CONFEITARIA SUÍÇA

 

A baleira da Rua da Bahia

é bela como as balas são divinas.

Ou divina é a baleira, e suas balas

imitam o caramelo de seus olhos?

 

Compro balas na Rua da Bahia

para ver a baleira, simplesmente.

Não me olha nem liga, apenas tira

de cada vidro a cor e o mel das balas.

 

No pacote de balas vem um pouco

de beleza da pele da baleira,

sua pele de linho e porcelana,

sua calma beleza funcional.

 

É suíça a baleira e inatingível.

É coberta de neve, é neve pura,

derrete meu desejo adolescente...

Resta o gosto nevado de hortelã.

 

 

A PARAQUEDISTA

 

Brilha

Juliette Brille.

Salta de mil metros de altura

no Prado Mineiro em sol

laranja-vermelho e pasmo.

Despenca-se da asa do aeroplano New Port.

Um segundo, e:

não abre o paraquedas?

Juliette, bólide

sem rastro fosforescente

irá esborrachar-se

no chão trivial?

Não, o Deus das aves,

dos ventos e das loucas

deposita Juliette

nas mãos do ar benigno.

Enfuna-se o aparelho.

Juliette, valsarina,

descreve no céu o giro

de rosa descendente

e vem pousar, completa,

em grama admirativa.

Homem nenhum fez isso

até agora aqui.

Todos aplaudem, constrangidos.

Não é que ela escapou?

 

 

AS MOÇAS DA ESCOLA DE APERFEIÇOAMENTO

 

São cinquenta, são duzentas,

são trezentas

as professorinhas que invadem

a desprevenida Belô?

São cento e cinquenta, ou mil

as boinas azuis e verdes

e róseas, alaranjadas

e negras também e roxas,

os lábios coracionais

e os tom pouce petulantes

que elas ostentam, radiosas?

De onde vêm essas garotas?

eu que sei?

Vêm de Poços, de São João

del Rei, Juiz de Fora, Lavras

Leopoldina, Itajubá,

Montes Claros, Minas Novas,

cidades novas de Minas

ainda não cadastradas

no Índice Coreográfico

de Pelicano Frade?

E são assim tão modernas,

tão chegadas de Paris

par le dernier bateau

ancorado na Avenida

Afonso Pena ou Bahia,

que a gente não as distingue

das melindrosas cariocas

em férias mineiras?

Que vêm fazer essas jovens?

Vêm descobrir, saber coisas

de Decroly, Claparède,

novidades pedagógicas,

segredos de arte e de técnica

revelados por Helène

Antipoff, Madame Artus,

Mademoiselle Milde, mais quem?

Ou vêm para perturbar

se possível mais ainda

a precária paz de espírito

dos estudantes vadios

(eu, um deles)

que só querem declinar

os tempos irregulares

de namorar e de amar?

Ai, o mal que faz a Minas,

a nós, pelo menos, frágeis,

irresponsáveis, dementes

cultivadores da aérea

flor feminina fechada

em pétalas de reticência,

a Escola novidadeira,

dita de Aperfeiçoamento!

A gente não dava conta

de tanto impulso maluco

doridamente frustrado

ante a pétrea rigidez

dos domésticos presídios

onde vivem clausuradas

as meninas de Belô,

e irrompe essa multitude

de boinas, bocas, batons

escarlates, desafiando

a nossa corda sensível.

Que faz Mário Casassanta,

autoridade do ensino,

que não devolve essas moças

a seus lugares de origem?

Chamo Seu Edgarzinho,

responsável pela Escola.

Que ponha reparo — peço-lhe —

nas crianças do interior

que ficaram sem suas mestras.

Convém restituí-las logo

à tarefa habitual.

Ele responde: “São ordens

do Doutor Francisco Campos,

nosso ilustre Secretário

de Educação e Cultura.

Carece elevar o nível

do ensino por toda parte.

Vá-se embora, não insista

em perturbar nossos planos

racionais”.

Vou-me embora. Já na esquina

a boina azul me aparece

sob o azul universal

que faz de Belô um céu

pousado em pelúcia verde.

Sua dona, deslizante

entre formas costumeiras,

é diferente de tudo

e não olha para mim

deslumbrado, derrotado,

que vou bobeando assim.

