AOS SANTOS DE JUNHO

 

Meu santo Antônio de Lisboa,

repara em quanto coração aflito,

a padecer milhões por cousa à toa.

Porque não baixas, please, do infinito?

 

O mundo é o mesmo após aquela tarde

em que, à falta de gente, por encanto,

falaste aos peixes, e eles, sem alarde,

meditavam em roda de teu manto.

 

Não sabemos, Antônio, o que queremos,

nem sabemos querer, porém confiamos

de teu amor nos cândidos extremos

e nessa fiúza todos continuamos.

 

Se não sorris a nosso petitório,

acudindo ao que houver de mais urgente,

se, em vez do café, levas o tório,

como pode o pessoal ficar contente?

 

Alferes, capitão de soldo largo,

tua civilidade nos proteja.

Não nos deixes papar arroz amargo,

e os brotos (de grinalda?) leva à igreja.

 

Olha as coisas perdidas, Antoninho:

vergonha, isqueiro, tempo... Se encontrares

um coração jogado no caminho,

traze-o de volta ao dono, pelos ares.

 

E tu, senhor São João, que vens chegando

ao estrondo de bombas (de hidrogênio?),

salve! mas, por favor, dize: até quando

o jeito é ensurdecer: por um milênio?

 

Sei que não és culpado, meu querido.

Amas o fogo, a sorte, a clara de ovo,

a flor de samambaia e seu sentido

mágico, à meia-noite, para o povo.

 

E o manjerico verde, casamento

com rapaz; ou senão, murcho, com velho.

Responde, João: em julho vem aumento?

(Bem sei que o assunto foge ao Evangelho.)

 

Mas dançaremos todos por lembrar-te,

e pulando, sem pânico, a fogueira,

pobres clientes do câncer e do enfarte,

ao clarão de outra chama verdadeira

 

que arde em nós, não se extingue e nos consola,

ó João Batista degolado e suave,

bendiremos a graça de teu nome,

e na funda bacia a alma se lave.

 

Não importa, se ardemos: esta brasa,

como o petróleo, é nossa. Mas, bondoso

e friorento São João: ao cego, em Gaza,

dá-lhe em sonho um balcão, para seu gozo.

 

E tu, ó Pedro astuto e rude, rocha

no caminho do incréu, baixa e descansa,

contando-nos teus contos de carocha,

os mesmos em Caeté como na França.

 

Tens as chaves do céu ou do Tesouro?

Aqui a turma — é pena — se interessa

bem mais pela segunda — tanto ouro

nas almas se perdendo... A vida é essa.

 

E o mais que se dissipa em schiaparellis,

balenciagas, espécies superfinas

(que não sei como por os erres e eles),

em peles balzaquianas e meninas.

 

Pedro-piloto-barca: a teu prestígio,

da vida este canhestro e mau aluno,

evitando de longe o curso estígio,

ganha a sabedoria de Unamuno.

 

No alto não me recebes, mas à porta,

os coros inefáveis surpreendendo,

cultivarei as minhas flores de horta:

a saudade do céu é um dividendo.

 

Antônio, Pedro, João: aos três oferto

esta saudade em nós, sem testemunho:

pois se o homem rasteja em rumo incerto,

balões sobem ao céu, no mês de junho.

 

 

CONVERSA INFORMAL COM O MENINO

 

Menino, peço-te a graça

de não fazer mais poema

de Natal.

Uns dois ou três, inda passa...

Industrializar o tema,

eis o mal.

 

Como posso, pergunto o ano

inteiro, viver sem Cristo

(por sinal,

na santa paz do gusano)

e agora embalar-te: isto

é Natal?

 

Os outros fazem? Paciência,

todos precisam de vale...

Afinal,

em sua reta inocência,

diz-me o burro que me cale,

natural.

 

E o boi me segreda: Acaso

careço de alexandrino

ou jornal

para celebrar o caso

humano quanto divino,

hem, jogral?

 

Perdoa, Infante, a vaidade,

a fraqueza, o mau costume

tão geral:

fazer da Natividade

um pretexto, não um lume

celestial.

 

Por isso andou bem o velho

do Cosme Velho, indagando,

marginal,

no seu soneto-cimélio,

o que mudou, como, quando,

no Natal.

 

Mudei, piorei? Reconheço

que não penetro o mistério

sem igual.

Não sei, Natal, o teu preço,

e te contemplo, cimério,

a-pascal.

 

Vou de novo para a escola,

vou, pequenino, anular-me,

grão de sal

que se adoça ao som da viola,

a ver se desperto um carme

bem natal.

 

Não será canto rimado,

verso concretista, branco

ou labial;

antes mudo, leve, agrado

de vento em flor no barranco,

diagonal.

 

Não venho à tua lapinha

pedir lua, amor ou prenda

material.

Nem trago qualquer coisinha

de ouro subtraído à renda

nacional.

 

Nossa conversa, Menino,

será toda silenciosa,

informal.

Não se toca no destino

e em duros temas de prosa

lacrimal.

 

Não vou queixar-me da vida

ou falar (mal) do governo

brasilial.

Nem cicatrizar ferida

resultante do meu ser-no-

-mundo atual.

 

Deixa-me estar longamente

junto ao berço, num enleio

colegial.

(Àquele que é menos crente,

um anjo leva a passeio:

é Natal.)

 

Prosterno-me, e teu sorriso

sugere, menino astuto

e cordial:

Careço de ter mais siso

e vislumbrar o Absoluto

neste umbral.

 

Sim, pouco enxergo. Releva

ao que lhe falta a poesia,

e por al.

Gravura em branco, na treva:

a treva se aclara em dia

de Natal.

