OS ROMANCES IMPOSSÍVEIS

 

No jardim da velha praça,

o grupo, disposto em leque,

lembrava, na sua graça,

as moçoilas de Balbeque.

 

Raptar alguma seria

meu anelo mais veemente,

não fosse, na tarde fria,

a voz do siso, presente.

 

A reza, o cinema... A noite

já se alcatifa de luzes,

aqui, ali, sob o açoite

do vento; porém as cruzes,

 

no topo do cemitério,

que antiga fazem a rua

onde, talvez, o adultério

cautamente se insinua...

 

Um halo, um vulto, um arcano

bate à soleira das casas,

leve. Que desejo humano

circula, vibrando as asas?

 

Não há resposta. O silêncio

baixa, quadrado, completo.

E o tédio, que chega, vence o

anseio de amor discreto.

 

Assim se passam os dias,

os anos, a eternidade.

E as moças virando tias

nessa pequena cidade.

 

 

CASO PLUVIOSO

 

A chuva me irritava. Até que um dia

descobri que maria é que chovia.

 

A chuva era maria. E cada pingo

de maria ensopava o meu domingo.

 

E meus ossos molhando, me deixava

como terra que a chuva lavra e lava.

 

Eu era todo barro, sem verdura...

maria, chuvosíssima criatura!

 

Ela chovia em mim, em cada gesto,

pensamento, desejo, sono, e o resto.

 

Era chuva fininha e chuva grossa,

matinal e noturna, ativa... Nossa!

 

Não me chovas, maria, mais que o justo

chuvisco de um momento, apenas susto.

 

Não me inundes de teu líquido plasma,

não sejas tão aquático fantasma!

 

Eu lhe dizia — em vão — pois que maria

quanto mais eu rogava, mais chovia.

 

E chuveirando atroz em meu caminho,

o deixava banhado em triste vinho,

 

que não aquece, pois água de chuva

mosto é de cinza, não de boa uva.

 

Chuvadeira maria, chuvadonha,

chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!

 

Eu lhe gritava: Para! e ela, chovendo,

poços d’água gelada ia tecendo.

 

Choveu tanto maria em minha casa

que a correnteza forte criou asa

 

e um rio se formou, ou mar, não sei,

sei apenas que nele me afundei.

 

E quanto mais as ondas me levavam,

as fontes de maria mais chuvavam,

 

de sorte que com pouco, e sem recurso,

as coisas se lançaram no seu curso,

 

e era o mundo molhado e sovertido

sob aquele sinistro e atro chuvido.

 

Os seres mais estranhos se juntando

na mesma aquosa pasta iam clamando

 

contra essa chuva, estúpida e mortal

catarata (jamais houve outra igual).

 

Anti-petendam cânticos se ouviram.

Que nada! As cordas d’água mais deliram,

 

e maria, torneira desatada,

mais se dilata em sua chuvarada.

 

Os navios soçobram. Continentes

já submergem com todos os viventes,

 

e maria chovendo. Eis que a essa altura,

delida e fluida a humana enfibratura,

 

e a terra não sofrendo tal chuvência,

comoveu-se a Divina Providência,

 

e Deus, piedoso e enérgico, bradou,

Não chove mais, maria! — e ela parou.

 

 

ASSOMBRAÇÃO

 

Era um velho fantasma.

Claudicava da perna

e padecia de asma.

 

Baixando de seus mundos

intersidéreos, vagos,

à procura de afagos,

 

encontra a noite quente,

noite aberta, carioca,

e uma porção de gente

 

amando-se nos bancos,

nas praias, nos barrancos

e sob as amendoeiras.

 

Tossia o malfadado,

acendia um foguinho,

mas nem era manjado.

 

Soluça que soluça,

e carpe de mansinho,

cavalga a mula ruça

 

e a mula sem cabeça,

e pede, implora, ameaça

em vão, na enorme praça.

 

Há tanto amor no Rio,

do Flamengo à Tijuca...

E o pobre, na sinuca.

 

Todos se beijam, todos

se veem tão colados

que estão de ambos os lados.

 

Onde um fantasma não

tem folga de sentar,

quem pode mais amar?

 

Quem sabe do avejão

vindo de longe averno

para esta sombra terna?

 

O fantasma sem chance

não dizia bai-bai,

peídemonanfance

 

nem outras falas doces,

não tinha cadilaque,

o menor badulaque

 

desses de encher o olho,

Era um frágil fantasma,

o seu tanto zarolho.

 

E rodou na cidade

a noite inteira, e a alva

eis que lhe doura a calva

 

a um canto de jardim.

Aqui ninguém se salva.

