara

mal preparado para o encontro

com o olho crítico da cidade.

E firme, religiosamente,

vai-me passando, repassando

nos ombros, nas costas, no peito, nas pernas,

na alma talvez (bem que precisava)

a escova purificadora.

 

 

O EXCOMUNGADO

 

Minha mãe que é tão fraca, ela sabe porém

o poder que a palavra imprevista contém.

 

Hoje me excomungou porque fiz um malfeito.

Não vou crescer feliz, agora não tem jeito.

 

Excomungado estou por decreto materno.

Pior que amaldiçoado — escrevo no caderno.

 

Já não sei que fazer, busco dentro de mim.

Desmereço de todo o prato de pudim.

 

Sinto que me atolei na mais negra peçonha.

Passei a ser um réu coberto de vergonha.

 

Mas no triste do quarto acende-se um luzeiro.

Copio e botarei sob o seu travesseiro

 

o já tradicional pedido de perdão:

“Minha mãe, me arrependo. Eu não faço mais não.”

 

 

ROMANCE DE PRIMAS E PRIMOS

 

A prima nasce para o primo.

O casamento foi marcado

no ato mesmo da concepção.

Entre os primos, é eleito o primo

que melhor convém ao tratado.

Sem exclusão dos demais primos

perfilados todos à espera

de chamado se a vida muda.

 

Assim nascem todas as primas,

destinadas a matrimônio

do outro lado da mesma rua.

Os sobradões se comunicam

em passarela de interesses

da vasta empresa de família

que abrange bois, terras, apólices,

paióis de milho e tradição.

 

Serão multíparas as primas

a primos árdegos unidas.

À noite, no maior recato,

apagado o lampião, arquejos

e repugnâncias abafadas

contribuirão para a grandeza

do eterno tronco familial,

bem mais precioso que as pessoas.

 

De filhos, netos e bisnetos

o futuro já foi traçado

em firmes letras de escritura:

O país serrano pertença

a primos, primas e mais primos

encomendados com sapiência

pelo conselho soberano

de tios primos entre si.

 

Para lá dos cerros, a Terra

há de curvar-se ao poderio

deste grupo à sombra de Deus

— o deus especial das terras

dos rebanhos e dos princípios

particulares que dominam

a fortaleza atijolada

em mescla de sangue e dinheiro.

 

Mas um dia as primas se enervam

de nascer assim programadas

para um fim geral sem prazer.

Já os primos se desencantam

desta sorte a que estão jungidos.

E uma estampa de herói de filme,

outra estampa de estrela nórdica

acicatam insônias púberes.

 

Eis que aportam rapazes louros,

de um louro claro que deslustra

o banal moreno dos primos.

Vêm a negócios, mas reparam

numas primas ajaneladas

dispostas a romper a lei

da missão sem gosto e sem graça

de funcionárias da família.

 

Por sua vez os primos ardem

de voraz, incontido ardor

pela equilibrista do circo

e suas nervosas, elásticas

pernas que jamais uma prima

lhes mostrara, se é que possuíra

joias tais sob as circunspectas

multissaias e plurianáguas.

 

Outro assunto, meses a fio,

não conhece o burgo serrano

senão este, de estarrecer:

Entre as primas, a mais prendada

fugiu com o mais louro moço

entre os ádvenas moços louros

e seu primo compromissado

lá se foi, saltimbanco errático.

 

A partir de então — adivinha-se —

desimpedidos os primos

de escolher o par a seu gosto,

cada qual atira seus olhos

no rumo sem fim da aventura,

e de seculares raízes,

riquezas, títulos e taras,

nada resta — e ri-se o Diabo.

 

 

O VIAJANTE PEDESTRE

 

O fazendeiro está cansado.

É cansaço de gerações.

Já não passeia a vista satisfeita

pelo universo de cinco fazendas.

Vende as menores. Doa aos filhos

as duas grandes.

 

O fazendeiro descansa

de um trabalho que vem de antes

de ter nascido. Vem de índios

e mineradores.

Cumpriu sua lei. Agora os filhos

cumpram a deles.

Mas um não sabe a cor da terra,

nunca aprendeu, nem saberá

a rude física das estações;

o jeito de um boi; a sagração do milho.

Que fará na roça esse herdeiro triste

de um poder antigo?

 

Desiste. Vai

viver o destino urbano

de qualquer homem.

A mala pronta. A “condução” espera

à porta da casa.

 

Não, não espera.

Não há “condução”.

Sumiu o cavalo no oco do pasto.

Sumiu a viagem na estrada de barro.

Sumiu a esperança

de chegar a tempo

ao destino urbano.

Só o “camarada”

esperando ordens.

 

— A gente vai mesmo de-a pé. Eu na frente, como viajante e senhor. Você atrás, com a mala nas costas. Até eu pegar o trem no fim das oito léguas. Combinado?

 

Combinado. Que remédio?

O filho do fazendeiro

senhor de cinco fazendas

lá vai, pé de lama a fora.

Sobe morro desce morro

passa ponte passa pinguela

passa tropa de cincerro

passa vento passa chuva

passam outros viajantes

imperialmente montados

em prateados corcéis

de crinas mais que argentinas.

Lá vai, degradado, a pé.

E vai com tanta sustância

tal empuxo de chegar

que não percebe, não sente

como os olhos espantados

que cruzam no seu caminho

julgam seu pedestre afã.

(A distância que separa

o empafioso ginete

de um mísero duas-patas!)

 

— Meu pai, cheguei a salvo e muito de mim contente pela prova de resistência que venci com a graça de Deus e a fibra que o senhor me transmitiu. Que tal?

 

— Que tal? E ainda tem topete

de perguntar que gostei?

Pode haver maior afronta

para antigo fazendeiro

dono de cinco estirões

de chão coberto de mulas

e cavalos valorosos

que ver seu filho varando

pior que descalço, a pé,

roteiros onde retine

a orgulhosa memória

de seus animais de estima?

Ele que sempre emprestou

montarias de alto porte

a quem delas precisasse?

Por que tanta impaciência?

O pasto, por mais imenso,

não é terra do sem-fim.

Todo cavalo sumido

aparece logo mais.

A vida ensina a esperar

uma hora, duas horas,

até mesmo o dia inteiro.

Já nem sei onde é que estou

que não sumo de mim mesmo,

de tão dorida vergonha

por meu filho desmontado

e por cima se gabando

da condição rebaixada!

Meu pai, meu avô, meu bisa-

vô de nobres equipagens

lá no céu dos fazendeiros

estão despedindo raios

de irada condenação

sobre esse tonto rebento

que nem noção de decoro

conserva em sua tonteza...

Com você, filho, começa

a desabar a família.

 

O MENINO E OS GRANDES

 

PROCURAR O QUÊ

 

O que a gente procura muito e sempre não é isto nem aquilo.

É outra coisa.

Se me perguntam que coisa é essa, não respondo, porque não é da conta de ninguém o que estou procurando.

Mesmo que quisesse responder, eu não podia. Não sei o que procuro. Deve ser por isso mesmo que procuro.

Me chamam de bobo porque vivo olhando aqui e ali, nos ninhos, nos caramujos, nas panelas, nas folhas de bananeira, nas gretas do muro, nos espaços vazios.

Até agora não encontrei nada. Ou encontrei coisas que não eram a coisa procurada sem saber, e desejada.

Meu irmão diz que não tenho mesmo jeito, porque não sinto o prazer dos outros na água do açude, na comida, na manja, e procuro inventar um prazer que ninguém sentiu ainda.

Ele tem experiência de mato e de cidade, sabe explorar os mundos, as horas. Eu tropeço no possível, e não desisto de fazer a descoberta do que tem dentro da casca do impossível.

Um dia descubro. Vai ser fácil, existente, de pegar na mão e sentir. Não sei o que é. Não imagino forma, cor, tamanho. Nesse dia vou rir de todos.

Ou não. A coisa que me espera, não poderei mostrar a ninguém. Há de ser invisível para todo mundo, menos para mim, que de tanto procurar fiquei com merecimento de achar e direito de esconder.

 

 

SOLILÓQUIO DO CALADINHO

 

Eu não sei o que diga

se me falam na rua.

Não estou preparado

para conversa-no-ar.

 

Não sei fazer visita

e dizer as amenas

frases que toda gente

traz no bolso da calça.

 

A mentira é difícil

e não por ser mentira:

porque exige da gente

a arte de inventar.

 

À alegria é difícil

de se manifestar,

não por ser alegria.

Porque é forte demais.

 

O sofrimento é fácil

de se exibir na face.

Tudo dói, tudo queima

sem fósforo aparente.

 

Os parentes me falam

uma língua só deles.

Eu entendo a linguagem

das pedras sem família.

 

Tudo é mais complicado

se se tenta explicar.

Um gato me fitou,

percebi tudo: nada.

 

 

COLEÇÃO DE CACOS

 

Já não coleciono selos. O mundo me inquizila.

Tem países demais, geografias demais.

Desisto.

Nunca chegaria a ter um álbum igual ao do Dr. Grisolia,

orgulho da cidade.

E toda gente coleciona

os mesmos pedacinhos de papel.

Agora coleciono cacos de louça

quebrada há muito tempo.

 

Cacos novos não servem.

Brancos também não.

Têm de ser coloridos e vetustos,

desenterrados — faço questão — da horta.

Guardo uma fortuna em rosinhas estilhaçadas,

restos de flores não conhecidas.

Tão pouco: só o roxo não delineado,

o carmesim absoluto,

o verde não sabendo

a que xícara serviu.

Mas eu refaço a flor por sua cor,

e é só minha tal flor, se a cor é minha

no caco de tigela.

 

O caco vem da terra como fruto

a me aguardar, segredo

que morta cozinheira ali depôs

para que um dia eu o desvendasse.

Lavrar, lavrar com mãos impacientes

um ouro desprezado

por todos da família. Bichos pequeninos

fogem de revolvido lar subterrâneo.

Vidros agressivos

ferem os dedos, preço

de descobrimento:

a coleção e seu sinal de sangue;

a coleção e seu risco de tétano;

a coleção que nenhum outro imita.

Escondo-a de José, por que não ria

nem jogue fora esse museu de sonho.

 

 

DOIS RUMOS

 

Mentir, eis o problema:

minto de vez em quando

ou sempre, por sistema?

 

Se mentir todo dia,

erguerei um castelo

em alta serrania

 

contra toda escalada,

e mais ninguém no mundo

me atira seta ervada?

 

Livre estarei, e dentro

de mim outra verdade

rebrilhará no centro?

 

Ou mentirei apenas

no varejo da vida,

sem alívio de penas,

 

sem suporte e armadura

ante o império dos grandes,

frágil, frágil criatura?

 

Pensarei ainda nisto.

Por enquanto não sei

se me exponho ou resisto,

 

se componho um casulo

e nele me agasalho,

tomando o resto nulo,

 

ou adiro à suposta

verdade contingente

que, de verdade, mente.

 

 

DUPLA HUMILHAÇÃO

 

Humilhação destas lombrigas,

humilhação de confessá-las

a Dr. Alexandre, sério,

perante irmãos que se divertem

com tua fauna intestinal

em perversas indagações:

“Você vai ao circo assim mesmo?

Vai levando suas lombrigas?

Elas também pagam entrada,

se não podem ver o espetáculo?

E se, ouvindo lá de dentro,

as gabarolas do palhaço,

vão querer sair para fora,

hem? Como é que você se arranja?”

 

O que é pior: mínimo verme,

quinze centímetros modestos,

não mais — vermezinho idiota —

enquanto Zé, rival na escola,

na queda de braço, em tudo,

se gabando mostra no vidro

o novelo comprovador

de seu justo gabo orgulhoso;

ele expeliu, entre ohs! e ahs!

de agudo pasmo familiar,

formidável tênia porcina:

a solitária de três metros.

 

 

O MAIOR PAVOR

 

Pavores

esparsos na cidade,

infiltrados na vida de um qualquer:

a noite — caligem, facões de cabo curto

cintilando no negrume

para me matar.

O cavaleiro-assombração

que diminui o trote

para

apeia

atravessa a porta aferrolhada

chega ao meu quarto e —

(o mais nem imagino).

O indiscutível lobisomem

saltando da boca narradeira de Sá Maria

em casos acontecidos muito perto

(amanhã será comigo?).

O morfético de Sete Cachoeiras

que estende o coto de mão pedindo água

(água não se deve recusar)

para infetar a cuia.

Maior de todos,

o salamaro sal catártico.

Maior, maior que ele ainda,

a poaia.

O mais ligado à gente, o sem-remédio,

areia amarela no copo grande

— toma, se não apanha!

humilhando a garganta

ofendendo o gosto que se tem pelo gostoso,

solução ou castigo de meus males

estômaco-morais ?

 

A mão imperiosa

decide meu destino:

“Apanha e toma; é pra teu bem.”

(Sempre que apanho é pra meu bem.)

Entre chinela e poaia

entre poaia e náusea,

irrompe, gêiser, a flor do vômito.

 

 

A INCÔMODA COMPANHIA DO JUDEU ERRANTE

 

Não durmo sem pensar no Judeu Errante.

A esta hora,

onde estará, não estará,

pois caminha eterno, e seus passos ressoam

neste quarto, embaixo da cama,

na gaveta do armário, na porta do sono?

 

Para que foram me contar essa história de Judeu Errante

que tem começo e nunca terá fim?

Não sei se é pena ou medo

ou medopenamedo

o que sinto por ele.

Sei que me atinge. Me fere. Não há banco

nem cama para o Judeu Errante.

Come no ar. Não para.

Vestido de preto. Anda. Olhos sombrios. Anda.

Deixa marca de pés? Como é a sua voz?

E anda e anda e pisa no meu sonho.

Que mal fiz eu

para viver acorrentado à sua imagem?

 

 

BRINCAR NA RUA

 

Tarde?

O dia dura menos que um dia.

O corpo ainda não parou de brincar

e já estão chamando da janela:

É tarde.

 

Ouço sempre este som: é tarde, tarde.

A noite chega de manhã?

Só existe a noite e seu sereno?

 

O mundo não é mais, depois das cinco?

É tarde.

A sombra me proíbe.

Amanhã, mesma coisa.

Sempre tarde antes de ser tarde.

 

 

BRIGA

 

Brigar é simples:

Chame-se covarde ao contendor.

Ele olhe nos olhos e:

— Repete.

Repita-se: — Covarde.

Então ele recite, resoluto:

— Puta que pariu.

— A sua, fio da puta.

 

Cessem as palavras. Bofetão.

Articulem-se os dois no braço a braço.

Soco de lá soco de cá

pontapé calço rasteira

unha, dente, sérios, aplicados

na honra de lutar:

um corpo só de dois que se embolaram.

 

Dure o tempo que durar

a resistência de um.

Não desdoura apanhar, mas que se cumpra

a lei da briga, simples.

 

 

O VISITANTE INÁBIL

 

Café coado na hora,

adoçado a rapadura bem escura,

deve ser servido na tigela

de flores de três cores,

flores pegando fogo, de tão quente

deve ser o café pra ser café

oferecível.

 

Queimo os dedos, viram cacos

as cores das três flores,

molho a calça, queimo a perna,

me envergonho:

 

Este café tem plenas condições

de ser bebido com prazer e continência,

e não correspondi à etiqueta

de beber café pelando em casa alheia.

 

 

TAMBOR NO ESCURO

 

O rumor vem de longe. Vem da Rua de Baixo,

onde é tudo diverso e pode acontecer?

Do Areão? De não sei onde vem.

No vento, no entressono fevereiro.

É a caixa de guerra.

 

A caixa enorme, a caixa repetida

que não deixa dormir,

surda, longínqua, tão presente

no breu do quarto, agora.

 

O som penetra o cobertor,

cola-se à carne. Quem estará rufando

este convite, este brado, esta ameaça?

Operários rebelados

contra o sossego de coronéis e coletores?

Há quantas noites se repete

e amanhã risco nenhum no céu lavado,

nenhum sinal na rua,

do zabumba-fantasma desta hora.

 

O nome, o nome vago

sonolento se esboça: Zé-Pereira,

de ninguém conhecido, não é primo,

não é irmão de Tonho, de Justino,

de Salatiel Pereira, clã sortido.

Um Zé sem cara que é o próprio bumbo

a soar na hora morta do meu catre.

 

Dizer que é carnaval chegando nada explica.

Há uma força chamando e só à noite

é que ele escuta o chamado?

Deus diferente, diabo manhoso,

só virá se a batida chega ao ponto,

e é preciso insistir, noturno apelo renitente?

Se eu pudesse sair,

sem ranger de botina,

sem pigarro do Velho me espreitando,

no rastro deste apelo, susto embora!

 

O sentido das coisas mora longe.

 

 

BANDO

 

Carnaval da gente é o bando.

O bando cigano, vadio, pedinchão.

Fantasia, mãe da gente é quem faz.

Tento modelar a máscara feroz

na prática artesã:

sai porcaria.

Então o pai ajuda nos preparativos.

Vá lá. Cuidado, menino,

não me faça maluquice.

E Vlã, posso comprar?

Olha só que absurdo. Lança-perfume nos olhos

cega por toda a vida!

Compro limão de cheiro

que é barato e engraçado na pele dos outros,

mas geralmente os outros é que me ensopam.

O bando sai mal preparado como sempre,

não dá aquele prazer imaginado

na hora de formar o bando.

(Um dia alguém me ensinará

que há carnavais subjetivos.

O meu é subjetivo sem saber.)

Somos irreconhecíveis em nossos disfarces

e toda gente nos conhece.

Na noite de terça-feira,

com empadões e pastéis fornecidos pelos familiares,

mastigamos melancólicos a essência do carnaval.