 

 

OS PACIFISTAS

 

Na Cinelândia, pela tarde,

em bancos vulgares e amigos,

sentam-se homens malvestidos.

Não mostram pressa de voltar

para casa ou para o trabalho.

Sentam-se em honra de uma vida

que vige dentro de suas vidas

corriqueiras, pardas e tristes,

e lá ficam a ver as pombas

em torno à estátua de Floriano

catando milho distribuído

por um deus amigo das aves,

o deus que no baixar à Terra

preferiu o simples disfarce

de empregado administrativo.

Bicam as pombas, esvoaçam

por entre mármores do Teatro,

do Museu e da Biblioteca,

não que lhes interessem óperas,

livros, telas, artes humanas.

Brincam as pombas: pena, cor,

lampejo entre árvores, tranquilo

ser-existir infenso ao trágico

mundo que se foi modelando

entre gritos, gagos regougos,

lágrimas, cóleras, solércias,

à custa do mundo essencial.

Libertados de todo peso,

deixam-se os homens existir

desprevenidos junto às pombas.

Silenciosos e circunspectos,

são talvez os homens melhores

do nosso tempo assim parados.

Não pleiteiam bens ou poderes

mais que o bem e o poder de um banco

alteado no chão de pedrinhas.

Não transportam a guerra n’alma,

não vendem ódio, não tocaiam

nem sofismam quem tem razão

entre sem razões deste instante.

O voo não viajeiro basta-lhes

para alimento das retinas

e, ao mirar as pombas, remiram

uma harmonia que perdemos.

Na Cinelândia, aves e homens

redescobrem a paz, em vida.

 

 

REPORTAGEM MATINAL

 

Subo a Santa Teresa

para ouvir o sino

que na praia não se faz escutar.

(O rumor das ondas o abafa

ou só se escuta no seio do mar?)

 

Vai comigo o Poeta

relatando a paisagem

de muros intatos.

(Mais depressa morrem os homens

do que as casas de Paula Matos.)

 

— Neste convento minha prima

vive. Em total recolhimento.

A manhã, nos altos pagos,

tem a claridade primeira.

Velhas coisas se inauguram

continuamente, na luz, novas.

 

Conhecer-se tão mal o Rio.

Conhecer-se tão pouco o ar.

Conhecer-se nada de tudo.

 

Eis que ouço a batida nítida

no azul rasgado ao meio

perto

longe

no tempo

em mim.

 

Quando a palavra já não vale

e os encantamentos se perderam

resta um sino.

 

Quando não este, o antigo sineiro

desce o roído degrau da torre

para nunca mais tocar,

resta, pensativo, no adro verde,

o menino escutando o sino.

 

 

ECLIPSE

 

Lentamente a lua foi desaparecendo

ante o balcão marino de Copacabana,

fez a grande volta insuspeitada.

Às 22h58m

só se podia tê-la na reprodução de Art van der Neer

famoso pintor de luar em álbuns suíços

ou no LP — mas tão batido — de Beethoven.

Sobre o Lago dos 4 Cantões a flor entre dois abismos

— disse um que leu a Enciclopédia de Música,

e tu fechaste os olhos

para ver o eclipse à tua maneira

pois eclipse é também ocultação

de coisas não meteorológicas

na faixa ultranictina de teu cone de sombra.

Cada um vê eclipse a seu modo

e os óculos mais em moda são de Antonioni.

Era preciso?

compor sonata eletrônica ao eclipse

mas tão sem cor-teor que não se ouvisse

além do bochechar de noite na abóbada

selada.

Era preciso?

fazer um verso não Laforgue

à base desse novo sentimento

de lua omissa, Miss

sem desfile, sem isso

nem aquilo, só sumiço, lua eclipse.

Não, era preciso

lançar foguete urgente à nigra eclíptica

e procurar a lua, recompô-la

trazer de volta o cromossonho

que ao pedestre tardonho

serve de companhia e táxi-aéreo.

Era tudo preciso

ao mesmo tempo, o tempo de um eclipse

que restaura o mistério

e promete a fotógrafos o prêmio

da turva reportagem sideral.

No banco de praia namorados

em sombra se fecharam; noutro banco

era um só namorado se fechando

em eclipse total sem sua amada.

O cão passa depressa, controlando

o eclipse do Posto 6 ao Posto 1000.

Este menino

dorme no ombro materno e vê no sono

uma lua maior que tapa o sol

e todas as estrelas:

sorvetilúnio

para o resto da vida, queijo, flã

níveo de gelatina aldebarã.

Zero hora:

eclipsa-se o eclipse.

A lua volta sempre.

Verdade obscura ou rara?

Para quem sabe ver, a noite é clara.

 

 

A TARTARUGA

 

No abismo do terciário

a tartaruga gigante

tem um mínimo de pássaro

que se pusesse a rastejar,

no anel de placa óssea dos olhos,

na ausência pacífica de dentes,

Testudo gigas emergindo

de Brejo dos Sonhos,

lá vem trazendo seu recado

de plena paz por entre guerras.

Tão fiel a si mesma que o retrato

da moça tartaruga do Amazonas

repete o essencial do figurino.

Esta é a elefantina,

por gracioso artifício, que não muda

a linha imemorial,

e essa, sem vaidade, a grega,

e esta outra a mauritânia,

tão suave e lembrada de seus pagos

que onde quer que a deixem volta sempre

a um apelo de flauta ou de jardim.

O cacto, o líquen seco

nutre as últimas netas dos colossos

vizinhos do Hominídeo

e na solidão dos Galápagos

vai mirrando essa imagem de grandeza

delicado organismo,

blindada flor que filosofa e pensa

o mundo sem rancor, e nos ensina

que a rude carapaça mais protege

o amor, do que o repele.