Não há professora feia?

Pode ser que haja. A vista,

até onde o sonho alcança,

cinge a todas de beleza,

e a beleza, disse alguém,

é mortal como punhal.

 

 

MULHER ELEITORA

 

Mietta Santiago

loura poeta bacharel

conquista, por sentença de juiz,

direito de votar e ser votada

para vereador, deputado, senador

e até Presidente da República.

Mulher votando?

Mulher, quem sabe, Chefe da Nação?

O escândalo abafa a Mantiqueira,

faz tremerem os trilhos da Central

e acende no Bairro dos Funcionários,

melhor: na cidade inteira funcionária,

a suspeita de que Minas endoidece,

já endoideceu: o mundo acaba.

 

Ivone Guimarães, em Pitangui,

alcança igual triunfo. Salve, juízes

de Minas, impertérritos!

Amigo sou de Ivone e de Mietta.

Já vejo as duas, legislativamente,

executivamente,

a sorte das mulheres resgatando.

As amadas-escravas se libertam

do jugo imemorial,

perdoam, confraternizam, viram gente

igual a nós, no mundo-irmão.

Façanha de duas mineirinhas.

Antônio Carlos, do Palácio do Governo,

bate palmas e diz: “Perfeitamente”.

 

Mas o Major Cançado, inconformado,

recorre da sentença.

Onde já se viu mulher votar?

Mulher fumar,

mulher andar sozinha,

mulher agir, pensar por conta própria,

são artes do Demônio, minha gente.

Major, ó Seu Major,

Minas recuperada te agradece.

 

 

CARNAVAL E MOÇAS

 

Minas Gerais está mudando?

As moças vão para o corso fantasiadas de Malandrinhas.

Não cantam “A malandragem eu não posso deixar”

nem “Eu quero é nota”,

mas do alto dos carros de capota arriada,

sorrindo, atirando serpentinas nos outros carros

entoam desenvoltas

“Levanta o pé,

esconde a mão,

quero saber se tu gostas de mim

ou não.”

 

Os pais deixaram.

Aí vem o Bloco Papai Deixou:

as Tamm de Lima, as Franzen de Lima,

as Tamm Bias Fortes, as Tamm Loreto,

irmãs, primas, cunhadas, a família mineira

descobrindo e revelando uma alegria carioca,

a alegria do carnaval.

 

Moulin Rouge? Assim também não. Mas pode ser Moulin Bleu

com Maria Rosa Pena, Célia de Carvalho,

Iolanda Vieira, Iolanda Bandeira,

outras que vão desfilando, vão cantando

ou se não cantam, cantam os seus braços.

 

Cuidado! capitalistas de Belo Horizonte,

a Mão Negra está chegando e ameaçando.

Maria Geralda Sales, Irene e Pequetita Giffoni

fazem tremer o mineiro que tem sempre

um dinheirinho guardado nas dobras do silêncio

e um pecado, talvez, de todos ignorado.

 

Felizmente nos salvam os Três

ou as Três Mosqueteiras, galhardas e galantes.

Lúcia Machado é Porthos,

Maria Helena Caldeira é Athos,

e Aramis, Maria Helena Pena.

Cadê o D’Artagnan? Elas respondem:

“Foi ferido no último duelo,

mas nós três damos conta do recado.”

 

Neste bloco maior vejo as Boêmias,

Ilka e Luisinha Andrada, Lurdes Rocha,

Hilda Borges da Costa, Heloísa Sales,

e Tinice e Clarita e Cidinha e quem mais.

Nomeá-las todas não posso: são dois carros

e é preciso olhar, passando na Avenida,

as Sevilhanas, as Aviadoras,

os Fantasmas da ópera, as Caçadoras de Corações,

as Senhoritas Barba-Azul, copiadas de Bebé Daniels,

as Funcionárias (da Secretaria das Finanças),

e na calçada os Netos de Gambrinus

fantasiados de Barril de Chope.

 

Meu Deus, de cada rua

um bloco irrompe, e é tudo animação.

Bailarinas do Xeque, sem o Xeque,

nem eu queria vê-lo: elas sozinhas

cercam de Oriente minha sertanice.

De cada município agora sinto

afluir foliões em sarabanda.