 

 

CHEIRO DE COURO

 

Em casa, na cidade,

vivo o couro

a presença do couro

o couro dos arreios

dos alforjes das botas

das botinas amarelas

dos únicos tapetes consentidos

sobre o chão de tabuões que são sem dúvida

formas imemoriais de couro.

 

Vivo o cheiro do couro,

bafo da oficina do seleiro

suspenso no quarto de arreios.

Surpreendo, apalpo o cheiro futuro

dos bois sacrificados

olhando

a parada estrutura dos bois vivos.

 

Aspiro, adivinhando-o,

o cheiro do couro nonato

da cria na barriga da vaca Tirolesa

que um dia será carneada.

 

O couro cheira há muitas gerações.

A cidade cheira a couro.

É um cheiro de família, colado aos nomes.

 

 

CLASSE MISTA

 

Meninas, meninas,

do lado de lá.

Meninos, meninos,

do lado de cá.”

Por que sempre dois lados,

corredor no meio,

professora em frente,

e o sonho de um tremor de terra

que só acontece em Messina,

jamais, jamais em Minas,

para, entre escombros, me ver

junto de Conceição até o fim do curso?

 

 

HORA MÁGICA

 

Pés contentes na manhã de março.

ó vida! Ó quinta-feira inteira!

pisando a areia que canta, o barro que clapeclape,

a poça d’água que rebrilha.

Há de ser sempre assim, não vou crescer,

não vou ser feito os grandes, apressados,

aflitos, de fumo no chapéu,

esporas galopantes.

O dia é todo meu. E este caminho,

estas pedras, estes passarinhos, este sol espalhado

em cima de minha roupa, de minhas unhas.

Tenho canivete Rodger, geleia, pão de queijo

para comer quando quiser.

Posso devassar o mato grande até Guanhães,

descobrir tesouro, bichos nunca vistos,

quem sabe se um feiticeiro, um ermitão,

a ondina ruiva do Rio do Tanque.

Igual aos índios. Igual a mim mesmo, quando sonho.

 

 

O NEGÓCIO BEM SORTIDO

 

O perfeito negociante vende tudo.

Vende a seda mais fina de Lyon,

o áspero pano da fábrica da Pedreira,

a renda de Malines e a do Norte.

Todas as miudezas de armarinho.

Todos os gêneros do país.

Chapéus de sol e de cabeça.

Toda espécie de calçados,

inclusive o “Andarilho”:

não produz calos nem os oprime,

sola impermeabilizada por processo novo,

dispensa graxas e pomadas.

 

À direita uma parede inteira

ostenta licores importados,

conservas inglesas, molhos raros

para os Messers da mina, altos clientes.

(Escondo por trás dessas riquezas

a barra de chocolate sonegada

ao olho distraído do patrão,

e de longe em longe, disfarçando,

mastigo este salário extraordinário.)

 

Ao fundo, em úmida sombra,

mantas de toucinho rosa-sal,

caixotes de milho, barricas de batatas,

sacos de feijão, ferragens rudes

(enxadas: curvo destino nacional).

É provação dominical, antes da missa,

(falta descobrir a semana inglesa)

tropeçar os dedos na massa trêmula do porco,

recortar a facão

e pesar cinco quilos de toucinho.

 

Por que escolheste vida de caixeiro,

vida de cachorro, o trocadilho exato,

quando podias bem ficar no casarão

em ocioso bem-bom de filho de Coronel?

 

Bobagens: quem explica

as que a gente faz?

Eu sei: foi para, em longas horas estagnadas,

em que ninguém compra, mas conversa

à beira arranhada do balcão

— as horas quase todas do comércio —

discutir a guerra de 14 que lavra lá no longe

e em que te empenhas tanto do mau lado.

 

Não é fero o patrão.

Decerto preferia

que falasses menos, trabalhasses mais.

E se perceber que o chocolate some,

sem sabor e fumaça, no papel prateado?

Se descobrir? Se te pilhar?

 

Erram pesadelos de caixeirinho

na noite gelada montanhesa.

 

 

HISTÓRIA DE VINHO DO PORTO

 

O melhor na caixa de vinho

não é o vinho constelado de medalhas.

É o brinde oculto, destinado a quem? A mim,

caixeiro de armazém de secos e molhados.

 

A martelo e formão desventra-se o caixote.

Nas botelhas deitadas dorme vago torpor.

Papel de seda branco envolve esse letargo.

Onde o brinde? O canivete, a tesourinha,

a peça portuguesa de cerâmica, onde, onde

comigo brinca de esconder?

 

E se acaso esqueceram lá no Porto

de colocar meu brinde aí dentro?

Se em alto-mar — ó caixa balançando

entre ondas atlânticas iradas —

um marinheiro a violou,

roubou meu brinde lusitano?

 

O patrão acompanha os gestos de pesquisa:

— Olhe lá, não vá quebrar uma garrafa.

Me dará o que for? Guardará para um filho?

Vou lhe pedir? Surripiar

quando um freguês o chame, num segundo?

Melhor talvez do que pedir

e sofrer um não.

 

Ele volta, pergunta,

vendo a caixa vazia, as mãos vazias:

— Como é? O que foi que encontrou?

As mãos vazias lhe respondem: Nada.

 

 

EXIGÊNCIA DAS ALMAS

 

À minha frente,

a sacola vermelho-desbotada:

— Esmola para as almas.

 

Difícil recusar: no Purgatório

as almas espiam

escutam

reparam.

Estão confiantes as almas, vigilantes as almas.

Muito se aborrecerão

se eu lhes negar o solitário níquel da algibeira.

 

Que fazem as almas com dinheiro?

Por que precisam de dinheiro as almas?

Acaso não preciso mais na Terra?

Todo menino aqui tem dívidas

e as almas não querem saber disso.

 

— Como é? Não dá esmola para as almas?

Despojo-me, resignado.

É voz corrente, voz na carne:

Das almas não se pode esconder nada.

 

 

ESMOLA

 

Pede-se esmola por amor de Deus,

não por favor.

O cobre é dado por amor de Deus,

40 réis de amor e caridade.

Mas a mulher é velha, manca, enxerga mal.

Vou acompanhá-la pela rua afora.

A mão pega-lhe o braço, vai guiando

ou quase.

— Não careço de ajuda.

Me larga, menino, por amor de Deus.

 

 

OS POBRES

 

Domingo. Tarde. Consistório da

Matriz. Luz escassa no adro verde.

Comprida toalha vermelho-vinho

amacia a mesa das deliberações.

 

Ao derradeiro raio de sol

bailam corpúsculos no ar.

A Conferência Vicentina

considera a vida dos pobres.

 

O pai não veio desta vez.

Mandou-me em seu lugar. Sou grande,

já não sou menino estabanado

ao cuidar da vida dos pobres.

 

Mas que sei da vida dos pobres

senão que vivem: sempre, sempre,

como a água, a pedra, o costume?

Se São Vicente manda ver

no rosto deles o do Cristo,

o que vejo é a comum pobreza

resignada, consentida,

tão natural como sinal

na pele.

 

Estendo a mão com gravidade

na hora de contribuir.

Não é meu dinheiro? É meu o gesto.

Não salvo o mundo. Mas me salvo.

 

 

MENINA NO BALANÇO

 

A calcinha (que é calça) de morim-cambraia,

nada transparente, de babados,

deve chegar até quase os joelhos.

A gente espera, a gente fica prelibando,

mas nem isto se vê

na rapidez do balanço que só revela em primeiro plano

a imensidão instantânea da sola dos sapatinhos brancos.

 

 

FEBRIL

 

Ai coxas, ai miragem,

nudez rindo fugindo!

Relampeia no escuro,

até no dia claro!

 

Ai corpos e delícias,

mar de ondas imóveis!

Labareda a lamber-me

por dentro, e não parece...

 

Tão perto, seios longe!

À míngua de senti-los,

nem sequer o direito

de contar esta febre...

 

Ao menos se uma vez

os olhos apalpassem

o pelo, a mão tocasse

o frondoso carvão!

 

Pegar na realidade

o que vejo, invisível!

Não e nunca... Flanelas!

Linhos indevassáveis!

 

Quando crescer (e cresço?)

tudo estará presente?

Ou perco para sempre

isto que não mereço?

 

 

A MÃO VISIONÁRIA

 

Xô xô mosquitinho

xô xô mosquitinho

xô xô mosquitinho

a moça da casa verde

xô xô mosquitinho

arregaçando o vestido

xô xô mosquitinho

descerrando as pernas brancas

xô xô mosquitinho

mais acima dos joelhos

xô xô mosquitinho

as coxas se arredondando

xô xô mosquitinho

entre as coxas se formando

xô xô mosquitinho

o escuro encaracolado

xô xô mosquitinho

bosque, floresta encantada

xô xô mosquitinho

que eu nunca vi, me contaram

xô xô mosquitinho

a minha mão vai subindo

xô xô mosquitinho

vai apalpando, alisando

xô xô mosquitinho

até chegar a essa mata

xô xô mosquitinho

que me deixa emaranhado

xô xô mosquitinho

na noite mais pegajosa

xô xô mosquitinho

e sinto que estou queimando

xô xô mosquitinho

nesse carvão incendiado

xô xô mosquitinho

vou ardendo vou morrendo

xô xô mosquitinho

xô... xô...

mosquitinho

Ai!

 

 

AMOR, SINAL ESTRANHO

 

Amo demais, sem saber que estou amando,

as moças a caminho da reza.

No entardecer.

Elas também não se sabem amadas

pelo menino de olhos baixos mas atentos.

Olho uma, olho outra, sinto

o sinal silencioso de alguma coisa

que não sei definir — mais tarde saberei.

Não por Hermínia apenas, ou Marieta

ou Dulce ou Nazaré ou Carmen.

Todas me ferem — doce,

passam sem reparar. O lusco-fusco

já decompõe os vultos, eu mesmo

sou uma sombra na janela do sobrado.

Que fazer deste sentimento

que nem posso chamar de sentimento?

Estou me preparando para sofrer

assim como os rapazes estudam para médico ou advogado.

 

 

ENLEIO

 

Que é que vou dizer a você?

Não estudei ainda o código

de amor.

 

Inventar, não posso.

Falar, não sei.

Balbuciar, não ouso.

 

Fico de olhos baixos

espiando, no chão, a formiga.

 

Você sentada na cadeira de palhinha.

Se ao menos você ficasse aí nessa posição

perfeitamente imóvel, como está,

uns quinze anos (só isso)

então eu diria:

Eu te amo.

Por enquanto sou apenas o menino

diante da mulher que não percebe nada.

 

Será que você não entende, será que você é burra?

 

 

SENTIMENTO DE PECADO

 

I

 

Pecar, eu peco todo santo dia.

Às vezes mais. Outras nem tanto.

Mas sempre a sombra, na consciência,

visão de inferno, crepitante,

subimpressa nos atos, nos lugares.

 

Sei todos os pecados e cometo-os.

Todos os arrependimentos.

Todas as prosternadas confissões,

previstas penitências:

Três padre-nossos,

três ave-marias,

três creiemdeuspadres.

 

Saio puríssimo para pecar de novo.

Padre Olímpio não se cansa,

não me canso,

jamais se cansa o inferno

de aparecer em brasas nítidas.

Como pode durar o ano inteiro

este jogo de deus e de diabo

em peito de menino?

 

II

 

Chegam os missionários estrangeiros

corados

rudes

ininteligíveis.

Festa na cidade, medo em mim:

Entenderão os meus pecados?

Trazem um inferno mais terrível

da Itália, da Espanha, da Alemanha?

 

A Inquisição — me lembro de gravuras

com fogaréus sinistros alumiando

uma praça de olhares —

baixou talvez em Minas, sou a vítima.

 

Os pecadores não fazem fila.

O mar de pecados

envolve três confessionários

em suor arrependido.

 

Homens e mulheres exalam

vapor de crimes contra o Céu.

Valho tão pouco, eu!

Outra forma de medo me visita:

Meu Deus, terei pecado

à altura dos Inquisidores,

ou vão me desprezar, incompetente?

 

 

ELE

 

Ele vê, ele cala.

Castiga depois.

Seu olho-triângulo

devassa o país do mato-dentro.

No escuro me vê

e me assusta.

No claro me deixa sozinho

sem um sinal, um só

que me previna.

 

O que faço de errado,

principalmente o que faço

de gostoso,

tudo lhe merece

a mesma indiferença

enquanto vou fazendo.

Tarde é que ele mostra

sua condenação.

Interrogo-me, sinto

que dói dentro de mim.

Não devia ter feito.

Como poderia evitar de fazer?

Só agora percebo

que condenado fui

a fazer e provar

a pena interior.

 

Seu nome (e tremo) é Deus do catecismo.

 

 

REPERTÓRIO URBANO

 

PEDRA NATAL

 

ita

bira

pedra luzente

candeia seca

pedra empinada

sono em decúbito

pedra pontuda

tempo e desgaste

pedra falante

sem confidência

pedra pesante

paina de ferro

por toda a vida

viva vivida

pedra

mais nada

 

 

TANTAS FÁBRICAS

 

A fábrica de café de João Acaiaba

a fábrica de sabão de Custódio Ribeiro

a fábrica de vinho de João Castilho

a fábrica de meias de François Boissou

a fábrica de chapéus de Monsenhor Felicíssimo

a fábrica de tecidos de Doutor Guerra

a fábrica de ferro do Jirau do Capitão Aires

a fábrica de sonho de cada morador

a fábrica de nãos do governo longínquo

a fábrica de quê? na intérmina conversa

que rumina o milagre

e cospe de esquerda

no chão.

 

 

DESFILE

 

As terras foram vendidas,

as terras abandonadas

onde o ferro cochilava

e o mato-dentro adentrava.

Foram muito bem(?) vendidas

aos amáveis emissários

de Rothschild, Barry & Brothers

e compadres Iron Ore.

O dinheiro recebido

deu pra saldar hipotecas,

velhas contas de armarinho

e de secos e molhados.

Inda sobrou um bocado

pra gente se divertir

no faz de conta da vida

que devendo ser alegre

nem sempre é — quem, culpado?

Então se funda o galhardo

Clube Casaca Vermelha,

o qual todo encasacado

e todo rubro-pelintra

vem montado em seus cavalos

de vasta crina e arreata

de nobre prata e fulgor.

Desfila pela cidade

entre clarins triunfais

que clarinam mundo afora

nossa riqueza e poder.

Beleza do nunca visto

nunca sonhado ou contado:

são duzentos, são trezentos

quatrocentos cavaleiros,

serão mais, se não deliro,

altaneiros e pimpões,

medievais, século-vintes,

dizendo ao mundo: “Nós somos,

nós temos, nós imperamos!”

A povama deslumbrada

já nem abre mais a boca

de tão aberta que está,

e o cortejo vai passando

rumo à glória, rumo à história,

vão os cavalos deixando

no chão de pedra o lembrete

estercorário da cena,

vão deixando, vão tinindo

as ferraduras festivas...

Aproveitem, meus casacas,

é só esta volta, e pronto:

ano que vem, nunca mais.

 

 

O MELHOR DOS TEMPOS

 

Bailes bailes bailes

em nossa belle époque.

Em casa de João Torres

há saraus constantes.

Na de Chico Cândido,

na de Emílio Novais,

na de Zé Carvalho,

a valsa espirala

suas curvas lentas.

Sempre a serenata

prateia o silêncio

dos casarões altivos.

A flauta flautíssima

de Mário Terceiro

faz terremotos líricos.

Vavá, Clinton, Astolfo,

mais Totoque e Lilingue

rogam suavemente

que Stela abra a janela

e abrigue corações

transidos de frio,

desfeitos em música.

Quem ousa, noturno,

furtar jabuticabas

em quintais caninos,

é para deixá-las,

votivas,

no peitoril das deusas

de boa família,

anonimamente.

Já de madrugada

os meigos ladrões

e magos cantores

lá vão degustar

os pastéis de queijo

de João Bicudo,

o licor discutível

de Zé Pereira.

Manhã rósea, passa

o batalhão infantil

(Minervino comanda)

e bate continência

às gentis moçoilas.

Tudo é mimo, graça.

Belle époque é fato

da história mineira.

 

 

PODER DO PERFUME

 

Popular, a água florida

O seu nome-roseira

já é flor e trescala

só de o ouvirmos na sala.

 

A excelsa brilhantina

em potes de Paris

embalsama noivados

no sofá dos sobrados.

 

Jiqui, perfume nobre,

há de estar bem à vista

entre jarro e bacia

da rural burguesia.

 

As botas onde o estrume

deixa visível marca,

em chegando à cidade

cedem à amenidade

 

que os moços fazendeiros

sabem criar em volta

de um sólido namoro

de perfumes em coro.

 

Qual mais recendente

a sândalo e jasmim,

ele e ela, abraçados

em cheiros conjugados,

 

sem se tocarem (nada

autoriza a licença

do beijo corporal)

praticam sem detença

 

— ai! — o sexo aromal.

 

 

A SEPARAÇÃO DAS CASAS

 

Os deste lado brigaram

com os do lado de lá.

Não foi briga de xingar,

não foi rixa de bater

nem de sacar o revólver.

É briga de não falar

e de cerrar a janela

devagar e sem ranger,

se passa alguém do outro lado.

Briga de não conhecer

quem antes se conhecia,

se estimava, se tratava

com a maior civilidade,

quem antes se convidava

pra festa de batizado

e primeira comunhão,

casamento, aniversário

ou pra simples assustado,

a quem, se acaso surgisse

gente demais no jantar,

emprestado se pedia

meia dúzia de cadeiras

e meia dúzia de copos,

e que também recorria

com toda sem-cerimônia

à vizinhança amistosa

em noite de dor na perna

e de farmácia fechada

com vistas ao milagroso

vidrinho de Pronto-Alívio

ou em outro qualquer aperto

que costuma suceder

nos lares mais bem providos.