Lição que nada vale

pois o que sabe ao paladar corrupto

não é da tartaruga o calmo ser

e florescer à flor da areia ou n’água

mas a carne fechada

em seu fundo segredo,

a carne monacal

de tanto se vestir de solitude.

E vem a tartaruga de avião

para os ritos da morte em nobre estilo.

Fotografada, anunciada, promovida

será sopa amanhã, por entre árvores

de velho parque onde quisera

antes viver seu tempo meditado.

Levam-na ao Top Clube para exame

de olhos gulosos,

prévia degustação, de faz de conta.

Uma cidade inteira quer comê-la

mas poucos a merecem por seu preço.

Comer a tartaruga é ato bento

e pobres já desmorrem com sua morte.

Mas vale, vale a pena

matar para ajudar?

Recusa-se o mestre-cuca a ser verdugo

leva-se a tartaruga para a Urca

em compasso de espera. O tempo urge,

esta tartaruga vai morrer.

De qualquer jeito matemo-la, que o fim

é nobre, e sua sopa uma delícia.

A tevê entrevista a pobrezinha

que mantém um silêncio de andorinha.

Lya Cavalcanti, a sempre alerta

em defesa do vivo e sofredor,

ergue a voz comovida: dois partidos

se enfrentam, linha dura

e linha humanitária.

A tartaruga, sem uma ruga

no pétreo manto além do seu riscado

multissecular, tão pomba e mansa

em seu dulçor de frágil fortaleza,

vê chegado o momento da tortura,

mais eis que uma criança

que com ela brincou e soube ver

a maravilha do ato de existir,

se levanta da relva e pede em pranto

à mãe, na hora fatal:

“Não deixa ela morrer!” — e a tartaruga

é salva, por encanto.

 

 

VISÕES

 

O Apóstolo São João foi realmente

um poeta extraordinário como igual

não houve depois —

nem Dante

nem Blake

nem Lautréamont.

Teve todas as visões antes da gente.

Viu as coisas que são e as que serão

no mais futuro dos tempos, e que resta

a prever, a como-ver, aos repententes míopes

que somos e não vemos o Dragão

e nem mesmo o besouro?

 

Viu animais cheios de olhos em volta e por dentro,

glorificando Alguém no trono, semelhante

ao jaspe e à sardônica.

Viu a mulher, sentada na besta escarlate

de sete cabeças e dez chifres

e na fronte da mulher leu a inscrição: Mistério.

Viu o Nome que ninguém conhece

nem saberia inventar, pois se inventou a si mesmo.

Os surrealistas não puderam com ele.

Viu a chave do abismo

que Mallarmé não logrou levar no bolso.

Viu tudo.

Viu principalmente o supertrágico, a explosão nuclear, e nisto me afasto dele.

Não, não gostaria de predizer o fim do mundo,

com sete taças de ouro repletas da ira de Deus

despejando-se sobre a Terra.

Quero ver o mundo começar,

a cada 1o de janeiro como o jardim começa no areal

pela imaginação do jardineiro.

 

Desculpe, São João, se meu Apocalipse

é revelação de coisas simples

na linha do possível.

Anuncio uma lâmpada, não sete

(e nenhuma trombeta)

a clarear o rosto amante:

são dois rostos que, se contemplando,

um no outro se veem transmutados.

Pressinto uma alegria miudinha, trivial, embelezando

em plena via pública o passante

mais feio, mais deserto

de bens interiores.

 

Profetizo manhãs para os que saibam

haurir o mel, a flor, a cor do céu.

O mar darei a todos, de presente,

junto à praia, e o crepúsculo sinfônico

pulsando sobre os montes. Um vestido

estivai, clarocarne, passará,

passarino, aqui, ali, e quantos ritmos

um pisar de mulher irá criando

na pauta de teu dia, meu irmão.

Oráculo paroquial, a meus amigos

e aos amigos de outros ofereço

o doce instante, a trégua entre cuidados,

um brincar de meninos na varanda

que abre para alvíssimos lugares

onde tudo que existe, existe em paz.

 

E mais não vejo, e calo, que as pequenas

coisas são indizíveis se fruídas

no intenso sentimento de uma vida

(são 20 ou 70 anos?)

limitada e perene em seu minuto

de raiz, de folha dançarina e fruto.

 

 

A UM VIAJANTE

 

Eu vi você flutuando

na avenida sidéria.

Tranquilo, de escafandro,

fotografava a Terra

e outras terras e outras,

como turista em véspera

de voltar ao navio.

Súbito pulava um peixe

treinando, solicósmico,

nado sobremarino,

acrobata humorista

piruetando à solta

entre niilmundos,

mundo micromenino, olhante.

Você estava livre

de terrestres algemas,

era tão mais que pássaro

em distância e corisco,

e as aves em seus curtos

trajetos e projetos

requeriam dispensa

da condição voadora.

Um tubo apenas, elo

entre você e a sempre

mesmice cotidiana,

já vejo desligado.

No próximo domingo

nem restará registro

de míseros sistemas

que regulam o passo,

o compasso e o destino

urbano ao ser humano.

Liberto assim me vejo

em você, de mim mesmo,

deste peso e limite

que comigo carrego

ou a mim me transporta

ao prefixado jeito

da rês ao matadouro.

Eu vi você flutuante

e a seu lado flutuava

meu tardo corpo, e a mente.

Que sensação de tudo

vencido e convencido,

o sonho devassado,

o hieróglifo legível,

cofre de banco aberto

à astúcia do assaltante.

A glória de meu dia

é cosmoflor abrindo

as pétalas magnéticas

acima das estrelas

e dos hortos botânicos

plantados no possível.

Flor impossível, hoje

presa à minha lapela

na tevê desta célula.