Minas perdeu o sério. Minas pula,

revoluteia, grita, esquece a história

comedida, o severo “vou pensar”.

Minas não pensa mais, Minas se agita

ao som do jazz, ao som do bumbo, zum-zum-zum.

 

Vejo tudo isto ou estou sonhando

à mesa do Trianon, junto de Emílio,

poeta amigo, e Almeida,

sorvendo uma frappée, lenço molhado

de Rodo, pasárgada dos tímidos?

Ao clube não irei, nem aspirante

de sócio me tornei. Na minha face

gravado foi por lei hereditária:

“Este não dança.” Sei apenas ver,

e o que vejo na Rua da Bahia

é chuva chuva chuva sem parar,

é chuva e guarda-chuva, luva-dilúvio

a envolver os dedos da cidade.

Na cara dos garçons, nas fustigadas

árvores, no desolado cão fuginte,

na deserta calçada noturnal,

esta leitura faço, da sentença:

“Por aqui, a Quaresma

no sábado de carnaval é que começa.”

 

 

DIFICULDADES DO NAMORO

 

Por força da lei mineira,

se te levar ao cinema

levo também tua irmã;

teu irmãozinho, tua mãe.

Porém a mesada é curta

e se eu levar ao cinema

a tua família inteira

como passarei o mês

depois dessa brincadeira?

Prefiro dizer que a fita

na opinião da Cena Muda

não vale dois caracóis.

(Esse Wallace Reid, coitado,

anda muito decadente.)

Outro programa não tenho

nem poderia outro haver

por força da lei mineira

durante as horas noturnas.

Proponho então que fiquemos

nesta sala de jantar

até dez horas em ponto,

(hora de a luz apagar

e todos se recolherem

a seus quartos e orações)

lendo, sentindo, libando

o literário licor

dos sonetos de Camões.

Eis no que dá namorar

o estudante sem meios

nesta década de 20

a doce, guardada filha

de uma dona de pensão.

 

 

PRAÇA DA LIBERDADE SEM AMOR

 

I

 

A praça dos namorados

é a praça do poder.

Saudades de Ouro Preto lacrimejam

entre penhascos de cimento

e o desejo (frustrado) de pegar na tua mão.

O guarda viu?

E se o bonde passar, com o pai da moça,

no flagrante do gesto?

Sopra na praça um vento de telégrafo.

No cerne do palácio, o homem invisível

espalha coletores

juízes

delegados militares

sobre as serranias mais enevoadas.

Chegam, chapéu preto — terno preto, os coronéis

para a súplica e a ronha de pigarro.

Não olham o verde, vão direto.

O lago não reflete

senão a renda de silêncio

que paira sobre a hora embalsamada.

Entram. Sussurram.

Ungidos saem para os municípios.

(Coreto?

A música estilhaça tico-ticos,

mas é só uma ruga, no domingo.)

À noite, todas as noites, impreterível,

a lua amortalha o poder, os canteiros, os guardas

em gelada mansuetude. O amor, sempre iludido,

espera amanhã pegar na tua mão.

 

II

 

Tambores (já contei).

Evém o Rei, na armadura de herói de Flandres.

Carece recebê-lo em francês, com todas as honras,

ameninando a praça do poder.

Para longe os penhascos de mentira,

os itacolumis nostálgicos,

o timbre ouro-pretano amortecido.

A divina simetria explode em rosas,

repuxos a Le Nôtre

sem Le Nôtre.

Passa o Rei,

passa a Rainha,

passa a ilustre comitiva,

as festas belgas passam, e começa

o footing ritmado dos vestidos.

Vitrina movente, vai e volta.

Não lhes toquem, porém, às namoradas

de sapatos brancos, branquejando

na aleia retilínea

sob as vistas de irmãos abengalados.

Será sempre, na praça poderosa

o não poder pegar a tua mão?

Quantos anos à espera neste banco

que se vai corroendo, enquanto a rosa

em desejo e na haste é já ferrugem

e no palácio, outro (invisível) homem

despacha delegados infinitos

para infinitos burgos dominados?

A mão vazia alisa o banco e tua ausência.

 

 

A ILHA

 

Nos quatro bancos de cimento

da ilha do Parque estão postados

com o maior comedimento

quatro casais de namorados.