Troca-troca se fazia

de doces, frutas, temperos,

receitas de forno e bilro,

mimos de mil qualidades

no vai e volta de cestas,

terrinas e tabuleiros.

Crianças das duas casas

unidas num só brinquedo

de chicotinho queimado,

carniça, gata-parida

e manja, roda, cantigas

lusamente brasileiras,

ou melhor, universais.

Té se faz de mentirinha,

casamento de meninos

que talvez se torne um dia

matrimônio de verdade

em gorda concentração

de fortunas e de afetos.

(O mundo, calmo, autoriza

esperar dez, quinze anos.)

Eis de súbito alterado

o panorama gentil

de tão grata convivência.

Não se tira mais chapéu

nem mais se exibem risonhos

dentes de cordialidade,

já se finge não haver,

dos dois lados desta rua,

ninguém morando por perto.

Há um vazio de cem léguas

na estreiteza das calçadas.

Pequenos brinquem no quarto,

o velocípede novo

rode da saia à cozinha

muito embora atropelando

grandes de todo respeito,

e quem fizer um aceno

para vulto de outro lado

entra feio na chinela

de ramagem verde hostil.

No grupo escolar, cuidado:

ninguém vá se misturar.

Que foi que houve, que não

houve, se nada sabemos?

Quem por acaso decifra

o que pode haver no ar

ou na cabeça dos grandes

reticentes, sigilosos?

Do lado de lá não sabem;

do lado de cá, também.

Não se filtra explicação.

Cala a boca! é a resposta

a quem demais especule.

E todo o mundo virou

cofre estranho de mistério

exemplarmente fechado

a mãos, olhares, perguntas...

Mas a velha cozinheira

peça antiga da família,

que tudo sabe e resmunga

seu misto de língua longe

e de estalar de panela,

cospe de lado e define:

— Candonga, gente. Candonga.

 

 

CHEGAR À JANELA

 

Há um estilo

de chegar à janela, espiar a rua.

 

Nenhum passante veja o instante

em que a janela se oferece

para emoldurar o morador.

 

De onde surgiu, de que etérea

paragem, nublado sótão,

como pousou, quedou ali,

recortado em penumbra?

 

Modo particularíssimo de ficar

e não ficar ao mesmo tempo

debruçado à janela

diante da segunda-feira

e das eternidades da semana.

De frente? De lado? De nenhum

ângulo? Está e não está

presente, é ilusão de pessoa,

vaso-begônia, objeto que mofou,

exposto ao ar?

 

A janela e o vulto imobilizado

proíbem qualquer indagação.

 

 

CHUPAR LARANJA

 

A laranja, prazer dourado.

A laranja, prazer redondo.

A laranja, prazer fechado.

A laranja, prazer de faca.

 

Ou canivete. Cada golpe

anuncia: já se aproxima

o íntimo prazer da laranja,

que não se dá sem sacrifício.

 

A laranja não se espedace,

para mais intenso prazer.

A laranja fique redonda,

mesmo sem casca: esfera branca.

 

Então corte rápido a lâmina

um dos polos; a mão aperte,

e a boca sorverá, sensual,

a líquida alma da laranja.

 

Quem foi que, anônimo, inventou

o prazer de chupar laranja

em forma global de mamucha?

Gerações antigas sorriem

neste mestrado de volúpia.

 

 

O ANDAR

 

O andar é lento porque é lento

desde lentos tempos de antanho.

 

Se alguém corre, fica marcado

infrator da medida justa.

 

É o lento passo dos enterros

como é o passo dos casamentos.

 

O pausado som das palavras.

O tranquilo abrir de uma carta.

 

Há lentidão em dar o leite

da lenta mama a um sem pressa

 

neném que mama lentamente,

na lenta espera de um destino.

 

Não é lenta a vida. A vida é ritmo

assim de bois e de pessoas,

 

no andar que convém andar

como sugere a eternidade.

 

 

ESTAMPA EM JUNHO

 

Agora em junho a gente não se enxerga

nítido, no espelho embaciado.

A manhãzinha são nevoeiros

móveis, flocos aspirando

a se tornarem cabrito, padeiro, bicicleta

a um metro de distância.

A fala, brancura de ar. Nem montanha

nem casas em redor.

O tempo suprimiu os estatutos

da vida real. A liberdade

de meus passos faz-se bruma, eu próprio

sou alvo fantasminha divertido.

 

Experiência de não ser. Mas sendo para ver.

 

 

GOSTO DE TERRA

 

Na casa de Chiquito a mesa é farta

mas Chiquito prefere comer terra.

Olho espantado para ele.

“Terra tem um gosto...” Me convida.

Recuso. “Gosto de quê?” “Ora, de terra,

de raiz, de profundo, de Japão.

Você vai mastigando, vai sentindo

o outro lado do mundo. Experimenta.

Só um torrãozinho.” Que fazer?

Insiste, mas resisto.

Prefiro comer nuvem, chego ao céu

melhor que o aeroplano.

 

 

O ORIGINAL E A CÓPIA

 

No dia infindável,

no centenário banco de farmácia,

discutem passarinho

como se fosse política municipal.

Carece discutir alguma coisa,

senão o tempo vira mármore

gelado

e todas as pessoas viram mármore

roído, desbotado; de jazigo.

Discute-se a vária cor do sabiá,

o voo particular do sabiá,

o canto divino do sabiá,

superior à flauta de Lilingue.

Protesta Lilingue,

retira-se, flautista indignado.

Silêncio de sem jeito.

Seu Paulinho Apóstolo rompe o mal-estar:

— De todos os sabiás da redondeza

(e abrange, mãos em concha, o orbe terráqueo),

desde o coleira ao laranjeira,

o que eu destaco pela melodia,

que é dom de Deus, sei lá, de anjos cantores,

é o sabiacica.

Todos se erguem, estupefatos:

— Mas não é sabiá! É papagaio!

Só imita sabiá, o porcaria!

Seu Paulinho Apóstolo sorri

de tamanha besteira:

— Bobagem de vocês, o sabiá

é que vive imitando sabiacica.

 

 

OS CHARADISTAS

 

Passam a vida lenta decifrando

novíssimas,

sincopadas,

logogrifos.

Mandam soluções para o Almanaque Bertrand

e quedam à espera do navio de Lisboa que não vem,

não atracará nunca no Rio Doce,

trazendo em nova edição os nomes dos aficionados

triunfadores.

Chega a besta rústica do Correio.

Na mala, do volume encharcado de chuva,

não salta nenhuma vitória para a cidade,

salvo no ano esplendoroso de 1909

em que Juquinha Gago tirou menção honrosa.

 

Pobre (rico?) de mim

que nunca fui além das cartas enigmáticas,

sem conclusão e sem prêmio,

mas também não sou nunca derrotado.

 

 

OS VELHOS

 

Todos nasceram velhos — desconfio.

Em casas mais velhas que a velhice,

em ruas que existiram sempre — sempre!

assim como estão hoje

e não deixarão nunca de estar:

soturnas e paradas e indeléveis

mesmo no desmoronar do Juízo Final.

Os mais velhos têm 100, 200 anos

e lá se perde a conta.

Os mais novos dos novos,

não menos de 50 — enorm’idade.

Nenhum olha para mim.

A velhice o proíbe. Quem autorizou

existirem meninos neste largo municipal?

Quem infringiu a lei da eternidade

que não permite recomeçar a vida?

Ignoram-me. Não sou. Tenho vontade

de ser também um velho desde sempre.

Assim conversarão

comigo sobre coisas

seladas em cofre de subentendidos

a conversa infindável

de monossílabos, resmungos,

tosse conclusiva.

Nem me veem passar. Não me dão confiança.

Confiança! Confiança!

Dádiva impensável

nos semblantes fechados,

nos felpudos redingotes,

nos chapéus autoritários,

nas barbas de milênios.

Sigo, seco e só, atravessando

a floresta de velhos.

 

 

ARCEBISPO

 

Dom Silvério em visita pastoral

fala pouco, está cansado, levanta a mão

lenta e abençoa.

 

Entre bambus e arcos triunfais

é o primeiro bispo (arcebispo) que eu vejo.

Não tem a rude casca do vigário

nem a expressão de diabo-crítico de Padre Júlio.

É manso, está cansado, olha de longe,

de um palácio esfumado de Mariana

o povo circunflexo.

 

 

SÃO JORGE NA PENUMBRA

 

São Jorge imenso espera o cavalo

que ainda não foi arreado,

ainda não foi raspado,

ainda não foi escolhido

entre os vinte melhores da redondeza.

 

São Jorge fora de altar

(não cabe nele)

espera o dia da procissão

em canto discreto da Matriz.

 

São Jorge é meu espanto.

Ainda não vi santo montado.

Santos naturalmente andam a pé,

atravessam rios a vau e a pé,

fazem milagres a pé.

Usam sandálias

de luz e poeira como os deuses

da gravura.

São Jorge usa botas como os fazendeiros

de minha terra.

 

E não é fazendeiro. São botas de guerra.

São Jorge mata o dragão. Mata os inimigos

de Deus na bacia do Rio Doce?

Fica longamente na penumbra

esperando cavalo e procissão

só um dia no ano: ele é São Jorge

mesmo.

No mais, uma espera colossal.

 

 

O BOM MARIDO

 

Nunca vou esquecer a palavra ingrediente

no plural.

À tarde, Arabela conversava

com Teresa, na sala de visitas.

Passei perto, ouvi:

— Custódio tem todos os ingredientes

para ser bom marido.

Se me pedir a mão, papai não nega.

— Quais são os ingredientes?

a outra lhe pergunta.

Arabela sorri, sem responder.

Guardo a palavra com cuidado,

corro ao dicionário:

continua o mistério.

 

 

MORTE DE NOIVO

 

Suicida-se o noivo de Carmela,

antes noivo de Isaura.

Desfeito o primeiro compromisso,

Carmela esperava-o do alto da sacada.

Para entrar, não precisa bater palmas

o amor. De uma rua

a outra rua, transita, pesquisando.

É Carmela a escolhida. E agora o noivo mata-se

com insabido veneno, sem uma palavra.

 

Duas moças vivendo a morte muda.

Nenhuma vai ao enterro. Proibido

chorar em público morte de infiel.

Cada uma em seu quarto solteiríssimo,

escurecido em quarto de viúva.

Isaura: Se não havia de ser meu,

nenhum dedo terá sua aliança.

Carmela: Todas duas fomos derrotadas

ou ninguém perdeu,

ganhou ninguém?

 

As fronhas são esponjas

de lágrimas secretas.

 

 

A MOÇA FERRADA

 

Falam tanto dessa moça. Ninguém viu,

todos juram.

Cada qual conta coisa diferente,

e todas concordantes.

Dizem que à noite, ela. Ela o quê?

E com quem? Com viajantes

que somem sem rastro

gabando no caminho

os espasmos secretos (tão públicos) da moça.

 

Sobe a moça

a ladeira da igreja

para a reza de todas as tardes.

De branco perfeitíssimo,

alta, superior, inabordável

(luxúria de mil-folhas sob o véu,

murmura alguém).

À noite é que acontecem coisas

no quarto escuro. Ganidos de prazer,

escutados por quem? se ninguém passa

na rua de altas horas-muro?

Pouco importa, a moça está marcada,

marca de rês na anca, ferro em brasa

de língua popular.

 

 

NOTICIÁRIO VIVO

 

A servente da escola mora no Campestre,

longe, sai de casa sem café.

Desce a ladeira, vai parando,

assuntando o que se passa na Rua de Santana

e em toda parte.

Última estação: aqui em casa.

Toma café reforçado, conta

o que há ou não há ou pode haver

sob as telhas escuras da cidade.

Conta naturalmente, sem malícia,

jornal falado das nove horas.

E ao serviço, antes que toque

a sineta irrevogável de Mestre Emílio.

Ficamos sabendo de tudo de todos.

Ficarão sabendo tudo de nós,

amanhã, de manhã,

na Rua de Santana e em qualquer parte?

 

 

ABRÃOZINHO

 

Largou a venda, largou o dinheiro,

largou a amante sem se despedir.

Foi para o Rio fazer o quê?

Sentar no banco em frente ao Supremo

Tribunal Federal,

estourar a tiro a própria cabeça,

fazendo justiça

a si mesmo, crime

ignorado até de si mesmo.

A carta de suicida

— “Me firmo Abraão Elias” —

nada esclarece.

 

 

ANIVERSÁRIO DE JOÃO PUPINI

 

Já vou dormir, não vou dormir.

No silente Caminho Novo,

sete tiros de carabina.

Eu nada escuto do meu quarto.

Ninguém escuta, de tão longe.

Mas adivinho sete tiros

estampados na noite fria.

 

É João Pupini festejando

seu natalício italiano,

atirando contra as estrelas

o chumbo gaio de estar vivo.

É João Pupini ameaçando

o sono azul do município,

o equilíbrio e a paz do mundo.

 

Já se eriça, irado, o bigode

marcial de Guilherme 2o

O czar, o king George, Francisco

José e mais altas potências

protestam contra o despropósito

de João Pupini fazer anos

declarando guerra mundial.

 

O delegado de polícia,

sentinela internacional,

convoca seu destacamento:

“Eia, sus, ao Caminho Novo,

a prender o guerreiro doido,

que além de ser mau elemento

vota sempre na oposição.”

 

Sua casa logo arrombada

a coronha, facão e ombro,

João Pupini dá o sumiço

pelos fundos de treva e brejo,

embolado mais a família,

pois lutar contra a Força Pública,

nem o ousara Napoleão.

 

Mas é preso nos vãos atalhos

em que zaranza atarantado,

e recolhido à enxovia

o formidando atirador.

Nem Deus te salva, João Pupini!

(fico cismando, no sem sono

de carabina, junho e noite.)

 

Solitário, incomunicável,

Pupini diz: “Vou suplicar

à autoridade justiciosa

o direito de fazer anos

e jovialmente celebrá-lo”.

Mas retrucam-lhe: “Assine e sele

petição na forma da lei”.

 

Onde papel, no úmido escuro

do xadrez todo enxadrezado

de feros ferros e ferrolhos?

Onde estampilha, Deus do céu,

se só uma barata sela,

no chão da cela, madrugada,

a prova de estar acordada?

 

Sem requerer, como provar

que entre mil mortos e feridos

pela arma-fúria de Pupini,

estão todos salvos, tranquilos?

Como explicar ao Presidente,

a Hermes, Pinheiro, Jangote,

que ninguém fez mal a ninguém?

 

Tiro de noite é novidade

na cidade sem distração

e noite por demais comprida?

O rádio está por inventar,

a televisão, nem se fala.

Quem tem fogo vai despejá-lo

na horta gelada, por que não?

 

Ainda há dias, rente ao quartel,

no rancho insone do Thiers,

tiros sem alvo pipocaram,

ninguém foi preso, até foi bom

ouvir alguém vencer o tédio

detonando a salva nervosa

que infundia vida ao mar morto.

 

Mas João Pupini, suspeitado

(suspeita, não: certeza plena)

de sorrir para os perdedores

da eleição presidencial;

João ruísta, João subversivo,

João celebrar seu nascimento

a poder de bala, o bandido?

 

Lá dorme João no chão sem lã.

Estou sentindo: a poucos passos

da cadeia ali bem em frente,

e dormirá tempos e luas,

se mistas alvoroçados

não soltarem pelas quebradas

o latino grito: Habeas corpus.

 

(Que só mais tarde entenderei.

Por enquanto, perto de mim,

algo se passa, impercebido,

como sempre se passam coisas

no deserto Caminho Novo

ou

neste menino peito ansioso.)

 

 

HISTÓRIA TRÁGICA

 

Esta ponte está podre,

Não passa de janeiro.

Ou cai agora ou não me chamo

Flordualdo.

 

— Esta ponte cair? Meu avô foi quem fez.

Ninguém vivo, atual, dura mais do que ela.

Esta ponte é de Deus,

é Deus quem toma conta

da madeira e dos ferros,

eterno, tudo eterno.

 

— Pois eu digo que sim.

Repare nos buracos

Você passa e ela treme

de velhice. O caruncho

alastrado nas vigas.

Esta ponte é o diabo,

ela está condenada

só você que não sabe.

 

— Alto lá.

Esta ponte é sagrada.

É ponte de família

que meu pai ajudou

a tirar da cabeça

e a dominar as águas.

Ela há de viver

nos séculos dos séculos

contra caruncho e raio,

dinamite e praga.

E pra encurtar conversa,

eu Mateus te afianço:

antes que a ponte caia,

você cairá da ponte

com esta bala certeira:

toma.

 

 

SABER INCOMPLETO

 

Mecê, cumpádi, já porvou

bunda de tanajura torradinha?

— De tanajura, cumpádi,

inté hoje não.

 

 

RESISTÊNCIA

 

O tísico

não tosse.

Não precisa tossir

para provar que continua tísico.

Rosto esverdinhado, barba por fazer,

pescoço envolto em lã xadrez,

roupa de brim dançante no esqueleto,

o tísico da cidade quando morre?

 

Cumprimentado de longe,

ninguém lhe aperta a mão.

Alguém já viu micróbios passeando

em seus ossudos dedos pré-defuntos.

 

Sua voz mal ouvida é som de longe, de onde

ninguém volta, ou só voltou

em véus de assombração. Terá morrido

o tísico, e transita,

pausado, de brim cáqui, em dia azul?

 

Morre de congestão o velho indagador,

de ataque morre súbito o fortudo

professor de ginástica. Morrem outros

de 20 anos, rapazes não marcados.

O tísico, vai tossindo, enterra todos.

 

 

ESTIGMAS

 

De tanto ouvir falar, já decorei

e me arrepio.

Cancro gálico ozena

três nódoas indeléveis

no andar, na roupa, na lembrança.

Pior do que matar.

Pior até do que furtar.

Ninguém aperte a mão

daquele que tiver

cancro

gálico

ozena.