Que sensação de nada

me vinha desse tudo.

Flutuávamos, sorríamos

em nossas carapaças

e o ardil vitorioso

cálculo grave-lúdico

em nós se desfazia:

era um fruto da terra,

germinada paciência

em luta com a matéria,

na infância da notícia

que temos de nós mesmos.

Uma dança aprendíamos

nova, de novo ritmo?

Ou senão, decorávamos

de andar, preliminares?

 

Tamanha infância envolve

o cansaço das eras

que, no espaço vagantes,

eu e você — onde fica

a rua do colégio? —

a esmo procurávamos.

Flutuar não era ainda

ser e ser com firmeza

mas ensaio indeciso

de exatas propriedades.

Os fantasmas de crenças

abolidas, e a imagem

tenuiazulmente vaga

de crenças work in progress,

aerólitos, cortavam

a neutra superfície

da não atmosfera,

escarninho cortejo

de nosso real triunfo.

Eu vi você voltando

em seu terno divino

à regrada escotilha

da nave em torna-viagem.

Uma outra solitude

baixava, impercebida,

e se juntava à antiga

solitude da vida.

 

 

ABC MANUELINO

 

Alaúza, minha gente!

Festivo repique o sino

em honra deste menino.

 

Bem-nascido no Recife

lá no bairro do Capunga

e de tendência malunga.

 

Companheiro de nascença

ficou sendo da poesia,

luz e flor de cada dia.

 

De nós todos companheiro,

por isso que no seu verso

há um carinho submerso.

 

Entre a Rua da União

e a união pelo canto,

distribui paz, acalanto.

 

Faz muito tempo que veio

ao mundo? Está bem lampeiro,

mistura de sábio e arteiro.

 

Gazal compõe e balada,

mas se quer ser concretista,

concretos fujam da pista.

 

Hertziana magia, fluida,

circula em cada palavra,

ouro do campo em que lavra.

 

Inimigos, não: amigos

são quantos, na trilha amarga

da angústia, encontraram Pasárgada.

 

Já foi doente, mas soube

vencer o mal que há no mal.

É tudo lição ideal.

 

K., solitário de Kafka,

entraria no castelo

ao ritmo do “Belo Belo”.

 

Laura, Natércia, outros mitos

o poeta descobre que há

no sabonete Araxá.

 

Mas percebe ao mesmo tempo

a miséria dos destinos

dos carvoeirinhos meninos.

 

Na sua lira moderna

a dor de cada criatura

colhe um eco de ternura.

 

O recado que nos manda

é um recado experiente

de vida e de amor presente.

 

Para chegar à pureza

de siderais avenidas,

o poeta viveu mil vidas.

 

Quem disse que é sem família

no seu quarto à beira-oceano?

Seu mano: o gênero humano.

 

Rosas, rosas e mais rosas

de Barbacena ou Caymmi

em ramalhete sublime

 

sejam portanto ofertadas

àquele que no seu horto,

mesmo à visão do boi morto,

 

tem um jeito de existir

tão natural como planta

que em silêncio se alevanta.

 

Uma planta que dá sombra

e dá música — segredo

assim em tom de brinquedo.

 

Viva, viva! aos oitent’anos,

quem que pode com o velhinho

amador de chope e vinho?

 

Xis do problema: este viço

vem-lhe d’alma, fortaleza

de bondade sempre acesa.

 

Ypissilão foi-se embora

do nosso atual dicionário.

Que importa? Canhestro, vário,

 

zangarreante cronista,

saúdo Manuel Bandeira,

estrela da vida inteira.

 

 

AOS ATLETAS

 

Os poetas haviam composto suas odes

para saudar atletas vencedores.

A conquista brilhava entre dois toques.

Era frágil e grácil

fazer da glória ancila de nós todos.

 

Hoje,

manuscritos picados em soluço

chovem do terraço chuva de irrisão.

Mas eu, poeta da derrota, me levanto

sem revolta e sem pranto

para saudar os atletas vencidos.

 

Que importa hajam perdido?

Que importa o não-ter-sido?

Que me importa uma taça por três vezes,

se duas a provei para sentir,

coleante, no fundo, o malicioso

mercúrio de sua perda no futuro?

 

É preciso xingar o Gordo e o Magro?

E o médico e o treinador e o massagista?

Que vil tristeza, essa

a espalhar-se em rancor, e não em canto

ao capricho dos deuses e da bola

que brinca no gramado

em contínua promessa

e fez um anjo e faz um ogre de Feola?

 

Nem valia ter ganho

a esquiva Copa

e dar a volta olímpica no estádio

se fosse para tê-la em nossa copa

eternamente prenda de família

a inscrever no inventário

na coluna de mitos e baixelas

que à vizinhança humilha,

quando a taça tem asas, e, voando,

no jogo livre e sempre novo que se aprende,

a este e aquele vai-se derramando.

 

Oi, meu flavo canarinho,

capricha nesse trilo

tanto mais doce quanto mais tranquilo

onde estiver Bellini ou Jairzinho,

o engenhoso Tostão, o sempre Djalma Santos,

e Pelé e Gilmar,

qualquer dos que em Britânia conheceram

depois da hora radiosa

a hora dura do esporte,

sem a qual não há prêmio que conforte,

pois perder é tocar alguma coisa

mais além da vitória, é encontrar-se

naquele ponto onde começa tudo

a nascer do perdido, lentamente.

 

Canta, canta, canarinho,

a sorte lançada entre

o laboratório de erros

e o labirinto de surpresas,

canta o conhecimento do limite,

a madura experiência a brotar da rota esperança.

 

Nem heróis argivos nem párias,

voltam os homens — estropiados

mas lúcidos, na justa dimensão.