 

Há nas ilhas sempre o convite

a idílios sem falsos recatos,

mas aqui se traça o limite

que separa intenções e atos.

 

Os casais se entreolham, discretos,

esperando que um deles ouse

libertar instintos inquietos,

acabando com a falsa pose.

 

Ninguém se atreve a dar a senha

das carícias que sonham ser.

Grossa cortina de estamenha

vela o arrepio de viver.

 

Tão leve, o dia! O verde, o esquilo,

céu autorizativo, cúmplice...

Mas vê-se bem que tudo aquilo

é cenário de jogo dúplice.

 

Perde amor mais uma parada

nesta Citera provincial.

Tarde. Fecha-se o Parque. Nada

acontece de bem ou mal.

 

 

VITÓRIA

 

I

 

Como se eu quisesse

abater com o peito uma torre de ferro.

 

Como se eu esperasse

entrar dentro de seus olhos e me sorrir.

 

Como se eu sentisse

por mim o amor que ela não sente

e o fosse ela sentindo, à medida

em que o meu rosto se mostrasse amado.

 

Seis meses nesta batalha

perdida sem começar.

 

II

 

É, este amor não tem jeito.

 

Meu peito bate na laje.

A laje, não respondendo,

acrescenta meu amor.

 

É, não tem jeito esse amor.

Seis meses enfim completos

mereço chegar à boca

sorridente-negativa

que retumbalha em meu peito.

 

Foi naquele corredor.

Naquela tarde. Naquele

minuto sem uma flor

entre painéis burocráticos

de perfeito desamor.

 

Foi concessão de cansaço?

Prêmio de merecimento?

Sei lá o que foi. O amor

inebriou-se no beijo que dei

nela e que me dei

em sua boca gelada.

Valeu nada. Valeu tudo?

 

 

ESTES CREPÚSCULOS

 

Concordo plenamente.

Estes crepúsculos são admiráveis.

Nada no mundo iguala estes crepúsculos.

O sol é um pintor bêbado reformulando o céu

e até as montanhas e as árvores.

Convida a gente a viver em estado de pedraria,

de sonho, incêndio, milagre.

 

Estes crepúsculos sublimes criam outra Belo Horizonte,

não a dos tristes funcionários seriados,

outra Minas, outro Brasil.

Estes crepúsculos...

Mas eu não tomo conhecimento deles.

Estou triste.

Estou sepultado em mina de carvão.

Ela passou de bonde e não me olhou.

 

 

COMPANHEIRO

 

Batista Santiago, menestrel

a serviço do amor já sem balcões

escaláveis em tranças de mulher,

vai lapidando o sonho medieval

de revisor da Imprensa Oficial:

deixar provas de lado e atapetar

de sonetos de rima adamantina

a cama pucelar dessa menina-

-moça que mora em frente da pensão,

resguardada por três anjos ferozes:

o pai severo, o irmão violento e o cão.

 

Não teme Santiago esses perigos

nem quaisquer outros, forte e decidido,

mas a moça-menina sabe acaso

a carga de paixão que esconde um verso

sem direção possível nessa rua

de muros altos, ferros, cadeados?

Evola-se o poema em neutro quarto

de aluguel, e Batista, acostumado

a falar para ouvidos não ouvintes,

vai modulando líricas endechas.

 

Se o coração da jovem não alcança,

restam outras mulheres, e a esperança

de conquistar a que ele nunca viu.

Folhas que o vento leva, suas trovas

assim dispersas, giram pelos ares.

Outra moça, quem sabe? irá colhê-las.

Romântico, notívago, enluarado

peito pisoteado pelo amor,

entretanto cultiva o braço forte.

Quem no bar o provoque sabe disto:

é D’Artagnan, não mais o revisor.

 

 

PARABÉNS

 

Meu amigo Pedro Nava

regressou de Juiz de Fora.

Parabéns a Pedro Nava,

parabéns a Juiz de Fora.

 

 

A CONSCIÊNCIA SUJA

 

I

 

Vadiar, namorar, namorar, vadiar,

escrever sem pensar, sentir sem compreender,

é isso a adolescência? E teu pai mourejando

na fanada fazenda para te sustentar?