Orai por ele. Fim.

 

 

TEMPO E OLFATO

 

Que me quer este perfume?

Nem sequer lhe sei o nome.

 

Sei que me invade a narina

como incenso de novena.

 

Que me passeia no corpo

como os dedos tangem harpa.

 

E me devolve ao pretérito

e a um ser de lava, quimérico,

 

ser que todo se esvaía

pela porta dos sentidos,

 

e do mundo, em que saltava,

qual dum espelho lascivo,

 

retirava a própria imagem

na pura graça da origem...

 

Cheiro de boca? de casa?

de maresia? de rosa?

 

Todo o universo: hipocampo

no mar celeste do Tempo.

 

 

COLÔNIA

 

Vem ver as antiqualhas

deste país das minas.

As nuvens são mortalhas

pousando entre boninas.

 

Pedras de sangue e choro

maculam a vertente.

Em que invisível foro

rege um juiz ausente?

 

Chove medo nas ruas.

 

 

MARALTO

 

Que coisa é maralto?

O mar que de assalto

cobre toda a vista?

Galo cuja crista

salta em sobressalto

a quem lhe resista?

O mar — que é maralto?

 

Acaso torre alta

nuvem tronco espanto

de fluido agapanto,

de flores em malta

doida, a cada canto

do mar que se exalta?

Marulho ou maralto?

 

Mar seco tão alto,

de um íris cambiante

que em azul cobalto

se volve num salto

e no peito amante

o duro basalto,

 

a pena constante

de amar vai roendo,

e a sedenta falta

— voz baixa, mar alto —

em sal convertendo?

 

Que outra onda mais alta

maralto metuendo,

que um amor sofrendo?

 

Maralto, maraltas!

Quanto mais esmaltas

de espuma esse rosto

branco descomposto

mais se espremem altas

uvas de teu mosto,

mais vivo é seu gosto.

 

Maralto fremente

gêiser sob asfalto

puro jato ardente

pranto que se sente

vagando em contralto

veementemente,

alto mar maralto!

 

Na lívida escama

no agudo ressalto

de teu cosmorama,

quem sabe, maralto,

o que, de tão alto,

tão alto, anda falto

no amor de quem ama?

 

 

ALIMENTO

 

No banquete das musas, meu talher

foi parco, minha fome foi estrita.

Era a ração de um pássaro, colher

quase vazia... Entanto, outra, infinita

mesa surgia, branca, e nela tudo

sorrindo se propunha ao paladar.

Ceia de solidão e vento... Mudo,

eu me fartava, fazendeiro do ar.

 

 

QUEIXA DE MAIO

 

O claro mês de porcelana,

de que o poeta, se fez lacaio,

lá vai indo, com chuva e lama...

Isso é maio?

 

Quando aportou, quanta promessa

trazia sob o seu balaio!

Um florir de céu... nada resta.

Isso é maio?

 

Frio, sim, sabia ser frio

discreto, como de soslaio.

Não esse gelo cinza e triste.

Isso é maio?

 

Seios e braços menos vistos

a um sol em tépido desmaio.

Hoje os corpos nem mais existem.

Isso é maio?

 

Certas manhãs, vazando em luz,

embriagavam-nos com seu raio.

O banho de ouro já não se usa.

Isso é maio?

 

Na praia tinha menos gente,

mas sorrindo a um ventinho gaio.

Vejo um mar cimério, e dolência.

Isso é maio?

 

Prometeu Ingrid Bergman, hem?

Dá-nos pão velho... Papagaio!

Bonde caro pra quem não tem...

Isso é maio?

 

Era poema. Vira entrevista

de mau humor, sem para-raio.

Só cultivamos vinhas da ira...

Isso é maio?

 

Calou-se a música das árvores

na Praça Paris. Se entro ou saio,

o tedium pluviae cria lêmures.

Isso é maio?

 

Ó namorados de galochas!

O tempo, em seu cavalo baio,

varre o azul e o amor, a galope...

Não é maio!

 

 

LIRA ROMANTIQUINHA

 

Por que me trancas

o rosto e o riso

e assim me arrancas

do paraíso?

 

Por que não queres,

deixando o alarme

(ai, Deus: mulheres!)

acarinhar-me?

 

Por que cultivas

as sem perfume

e agressivas

flores do ciúme?

 

Acaso ignoras

que te amo tanto,

todas as horas,

já não sei quanto?

 

Visto que em suma

é todo teu,

de mais nenhuma,

o peito meu?

 

Anjo sem fé,

nas minhas juras,

por que é que é

que me angusturas?

 

Minh’alma chove

frio, tristinho.

Não te comove

este versinho?