Só se cumprimente de longe

sem tocar na aba do chapéu.

Todo medo é pouco.

Não apenas o corpo:

o próprio nome do infeliz

fica nojento.

 

 

ORAÇÃO DA TARDE

 

Pelas almas,

pelas almas do Purgatório,

rezai a Salve-Rainha,

Padre-Nosso, Ave-Maria,

as rezas que decorastes

no tempinho de criança.

 

Pelas almas,

pelas almas do Purgatório,

atirai vossas migalhas

sobre o vazio da Praça.

Têm fome de Deus as almas

e enquanto o não vão comendo

se consolam com esses restos.

 

Pelas almas,

pelas almas do Purgatório,

desapertai vossas bolsas,

na sacola esfarrapada

quando bate à vossa porta

em nome da eternidade

o aleijado irmão das almas.

 

Pelas pobrinhas das almas.

 

 

PRIMEIRO COLÉGIO

 

FIM DA CASA PATERNA

 

I

 

E chega a hora negra de estudar.

Hora de viajar

rumo à sabedoria do colégio.

 

Além, muito além de mato e serra,

fica o internato sem doçura.

Risos perguntando, maliciosos

no pátio de recreio, imprevisível.

O colchão diferente.

 

O despertar em série (nunca mais

acordo individualmente, soberano).

A fisionomia indecifrável

dos padres professores.

Até o céu diferente: céu de exílio.

Eu sei, que nunca vi, e tenho medo.

 

Vou dobrar-me à regra nova de viver.

Ser outro que não eu, até agora

musicalmente agasalhado

na voz de minha mãe, que cura doenças,

escorado

no bronze de meu pai, que afasta os raios.

 

Ou vou ser — talvez isso — apenas eu

unicamente eu, a revelar-me

na sozinha aventura em terra estranha?

Agora me retalha

o canivete desta descoberta:

eu não quero ser eu, prefiro continuar

objeto de família.

 

II

 

A “condução” me espera:

o cavalo arreado, o alforje

da matalotagem,

o burrinho de carga,

o camarada-escudeiro, que irá

na retaguarda,

meu pai-imperador, o Abre-Caminho.

 

Os olhos se despedem da paisagem

que não me retribui.

A casa, a própria casa me ignora.

Nenhuma xícara ou porta me deseja

boa viagem.

Só o lenço de minha mãe fala comigo

e já se recolheu.

 

III

 

São oito léguas compridas

no universo sem estradas.

São morros de não-acaba

e trilhas de tropa lenta

a nos barrar a passagem.

Pequenos rios de barro

sem iaras, sem canoas

e uns solitários coqueiros

vigiando mortas casas

de falecidas fazendas.

Ou são mergulhos na lama

de patas que não têm pressa

de chegar a Santa Bárbara.

Quando termina a viagem,

se por acaso termina,

pois vai sempre se adiando

o pouso que o pai promete

a consolar o menino?

Que imenso país é este

das Minas fora do mapa

contido no meu caderno?

 

Que Minas sem fim nem traço

de resmungo entre raríssimos

roceiros que apenas roçam

mão na aba do chapéu

em saudação de passante?

O cavalgar inexperto

martiriza o corpo exausto.

Se bem que macia a sela,

deixa o traseiro esfolado.

Até que afinal, hosana!

apeando em São Gonçalo

diante da suspirada

venda de Augusto Pessoa,

meu pai, descansando, estende-me

o copo quente e divino

de uma cerveja Fidalga.

Bebi. Bebemos. Avante.

 

IV

 

Tenho que assimilar a singularidade

do trem de ferro.

Sua bufante locomotiva, seus estertores,

seus rangidos, a angustiante

ou festiva mensagem do seu apito.

 

Ah, seus assentos conjugados de palhinha

sobre o estofo.

Nunca viajei em bloco, a vida

começa a complicar-se.

Novidade intrigante, o sabonete

preso na corrente.

 

Minha terra era livre, e meu quarto infinito.

 

 

AULA DE PORTUGUÊS

 

A linguagem

na ponta da língua,

tão fácil de falar

e de entender.

 

A linguagem

na superfície estrelada de letras,

sabe lá o que ela quer dizer?

 

Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,

e vai desmatando

o amazonas de minha ignorância.

Figuras de gramática, esquipáticas,

atropelam-me, aturdem-me, sequestram-me.

 

Já esqueci a língua em que comia,

em que pedia para ir lá fora,

em que levava e dava pontapé,

a língua, breve língua entrecortada

do namoro com a prima.

 

O português são dois; o outro, mistério.

 

 

AULA DE FRANCÊS

 

Cette Hélène qui trouble et l’Europe et l’Asie,

mas o professor é distraído,

não vê que a classe inteira se aliena

das severas belezas de Racine.

Cochicham, trocam bilhetes e risadas.

Este desenha a eterna moça nua

que em algum país existe, e nunca viu.

Outro some debaixo da carteira.

Os bárbaros. Será que vale a pena

ofertar o sublime a estes selvagens?

 

O Professor Arduíno Bolivar

fecha a cara, abre o livro.

Ele não os despreza. Ama-os até.

Podem fazer o que quiserem.

Ele navega só, em mar antigo,

a doce navegação de estar sozinho.

Tine a campainha.

Acabou a viagem, no fragor

de carteiras e pés.

O professor regressa ao rígido

sistema métrico decimal das ruas de Belo Horizonte.

 

 

AULA DE ALEMÃO

 

Baixo, retaco, primitivo,

Irmão Paulo, encarregado da livraria

e do ensino de Goethe a principiantes,

leu um único livro em sua vida:

Arte de Dar Cascudos,

que ele pratica bem, mas não ensina.

Os lábios assustados ficam mudos

para sempre, em germânico.

 

 

CRAQUE

 

Segundo half-time.

Declina a tarde sobre o match

indefinido.

O Instituto Fundamental envolve o adversário.

A taça já é sua, questão de minutos.

Mas Abgar, certeiro, irrompe

de cabeçada,

conquista o triunfo para o deprimido

team confuso do Colégio Arnaldo.

Olha aí o Instituto siderado!

 

Despe Abgar o atlético uniforme,

simples recolhe-se ao salão de estudo

para burilar um dolorido

soneto quinhentista:

Em vão apuro a minha fortitude,

Senhora, por vencer o meu amor...

 

 

FIGURAS

 

O Meirinho, o Meirão. Um é craque na bola,

o outro, caricaturista. A vontade que sinto

de ter nascido J. Carlos e vencê-lo.

Dos três irmãos Lins, Ivan ainda não conhece

Auguste Comte e já se mostra sábio.

Capanema, o estudante

três vezes estudante, e completo.

O completo vadio,

ignoro se sou. Sei que não sei

estudar, e isto é grave. Jamais aprenderei.

Vou rasgando papéis pelo pátio varrido.

Todos riem baixinho. Volto-me,

pressentimento.

Atrás de mim Padre Piquet vem, passo a passo,

pousa em meu ombro a punição.

 

 

PROGRAMA

 

Que vais fazer no dia de saída?

Acaso vais reinventar a vida?

 

Dizendo adeus a negras matemáticas,

nunca mais voltar ao colégio férreo?

 

Montar em pelo o macho Trintapatas

e galopar no rumo do Insondável?

 

Buscar destino de cigano ou pária,

livre pra lá da Serra do Curral?

 

Vais procurar o que é vedado e chama:

a pedra, o som, o signo, a senha, o sumo?

 

— Vou visitar os tios e os padrinhos.

Vou chateá-los e chatear-me, apenas.

 

(Preceito Dez, das Tábuas da Família.)

 

 

RUAS

 

Por que ruas tão largas?

Por que ruas tão retas?

Meu passo torto

foi regulado pelos becos tortos

de onde venho.

Não sei andar na vastidão simétrica

implacável.

Cidade grande é isso?

Cidades são passagens sinuosas

de esconde-esconde

em que as casas aparecem-desaparecem

quando bem entendem

e todo mundo acha normal.

Aqui tudo é exposto

evidente

cintilante. Aqui

obrigam-me a nascer de novo,

desarmado.

 

 

PARQUE MUNICIPAL

 

I

 

O portão do colégio abre-se em domingo.

Toda a cidade é tua e verde.

O Parque o barco o banco o leque

Do pavão em grito e cor fremindo o lago

sem que as estruturas de silêncio

desmoronem.

Quem passa? Nada passa. Aqui o tempo

aqui o ramo aqui o caracol

em ar benigno se entrelaçam, duram

eternamente a vez de contemplá-los.

Voltar? Para onde e que, se existe onde

além deste? se em vão as matemáticas,

as químicas, preceitos...

És o Parque, total.

Nem desejas ser planta, estás embaixo

de toda planta, simples terra.

Por que se destaca da palmeira

o pederasta

e faz o gesto lúbrico, sorri?

 

II

 

A natureza é imóvel.

A natureza, tapeçaria

onde o verde silente se reparte

entre caminhos que não levam a nenhum lugar.

São caminhos parados. De propósito.

O lago, tranquilidade oferecida.

A pontezinha rústica de cimento

não é feita para ninguém passar

de um ponto a outro.

Feita para não passar.

A pontezinha sou eu ficar imóvel

por cima da água imóvel

na tapeçaria imóvel para sempre.

O barquinho da margem devia ser queimado.

 

 

APONTAMENTOS

 

O deslizante cisne destas águas,

nem simbolista nem parnasiano;

a tartaruga em si mesma trancada;

as rêmiges de fogo no viveiro;

o cris da areia em solas transeuntes;

o guarda que de inerte se assemelha

às árvores, e árvore é com sua farda;

o macaco brincando de ser gente;

a foto de jornal sobre o canteiro;

essa flor que nasceu sem dar aviso

nos ferros rendilhados do gradil;

a caixa envidraçada de empadinhas

e cocadas baianas logo à entrada;

o ver, em si, como ato de viver;

o perder-se e encontrar-se nas aleias,

no entrelaçar de curvas sombreadas,

de onde espero surgir alguma ninfa

sem que surja nenhuma (e continuo

procurando a metáfora do sonho);

o barquinho alugado por sessenta

minutos, e o perfume, que é gratuito,

de resinosos troncos tutelares

desta gentil paisagem recolhida;

uma cantiga — ó minha Carabu...

entoada à distância e logo extinta;

o torpor que a meu ser eis se afeiçoa

na vontade, de relva, de reflexo,

de sopro, de sussurro me tomar;

a ausência de relógio e de colégio,

de obrigação, de ação, de tudo vão.

 

 

LIVRARIA ALVES

 

Primeira livraria, Rua da Bahia.

A Carne de Jesus, por Almáquio Diniz

(não leiam! obra excomungada pela Igreja)

rutila no aquário da vitrina.

Terror visual na tarde de domingo.

 

Volto para o colégio. O título sacrílego

relampeja na consciência.

Livraria, lugar de danação,

lugar de descoberta.

 

Um dia, quando? vou entrar naquela casa,

vou comprar

um livro mais terrível que o de Almáquio

e nele me perder — e me encontrar.

 

 

A NORMA E O DOMINGO

 

Comportei-me mal,

perdi o domingo.

Posso saber tudo

das ciências todas,

dar quinau em aula,

espantar a sábios

professores mil:

comportei-me mal,

não saio domingo.

 

Fico vendo mosca

zanzar e zombar

de minha prisão.

Um azul bocejo

derrama-se leve

em pó de fubá

no pátio deserto.

Não há futebol,

não quero leitura,

conversa não quero,

vai-se meu domingo.

 

Lá fora a cidade

é mais provocante

e seu pálio aberto

recobre ignorantes

dóceis ao preceito.

Que aventura doida

no domingo livre

estarão desfiando

enquanto eu sozinho

contemplo escorrer

a lesma infindável

do meu não domingo?

 

Digo nomes feios

(calado, está visto).

Não vá ser-me imposta

a perda total

de quantos domingos

Deus for programando

em Minas Gerais.

Abomino a ordem

que confisca tempo,

que confisca vida

e ensaia tão cedo

a prisão, perpétua

do comportamento.

 

 

FRIA FRIBURGO

 

PRIMEIRO DIA

 

Resumo do Brasil no pátio de areia fina.

Sotaques e risos estranhos.

Continente de almas a descobrir

palmo a palmo, rosto a rosto,

número a número,

ferida a ferida.

Mal nos conhecemos, a palavra-mistério

na pergunta-sussurro

é pedrada na testa:

— Você gosta de foder?

 

 

SEGUNDO DIA

 

Sou anarquista. Declaro honestamente.

(A tarde vai cerzindo no recreio

o pano de entrecortada confissão.)

Espanto, susto. Como?

O quê? Por quê? Explica essa besteira.

 

A solução é a anarquia. Sou

anarquista. Nem de longe vocês captam

o sublime anarquismo. Sou.

Com muita honra. Mas vocês, que são?

Vocês são uns carneiros

de lã obediente.

 

Zombam de mim. Me vaiam: Anarquista

a-nar-quis-tá a-nar-quis-tá-tá!

(Medo de mim, oculto em gozação?)

 

O bicho mau, o monstro repelente

conspurcando o jardim de Santo Inácio.

Avançam. Topo a briga. Me estraçalho

lutando contra todos. Furor mil.

 

Morro ensanguentado. Não. Não mato algum

nem me tocam sequer.

Negro e veloz, chegou a tempo

o Padre, e me salva do massacre

porém não do apelido: o Anarquista.

 

 

TERCEIRO DIA

 

Mamãe, quero voltar

imediatamente.

Diz a Papai que venha me buscar.

Não fico aqui, Mamãe, é impossível.

Eu fujo ou não sei não, mas é tão duro

este infinito espaço ultrafechado.

Esta montanha aqui eu não entendo.

Estas caras não são caras da gente.

E faz um frio e tem jardins fantásticos mas sem

o monsenhor, o beijo, a crisandália

que são nossos retratos de jardim.

Da comida não queixo, é regular

mas falta a minha xícara, guardou

para quando eu voltar?

Ai Mamãe, minha Mãe, o travesseiro

eu ensopei de lágrimas ardentes

e se durmo é um sonhar de estar em casa

que a sineta corta ao meio feito pão:

hora de banho madrugadora

de chuveiro gelado, todo mundo.

Nunca tomei banho assim, sou infeliz

longe de minhas coisas, meu chinelo,

meu sono só meu, não nesta estepe

de dormitório que parece um hospital.

Mamãe, o dia passou, mas tão comprido

que não acaba nunca de passar.

Um ano à minha frente? Não aguento.

Mas vou fazer o impossível. Me abençoe.

E faz um frio... A caneta está gelada.

Não te mando esta carta

que um padre leria certamente

e me põe de castigo uma semana

(e nem tenho coragem de escrever).

Esta carta é só pensada.

 

 

LIÇÃO DE POUPANÇA

 

Todo aluno tem direito

ao dinheiro do “bolsinho”

para comprar gulodices

e outros gastos fantasistas.

 

Mas o bolso do uniforme

jamais viu esse dinheiro

fornecido pelos pais.

Fica na tesouraria.

 

Sexta-feira a gente faz

o pedido por escrito:

“Quero quatro bons-bocados

e um pote de brilhantina.”

 

Domingo no pátio a hora

de entrega das encomendas:

“Não se encontrou bom-bocado,

aqui estão quatro mães-bentas.

 

Quanto à brilhantina, excede

o limite do bolsinho

e as dimensões da vaidade.

Poupe mais o seu dinheiro.”

 

 

O DOCE

 

A boca aberta para o doce

já prelibando a gostosura,

e o doce cai no chão de areia, droga!

 

Olha em redor. Os outros viram.

Logo aquele doce cobiçado

a semana inteira, e pago do seu bolso!

Irá deixá-lo ali, só porque os outros

estão presentes, vigilantes?

 

A mão se inclina, pega o doce, limpa-o

de toda areia e mácula do chão.

“Se fosse em casa eu não pegava não,

mas aqui no colégio, que mal faz?”

 

 

COMEÇAR BEM O DIA

 

A missa matinal, obrigação

de fervor maquinal.

 

Em fila religiosa penetramos

na haendeliana atmosfera do órgão,

no incenso do recinto.

Cada um de nós pensa em outra

coisa diferente de Deus.

Ai, nosso Deus compulsório!

Proibido olhar o fundo da capela

onde rezam as moças de Friburgo,

as inacessíveis, castelanárias

moças friorentas de Friburgo.

Alguma delas me vê, sabe que existo?

Um dia notará que penso nela,

sem que eu saiba sequer em qual eu penso?

 

Se acaso, prosternado,

eu virasse o pescoço e vislumbrasse

entre rostos o rosto que me espera

e ele me sorrisse,

a vida era de súbito radiante,

o colégio era a Grécia, a Pérsia, o Não Narrável.

 

Baixo, entanto, a cabeça,

ouço a voz do oficiante, monocórdia.

Convida-me a pastar arrependimento

de faltas nem de longe cometidas,

obscuros crimes em ser.

Moça alguma verei no só relance

de entrada e saída, em fila cega.

 

 

A DECADÊNCIA DO OCIDENTE

 

No ano de 18,

plangem veteranos:

“Nosso jornalzinho

não é mais aquele.

Foi-se a Academia

de jovens talentos.

Os restantes árcades

jogam futebol.

Agora, estilistas,

só na arte do pé.

Somem os poetas,

vão-se os prosadores.

Não há mais cultura

e se depender

dessa geração

de racha-piões,

que irá restar

do nosso idioma

e nossa tradição?

Ah, nos velhos tempos

isso aqui andava

cheio dos Camões,

dos Ruis, dos Bilacs

e dos Castros Lopes...

 

 

ESTREIA LITERÁRIA

 

Desde antes de Homero

a aurora de dedos róseos

pousava todas as manhãs

por obrigação.

Não assim tão róseos.