 

Toma tento, rapaz. Escolhe qualquer rumo,

vai ser isto ou aquilo, ser: não, disfarçar.

Que tal a profissão, o trabalho, o dinheiro

ganho por teu esforço, ó meu espelho débil?

 

Hesitas. Ziguezagueias. Chope não decide,

Verso, muito menos. Teus amigos já seguem

o caminho direito: leva à Faculdade,

à pompa estadual e talvez federal.

 

Erras, noite a fundo, em rebanho, em revolta,

contra teu próprio errar, sem programa de vida.

Ó vida, vida, vida, assim desperdiçada

a cada esquina de Bahia ou Paraúna.

 

Ela te avisa que vai fugir, está fugindo,

segunda, terça, torta, quarta, parda, quinta,

sápida sexta, seca, sábado — passou!

Domingo é soletrar o vácuo de domingo.

 

Então, sei lá por quê, tu serás farmacêutico.

 

II

 

E você continua a perder tempo

do Bar do Ponto à Escola de Farmácia

sem estudar.

Da Escola de Farmácia à doce Praça

da Liberdade

sem trabalhar.

Da Praça novamente ao Bar do Ponto faladeiro,

do Bar do Ponto — é noite — à casa na Floresta

sem levar a sério o sério desta vida,

e é só dormir e namorar e vadiar.

Seus amigos passam de ano,

você não passa.

Ganham salário nas repartições,

você não ganha nada.

O Anatole France que degustam,

o Verlaine, o Gourmont, outras essências

do clair génie français já decadente,

compram com dinheiro de ordenado,

não de fácil mesada.

Se dormem com a Pingo de Ouro, a Jordelina,

pagam do próprio bolso esse prazer,

não de bolsa paterna.

Você pretende o quê?

Ficar nesse remanso a vida inteira?

O tempo vai passando, Clara Weiss

avisa no cartaz: Addio, giovinezza,

e você não vê, você não sente

a mensagem colada ao seu nariz?

Olhe os outros: formados, clinicando,

soltando réus, vencendo causas gordas,

e você aí, à porta do Giácomo

esperando chegar o trem das 10

com seu poeminha em prosa na revista,

que ninguém lerá nem tal merece.

Quem afinal sustenta sua vida?

 

Bois longínquos, éguas enevoadas

no cinza além da serra, estrume de fazenda,

a colheita de milho, o enramado feijão

e...

Fim.

A raça que já não caça,

ela em ti é caçada.

 

III

 

Noite-montanha. Noite vazia. Noite indecisa.

Confusa noite. Noite à procura, mesmo sem alvo.

 

O trem do Rio trouxe os jornais. Já foram lidos.

Em nenhum deles a obra-prima doura teu nome.

 

Que vais fazer, magro estudante, se não estudas,

nesta avenida de tempo longo, de tédio infuso?

 

Deusas passaram na tarde esquiva, inabordáveis.

Os cabarés estão proibidos aos sem dinheiro.

 

Tua cerveja resta no copo, amargo-morna.

Minas inteira se banha em sono protocolar.

 

Nava deixou, leve no mármore, mais um desenho.

É Wilde? É Príapo? Vem o garçom, apaga o traço.

 

Galinha cega, de João Alphonsus. Que vem fazer,

onze da noite, letra miúda, enquanto Emílio,

 

ao nosso lado, singra tão longe, boia tão nuvem

em seus transmundos de indagativas constelações?

 

Luís Vaz perpassa, em voo grave, no Bar do Ponto:

soneto antigo, em novo timbre, de Abgar Renault.

 

Anatoliano, Milton assesta os olhos míopes.

Sua voz mansa busca alegrar teu desconforto.

 

Vem manquitando Alberto Campos. Sua ironia

esconde o lume do coração. Rápido Alberto,

 

será o primeiro a nos deixar. Sabe da morte

alguém da roda? Sabe da vida? E por acaso

 

queres saber? Em poço raso vais afundar-te

para que os outros fiquem cientes de tua ausência

 

e ao mesmo tempo tu te divirtas a contemplá-los,

ator em férias. Perdão, te ofendo? Martins de Almeida

 

crítico-infante, faz o diagnóstico: Brasil errado.

Brasil, qual nada. O errado é este, sentado à mesa,

 

fraco aprendiz de desespero. Melhor: ingênuo?

