INVENTÁRIO

 

Que fiz de meu dia?

Tanta correria.

 

E que fiz da noite?

O lanho do açoite.

 

Da manhã, que fiz?

Uma cicatriz.

 

Bolas, desta vida

que lembrança lida,

 

cantada, sonhada,

ficará do nada

 

que fui eu, cordato?

Mancha no retrato.

 

 

HOMEM TIRANDO A ROUPA

 

À sua casa cinzenta

chega, coberto de pó.

O orgulho não se lamenta,

mas está só.

 

Deixou lá fora o que havia

capaz de inspirar-lhe dó.

Nem sente melancolia.

Só que está só.

 

Num rito dessaborido,

eis que tira o paletó.

Curioso (não tem sentido):

fica mais só.

 

Despe a camisa e se inclina

sobre o leito rococó.

A sensação é mais fina:

ainda mais só.

 

Despojado como um pária,

na nudez seca de Jó,

liberto da indumentária,

como está só!

 

Há na roupa uma presença

um elo qualquer, um nó,

que ao sozinho de nascença

faz menos só.

 

 

A DANÇA E A ALMA

 

A dança? Não é movimento,

súbito gesto musical.

É concentração, num momento,

da humana graça natural.

 

No solo não, no éter pairamos,

nele amaríamos ficar.

A dança — não vento nos ramos:

seiva, força, perene estar.

 

Um estar entre céu e chão,

novo domínio conquistado,

onde busque nossa paixão

libertar-se por todo lado...

 

Onde a alma possa descrever

suas mais divinas parábolas

sem fugir à forma do ser,

por sobre o mistério das fábulas.

 

 

OBRIGADO

 

Aos que me dão lugar no bonde

e que conheço não sei donde,

 

aos que me dizem terno adeus,

sem que lhes saiba os nomes seus,

 

aos que me chamam deputado

quando nem mesmo sou jurado,

 

aos que, de bons, se babam: mestre!

inda se escrevo o que não preste,

 

aos que me julgam primo-irmão

do rei da fava ou do Hindustão,

 

aos que me pensam milionário

se pego aumento de salário

 

— e aos que me negam cumprimento

sem o mais mínimo argumento,

 

aos que não sabem que eu existo,

até mesmo quando os assisto,

 

aos que me trancam sua cara

de carinho alérgica e avara,

 

aos que me tacham de ultrabeócia

a pretensão de vir da Escócia,

 

aos que vomitam (sic) meus poemas,

nos mais simples vendo problemas,

 

aos que, sabendo-me mais pobre,

me negariam pano ou cobre

 

— eu agradeço humildemente

gesto assim vário e divergente,

 

graças ao qual, em dois minutos,

tal como o fumo dos charutos,

 

já subo aos céus, já volvo ao chão,

pois tudo e nada nada são.

 

 

INVOCAÇÃO COM TERNURA

 

Poeta humílimo, em ritmo pobre,

todavia me sinto rico

se em Granada diviso a nobre

lembrança de ti, Federico.

 

Toda essa árabe, agreste pena

de gitana melancolia,

como, à brisa, se faz serena,

vindo-te nos versos, García!

 

De um vinho andaluz corre a flama

por sobre a taça que se emborca.

Se mil mortes sofre quem ama,

é de amor que inda vives, Lorca.

 

E já baixam teus assassinos

a uma terra qualquer e vã,

enquanto, entre palmas e sinos,

tu inauguras a manhã.

 

 

CANÇÃO IMOBILIÁRIA

 

Meu edifício Itabira,

que eu vejo à Avenida Copa-

cabana, e a saudade mira

de uma colina lontana;

 

nem és meu nem és daquela

vaga cidade no mapa-

-múndi, onde a pinta amarela

na cor do tempo se funde.

 

Também não és de teus donos

quaisquer, que por entre calmos

sonos de posse te fruem

tal o morto aos sete palmos.

 

Meu edifício Itabira,

todo em abstrato concreto,

vais cumprindo teu ofício

com seres o meu retrato.

 

Sou, em verdade, teu neto,

pelo tamanho. Oi, que estranho

avô me sais, desafeto

de uma chinesa crueldade.

 

Relembras o mundo morto,

vives em negro minério,

horto de mágoas, ourives

do ferro em que me desmembras.

 

Ai, Itabira, refrão

do não, que na alma se estira.

Ouço, edifício, em teu vão

de sombra esquiva, o trovão

 

que em mim são passos na escada

do terraço, rumo ao nada.

 

 

MAIO NO LEBLON

 

Entre os desmaios de maio,

azula o céu carioca

e o sol recolhe seu raio.

 

Macio maio! Bem-vindo

aos que, de pupila doente,

refugiavam-se, no poente,

dos revérberos da praia.

 

Um frio azul se derrama

e colhe de rama em rama

toda cantiga de pássaro.

É doce, ficar na cama.

 

O níquel das bicicletas

— ante a franja turmalina —

se desenrola nas retas

sem fustigar as retinas.

 

Luz de seda! Nos vestidos

anda um prenúncio de lãs

e de agasalhos transidos.

Inverno, prepara as cãs.

 

Vou lagartear-me na areia

de onde emigram, neste maio,

as gentes de formas feias,

e descobrir nela o côncavo

dos pés de Lúcia Sampaio.

 

Mês de colóquio e surpresa,

em que, sereno, o olhar gaio

se infiltra na natureza

e se perde, achando-se... Amai-o.

 

 

SONETO DA BUQUINAGEM

 

Buquinemos, amiga, neste sebo.

A vela, ao se apagar, é sebo apenas,

e quero a meia-luz. Amo as serenas

angras do mar dos livros, onde bebo

 

 

— álcool mais absoluto — alheias penas

consoladas na estrofe, e calmo, e gebo,

tiro da baixa estante sete avenas

em sete obras que pago e que recebo.

 

Amiga, buquinemos, pois é morta

Inês de antigos sonhos, e conforta

no tempo de papel tramar de novo

 

nosso papel, velino, e nosso povo

é Lucrécio e Villon, velhos autores,

aos novos poetas muito superiores.

 

 

LUAR EM QUALQUER CIDADE

 

O luar deixava as coisas mais brancas.

As estrelas desapareciam.

As casas, as moitas: impregnadas

não de sereno, de luar.

Caminhávamos interminavelmente, sem ofego,

sem pressa.

Caminhávamos através da lua.

E éramos dois seres habituais e dois fantasmas

ao mesmo tempo.

Lá longe era o mundo

àquela hora coberto de sol.

Mas haveria sol?

Boiávamos em luar. O céu,

uma difusa claridade. A terra,

menos que o reflexo dessa claridade.

Tão claros! Tão calmos!

Estávamos mortos e não sabíamos,

sepultados, andando, nas criptas do luar.

 

 

DESPERDÍCIO

 

Solidão, não te mereço,

pois que te consumo em vão.

Sabendo-te embora o preço,

calco teu ouro no chão.