Souvenirs na bagagem misturados:

o dia-sim, o dia-não.

O dia-não completa o dia-sim

na perfeita medalha. Hoje completos

são os atletas que saúdo:

nas mãos vazias eles trazem tudo

que dobra a fortaleza da alma forte.

 

 

ESTÓRIA DE JOÃO-JOANA

 

Meu leitor, o sucedido

em Lajes do Caldeirão

é caso de muito ensino,

merecedor de atenção.

Por isso é que me apresento

fazendo esta relação.

 

Vivia em dito arraial

do país das Alagoas

um rapaz chamado João

cuja força era das boas

pra sujigar burro bravo,

tigres, onças e leoas.

 

João, lhe deram este nome

não foi de letra em cartório

pois sua mãe e seu pai

viviam de peditório.

Gente assim do miserê

nunca soube o que é casório.

 

Ficou sendo João, pois esse

é nome de qualquer um.

Não carece excogitar,

pedir a doutor nenhum,

que a sentença vem do Céu,

não de lá do Barzabum.

 

De pequeno ficou órfão,

criado por seus dois manos.

Foi logo para o trabalho

com muitos outros fulanos

e seu muque, sem mentira,

era o de três otomanos.

 

Na enxada, quem que vencia

aquele tico de gente.

No buteco, se ele entrava

pra bochechar aguardente,

o saudavam com respeito:

Deus lhe salve, meu parente.

 

João moço não enjeitava

parada com sertanejo.

Podiam brincar com ele

sem carregar no gracejo.

Dizia que homem covarde

não é cabra, é percevejo.

 

Um dia de calor desses

que tacam fogo no agreste,

João suava que suava

sem despir a sua veste.

Companheiro, essa camisa

não é coisa que moleste?

 

lhe perguntou um amigo

que estava de peito nu.

E João se calado estava

nem deu pio de nambu.

Ninguém nunca viu seu pelo

nem por trás do murundu.

 

João era muito avexado

na hora de tomar banho.

Punha tranca no barraco

fugindo a qualquer estranho.

Em Lajes nenhum varão

tinha recato tamanho.

 

João nas últimas semanas

entrou a sofrer de inchaço.

Mesmo assim arranca toco

sem se carpir de cansaço.

Um dia, não guenta mais,

exclama: O que é que eu faço?

 

Os manos vendo naquilo

coisa mei’ desimportante,

logo receitam de araque

meizinha sem variante

para qualquer macacoa:

Carece tomar purgante.

 

João entrou no purgativo

louco de dor e de medo,

se estorcendo e contorcendo

na solidão do arvoredo

pois ele em sua aflição

lá se escondera bem cedo.

 

O gemido que exalava

do peito de João sozinho

alertou os seus dois manos

que foram ver de mansinho

como é que aquele bravo

se tornara tão fraquinho.

 

No chão de terra,

essa terra que a todos nós vai comer,

chorava uma criancinha

acabada de nascer,

e João, de peito desnudo,

acarinhava este ser.

 

Aquela cena imprevista

causou a maior surpresa.

O que tanto se ocultara

se mostrava sem defesa.

João deixara de ser João

por força da natureza.

 

A mulher surgia nele

ao mesmo tempo que o filho,

tal qual se brotassem junto

a espiga com o pé de milho,

ou como bala que estoura

sem se puxar o gatilho.

 

Se os manos levaram susto,

até eu, que apenas conto.

E o povo todo, assuntando

a estória ponto por ponto,

ficou em breve inteirado

do que aí vai sem desconto.

 

Nem menino nem menina

era João quando nasceu.

A mãe, sem saber ao certo,

o nome de João lhe deu,

dizendo: Vai vestir calça

e não saia que nem eu.

 

À proporção que crescia

feito animal na campina,

em João foi-se acentuando

a condição feminina,

mas ele jamais quis ser

tratado feito menina.

 

Pois nesse triste povoado

e cem léguas ao redor,

ser homem não é vantagem

mas ser mulher é pior.

Quem vê claro já conclui:

de dois males o menor.

 

Homem é grão de poeira

na estrada sem horizonte;

mulher nem chega a ser isso

e tem de baixar a fronte

ante as ruindades da vida,

de altura maior que um monte.

 

A sorte, se presenteia

a todos doença e fome,

para as mulheres capricha

num privilégio sem nome.

Colhe miséria maior

e diz à coitada: Tome.

 

É forma de escravidão

a infinita pobreza,

mas duas vezes escrava

é a mulher com certeza,

pois escrava de um escravo,

pode haver maior dureza?

 

Por isso aquela mocinha

fez tudo para iludir

aos outros e ao seu destino.

Mas rola não é tapir

e chega lá um momento

da natureza explodir.

 

João vira Joana: acontecem

dessas coisas sem preceito.

No seu colo está Joãozinho

mamando leite de peito.

Pelo menos esse aqui

de ser homem tem direito.

 

De ser homem: de escolher

o seu próprio sofrimento

e de escrever com peixeira

a lei do seu mandamento

quando à falta de outra lei

ou eu fujo ou arrebento.

 

Joana desiste de tudo

que ganhara por mentira.

Sabe que agora lhe resta

apenas do saco a embira.

E nem mesmo lhe aproveita

esta minha pobre lira.

 

Saibam quantos deste caso

houverem ciência, que a vida

não anda, em favor e graça,

igualmente repartida,

e que dor ensombra a falta

de amor, de paz e comida.

 

Meu leitor (não eleitor,

que eu nada te peço a ti

senão me ler com paciência

de Minas ao Piauí):

tendo contado meu conto,

adeus, me despeço aqui.