Quantas caretas treinas no espelho para esconderes

 

a própria face? Nenhuma serve. O rosto autêntico

é o menos próprio para gravar o natural.

 

Que é natural? Verso? Mudez? Sais do letargo.

Cerram-se as portas, rangido-epílogo. Os outros vão-se,

 

com seus diplomas, brigar com a vida, domar a vida,

ganhar a vida. E teu cursinho físico-químico

 

não te vê nunca de livro aberto, de mão esperta,

laboratória. Não tomas jeito? Como é, rapaz?

 

A noite avança. O último bonde passa chispando

rumo à Floresta. Ou rumo aonde? Existe rumo?

 

Pedestre insone, vais caminhando. E nem reparas

nessa estrelinha, pálida, suja, na água do Arrudas.

 

 

DIA DE FLOR

 

No Dia da Margarida minha lapela de estudante

cronicamente sem dinheiro

foge das senhoritas com cestinhas de flores

que evoluem (sílfides) na Avenida Afonso Pena

pedindo o nosso, o meu conforto pecuniário

para as vítimas da enchente de Arassuaí.

 

Queria tanto que uma delas

(a da Rua Goiás, especialmente)

pusesse a mão no meu casaco

oferecendo ao mesmo tempo

margarida e sorriso,

e eu tirasse do bolso, qual relógio

cigarro ou lenço, maquinal,

um conto de réis, me desculpando:

— Mais daria, se não fosse...

E vem aí o Dia da Violeta.

 

 

FINAL DE HISTÓRIA

 

O quadro de formatura

foi pintado por Borsetti.

Borsetti, falsário exímio,

condenado por malfeitos,

aceita e avia encomendas

de todos os diplomandos

de academias mineiras.

Pintadas por trás de grades,

alegorias libertam-se,

vai Têmis e vai Hipócrates,

vão Mercúrio e saduceu

e vão sentenças latinas

cantando por toda parte

arte e engenho refinados

de montanhesa sapiência.

Meu Deus, formei-me deveras?

Sou eu, de beca alugada,

uma beca só de frente,

para uso fotográfico,

sou eu, ao lado de mestres

Ladeira, Laje, Roberto,

e do ínclito diretor

doutor Washington Pires?

Eu e meus nove colegas

mais essas três coleguinhas,

é tudo verdade? Vou

manipular as poções

que cortam a dor do próximo

e salvam os brasileiros

do canguari e do gálico?

Não posso crer. Interrogo

o medalhão do Amorim:

Companheiro, tu me salvas

do embrulho em que me meti?

Dou-te plenários poderes:

em tuas farmácias Luz

ou Santa Cecília ou Cláudia,

faze tudo que eu devia

fazer e que não farei

por sabida incompetência:

purgas, cápsulas, xaropes,

linimentos e pomadas,

aplica, meu caro, aplica

trezentas mil injeções,

atende, ajuda, consola,

sê enfermeiro, sê médico,

sê padre na hora trevosa

da morte do pobre (a roça

exige de ti bem mais

que o nosso curso te ensina).

Vai, Amorim, sê por mim

o que jurei e não cumpro.

Fico apenas na moldura

do quadro de formatura.

 

 

O SENHOR DIRETOR

 

O fraque do diretor,

a bengala do diretor,

a paixão atleticana do diretor,

a importância amável do diretor

surgem infalíveis às 8 e meia,

indagam protocolarmente:

— Alguma novidade?

Deu destaque ao aniversário do Presidente?

Sai o retrato dele em três colunas

no alto da primeira página?

No centro da página, é claro?

Não precisa noticiar a partida do Deputado Leleco.

Não está em boas graças no Palácio.

Bem, até amanhã.

Veja lá, Drummond, eu confio em você.

 

 

REDATOR DE PLANTÃO

 

Opereta no caminho do jornal.

Se vou à Clara Weiss não faço artigo

de fundo, bem ventrudo, como quer

o recado do Palácio do Governo.

Se faço o artigo da gazeta oficial,

perderei Clara Weiss e as mulheronas

que em seu redor alçam pernas cantatórias.

 

Tudo na mesma rua: teatro, redação,

dever, emprego, música ligeira.