Nossa aurora particular baixa num vapor

de frio do alto da serra, e mal nos vemos,

errantes, no recreio, em meio a rolos

de névoa.

Outra aurora eu namoro: a Colegial.

Quatro páginas. Quinzenal. 300 réis.

 

“Periódico da Divisão dos Maiores.”

Quero escrever, quero emitir clarões

de astro-rei literário em suas edições.

Dão-me, que esplendor, primeira página,

primeira, soberbíssima coluna.

É a glória, entre muros, mas a glória.

Contemplo, extasiado,

o meu próprio talento em letras públicas.

Ler? Não leio não.

Quero é sentir meu nome, com a notinha:

“Aluno do segundo ginasial.”

 

Já são quatro da tarde.

Até agora ninguém

veio gabar-me a nobre criação.

Ninguém gastou 300 réis para me ler?

Será que meu escrito

não é lá uma peça tão sublime?

Decido-me a encará-lo mais a fundo.

Vou me ler a mim mesmo. Decepção.

O padre-redator introduziu

certas mimosas flores estilísticas

no meu jardim de verbos e adjetivos.

Aquilo não é meu. Antes assim,

ninguém me admirar.

 

 

O RATO SEM RABO

 

Que vem fazer este ratão sem rabo

no rancho dos Maiores, provocando

tamanha bulha que derruba a mesa

de pingue-pongue em pleno jogo

e entra o center-forward com bola e tudo

no goal-post sem goalkeeper

e arregaça o prefeito a negra túnica

para correr atrás do bicho insólito

e a disciplina se desfaz em pândega?

 

Que quer dizer esse rabão sem rato

na ratoeira do pátio dos Médios

despojada de queijo,

senão que nos Médios ninguém sabe

pegar de um rato mais que seu apêndice?

 

A pau e pontapé vamos caçá-lo e,

está claro, vivo devolvê-lo

com os nossos cumprimentos

ao sítio de onde veio

para que, unindo rabo e rato, aqueles frouxos

saibam matar um rato por inteiro.

 

 

COBRINHA

 

Este salta com uma cobra

na mão.

Que vantagem, pegar em cobra morta?

Decerto nem foi ele quem matou.

Achou a cobra inanimada,

exibe-a qual troféu.

 

É uma cobra verde — reparamos,

admirável cobrinha toda verde,

lustroso verde nítido novinho

como não é qualquer planta que o possui.

Estaco, deslumbrado.

Se eu pudesse guardá-la para mim,

enfeitar a carteira com seu corpo...

— Você me vende essa bichinha?

 

 

PAVÃO

 

A caminho do refeitório, admiramos pela vidraça

o leque vertical do pavão

com toda a sua pompa

solitária no jardim.

De que vale esse luxo, se está preso

entre dois blocos do edifício?

O pavão é, como nós, interno do colégio.

 

 

A LEBRE

 

Apareceu não sei como.

Queria por toda lei

desaparecer num relâmpago.

Foi encurralada

e é recolhida,

orelhas em pânico,

ao pátio dos pavões estupefatos.

Lá está, infeliz, roendo o tempo.

Eu faço o mesmo.

 

 

MARCAS DE GADO NA ALMA

 

Bicanca, Sapo Inchado, Caveira Elétrica,

Pistola Dupla, Zé Macaco, Apara Aí,

Quisira,

Marreco,

Massa Bruta...

Ainda bem que o apelido de Anarquista

tem certa dignidade assustadora.

Isso consola?

 

 

LORENA

 

Lorena, contemplado com malícia,

deixa-se estar, languidamente efebo.

Bailam, sob a atração de luz ambígua,

em seu redor, mutucas de desejo.

 

E Lorena sorri, sua cabeça

responde não aos gestos insistentes.

Que matéria excitante para o arpejo

noturno, antes-depois da penitência!

 

Dormir sonham os Grandes com Lorena,

mas onde? quando? se este ano letivo

dura uma eternidade, pelo menos,

 

e depois vem o tempo, o tempo livre

de viajar na coxa das mulheres,

e Lorena se esgarça na lembrança?

 

 

A BANDA GUERREIRA

 

Maestro Azevedo, em hora de inspiração,

compõe a Marcha de Continência

que a banda executa com bravura

dócil.

Vêm depois Salut au Drapeau, de Van Gael,

Per la Bandiera, de Lamberti.

Sem esquecer, meu Deus, a Canção do Soldado

que nos acompanha até no passeio geral,

espontânea, sem banda, imperiosa,

no garganteio, no assobio.

 

As bandas!

Para isto existem elas

e também para dispensar de aula

os músicos na hora de ensaiar.

Se eu soubesse tocar alguma coisa

no mínimo instrumento (ao menos fingir que...)

Nada, rendosamente nada.

Tenho que marchar, canhestro, em continência.

 

 

ORQUESTRA COLEGIAL

 

Strutt e Mancini, os dois maestros,

me levam para o outro lado da música.

O cisne de Saint-Saëns é um lírio no lago

do violino.

Grieg ressoa em primavera.

Manon

Massenet

minueto

mais a sonata de Corelli, a Berceuse de Weber.

e já bêbados

de celeste piano e de sublimes cordas,

ouvimos, cochilando,

o Noturno de Chopin e o noturno de Strutt

pela mesma orquestra, sob a mesma

chuva estrelada de palmas das famílias presentes.

 

 

ARTISTAS ADOLESCENTES

 

O piano de Mário,

o violoncelo de Luís Eduardo,

o violino de Clibas,

quem, entre Grandes, Médios e Menores,

suplantará?

 

O piano, talvez, de Luís Cintra?

O violoncelo de Henrique?

O violino de Vítor Saraiva?

Alguém, ainda, que vai nascer?

 

Empate. Empate. Empate. O jeito

é fazer com que toquem sempre aos pares,

imbatíveis.

 

 

SESSÃO DE CINEMA

 

Não gostei do Martírio de São Sebastião.

Pouco realista.

Se caprichassem um tanto mais?...

Prefiro mil vezes Max Linder Asmático.

 

Ah, que não tarde a vir do Rio

o anunciado Catástrofe Justiceira.

Deve ser formidável.

Repito baixinho:

Catástrofe Justiceira. Catástrofe.

Que pensamento diabólico se insinua

no gozo destas sílabas?

Até agora só tivemos coisas como O Berço Vazio,

O Pequeno Proletário,

Visita ao Jardim Zoológico de Paris.

 

Não me interessam documentários insípidos.

Quero uma boa catástrofe bem proparoxítona,

mesmo não justiceira. Mesmo injusta.

Será que na sessão do mês que vem

terei este prazer?

 

 

VERSO PROIBIDO

 

Há os que assobiam Meu Boi Morreu,

os que cantarolam Luar do Sertão.

O 48, da Divisão dos Médios,

embala o pensamento repetindo:

Santo Inácio de Loiola,

fundador desta gaiola

 

Vai distraído pelo pátio.

Escutam-no, levam-no à cafua.

Em vão tenta explicar

que o verso não é seu,

é de todo mundo,

é de ninguém.

Fica em solidão o tempo necessário

para aprender, contrito,

que com Santo Inácio não se brinca

nesta gaiola.

 

 

RECUSA

 

Não entendo, não engulo este latim:

Perinde ac cadaver.

“Você tem que obedecer como um cadáver.”

 

Cadáver obedece?

Tanto vale morrer como viver?

Para isso nos chamam, nos modelam?

 

Bem faz Padre Filippo:

cansado de obedecer, vai dar o fora

para viver no mundo largo

a fascinante experiência de só receber ordens

do seu tumultuoso coração.

 

 

INVENTOR

 

Entre Deus, que comanda,

e guris, que obedecem,

entre aulas a dar

o mês inteiro, a vida inteira, a inteira eternidade

(não cresça o Brasil afastado da ciência

nem do Senhor acima de toda ciência)

e sob a esperança do Paraíso,

o padre português, no confessionário,

antes que o pecador

debulhe seus pecados

indaga:

“Quantas vezes mexeste no pirolito?”

Finda a obrigação,

recolhe-se ao quarto ascético,

dedica-se ao aperfeiçoamento

de sua invenção, o ovoscópio,

que identifica os ovos chocos

e os separa dos bons,

assim como Deus, no Juízo Final,

vai separar as almas santas e as corruptas.

 

 

O SOM DA SINETA

 

Já não soa a sineta

com a mesma nitidez.

Não aprende Alaor

a modelar o som.

Rotina de internato

era esperar o toque

tornado familiar

até para acordar.

O tocador bisonho

lanha nosso equilíbrio.

Éramos resignados,

eis-nos hoje assustados.

 

Que nos promete o dobre

irregular e seco?

O som antigo evola-se,

deixa baixar o medo.

 

 

ENIGMA

 

Para merecer alto louvor,

chegar talvez aos pés de Lídio, o sábio,

que todas as medalhas arrebata

e mais arrebatara se as houvera,

terei de decifrar no jornalzinho

enigmas como este:

Quel est le célèbre empereur romain

qui n’avait pas le nez pointu?

 

Como saber, Jesus, se eles são mil

e nunca reparei em seus narizes?

Se o compêndio não dá senão uns raros

rostos glabros, de nariz romano?

Qual será: Calígula, Tibério?

Vitélio, Petrônio Máximo, Elagábalo?

 

Desisto de encontrar

a linha de um nariz,

a marca de um perfil,

a sorte de um aplauso.

Néron (nez rond) sorri, piscando o olho,

o Padre Rubillon

ao avaliar a rasa superfície

de minha rasa ignorância.

 

 

SOMEM CANIVETES

 

Fica proibido o canivete

em aula, no recreio, em qualquer parte

pois num país civilizado

entre estudantes civilizadíssimos,

a nata do Brasil,

o canivete é mesmo indesculpável.

 

Recolham-se pois os canivetes

sob a guarda do irmão da Portaria.

 

Fica permitido o canivete

nos passeios à chácara

para cortar algum cipó

descascar laranja

e outros fins de rural necessidade.

 

Restituam-se pois os canivetes

a seus proprietários

com obrigação de serem recolhidos

na volta do passeio, e tenho dito.

 

Só que na volta do passeio

verificou-se com surpresa:

no matinho ralo da chácara

todos os canivetes tinham sumido.

 

 

CAXERENGUENGUE

 

Não é à toa que Sabino, dos Maiores,

à falta de instrumentos confessáveis,

monta a indústria do caxerenguengue.

E afia fino o fio enferrujado,

alisa a lâmina sem cabo

que encontrou não sei onde, obstinado

à procura de ferro-aço cortante.

 

Trabalhando em surdina, já prepara

três caxerenguengues razoáveis.

Vou aperfeiçoar — diz ele — o meu produto,

é claro, não já por um mil-réis.

 

Cada cliente dele, sub-reptício,

porta em sigilo a arma bem brunida

que um dia servirá para ajudar

Nat Pinkerton na luta contra Raffles

o gatuno elegante,

ou, quem sabe? Raffles contra Nat,

além de préstimos menores e pacíficos.

Exemplo: o doce préstimo

de ter algo escondido em nossa vida.

 

 

PASSEIO GERAL

 

Uma vez por mês

café da manhã

com pão e manteiga.

Nesse pão de sempre

a manteiga é signo

de um dia feliz.

Uma vez por mês

passeio geral.

Saímos aos três

em fila informal,

vigilante ao lado,

no rumo sabido:

chácara do Braga.

Manhãzinha branca,

fantasmas nevoentos

saindo da bruma,

passamos na ponte

do Rio Bengalas.

Latões de tutu,

de linguiça e arroz

vão na carrocinha.

Uma vez por mês

é a liberdade

ou seu faz de conta

por algumas horas:

água, mato, riso,

canto, bola, gruta

onde se penetra

um de cada vez

e só entra quem

no peito escorraça

outro candidato.

Lá dentro gritamos

sob o teto baixo

chamando o paciente

mistério do eco.

Diverte-se o medo

na volta instantânea

ao adormecido

homem da caverna.

Que estrondo lá fora

transforma o brinquedo

em puro terror?

Os maximalistas

chegam a Friburgo

instaurando a guerra

em pleno passeio?

Saio a quatro pernas:

o boneco estranho,

o bicho-preguiça

que o Irmão Primavera

preparou com arte

e gordo recheio

de bombas e traques

explode na luz

qual fosse o demônio.

Uma vez por mês

acontecem coisas

não convencionais.

Sentados no chão

ou em tocos de árvore

nosso piquenique

é comer de deuses.

Come-se dobrado,

come-se com fome

de comer o raro

prazer do ar livre.

Mas que é isso? Um pingo,

outro pingo, pingos

na minha comida

que já se derrete

sob a chuva forte.

Depressa, correr

e pedir abrigo

na casa do Braga

onde uma sanfona

acompanha lenta

o chicote rápido

da chuva nas folhas.

Uma vez por mês

essa expectativa

de um dia feliz

ou dia frustrado.

Vigilante ao lado,

em fila de três

depois da estiada

a volta na lama

do chão encharcado.

Todo um mês à frente

a passar na espera

dessa vez por mês.

 

 

POSTOS DE HONRA

 

148 generais à frente de três Divisões

— Pequenos, Médios e Maiores.

Incontável o número de coronéis.

Estarei no colégio ou isto é o Exército?

Se os coronéis anelam promoção,

podem os generais ser rebaixados,

Cada patente não dura mais que dois meses.

 

Eu, general, neste bimestre?

Só porque estudei cem réis de geografia,

duzentos réis de português?

Meu Deus, é muita glória

para tão frágeis ombros ignorantes.

Jamais serei general em aritmética.

 

 

CAMPEONATO DE PIÃO

 

Bota parafuso no bico do pião.

Bota prego limado, bota tudo

pra rachar o pião competidor.

Roda, pião!

Racha, pião!

 

Se você não pode rachar este colégio

nem o mundo nem a vida,

racha pelo menos o pião!

(Mas eu não sei, nunca aprendi

rachar pião. Imobilizo-me.)

 

 

DORMITÓRIO

 

Noite azul-baço no dormitório onde três lâmpadas

de tom velado, controlam minha ensimesmada quietude.

Que faço aqui, longe de Minas e meus guardados,

neste castelo de aulas contínuas e rezas longas?

 

Prisão de luxo, todo conforto, luz inspetora

de sonhos ilícitos. Joelho esticado: nenhuma saliência

a transgredir a horizontal postura de sono puro.

Fria Friburgo, mas aqui dentro a paz de feltro.

 

No azul mortiço de oitenta camas, boiam saudades

de longes Estados, distintas casas, tantas pessoas.

Incochilável, o irmão-vigilante também passeia

sob cortinas sua memória particular?

 

Uns já roncando. O azul nublado envolve em rendas

de morte vaga os degredados filhos-família.

Fugir, nem penso. Mas fujo insone, meu pensamento

alcança o longe, apalpo-me egresso do grande cárcere.

 

Vou correndo, vou voando,

chego em casa de surpresa,

assusto meu pai-e-mãe:

— Não quero, não quero mais,

não quero mais voltar lá.

(É tudo que sai da boca,

é tudo que sei dizer.)

— Que papelão!

Se não voltar, te castigo,

te deserdo, te renego.

O dinheiro posto fora,

as esperanças frustradas,

botarei na tua conta

em cifras de maldição.

— O que o senhor fizer

está bem-feito, acabou-se,

mas não me tire de junto

da família e do meu quarto.

Me ponha tangendo gado

ou pregando ferradura,

me faça catar café,

aos capados dar lavagem,

mas eu não volto mais lá.

É bom demais para mim,

é tudo superior,

mas lá eu sou infeliz,

lá eu aprendo obrigado,

não por gosto de aprender.

Tem hora de liberdade

e hora de cativeiro

mas a segunda é total,

a primeira, imaginária.

Tem hora de se explicar,

hora de pedir desculpa,

hora de ganhar medalha,

hora de engolir chacota

(é a hora de ler a nota

do nosso comportamento),

hora de não reclamar,

hora de...

Por Deus, não quero voltar

a esse estranho paraíso

calçado de pão de ló,

futebol e humilhação.

— Já disse: está decidido.

Some da minha presença.

— Papai!...

 

A tosse ao lado me traz de volta ao azul-penumbra.

Quando termina, se é que termina, o meu exílio?

Que tempo é novembro, se ainda há novembro no calendário?

Na noite infinda, por que minha noite ainda é maior?

 

Fugir não adianta. Não adianta senão: dormir.

 

 

DIREITO DE FUMAR

 

O pensamento de cigarro

vem, ondulante, frequentar-me,

eu que não fumo.

Bem que o pai podia consentir:

“O 74 está crescido,

pode fumar dois Sônia por semana.”

Assim decide a lei,

aos Grandes permissiva,

quando o pai autoriza esse limite.

Privilégio de Grandes, e sou Grande.

Hei de fingir que fumo, se puder

levar à boca este direito

e à vista de todos a eminência

de ser fumante às claras.

 

Mas se eu pedir ao pai e ele me nega?

Pior: se ele concede?

Não sei, não sei tragar

(tragar, essencial entre varões).

Abomino o que sonho, me divido

e dividido entro na conjura

escusa dos fumantes clandestinos.

 

Atento às numerosas portas de privadas,

o Prefeito não vê que em cada uma

no tampo da latrina

um toco de cigarro está à espera

de ser fumado e conservado

para outro fumante e mais um outro

até que apenas cinza

desapareça na descarga.

 

Um infinito resto de cigarro,

mais duradouro que o cigarro inteiro,

e ai de quem esgote essa riqueza

ainda a tantos outros destinada.

 

Mas qual o desgraçado

a sair de boca aberta, revelando

o cheiro do prazer, ou que lá dentro

fez soltar a treda fumacinha

que a discrição das portas atravessa

e acaba com a festa das baganas

antes que eu (e sou Grande) participe?

 

 

PUNIÇÃO

 

74, fique de coluna.”