 

 

A PAULO DE TARSO

 

São Paulo aos Coríntios:

“Ao soar a última trombeta

ressuscitarão os mortos,

incorruptíveis.”

 

Paulo, temos pressa de cumprir

teu maravilhoso anúncio.

Demora tanto essa final trombeta,

e acaso será ouvida entre milhões

de ruídos modernos

que o bel e o decibel não medem?

Queremos já, no chão terreno

sobre a morte plantar nossa vitória.

Não te aborreças, Paulo.

O nosso irmão Ettinger, incumbido

de quebrar este galho, eis que inventou

uma casa de mortos especial

que a morte dribla e ilude.

 

Estão mortos, parece?

Não, apenas

desligados da vida, congelados.

Daqui a 20, 30, talvez menos,

5 anos, quem sabe? ressuscitam

continuando a lavrar a mesma vida.

 

A mesma, Paulo. Não a outra,

aquela vida nova, azulfutura

a que teu verbo os preparava.

A 273 graus de zero abaixo

um tanto de glicerol e outro de

dimestilsulfóxido

(vocábulos de Novíssimo Testamento)

impedem a corrupção,

perdão,

detêm a corrupção na justa hora

de o coração parar.

Parou. Fica esperando

que uma droga sutil seja criada

pelos nossos irmãos, em cada caso.

 

A droga surge,

rompe-se o caixão plástico na câmara

mortu-refrigerada, cumpre-se

tua palavra, Paulo (ou a de Cristo)

a nosso modo:

a vida

com seus enigmas

ameaças

pânicos

difícil de ser cumprida e desejada

apesar disso, por isso?

ocupa novamente o peito ex-glaciar

e nele reinstala

sua dor de pensar

sua dor de amar

e a (que não dói, mas dói) de esquecer

e todas as complementares

que pelo ar haviam fugido

no tempo da morte clínica,

antes de mano Ettinger bolar

a mortivida frígida.

 

Dispensa o coro de trombetas,

Paulo,

nossa vitória aceita como boa:

“Ressuscitarão os mortos

(in) corruptíveis”.

Em verdade conseguimos

(perdoa)

a ressurreição em meia

confecção.

 

 

MÍNI MÍNI

 

Míni míni míni míni

onde está esse biquíni

essa hipótese de saia

em projeto de menina

além da linha de outono?

Minissonho, míni-ideia,

miniarte, miniguerra:

será canção dormideira

que aos habitantes da insônia

traz o minireconforto?

E onde está o míni morto

a gozar no minicéu

o miniprêmio da paz?

Dorme, dorme, nã nã nã

fechando na tua palma

o resíduo de napalm

mais o grãozinho de arroz

brotado no Vietnam

entre pedaços de corpos

e princípios em pedaços.

Míni míni míni míni

tua bomba vira pílula

que é muito mais baratinha

e dispensa de matar

dispensando de nascer

mas sem dispensar a bomba

seja limpa, seja suja

que ao desperdício de chuva

casa a chuva radioativa.

O mundo não é mais bola,

melhor lhe chamem bolinha

que na fração de segundo

a náusea espoca em modinha.

Entre o ácido lisérgico

e o óxido de deutério

que quer o meu camarada?

Quer as armas nucleares

quer os pagos estelares

quer as coisas singulares

assombrar Matias Aires

revelando o minicosmo.

Míni míni míni míni

ao sol a cigarra zine

diversa de sua mana

que zinia na janela

de Olegário Mariano.

Evtuchenko dedilhando

sua doce balalaica

para Salazar dormir.

E se ao tédio

vem o tédio

se somar, uma guerrilha

depressa, para espertar

quem esteja cochilando.

Angústias de Oriente Médio,

ó fazedores de morte

que não cansais de fazê-la

em vossa malina sorte

de redigir pesadelos,

quando deixareis à vida

a chance de ser vivida?

Entre dormindo e acordado

entre descrente e dopado

entre vítima e soldado

entre embusteiro e enganado

entre silêncio e protesto

lá vai o meu homenzinho

mini-homem? mini ensaio

de mais lúcido, mais gaio

ser convivente, vivente?

Míni nana, nana míni,

até que a vista adivinhe

solo amore per confine.

 

 

ALTA CIRURGIA

 

O cão com dois corações

vagueia pela cidade:

um coração de artifício

e o coração de verdade.

 

Exulta a ciência, que obrou

tamanha curiosidade:

metade é glória da URSS,

do Brasil a outra metade.

 

Se o cão é a doçura mesma

em seu natural, que há de

mais carinhoso que um cão

de dupla cordialidade?

 

Não para aí, no propósito

de servir à humanidade,

a cirurgia moderna,

gêmea da publicidade.

 

Já pega de outro cãozinho

com a maior habilidade

(não vá um gesto fortuito

lembrar o Marquês de Sade).

 

Na carne do bicho, abrindo

uma vasta cavidade,

implanta-lhe outra cabeça,

que uma não é novidade.

 

Cão bicéfalo: prodígio

que nos infla de vaidade.

Nem o cérebro eletrônico

o vence em mentalidade.

 

Se nos furtam dois ladrões,

dois latidos; acuidade

maior, rendimento duplo:

viva a produtividade.

 

Dois cães que valem por quatro

“preparou” a Faculdade,

sem perceber entretanto

do Brasil a realidade:

 

Tanta gente sem cabeça

merecia prioridade,

e ao cão, que já tem a sua,

essa liberalidade.

 

E o coração, esse, é pena

dá-lo ao cão, que é só bondade,

quando os doutores do enxerto

tinham mais necessidade.

 

 

NOVA CANÇÃO (SEM REI) DE TULE

 

Há muito, há muito, muito tempo

um Rei de Tule, apaixonado,

jogou ao mar a taça de ouro

em que bebera todo o amor.