Nem todo dia Strauss espalha em Minas

os eflúvios da valsa vienense,

e eu aqui, nesta mesa redatora,

a proclamar que sem Minas altiva

a República não acha salvação.

 

É sempre assim: perdi Leopoldo Fróis

por causa da campanha eleitoral.

Chaby não ouvi nem vi; Guiomar Novais

lembrança não deixou em meus ouvidos

de Chopin e Mompou, pois me tocou

fazer na mesma hora o necrológio

do senador Pimpim, glória mineira.

De madrugada, findo o meu trabalho,

eis dorme Clara Weiss no Grande Hotel,

dorme Franz Lehar na lembrança musical

de muitos, dormem lustres, mármores, sanefas

do infrequentável Teatro Municipal,

e eu transporto para casa esse remorso

de ser escriba, inconvicto escriba oficial.

 

 

VERBO E VERBA

 

É redação?

É academia, Parnaso?

Afonso Arinos cintilante,

Emílio Moura evanescente,

João Alphonsus calado-irônico,

Cyro dos Anjos expectante,

Horácio Guimarães, gravura a talho-doce

de uma remota, simbolista

Belo Horizonte.

Dois diários num só?

Boletim do PRM,

clarim do modernismo,

usina de poemas sem metro,

porta-voz mineiro de Mário de Andrade,

sentinela conservadora das Alterosas

políticas,

quem entende este asilo

de doidos mansos burocratas?

 

Alguém o entende: Eduardinho, o Bola,

gerente sem fundos

(como custa a Secretaria das Finanças

a soltar a magra verba oficial!),

cercado de vales por todos os lados,

sai à rua campeando

anúncios do depurativo Salsa, Caroba e Manacá,

do Cacturgenol para urinas escuras,

e faz intercalar o comunicado do Partido

com o salutar aviso

de que o Pó Pelotense

é o único a evitar assaduras debaixo dos seios.

 

 

O PRÍNCIPE DOS POETAS

 

Fazer.

É preciso fazer alguma coisa

que pelo menos risque um círculo

efêmero na água morta da cidade.

Vamos eleger o Príncipe dos Poetas Mineiros?

Na redação, em mesas próximas,

João Alphonsus emite

seu sorriso enigmático,

Emílio, recém-chegado de galáxia,

aprova com doçura.

 

Mãos à obra!

O eleitorado é quem quiser

ser eleitor, principalmente nós,

inelegíveis de nascença.

Pingam votos esparsos. Desconfiança.

Isso é brincadeira

de irresponsáveis futuristas?

É sério, gente. Votos

para Belmiro Braga, o velho Augusto

de Lima e Noraldino e Mário Matos.

Poeta nenhum deixa de ter o seu votinho,

menos nós, questão de ética ou de tática?

Abgar, nosso amigo, cresce em números,

mas se for escolhido vão dizer

que a eleição, como as outras, nada vale.

Em apuros estamos. Afinal,

qual será, dos poetas, o mais nobre,

aquele que a Bilac se compare?

Um não serve por isso ou por aquilo.

Outro passou de moda. Outro é feroz

contemptor de experiências modernistas.

E um Príncipe hostil não apetece

à nossa moderada veia lúdica.

O estalo nos salva: Honório Armond

em sua Barbacena roseiral

é altivo, discreto, bom poeta,

dará ao fraco título grandeza.

Votação carregada

elege-o com destaque. Muito bem.

Mas Honório, mineiro cem por cento,

sem recusar redondamente a láurea,

responde: “Eu, Príncipe? De quê?

Só se for, por distinção latina,

Princeps Promptorum”... E continua

sereno, silencioso,

em seu rosa-lar de Barbacena.

 

 

A LÍNGUA E O FATO

 

Precisamos dar um nome

português a este desporto.

De resto, o nome genérico

nem tem cara de vernáculo.

Lincoln, de latim provido,

hesita entre bulopédio

e globipédio. Afinal

define-se por ludopédio

no jornal oficial.

Aprovado o lançamento

por força de lei mineira

não assinada mas válida,

eis que súbito estraleja

barulho estranho lá fora.

A redação se interroga.

Que foi? Que não foi? Acode

o servente noticioso

e conta que espatifou-se

a vidraça da fachada

por bola de futebol.