Lá vou eu, de castigo, contemplar

por meia hora o ermo da parede.

 

Meia hora de pé, ante o reboco,

na insensibilidade das colunas

de ferro (inaciano?) me resgata.

 

Eis que eu mesmo converto-me em coluna,

e já não é castigo, é fuga e sonho.

Não me atinge a sentença punitiva.

 

Se pensam condenar-me, estão ilusos.

A liberdade invade minha estátua

e no recreio ganho a azul distância.

 

 

ARTE FULMINADA

 

O tapete de areia colorida

que vamos delineando no recreio

há de ser celebrado toda a vida

como arte maior do nosso tempo.

 

O risco não é nosso. Irmão Luís

concebeu o mirífico traçado,

mas se ajudo na obra estou feliz.

Cada bloco amarelo é meu florão.

 

Medieval já me sinto a construir

a catedral em ouro friburguense,

em parte, pelo menos, coisa minha.

 

Contemplo a criação. Deus fez o mesmo?

Talvez. E enciumado, num momento,

destrói nosso tapete a chuva e vento.

 

 

SACRIFÍCIO

 

Otávio, Otávio, que negócio é este?

Vadias ano inteiro e te despedes

com o peito faiscando de medalhas.

 

— É, troquei-as por bombas e brioches

semana após semana, mês a mês,

e muito me custou esta grandeza.

Passei fome... e alimento-me de glória.

 

 

ESPLENDOR E DECLÍNIO DA RAPADURA

 

Os meninos cariocas e paulistas

de alta prosopopeia

nunca tinham comido rapadura.

Provam com repugnância o naco oferecido pelo mineiro.

Pedem mais.

Mais.

Ao acabar, há um pequeno tumulto.

 

Daí por diante todos encomendam rapadura.

Fazem-se negócios em torno de rapadura.

Há furtos de rapadura.

Conflitos por causa de rapadura.

 

Até que o garoto de Botafogo parte um dente

da cristalina coleção que Deus lhe deu

e a rapadura é proscrita

como abominável invenção de mineiros.

 

 

FÓRMULA DE SAUDAÇÃO

 

As flores orvalhadas

parecem pressurosas

de ofertar

ao amado Reitor

ao bondoso Ministro

ao querido Prefeito

a fragrância de suas pétalas.

Colhei-as e aspirai-as

e que o suave olor

por elas derramado

vos permita esquecer

pequenos dissabores

passageiros desgostos

que nossa irreflexão

já vos tenham causado.

Arrependidos pois,

ousamos implorar

um indulto completo,

bem assim prometemos

envidar mil esforços

para que dora em diante

nosso procedimento

só vos desperte júbilo

como indenização

pelo passado.

Feliz aniversário,

muitas felicidades!”

 

 

DISCURSOS

 

Chegam os padres de Paris.

São festejados com discursos.

Fazem anos os padres importantes.

Envolve-os o aroma de discursos.

Convalescem os padres de sombrias

pneumonias duplas.

Em discursos a alta se proclama.

 

Que fizeram de imenso?

Chegaram,

aniversariaram,

enfermaram,

escaparam.

 

A oratória celebra estes prodígios

em tropos sublimes. Como falam

bonito meus colegas.

Que anástrofes, metáforas, perífrases,

que Cíceros, Demóstenes e Ruis.

Na aula de Português eles nem tanto.

Mas é soltar o verbo, e jorram

estrelas em forma de vocábulos

para saudar nossos amados guias.

O espírito da eloquência

baixa de não sei onde e lhes inspira

rasgos terreais de Mont’Alverne.

É pena: ainda não vi

ninguém fazer um discursinho mesmo chocho

ao Irmão Falcão, enaltecendo

a grata, oportuna cervejinha

por ele fabricada.

 

 

RETIRO ESPIRITUAL

 

Padre Natuzzi, voz de ouro,

fala do céu, essa infinita aurora

a que seremos todos transportados

se.

 

Fala também do abismo arquimedonho

em que, a gordurosas culpas amarrado,

de ponta-cabeça irei precipitar-me

se.

 

Nem preciso escutá-lo.

É pregador tão célebre, sua prédica

penetra na consciência sem passar

por distraída orelha.

Já deliberei: a santidade

é meu destino.

 

Juiz não quero ser, nem artilheiro,

médico, romancista ou navegante.

Quero ser e vou ser: apenas santo.

Pode voltar, Padre Natuzzi, descansado.

 

Em beatitude sorvo o almo silêncio

do pátio onde passeiam pensativos

os de ontem ruidosos palradores.

A alma! A alma! Que beleza é a alma!

 

Ela salva! E eu salvo com ela...

se não fosse

esse colega aí, rangente, a remoer

em voz informativa autorizada

vidas de santos, único a falar,

perturbando a minha salvação.

 

E santo já não sou,

mas barro e palavrão,

humana falha, signo terrestre.

 

 

O COLEGIAL E A CIDADE

 

Fizeram bem os suíços

fundando Nova Friburgo,

pois um século depois

esta semana de festas

celebra o acontecimento.

Menos aulas; mais saídas.

Vamos cantar pelas ruas

louvores a Deus e à Pátria,

mas vamos principalmente

ver as doces friburguenses

com quem sonhamos à noite

e mesmo durante o dia,

sonhamos... sem esperança.

Barcos no Rio Bengalas

despertam admiração

e mitos venezianos.

Pudéssemos nós levar

essas meninas nos barcos

e de rio em rio até

às ondas do mar infindo

para cruzeiros bem longe

dos padres que nos vigiam...

Carlos, não pense mais nisso,

contente-se em ver as flores

desabrochadas adrede

para exaltar os suíços.

Entre os alunos, cantores

de bela voz empostada

na missa campal entoam

motetes bem ensaiados.

Têm seu minuto de glória.

Você não sabe cantar.

Pegou então a espingarda,

saiu fardado e chibante

(não muito, é claro), formando

no batalhão escolar,

Tenente Brasil à frente,

nessa rude caminhada

ao ritmo da Pátria Amada.

Dor nas costas! A que vieram

esses suíços? Fundaram

sua colônia, e um colégio

depois se plantou aqui?

Estava bem descansado

em meu sobrado mineiro,

era rei da minha vida,

imperador de mim mesmo,

e agora essa confusão.

Friburgo Futebol Clube

acolhe nossos dois times.

Por 4 a 1 os vermelhos

ganham folgado dos pretos.

Você nem é dos vencidos.

Que faz aí, de boboca?

Já vem a sombra caindo

sobre o musgo das encostas

e os alados movimentos

e os bigarrados vestidos

das moças perturbadoras

em grupos pelos canteiros.

E quando a tarde falece

fica tudo mais difícil

no peito de aluno interno.

Adeus, cidade, adeus, vida

cá fora rumorejante.

Pior ainda na tarde,

pois já se acendem os fogos

da noite festejadora.

Toda Friburgo relumbra

de luzes especiais

e nós só podemos vê-las

do interior do chatô

como os cativos de Antero,

lidos em livro escondido,

contemplam o firmamento.

É nisso que dão leituras

de poesias sombrias.

A noite do centenário

da chegada dos suíços

é noite maior na gente.

Sentir que lá fora estão

se divertindo fagueiros,

que há risos, beijos, cerveja

e não sei mais que delícias,

e eu aqui me torturando

com tábua de logaritmos...

Vão pro inferno os centenários!

 

 

CERTIFICADOS ESCOLARES

 

I

 

Do certame literário

neste grande educandário,

o nosso aluno mineiro,

pacato, aplicado, ordeiro,

sai louvado com justiça,

por ter galgado na liça

este sonhado ouropel:

o posto de coronel

em francês, inglês, latim.

Que Deus o conserve assim.

 

II

 

Em literário certame

após rigoroso exame

escrito, oral e o que mais,

de resultados cabais,

o nosso caro estudante

discreto, pouco falante,

conquistou em Português,

sem mas, porém ou talvez,

o ápice colegial

dos galões de general.

 

III

 

Por seu bom comportamento

em cada hora e momento,

seja em aula ou no recreio,

na capela ou no passeio,

acordado e até no sono

(do que todos dão abono),

receberá hoje ufano

o prêmio maior do ano,

e que em silêncio não passe:

medalha de prima classe.

 

IV

 

Que resta fazer agora

no adiantado da hora

de nossa faina escolar

em forma complementar

com relação a este aluno

e que se torne oportuno

para melhor prepará-lo

qual adestrado cavalo,

da vida no páreo duro?

Que seja expulso — no escuro.

 

 

ADEUS AO COLÉGIO

 

I

 

Adeus colégio, adeus vida

vivida sob inspeção,

dois anos jogados fora

ou dentro de um caldeirão

em que se fritam destinos

e se derrete a ilusão.

Já preparo minha trouxa

e durmo na solidão.

Amanhã cedo retiro-me,

pego o trem da Leopoldina,

vou ser de novo mineiro.

Da angústia a lâmina fina

começa a me cutucar.

É uma angústia menina,

ganhará forma de cruz

ou imagem serpentina.

Sei lá se sou inocente

ou sinistro criminoso.

Se rogo perdão a Deus

ou peço abrigo ao Tinhoso.

Que será do meu futuro

se o vejo tão amargoso?

Sou um ser estilhaçado,

que faz do medo o seu gozo.

 

II

 

Nada mais insuportável do que essa viagem de trem.

Se me atirassem no vagão de gado a caminho do matadouro

talvez eu me soubesse menos infeliz.

Seria o fim, e há no fim uma gota de delícia,

um himalaia de silêncio para sempre.

Não quero ouvir falar de mim.

Não quero eu mesmo estar em mim.

Quero ser o barulho das ferragens me abafando,

quero evaporar-me na fumaça,

quero o não querer, quero o não quero.

Como custa a chegar o chão de Minas.

Será que se mudou ou se perdeu?

Olho para um lado. Para outro.

O esvoaçar de viuvez

no todo preto da senhora à esquerda,

no preto dos vestidos, das meias e sapatos

de duas mocinhas de olhos baixos,

não tão baixos assim. Essa os levanta

cruza com os meus, detêm-se. O luto evola-se.

É um dealbar no trem tristonho,

sonata em miosótis, aragem na avenca

súbito surginte

em jarra cristalina.

Cuidados meus, desgraças minhas,

eia, fugi para bem longe.

O idílio dos olhos vos expulsa,

como expulso fui eu, ainda há pouco,

de outra forma — que forma? nem me lembra.

Vem do céu a menina e a ele me leva,

leves, levíssimos os dois.

Palavra não trocamos: impossível,

mãe presente.

E para que trocá-las, se nem sei

se vigoram palavras nesta esfera

diáfana, a que me vejo transportado?

Nem ideia de amor acode à mente,

que o melhor de amar não é dizer-se,

nem mesmo sentir-se: é nos abrir

a mais sublime porta subterrânea.

Estou iluminado

por dentro, no passado,

no futuro mais longínquo

e meu presente é não estar no tempo

e alçar-me de toda contingência.

De banco de palhinha a banco de palhinha,

entre fagulhas de carvão

fosforescentes na vidraça,

entre conversas e pigarros,

diante do chefe de trem que picota bilhetes,

torna-se a vida bem não desgastável

se a menina sorri

quase sem perceber que está sorrindo.

Nem a irmã reparou. Mas eu colhi

a laranja de flores deste instante

que vou mastigando como um deus.

Foi preciso sofrer por merecê-la?

Agora que a alcancei, não deixo mais

este comboio, este sol...

 

III

 

Por que foi que inventaram

a estação de Entre Rios?

E por que se exige aqui baldeação

aos que precisam de Minas?

Já não preciso mais. Vou neste trem

até o infinito dos seus olhos,

Advertem-me glacialmente:

“Tome o trem da Central e vá com Deus.”

Como irei, se vou sozinho e sem mim mesmo

se nunca mais, se nunca mais na vida

verei essa menina?

Expulso de sua vista

volto a saber-me expulso do colégio

e o Brasil é dor em mim por toda parte.

 

 

MOCIDADE SOLTA

 

A CASA SEM RAIZ

 

A casa não é mais de guarda-mor ou coronel.

Não é mais o Sobrado. E já não é azul.

É uma casa, entre outras. O diminuto alpendre

onde oleoso pintor pintou o pescador

pescando peixes improváveis. A casa tem degraus de mármore

mas lhe falta aquele som dos tabuões pisados de botas,

que repercute no Pará. Os tambores do clã.

A casa é em outra cidade,

em diverso planeta onde somos, o quê? numerais moradores.

 

Tem todo o conforto, sim. Não o altivo desconforto

do banho de bacia e da latrina de madeira.

Aqui ninguém bate palmas. Toca-se campainha.

As mãos batiam palmas diferentes.

A batida era alegre ou dramática ou suplicante ou serena.

A campainha emite um timbre sem história.

A casa não é mais a casa itabirana.

 

Tenho que me adaptar? Tenho que viver a casa

ao jeito da outra casa, a que era eterna.

Mobiliá-la de lembranças, de cheiros, de sabores,

de esconderijos, de pecados, de signos,

só de mim sabidos. E de José, de mais ninguém.

 

Transporto para o quarto badulaques-diamante

de um século. Transporto umidade, calor,

margaridas esmaltadas fervendo

no bule. E mais sustos, pavores, maldições

que habitavam certos cômodos — era tudo sagrado.

 

Aqui ninguém morreu, é amplamente

o vazio biográfico. Nem veio de noite a parteira

(vinha sempre de noite, à hora de nascer)

enquanto a gente era levada para cômodos distantes,

e tanta distância havia dentro, infinito, da casa,

que mal se escutava gemido e choro de alumbramento,

e de manhã o sol era menino novo.

 

Faltam os quadros dos quatro (eram quatro) continentes:

América Europa Ásia África mulheres

voluptuosamente reclinadas

em coxins de pressentidas safadezas.

A fabulosa copa onde ânforas

dormiam desde a festa de 1898

guardando seus tinidos subentendidos,

guardando a própria cor enclausurada.

O forno abobadal, o picumã

rendilhando barrotes na cozinha.

E o que era sigilo nos armários.

E o que era romance no sigilo.

Falta...

Falto, menino eu, peça da casa.

 

Tão estranho crescer, adolescer

com alma antiga, carregar as coisas

que não se deixam carregar.

A indelével casa me habitando, impondo

sua lei de defesa contra o tempo.

Sou o corredor, sou o telhado

sobre a estrebaria sem cavalos mas nitrindo

à espera de embornal. Casa-cavalo,

casa de fazenda na cidade,

o pasto, ao Norte; ao Sul, quarto de arreios,

e esse mar de café rolando em grão

na palma de sua mão — o pai é a casa,

e a casa não é mais, nem sou a casa térrea,

terrestre, contingente,

suposta habitação de um eu moderno.

 

Rua Silva Jardim, ou silvo em mim?

 

 

DORMIR NA FLORESTA

 

Dormir na Floresta

é dormir sem feras

rugiameaçando.

(A Floresta, bairro

de jardins olentes

com leões cerâmicos

a vigiar portões

e sonhos burgueses

de alunas internas

do Santa Maria.)

Dormir na Floresta

é dormir em paz

de família mineira

para todo o sempre

garantida em bancos

e gado de corte,

seguro de vida

na Equitativa,

crédito aberto

no Parc Royal,

guarda-chuva-e-vento

do PRM,

indulgência plena

do Vaticano.

E ter a certeza,

na manhã seguinte,

de bom leite gordo

manado de vacas

da própria Floresta,

de bom pão cheiroso

cozido nos fornos

da Floresta próvida.

Dormir na Floresta

é esquecer Lenine,

o Kaiser, a crise,

a crase, o ginásio,

restaurar as fontes

do ser primitivo

que era todo lúdico

antes de sofrer

o esbarro, a facada

de pensar o mundo.

Mas de madrugada

ou talvez ainda

na curva das onze

(pois se dorme cedo

na Floresta calma,

de cedo acordar),

um lamento lúgubre,

um longo gemido,

um uivo trevoso

de animal sofrendo

corta o sono ao meio

e todo o sistema

de azul segurança

da Floresta rui.

Que dor se derrama

sobre nossas camas

e embebe o lençol

de temor e alarma?

Que notícia ruim

do resto da Terra

não compendiado

em nossos domínios

invade o fortim

da noite serena?

Logo nossas vidas

e mais seus problemas

despem-se, descarnam-se

de todo ouropel.

Já não somos os

privilegiados

príncipes da paz.

Já somos viventes

intranquilos, pávidos,

como os da Lagoinha

ou de Carlos Prates,

à mercê de furtos,

de doenças, fomes,

letras protestadas,

e pior do que isso,

carregando o mundo

e seus desconcertos

em ombros curvados,

Eis que se repete

o pungente guai,

perfurando as ruas

e casas e mentes

com seu aflitivo

doer dor sem nome.

De onde vem, aonde

vai, se vai ou vem?

Triste, ferroviário

apito de máquina

da Oeste de Minas

manobrando insone,

paralelo ao rouco

ir e vir arfante

de locomotiva

da Central, rasgando

a seda sem ruga

de dormir sem dívidas,

cobrando a vigília,

o amargo remoer

da consciência turva.

Não parte, não volta

de nenhum destino

o trem espectral,

roda sem horário,

passageiro ou carga,

senão nossa carga

interior, pesada,

de carvão, minério,

queijo de incertezas,

milho de perguntas

? ? ? ? ? ? ? ?

gado de omissões.

Fero trem noturno

a semear angústia

na relva celeste

da Floresta em flor.

 

 

DOIS FANTASMAS

 

O fantasma da Serra,

natural de Ouro Preto,

ninguém mais fala nele.

Desistiu; apagou.

Nos lentos, velhos tempos

cumpria seu destino

com toda a sisudez.

Era grave, pontual,

a ninguém assustava.