E Goethe fez uma canção

desse amor e dessa áurea copa

que o pobre Nerval traduziu

(il la vit tourner dans Veau noire...)

e mais Gounod e mais Berlioz

espalharam pelos teatros

líricos, o nosso inclusive.

Foi há tanto, nevoso tempo!

Já não se jogam taças de ouro

numa varanda sobre o mar

nem em qualquer outro lugar.

E Tule é outra. Mas que vejo?

Que objeto é esse lançado

às profundas do Mar de Baffin

quando até as óperas mudam

de tom em seu texto eletrônico?

Nem é um só, mas três ou quatro

alfaias de um rei dolorido

a desfazer-se de lembranças

inefáveis, no fim da vida?

E é ouro mesmo? Não: plutônio

(o duzentos e trinta e nove)

e urânio, seu irmão-primo

(o duzentos e trinta e cinco)

tão juntos como outrora juntos

em amoroso contubérnio

o rei e sua amada estavam.

Sob a blindagem protetora,

o idílio desses elementos

é de infernal doçura, mas

cuidado: se o detonador

detona, o mundo vira caco

ou pó de caco, pois amor

com tal potência em megatons

é antes símbolo de morte

do que uma rima para flor.

Focas em pânico: “Por que

nos remetem para depósito

esses invólucros letais

seguidos de uma caixa negra

com cabalísticos sinais,

se nenhum crime cometemos

em nossas solidões claustrais?”.

Esquimós repetem em coro

a angústia das focas, o medo;

“Ninguém pode viver tranquilo

nem ao menos neste degredo?

Que presente é este, sem dó,

agredindo a paz do esquimó?”

“Calma, filhinhos — uma Voz

ressoando não se sabe de onde,

esclarece, pede desculpas:

Foi apenas um acidente

em treinamento de rotina

que dia e noite, mês a mês,

ano a ano, nossos motores

(oito) dos B-Cinquenta e Dois

vêm fazendo no mar das nuvens

com esses mimosos engenhos

tão amoráveis e perfeitos

e de prodigiosos efeitos

para o fim de lembrar ao Homem

que viver é graça precária

dependente de nosso arbítrio,

e portanto não facilite

se não quer converter-se em cinzas

sem sequer urna cinerária.

São bombas, sim, mas bombas bentas

pelo nosso santo desejo

de dirigir bem este mundo:

Já não espada de justiça

nem lanterna do entendimento,

nem quimeras que a mente atiça

e se esfumam no vão do vento.

Fiquem quietas, amigas focas,

caros esquimós, bocca chiusa:

não se mexam em suas tocas,

que não é hora de alaúza.”

Disse a Voz. Seu ensinamento

verruma os arcanos gelados

para atingir a consciência

dos mínimos seres terrestres.

Ninguém mais joga copa de ouro

ao mar, nem há mais Rei de Tule.

Mas, de vez em quando, uma bomba

(ou três ou quatro) se diverte

fazendo o úmido trajeto.

Goethe também já não existe

para compor sua canção,

nem Nerval nem os mestres músicos

dos velhos tempos do Oitocentos.

Então, este simples escriba

claudicante na versiprosa,

eis que tentou versiprosar

mais um caso de bomba ao mar.

 

 

O NOVO HOMEM

 

O homem será feito

em laboratório.

Será tão perfeito

como no antigório.

Rirá como gente,

beberá cerveja

deliciadamente.

Caçará narceja

e bicho do mato.

Jogará no bicho,

tirará retrato

com o maior capricho.

Usará bermuda

e gola roulée.

Queimará arruda

indo ao canjerê,

e do não objeto

fará escultura.

Será neoconcreto

se houver censura.

Ganhará dinheiro

e muitos diplomas,

fino cavalheiro

em noventa idiomas.

Chegará a Marte

em seu cavalinho

de ir a toda parte

mesmo sem caminho.

O homem será feito

em laboratório

muito mais perfeito

do que no antigório.

Dispensa-se amor,

ternura ou desejo.

Seja como for

(até num bocejo)

salta da retorta

um senhor garoto.

Vai abrindo a porta

com riso maroto:

“Nove meses, eu?

Nem nove minutos.”

Quem já concebeu

melhores produtos?

A dor não preside

sua gestação.

Seu nascer elide

o sonho e a aflição.

Nascerá bonito?

Corpo bem talhado?

Claro: não é mito,

é planificado.

Nele, tudo exato,

medido, bem posto:

o justo formato,

o standard do rosto.

Duzentos modelos,

todos atraentes.

(Escolher, ao vê-los,

nossos descendentes.)

Quer um sábio? Peça.

Ministro? Encomende.

Uma ficha impressa

a todos atende.

Perdão: acabou-se

a época dos pais.

Quem comia doce

já não come mais.

Não chame de filho

este ser diverso

que pisa o ladrilho

de outro universo.

Sua independência

é total: sem marca

de família, vence

a lei do patriarca.

Liberto da herança

de sangue ou de afeto,

desconhece a aliança

de avô com seu neto.

Pai: macromolécula;

mãe: tubo de ensaio,

e, per omnia secula,

livre, papagaio,

sem memória e sexo,

feliz, por que não?

pois rompeu o nexo

da velha Criação,

eis que o homem feito

em laboratório

sem qualquer defeito

como no antigório,

acabou com o Homem.

Bem feito.

 

 

UM CHAMADO JOÃO

 

João era fabulista?

fabuloso?

fábula?

Sertão místico disparando

no exílio da linguagem comum?

 

Projetava na gravatinha

a quinta face das coisas,

inenarrável narrada?

Um estranho chamado João

para disfarçar, para farçar

o que não ousamos compreender?