 

 

APELO A MEUS DESSEMELHANTES EM FAVOR DA PAZ

 

Ah, não me tragam originais

para ler, para corrigir, para louvar

sobretudo, para louvar.

Não sou leitor do mundo nem espelho

de figuras que amam refletir-se

no outro

à falta de retrato interior.

Sou o Velho Cansado

que adora o seu cansaço e não o quer

submisso ao vão comércio da palavra.

Poupem-me, por favor ou por desprezo,

se não querem poupar-me por amor.

Não leio mais, não posso, que este tempo

a mim distribuído

cai do ramo e azuleja o chão varrido,

chão tão limpo de ambição

que minha só leitura é ler o chão.

Nem sequer li os textos das pirâmides

os textos dos sarcófagos,

estou atrasadíssimo nos gregos,

não conheço os Anais de Assurbanipal,

como é que vou —

mancebos,

senhoritas

— chegar à poesia de vanguarda

e às glórias do 2000, que telefonam?

Passam gênios talvez entre as acácias,

sinto estátuas futuras se moldando

sem precisão de mim

que quando jovem (fui-o a.C., believe or not)

nunca pulei muro de jardim

para exigir do morador tranquilo

a canonização do meu estilo.

Sirvam-se de exonerar este macróbio

do penoso exercício literário.

Não exijam prefácios e posfácios

ao ancião que mais fala quando cala.

Brotos de coxa fiava e verso manco,

poetas de barba-colar e velutínea

calça puída, verde: tá!

Outoniços, crepusculinos, matronas, contumazes:

tá!

O senhor saiu. Hora que volta? Nunca.

Nunca de corvo, nunca de São Nunca.

Saiu pra não voltar.

Tudo esqueceu: responder

cartas; sorrir

cumplicemente; agradecer

dedicatórias; retribuir

boas-festas; ir ao coquetel e à noite

de autógrafos-com-pastorinhas.

Ficou assim: o cacto de Manuel

é uma suavidade perto dele.

Respeitem a fera. Triste, sem presas, é fera.

Na jaula do mundo passeia a pata aplastante,

cuidado com ela!

Vocês, garotos de colégio, não perguntem ao poeta

quando nasceu.

Ele não nasceu.

Não vai nascer mais.

Desistiu de nascer quando viu que o esperavam garotos de colégio de lápis em punho

com professores na retaguarda comandando: Cacem o urso-polar,

tragam-no vivo para fazer uma conferência.

Repórteres de vespertinos, não tentem entrevistá-lo.

Não lhe, não me peçam opinião

que é impublicável qualquer que seja o fato do dia

e contraditória e louca antes de formulada.

Fotógrafos: não adianta

pedir pose junto ao oratório de Cocais

nem folheando o álbum de Portinari

nem tomando banho de chuveiro.

 

Sou contra Niepce, Daguerre, contra principalmente minha imagem.

Não quero oferecer minha cara como verônica nas revistas.

Quero a paz das estepes

a paz dos descampados

a paz do Pico de Itabira quando havia Pico de Itabira

a paz de cima das Agulhas Negras

a paz de muito abaixo da mina mais funda e esboroada de Morro Velho

a paz

da

paz

 

 

LETRA AMARGA PARA MODINHA

 

Gosto de ti com desgosto.

Quando contemplo teu rosto

nele vejo um rosto outro

com o qual maduras teu gosto.

Por um mandamento imposto

sofro de ti em meu corpo

quando contemplo teu rosto.

 

Quando contemplo teu rosto

este amor a contragosto

fermenta de ácido mosto

e no meu rosto de couro,

no meu cavername rouco

um dó de mim, um a-gosto

me punge, queima de agosto.

 

Se te contemplo, em teu rosto

não me contemplo a meu gosto

pois teu semblante está posto

numa linha de sol-posto

em que por dentro me morro.

Morro de ver em teu rosto

o fel de teu antirrosto.

 

Quando contemplo teu rosto

meu gosto é puro desgosto.

 

 

VARIAÇÃO

 

Gosto de ti com desgosto

quando contemplo teu rosto.

 

Quando teu rosto contemplo

vejo nele o mau exemplo

da beleza sem piedade.

 

Traída está em teu rosto

sob o carinho suposto

a secreta falsidade.

 

Te gosto contra meu gosto

e ao contemplar o teu rosto

o encanto é puro desgosto.

 

Quando teu rosto contemplo

é como encontrar no templo

o Demônio entronizado.

 

É triste ver em teu rosto

feito fogueira de agosto

essa glória do pecado.

 

Fecho os olhos de desgosto

mas vejo sempre teu rosto.