Surgia à meia-noite

e trinta, ponderado,

no nevoeiro de junho,

a pessoas seletas

que voltavam de festa.

Deixava-se ficar

junto a portões de chácaras

e lembrava sem gesto

a convivial presença

das almas-do-outro-mundo

no coração mineiro.

Há muito ninguém volta

de festa na Floresta

ou qualquer outro bairro.

A rua embalsamada

permanece vestida

de solidão-magnólia.

Por falta de assistentes,

retira-se o fantasma

rumo ao País do Tédio.

Chega a vez do avantesma

da popular Lagoinha,

noutro extremo da vida.

Sinal de coisas novas.

É excêntrico, forja

diabruras cruéis.

Espanta motorneiros

sentando-se entre os trilhos

sem mover uma palha

se o bonde tilintante

desce a rampa. Conserva-se

em calmo desafio

à potência rangente.

O motorneiro, morto,

de pavor, pula fora,

o condutor imita-o,

os raros passageiros

dessa hora glacial

aos gritos se levantam,

e no tremendo instante

de esmagar o duende

ou de morrermos todos,

ele, o senhor de preto,

sem rosto, mas sarcástico

na postura insolente,

dissolve-se qual sonho

que não quer ser sonhado.

Em estrondar de rodas

de súbito freadas,

o pesadelo extingue-se.

Apenas se distingue

no interior do bonde

o convulsivo choro,

e na rua-teatro

ao sol da lua-cheia,

vago cheiro de enxofre.

 

 

NINFAS

 

Agora sei que existem ninfas

fora das estampas e dos contos.

São três.

Bebem água publicamente

servida por uma sereia,

pois que também existem as sereias

na composição de verde e mármore

e é tudo fantástico no jardim

em frente do Palácio do Governo.

 

 

BAR

 

Ciprestes e castanheiros

em torno deste bar rústico

vão tornando mais ilustre

o consumo de cerveja.

 

Mas são ciprestes pirâmides

e castanheiros truncados

em volta de mãos vorazes,

tecendo ramas polêmicas.

 

Como se papa um sanduíche,

a decoração se come?

Este lugar, eu o amo

ou não se fala mais nisto?

 

 

HINO AO BONDE

 

Os derradeiros carros de praça

recolhem seus rocinantes esquálidos

à cocheira do esquecimento.

Os próprios cocheiros se desvanecem

no crepúsculo da Serra do Curral.

Meia dúzia de automóveis à sombra dos fícus

espera meia dúzia de privilegiados

que vão cumprimentar o Presidente do Estado

em seu bastião florido da Praça da Liberdade.

O mais? Andar a pé

quilômetros de terra vermelha sossegada,

e bondes.

Os caluniados bondes da Empresa Carvalho de Brito,

os admiráveis bondes, botas de sete léguas

de estudantes, funcionários, operários,

desembargadores, poetas, caixeiros.

O bonde, sede da democracia em movimento,

esperado com pachorra no Bar do Ponto

nos abrigos Pernambuco e Ceará,

o arejado, pacífico, oportuníssimo

salão onde se leem de cabo a rabo

o expediente das nomeações e demissões

nas páginas sagradas do Minas Gerais

e as verrinas amarelas dos jornalecos da oposição.

Bonde onde se conversa

a lenta conversa mineira de Ouro Preto,

Pirapora, Guanhães, Itapecerica.

Onde se namora debaixo do maior respeito,

com olhares furtivos que o pai da moça não percebe.

(Ah! se percebesse!...)

Bonde turístico, antes que o turismo seja inventado.

Vamos dar a volta-Ceará?

Por um tostão passamos em revista

palacetes art-nouveau novinhos em folha,

penetramos no verde mistério abissal da Serra,

onde cada inseto é uma nota de música

e as águas gorgolejam em partita de Bach.

Por um tostão as lonjuras do Prado Mineiro,

onde ainda se escuta, se nascemos nostálgicos,

o pacapacá dos cavalinhos brincando de Derby.

Um tusta apenas e é a ridente Floresta,

seu Colégio Santa Maria, cheio de meninas

(ainda não se usa a palavra garota)

que vão num bonde mágico e nele retornam

para o rápido cruzamento em que, do nosso bonde,

sentimos passar a graça das sílfides

e o esvoaçar das libélulas

inalcançáveis.

É tudo inalcançável na cidade,

por isso mais lindo.

Viajamos pelos países modestos de Carlos Prates

e Lagoinha, pelo país violáceo do Bonfim,

vejo minhas primas meninas

se arredondarem no Calafate,

e há sempre uma cor a descobrir,

um costume singelo, o portão de um alpendre

com pinturas a óleo de castelos

que são o outro lado de Minas: o irreal.

Andar de bonde é meu programa,

voltar do fim da linha,

mudando eu mesmo o banco para a frente.

Confiro os postes, as pessoas

pontuais na hora de subir.

Adoro o bonde deserto das madrugadas

que abre um clarão nas rampas e, rangendo

nas curvas, rasga o sono,

impondo o mandamento de viver,

até mesmo no túnel da noite.

Suave bonde burocrático, atrasado bonde sob a chuva

que molha os bancos sob cortinas emperradas,

bonde amarrado à vida de 50

mil passageiros, minha gôndola,

meu diário bergantim, meu aeroplano,

minha casa particular aberta ao povo,

eu te saúdo, te agradeço; e em pé no estribo,

agarrado ao balaústre,

de modesto que és, faço-te ilustre.

 

 

A HORA FINAL

 

O funcionário smart da Delegacia do Tesouro Nacional,

o escrevente do cartório de protesto de títulos,

o moço bacharel violento mas generoso,

o poeta revisor do Minas Gerais,

o chefe político do Mutum aguardando há seis meses

(falhou na última eleição)

ser recebido no Palácio da Liberdade,

os velhos e novos frequentadores da noite,

lenta noite apitada de guardas-civis nas esquinas de sono,

as moças do cabaré com seus últimos bocejantes clientes

estão todos sentados

no Restaurante Guarani da madrugada

comendo o mesmo indefectível,

arquitetônico, monumental

bife a cavalo de 1920.

 

 

VIGÍLIA

 

A qualquer hora do dia ou da noite,

o ano inteiro, a vida inteira,

os padres da Boa Viagem,

os padres de Santa Efigênia dos Militares

atendem a chamados para confissão de agonizantes.

Sai aviso no Minas

e a morte, que paira sobre Belo Horizonte

e sobre todas as cidades, em qualquer tempo,

sente limitado o seu poder.

Já não chega à traição,

já não golpeia sem que o pecador

possa arrepender-se

e na mão de Deus, na sua mão direita,

como queria Antero, apascentar-se.

A noite mineira é mais tranquila:

convida, camarada,

a pecar mais um momento, um só, bem lento.

 

 

PRESÉPIO MECÂNICO DO PIPIRIPAU

 

Jesus nasce no Pipiripau,

em refolho sigiloso da Floresta,

bairro com alguma coisa de rural.

Tudo nasce, tudo mexe, tudo gira

em torno do menino sobre o capim-mimoso.

A paisagem é movimento

contínuo, circular.

Jesus aciona todas as forças

do homem. Ninguém parado.

Organiza-se a indústria em seu redor.

Jesus determina a vida em expansão.

Lutadores de boxe trocam murros

para maior glória do menino.

Seu Raimundo, criador do presépio,

revela Deus-motor.

Pipiripau, presépio modernista de 1927.

 

 

O NÃO DANÇARINO

 

Não alcancei o Clube das Violetas,

delicado demais para durar.

À minha frente só o Clube Belo Horizonte,

onde dançam o belo Ferolla, o formoso Dario

com senhoritas mui prendadas

sob o olhar magnético de pais, mães, irmãos,

e o invisível mas ubíquo e potente

estatuto mineiro de costumes.

Dançam no segundo andar as valsas lânguidas

que o violino de Flausino faz etéreas.

Não sei dançar.

O Clube não frequento.

É meu clube a calçada.

A calçada sem música.

A porta do cinema, a porta do Giácomo

a porta sem espera, a porta sem esperança

a porta.

 

 

DOIDINHOS

 

Também não alcancei os Jardineiros do Ideal,

mocidade-morta de Belo Horizonte.

Não conheci os Raros,

os Magnificentes

— oh que delícia: os Malditos,

do tempo em que o autor falava a leitores hipotéticos:

“Este é um livro de estreia. Caluniai-o.”

Resta, de tantas brumas, o velho Horácio

e seu ceticismo sorridente

na cartorária redação do Diário de Minas.

Não me conta do Barão do Sete-Estrelo

nem do Cavaleiro da Rosa-Cruz.

Os tempos já não são os tempos. Ou nunca foram?

Governa, de pince-nez, Raul Soares,

vem aí Melo Viana, e Bernardes domina,

do alto dos altos, de pince-nez redondo,

o céu nacional.

Horácio? Sorri apenas,

diz alguma coisa que não entendo bem,

nem é para entender: suave cortesia

de quem pressente em mim um novo Raro,

novo Maldito, novo Magnificente,

ocupando na promíscua Pensão Alves um castelo de nuvens.

Não, meu, nosso castelo, a Confeitaria Estrela

é bem terrestre, com sua vitrina de salgadinhos,

e já não somos nem Raros nem Malditos

mas simples Doidinhos de nova espécie,

arrancadores de placas de advogados e dentistas

em noites de pouca ronda,

pequenos incendiários sem tutano

de atear completas labaredas.

Somos o que somos, mestre Horácio.

 

 

A DIFÍCIL ESCOLHA

 

Cada manhã, a Liga pela Moralidade,

serviçal, pontual,

indica os filmes que podemos ver,

os prejudiciais,

os com reserva,

os inofensivos.

A Mulher de Cláudio, com Pina Menichelli,

tem decotes inconvenientíssimos.

Quando o coração quer, com Francesca Bertini,

é coleção de cenas sensuais.

Remorsos do Cura, não sei com quem,

imoralíssimo.

 

Alta imoralidade, em Pacto infernal,

2o episódio: adultério à vista.

Dorothy Dalton. O Dom da fascinação,

bem, pode ser visto com algumas reservas.

 

É tão farto o cardápio, que vacilo:

Não posso ir a todos os cinemas,

e é só uma noite cada filme.

Meu Deus, ajudai-me neste passo:

Vejo a Bertini? Vejo a Menichelli?

 

 

O GRANDE FILME

 

Vejo Intolerância, de Griffith,

no Cinema Pathé.

Estudante já não vale nada.

Pago entrada comum, preço incomum:

2 mil-réis e mais 100 réis de imposto.

Os habitués foram preparados

por anúncios maiores no Minas Gerais:

“Procurem compreender, não somos gananciosos.

O filme tem 50 mil comparsas,

15 mil cavalos, 30 artistas

famosos, quatro romances, 14 partes.

Construiu-se um templo colossal

(1500 metros de fundo),

a orquestra executa partitura

escrita especialmente...”

 

Intolerância

ou a luta do amor através das idades,

Cristo, Babilônia, São Bartolomeu noturno...

É grandioso demais para a minúscula

visão minha da História, e tudo aquilo

se passa num mundo estranho a Minas

e à nossa ordem sacramental, sob a tutela

do nosso bom Governo, iluminado

por Deus.

 

Esmaga-me esse monstro de mil patas.

Saio em fragmentos, respiro o ar

puríssimo de todas as montanhas.

Intolerância? Aqui no alto, não,

desde que se vote no Governo.

 

 

O LADO DE FORA

 

Sexta-feira. Sessão Fox

rebrilha de gente fina.

Fico do lado de fora.

Não tenho dinheiro agora.

 

Agora ou toda a semana?

O mês inteiro? Meus livros

troquei por alguns mil-réis:

eram dedos, não anéis.

 

Não deu para ver a fita

da ofídica Theda Bara.

Que importa a fita? Importante

é a cicuta deste instante.

 

A moça de meus cuidados,

mas de mim tão descuidada,

surge, camélia ridente.

Finjo ser indiferente.

 

Entra, nuvem colorida,

entra, música de corpo.

Mal sabe que estou ali,

hirto, magro, como um I.

 

Nem me vê. Não me verá.

Cada pétala de seda

do seu todo natural

me faz delicioso mal.

 

Não tem sentido, ou tem muito,

esperar por duas horas

que ela saia do cinema

como sai, de mim, o poema.

 

Aprendo a lição tortuosa

de curtir a dor das coisas.

O que ela viu, tela e enredo,

não vale este meu brinquedo,

 

o pungitivo brinquedo

de pensar na moça em vão,

do lado de fora, o lado

que ficará do passado

 

e vige ainda: poder

de sentir, mais que o vivido,

o que pudera ter sido,

o que é, sem jamais ser.

 

 

ORQUESTRA

 

Foi o foxtrote que acordou

os peixinhos do lago, na sala de espera,

ou foram eles, os minúsculos, insones peixinhos,

que fizeram acordar Sweet Georgia Brown

entre Body and Soul, para o tea for two,

enquanto não se abrem, rascantes, as portas da segunda sessão?

 

 

REBELIÃO

 

 

A Empresa Gomes Nogueira

dobrou o preço do ingresso.

Alega que a nova fita

é de beleza infinita.

 

Aos estudantes recusa

direito de meia-entrada,

esse direito imortal,

escrito na lei falada.

 

Tamanho abuso levanta

as pedrinhas do passeio.

Até mancebos serenos

protestam; nem é pra menos.

 

Vamos entrar assim mesmo,

protestar não adianta,

e a fita, diz Cena Muda,

tem um mistério que espanta.

 

Mas tamanho desagrado

na algibeira estudantil

gera rumor, logo mil

ruídos vão se encorpando.

 

Ninguém vê o preto e branco

enrolo das peripécias

do dramalhão Paramount.

A bagunça, num arranco,

 

toma conta do recinto,

malhando cadeira e tudo

quanto é peça de madeira.

Acende-se a luz. E sinto

 

que é hora de grande alvitre:

levar essa massa humana

para a reforma do mundo.

Começar? Já, num segundo,

 

deixar a sala-ratoeira

(pois a Polícia é finória)

e sair, queimando bondes

que nada têm com essa história.

 

Os bondes, mas logo os bondes,

providência de estudantes?

Isso mesmo: velho impulso,

a destruição dos amantes.

 

Do cinema em polvorosa,

na turba, sai o anarquista.

A noite, incendida rosa,

abre um clarão na Lagoinha.

 

 

O FIM DAS COISAS

 

Fechado o Cinema Odeon, na Rua da Bahia.

Fechado para sempre.

Não é possível, minha mocidade

fecha com ele um pouco.

Não amadureci ainda bastante

para aceitar a morte das coisas

que minhas coisas são, sendo de outrem,

e até aplaudi-la, quando for o caso.

(Amadurecerei um dia?)

Não aceito, por enquanto, o Cinema Glória,

maior, mais americano, mais isso e aquilo.

Quero é o derrotado Cinema Odeon,

o miúdo, fora de moda Cinema Odeon.

A espera na sala de espera. A matinê

com Buck Jones, tombos, tiros, tramas.

A primeira sessão e a segunda sessão da noite.

A divina orquestra, mesmo não divina,

costumeira. O jornal da Fox. William S. Hart.

As meninas de família na plateia.

A impossível (sonhada) bolinação,

pobre sátiro em potencial.

Exijo em nome da lei ou fora da lei

que se reabram as portas e volte o passado

musical, waldemarpissilândico, sublime agora

que para sempre submerge em funeral de sombras

neste primeiro lutulento de janeiro

de 1928.

 

 

PARCEIROS DE BACH

 

A harpa de Rosa Ferraiol

apura ainda mais o Cravo temperadíssimo

em dó menor, em mi menor, prelúdio, fuga.

 

Mas que há com as tercinas?

Não fluem fácil como fio d’água.

Som intempestivo criva a sala.

Há mal-estar, rostos inquietos,

entre os seletos do Municipal.

 

Não se dá conta Rosa deste agravo

à pureza de Bach, e vai levando

os stretti, as leves colcheias, os alados

acordes melancólicos ou gaios?

A plateia começa a resmungar:

— Assim não! Mas que coisa! Está demais!

 

Está demais o grilo subversivo

que no teatro cheio põe cricrilos

nos arpejos celestes.

O guarda percorre camarotes,

corredores, lanterninha na mão, à sua caça,

e o ruído da caça se acasala

com Bach e grilo e riso incontrolável

dos melômanos: a Polícia vai prender

o grilo, tem gaiola para isto?

 

Caro João Sebastião, desculpe: em Minas

até os grilos amam fazer música.

 

 

O ARTISTA

 

Alvorada de estrelas?

Alucinação de um sonho?

Canhoto domina o palco da Rua Caetés.

Seu violão cava um abismo de rosas

no triste carnaval de Belo Horizonte.

 

 

DEPRAVAÇÃO DE GOSTO

 

O maestro Aschermann, violinista,

dirige o requintado quinteto de cordas.

Guadagnin, segundo violino. Gioglia na viola.

O violoncelo é de Targino.

Ao piano, Nazinha Prates.

Haydn flutua no ar da Rua da Bahia.

Por que maligna inclinação,

vou ver o melodrama dos Garridos

no palco-poeira do Cinema Floresta?

 

 

GRAÇA FEMININA

 

Que bom ouvir João Luso nesta sala

discorrer sobre a graça feminina!

Será que escuto? Alguém presta atenção?

A graça feminina está presente,

sorri, olha discreta, abana o leque,

imune à conferência.

A graça tem consciência de ser graça

e a si mesma dedica-se, enlevada.

 

 

AS LETRAS EM JANTAR

 

Meu primeiro banquete literário.

O espelho art-nouveau do Hotel Avenida

reflete doze ilustres escritores.

Convidado! sento à mesa dos ilustres,

ilustre me tornando em potencial,

representante da escola, por nascer,

dos bárbaros futuristas do Curral.

Osvaldo de Araújo, Aldo Delfino,

Mário Mendes Campos, cristais, flores,

Abílio Barreto, Silva Guimaraens,

Rangel Coelho, quem mais? Não os distingo,

pois nem distingo a mim, de tão repleta

esta hora (o vinho, a carne) de horizontes.

Qual a razão do bródio? Precisa haver razão

para bródios? As letras mandam

comer, sorver a glória deste instante,

Agripa de Vasconcelos, o poeta,

recém-eleito acadêmico mineiro,

oferece-nos o prândio. Na verdade

nós é que devíamos prestar-lhe

este preito ritual.

Mas ele paga. E recita

à sobremesa, com voz clara:

“O meu destino... onde me levará?”

A pergunta ressoa (garfos, copos)

e ninguém na mesa em festa ousa fazer

de si para si mesmo

a grave indagação.

Quedamos importantes, paralisados,

na foto de magnésio.

 

 

JORNAL FALADO NO SALÃO VIVACQUA

 

Garotas de Cachoeiro civilizam

nosso mineiro burgo relaxado.

No salão todo luz chega o perfume

das roseiras da Praça. Burburinho.

Aqui, a se sorrirem, vejo os máximos

escritores da nova geração.

São jornalistas esta noite. A bela Angélica,

a suave Edelmira, a grácil Mariquinha

assim o determinam. Milton Campos

abre o Jornal Falado. Flui a verve

de seu editorial. Na sua voz,

a política é um jogo divertido

de punhais cetinosos que se cravam

sem derrame de sangue — e a vítima nem sabe,

perremisticamente golpeada,

que já morreu: continua deputado.

De Abgar, primeira página, o soneto,

mais lapidado que diamante,

recebe aplausos invejosos. Oh, quem soubera

tanger assim o lírico instrumento,

decerto conquistara

todas as do planeta moças lindas!

Um êmulo romântico se aproxima:

é Batista decassílabo Santiago:

“Ah, saudade que vive me enganando

e faz que eu ouça a tua voz, ouvindo

as folhas mortas em que vou pisando…”

Jornal é só poesia? Nada disso.

João Dornas traça a viva reportagem

urbana. Que parada,

achar acontecimentos onde nada

acontece, depois de Rui Barbosa!

Ele inventa, ele cria? Fatos raros

baixam do lustre, pulam no tapete

e Nava, prodigioso desenhista,

risca os perfis, os gestos, os lugares.

Delorizano, grave,

fala de ciência

e Romeu de Avelar conta do Norte.

Aquiles é o cronista social:

noivados e potins e flertes surpreendidos

na segunda sessão do Odeon... Caluda!

Alguém pode não gostar. João Guimarães

é o nosso humorista, João Alphonsus

inicia o romance-folhetim:

em minutos tem princípio, meio e fim.

Eis chega a minha vez. A minha vez?

Mas como? se eu esperava não chegasse

e lá pela meia-noite o sono embaciasse

os anúncios da quarta página, final...

Não sei o que dizer. Digo: “Um acidente

nas oficinas impediu

saísse a minha crônica. Perdeu-se. Até amanhã”.

 

 

A TENTAÇÃO DE COMPRAR

 

Com anúncios de página inteira

(coisa nunca vista nos sertões)

inaugura-se na Rua da Bahia

o fabuloso Parc Royal.

Três andares das mais finas futilidades

vindas diretamente da Rue de la Paix.

Seu Teotônio Caldeira, gerente,

manipula novas técnicas de vender.

As virgens loucas compram compram compram

e as mães das virgens loucas, outro tanto.

Pais de família, em pânico,

veem germinar no solo imáculo de Minas

a semente de luxo e desperdício.

Nada podem fazer, cruzam os braços:

O Parc Royal tem como padroeira

nada menos que Nossa Senhora da Conceição.

— Meu pai, posso botar na sua conta

três camisas de seda, um alfinete de gravata?

— Até você, meu filho, até você?!

 

 

TRÊS NO CAFÉ

 

No café semideserto a mosca tenta

pousar no torrão de açúcar sobre o mármore.

Enxoto-a. Insiste. Enxoto-a.

A luz é triste, amarela, desanimada.

Somos dois à espera

de que o garçom, mecânico, nos sirva.

Olho para o companheiro até a altura da gravata.

Não ouso subir ao rosto marcado.

Fixo-me na corrente do relógio

presa ao colete; velhos tempos.

Pouco falamos. O som das xícaras,

quase uma conversa. Tão raro

assim nos encontrarmos frente

a frente mais que por minutos.

Mais raro ainda, na banalidade do café.

A mosca volta.

Já não a espanto. Queda entre nós,

partícipe de mútuo entendimento.

Então, é este o mesmo homem

de antes de eu nascer e de amanhã e sempre?

Curvado.

Seu olhar é cansaço de existência,

ou sinto já (nem pensar) a sua morte?

Este estar juntos no café,

não hei de esquecê-lo nunca, de tão seco

e desolado — os três

eu, ele, a mosca —:

imagens de mera circunstância

ou do obscuro

irreparável sentido de viver.

 

 

ENCONTRO

 

Vi claramente visto, com estes olhos

que a terra há de comer se os não cremarem,

o carro de bois subir, insofismável,

esta soberba Rua da Bahia,

sofridamente puxado

por sete juntas de bois.

Vi claramente visto o cupê de João Luís Alves,

Secretário de Estado de Bernardes,

descer esta rua soberba da Bahia,

cruzar o carro de bois,

no dia claro, e o espírito de Minas

fundindo sabiamente

a dupla imagem.

 

 

OPOSIÇÃO SISTEMÁTICA

 

O jornalzinho oposicionista da Praça da Estação,

onde exalo vagidos literários,

xinga o Presidente, xinga seus Secretários,

xinga o Prefeito. Sem mais ninguém

para xingar,

xinga Leopoldo Fróis, que no seu entender,

apresentando peças de gênero livre no Municipal,

todas as noites ofende a família mineira

em casas lotadas e entusiásticas.

 

 

PROFISSÃO: ENTERRADO VIVO

 

Tão linda esta cidade,

tão bem servida de moças de chapéu

e sombrinha,

de fícus, palacetes, lagos, horizontes,

tão limpa, tão verdinha, tão serena,

e vem Great Michelin

jejuar sete dias, agressivo!

 

Levo soco no estômago. Que ideia,

vender entradas para o espetáculo da fome

no Cine Comércio tão alegre.

Dois metros abaixo do chão a cova aberta

e a tampa de vidro

mostra o rosto cadavérico

do jejuador profissional.

 

De domingo a domingo esta visão

soturna comercial atrai burgueses

bem alimentados, secretamente desejosos

de que a experiência tenha fim

com a morte do Great Michelin.

 

No sétimo dia ressuscita

abre-se o caixão no palco, lavra-se ata

firmada por médicos, delegados, jornalistas,

palmas, palmas, vivas,

discurso do artista Koytakisis

e do próprio Michelin mal falecido.

 

Dias depois ei-lo fazendo

conferência científica sobre a arte

de ganhar a vida em morte semanal.

 

15% da renda, generoso,

dá para o Orfanato Santo Antônio.

E aprendo esta verdade: jejuador

nenhum morre de jejum se souber vender a sua fome.

 

 

A VISITA DO REI

 

I

 

Vejo o Rei passar na Avenida Afonso Pena

onde só passam dia e noite, mês a mês e ano,

burocratas, estudantes, pés-rapados.

Primeiro rei entre renques de fícus e aplausos,

primeiro rei (e verei outros?) na minha vida.

Não tem coroa de rei, barbas formidáveis

de rei, armadura de rei, resplandecente

ao sol da Serra do Curral.

Não desembainha a espada para enfrentar

como fazia há pouco os hunos invasores

de sua pátria.

É um senhor alto, formal, de meia-idade,

metido em uniforme belga,

ao lado de outro senhor de pince-nez

que conheço de retrato: o Presidente do Estado.

Não vem na carruagem de ouro e rubis das estampas.

Não é um Carlos-Magno.

Vem no carro a Daumont de dois cocheiros

e quatro cavalinhos mineiros bem tratados.

No carro seguinte, como convém eternamente

às mulheres, vejo a Rainha,

não aparição sublime das iluminuras

(ai, que falta nos faz a Idade Média),

mas a distinta burguesa ao lado

do Presidente compenetrado da República.

Então é isso: tudo igual,

sangue azul e plebeu?

Pompas republicanas: moderadas.

Tenho de recriar — reminiscências literárias —

vera imagem de Rei, no rei em carne e vida.

 

II

 

A coroa lá está, na Praça do Poder

(não sei por que, se chama Liberdade).

Coroa imensa, de dez mil

lampadazinhas elétricas multicores.

À noite, é tudo festa na cidade.

Cinema grátis para o povo

na efervescente Praça Doze.

Fogos de artifício e de feitiço

para susto de cisnes e marrecos

no Parque Municipal.

Bandas de música explodem

em cada coreto, mesmo sem coreto.

Clarinar de paradas militares,

multiplicadas pelo ouvido e olhar.

De Norte a Sul, de Leste a Oeste,

mesmo do separatista Triângulo irredutível

que não corteja Belo Horizonte,

acodem povos a conferir o Rei.

Jorra cerveja nos cabarés enfumaçados de cigarro

Madame Olímpia, a respeitável,

faz a mais gorda féria do seu Éden.

Ao Rei não chega esta alegria. Ele visita

monocordicamente, bravamente,

quartéis, escolas, tribunais e o mais.

Há um discurso em cada fraque,

um vivelerroá em cada boca

e o desaponto de encontrar

no rei-lendário o homem comum.

(Eu não disse que os reis não são mais reis?)

 

III

 

Majestade, aceite esta garrafa de licor

estomacal, do meu fabrico.

O Rei aceita: vai provar (mas em Bruxelas)

o presente do farmacêutico Artur Viana.

Antes, na mesa oficial, degusta

macucos truffés à la Royale

e dorme cedo. Amanhã cedinho

irá a Morro Velho conhecer

o sombrio trabalho subterrâneo

que produz ouro para o mundo

e morte precoce para mineiros.

Voltando à superfície, Mister Chalmers

oferta-lhe desta vez,

macucos truffés à jus d’orange.

É comida diária no Brasil?

Resta algum macuco pra contar?

O Rei repousa a vista

no quadro que lhe deu Honório Esteves.

Escuta, sonolento,

a orquestra vinda do Rio expressamente

para abemolar sua visita.

Silêncio: Sua Majestade vai dormir

em cama de Napoleão 1o, cópia exata

feita por Leandro Martins & Companhia.

 

IV

 

O Governo impa de orgulho:

as refeições de Suas Majestades,

quem serve é a Pascoal do Rio de Janeiro.

Os landolés de seus passeios

vêm da Garage Batista do Rio de Janeiro.

A Casa Lucas, do Rio de Janeiro,

multilumina as ruas e fachadas.

A charuteira com enfeites de ouro de 24 quilates,

regalada ao Rei,

é obra de arte de Oscar Machado,

joalheiro do Rio de Janeiro

(mas a madeira de lei é pura Minas).

Pura Minas, o solitário da Rainha

trabalhado no Rio de Janeiro

pelo mesmo Machado, mas brotando

do chão mineiro de Coromandel.

Não foi possível, é pena, vir do Rio

o Pão de Açúcar nem o Corcovado

nem a baía... mas demos ao Rei

o mais perturbador, o mais fantástico

entardecer da cidade-coleção

de crepúsculos indescritíveis.

 

V

 

E assim todos vivemos nossa vida,

nossa vidinha, como é nosso dizer,

entrelaçada no viver do Rei.

A metros de distância um Rei respira,

almoça, fuma, escova os dentes,

coça a cabeça como nós coçamos.

Falta somente o Rei aparecer

no Bar do Ponto e junto ao Professor

Zé Eduardo, de ferino verbo,

comentar os erros de francês

dos oradores a quem a lição

de Mestre Jacob pouco aproveitou.

Não é de muita fala o Rei, parece,

mas quem resiste ao calmo prosear

daquele centro da malícia urbana?

Tome um café, Seu Rei. Sente-se e vamos

ponderar os túrbidos sucessos

de Manhuaçu: três ou quatro mortes

por questões de terras ou de política.

Isso também ocorre lá nas Flandres?

Como é, o câmbio? É, está baixando,

quase não exportamos, e trazemos

tudo da Europa, desde o sabonete

e o vinho até as polonesas...

Seu Rei e nosso amigo, vamos

mudar de assunto?

 

VI

 

Afinal segue o Rei, segue a Rainha,

seguem condes, barões e diplomatas

rumo a São Paulo.

Que alívio, suspender tanta folia,

tanto protocolo misturado

ao nosso visceral esteja a gosto.

Descansa o Rei de nós,

e dele descansamos.

Mas uma coisa fica em mim,

espectador quase-repórter.

Uma coisa entre rosas, no jardim

versaillescamente plantado em seu honor.

É um som infantil, puro, no ar,

e não se desvanece:

coro de seis mil vozes entoando

o hino ensaiado com capricho

o mês inteiro nas escolas:

Aprédessiécles desclavage

lebelgesortáditombô...

lerroá laloá lalibertê.

Ao ouvi-lo o Rei empalidece,

a Rainha derrama duas lágrimas.

Crianças de 1920: a Brabançonne

casa-se com Ipirangasmargensplácidas,

e na Pensão de Dona Teresinha,

à noite, solitário no meu quarto,

não lembro o Rei, lembro o coral.

 

 

O PASSADO PRESENTE

 

Vejo o Conde d’Eu no Grande Hotel.

Fala francês com Dr. Rodolfo Jacob.

O fantasma da Monarquia

é o terceiro invisível, interlocutor.

Lá fora o sol encandece, republicano.

Ah, nunca pensei que o passado existisse

assim tocável, a mexer-se.

Existe. E fala baixo. Daqui a pouco

toma o trem da Central, rumo ao silêncio.

 

 

PLATAFORMA POLÍTICA

 

O noturno mineiro

congrega na estação

da Central do Brasil

a fina flor política.

Dez horas da manhã,

desembarcam sublimes

estadistas do Rio.

Quatro e vinte da tarde,

despedem-se conspícuos

estadistas locais.

A plataforma zumbe

de abraços e cochichos.

Lá vai o deputado

amigo do Palácio-

-em-flor da Liberdade

e chega o senador

comensal do Catete.

Coronel ajudante

de ordens, rutilante

na farda feita lírio

de imácula brancura,

mostra o grau de prestígio

de quem sai ou quem vem:

o Senhor Presidente

faz-se representar.

Sensação: desta vez

o próprio Presidente

do valoroso Estado

calca seus borzeguins

no ladrilho vulgar.

A música festeira

extravasa da banda

militar requintada

e leva a toda Minas

o som do alto poder

que domina montanhas

e elege candidatos

mesmo à falta de votos.

Que emérita figura

de altíssimo coturno

tira Sua Excelência

da torre oficial?

O Chefe da Nação?

O Papa? O imperador

de algum remoto Império?

O banqueiro londrino

que veio ver de perto

as arras prometidas

ao desejado empréstimo?

Tento em vão acercar-me

do círculo dileto

que usufrui a presença

do egrégio titular

emanador de eflúvios

benignos. Em muralha,

casimiras escuras

e notórios secretas

em seu redor me barram

o horizonte visual.

Sei que perto de mim,

contudo inatingível,

astro do empíreo cívico,

o Presidente espera

outro deus, outro astro,

na estação convertida

em sacro belvedere.

Somem carregadores,

jornaleiros, cambistas

de palpites lotéricos.

Viajantes banais

esgueiram-se, dissolvem-se

na pompa do espetáculo.

A Central do Brasil

é ara, catedral

do mineiro mistério

do Poder com pê grande,

o Poder Triunfal.

 

 

ODE AO PARTIDO REPUBLICANO MINEIRO

 

Ó PRM,

onde estás, que não vejo, mas te sinto

circular pelas veias da cidade?

 

Poder sutil, punhos de aço, terno abrigo

dos que à tua sombra se aninharam

na direção do público negócio!

 

Sogro gentil, pai amoroso

de bacharéis, de médicos, engenheiros

em começo indeciso de carreira,

tu dás o pão, dás a pancada

conforme o nosso vário proceder:

aos correligionários, pão de ló,

aos adversários, pontapé

em sensível, recôndito lugar.

 

Ai de quem infringir

teu estatuto sacrossanto, vigente

sobre as serranias e no interior mesmo do magma.

 

Pobres filhos de Eva, deserdados

do teu peito, os trânsfugas jazem mudos

à porta lacrada dos bancos

ou no corredor deserto da farmácia

da oposição.

 

Os bem-amados, estes, já se empossam

em parlamentos de bater palmas, palmas, palmas

à Comissão Divina Executiva

e, mais alto ainda, ao inatingível

Senhor Governador das Milícias e das Coletorias.

És a fonte, és a linfa, és a flórea

mansão dos deuses, entre renques de palmeiras

moldurada.

 

Teu espírito invisível e concreto

paira sobre os crepúsculos magnificentes

da Capital e nos guia, nos adverte, nos fulmina.

 

Ó PRM, estás em cada paralelepípedo,

em cada fícus-benjamim, em cada xícara

de café do Bar do Ponto: ouves, registras,

despedes teu raio sem o mínimo trovão,

e como ele reboa no interior da vítima!

 

Bem, contra ti me levanto, pigmeu,

gritando em frente à sacada política do Grande Hotel

os morras que é de uso em comícios inflamados

antes que irrompa a cavalaria.

 

E nem me vês a mim, verme-plantinha,

tão alto te agigantas.

Afinal, sem eu mesmo saber como,

por mão de Alberto serei teu redator

no obscuro jornal que em teu nome se imprime.

(A perfeita ironia: a mão tece ditirambos

ao partido terrível. E ele me sustenta.)