Tinha pastos, buritis plantados

no apartamento?

no peito?

Vegetal ele era ou passarinho

sob a robusta ossatura com pinta

de boi risonho?

 

Era um teatro

e todos os artistas

no mesmo papel,

ciranda multívoca?

João era tudo?

tudo escondido, florindo

como flor é flor, mesmo não semeada?

Mapa com acidentes

deslizando para fora, falando?

Guardava rios no bolso,

cada qual com a cor de suas águas?

sem misturar, sem conflitar?

E de cada gota redigia

nome, curva, fim,

e no destinado geral

seu fado era saber

para contar sem desnudar

o que não deve ser desnudado

e por isso se veste de véus novos?

 

Mágico sem apetrechos,

civilmente mágico, apelador

de precipites prodígios acudindo

a chamada geral?

Embaixador do reino

que há por trás dos reinos,

dos poderes, das

supostas fórmulas

de abracadabra, sésamo?

Reino cercado

não de muros, chaves, códigos,

mas o reino-reino?

Por que João sorria

se lhe perguntavam

que mistério é esse?

E propondo desenhos figurava

menos a resposta que

outra questão ao perguntante?

Tinha parte com... (não sei

o nome) ou ele mesmo era

a parte de gente

servindo de ponte

entre o sub e o sobre

que se arcabuzeiam

de antes do princípio,

que se entrelaçam

para melhor guerra,

para maior festa?

 

Ficamos sem saber o que era João

e se João existiu

de se pegar.

 

 

O MORTO DE MÊNFIS

 

A arma branca

e o alvo preto

não cabem

no soneto.

 

A mão

que move o fuzil

destrói o til

da canção,

 

Fica no

ar o som

do verbo matar.

 

Na varanda, sem cor,

os restos

do amor.

 

Nos vergéis da justiça

o sol faísca sobre

carniça.

 

O ódio e seu olho

telescópico

formam um demônio

ubíquo.

 

Seu nome, Legião.

Não

perdoa a vida.

 

Onde a vida brota

seu talo verde,

ele vai e corta.

 

Onde a vida fala

sua esperança,

ele crava a lança,

 

borda o epitáfio:

Aqui jaz,

desossada, a paz.

 

Na linha de cor,

na linha de dor,

na linha de horror

 

da caçada,

a mata é basculante

de banheiro; mais nada.

 

(Ou janela debruçada

sobre o carro.

Caça ou curra?)

 

O homem não se reconhece

no semelhante.

O homem anoitece.

 

O que mais o assusta,

o que mais o ofende

é a luz vasta.

 

O homem ignora

tudo que já sabe.

E não chora.

 

Sua intenção

é matar-se na morte

do irmão?

 

É negar o irmão

e seguir sozinho,

seco, surdo, torto

espinho?

 

As artes, os sonhos

dissipam-se no projeto

medonho.

 

Mas renascem. De lágrimas,

pânico, tortura,

emerge a vida pura,

 

em sua fraqueza

mais forte que a força,

mais força que a morte.

 

A raiz do homem

vai tentar de novo

o ato de amar.

 

Vai recomeçar.

Vai continuar.

Continuar.

 

O morto de Mênfis

continua a amar.

Ninguém mais o pode

matar.

 

 

EM LOUVOR DA MINIBLUSA

 

Hoje vai a antiga musa

celebrar a nova blusa

que de Norte a Sul se usa,

graça que mostra o que esconde,

como graça de verão,

a blusa comum, mas onde

um velho da era do bonde

encontrará mais mensagem

do que na bossa estival

da rola que ao natural

mostra seu colo fatal,

ou quase, pois tanto faz,

se a anatomia me ensina

a tocar a concertina

em busca ao mapa da mina

que ora muda de lugar?

Já nem sei mais o que digo

ao divisar certo umbigo:

penso em flor, cereja, figo,

penso em deixar de pensar,

e em louvar o costureiro

ou costureira — joalheiro

que expõe a qualquer soleiro

esse profundo diamante

exclusivo antes das praias

(Copas, Leblons, Marambaias

e suas areias gaias).

Salve, moda, salve, sol

de sal, de alegre inventiva,

que traz à matéria viva

a prova figurativa!

Pode a indústria de fiação

carpir-se do pouco pano

que o figurino magano

reduz a zero, cada ano.

Que importa? A melhor fazenda

o mais cetínio tecido,

que me bota comovido

e bole em cada sentido,

ainda é a doce pele,

de original padronagem,

pois adere a cada imagem

qual sua própria tatuagem

que ninguém copiará.

Miniblusa, miniblusa,

garanto que quem te acusa

a cuca há de ter confusa.

És pano de boca? O palco

tão redondo quão seleto

que abres ao avô e ao neto

(à vista, apenas), objeto

é de puro encantamento.

No cenário em suave curva

nosso olhar jamais se turva,

falte embora rima em urva,

pois é pelúcia-piscina

onde a ilha umbilical

vale a uma de São Gral,

o Tesouro Nacional,

vale tudo... e lembra a drósera,

flor carnívora exigente

que pra devorar a gente

não cochila certamente.

Drósera? Drupa, talvez,

carnoso fruto de vida,

drusa tão bem inserida

na superfície polida

que a blusa desvesteveste.

Ai, blublu de semiblusa,

de Ipanema ou Siracusa,

que me perco na fiúza

de capturar o mistério

Quid mulieris... ? — do corpóreo.

Mas chega de latinório,

vaníloquo verbolório

e versiconversa obtusa

de tudo que a musa canta

pois mais alto se alevanta

o sem véu da miniblusa.

 

 

LUAR PARA ALPHONSUS

 

Hoje peço uma lua diferente

para Ouro Preto

Conceição do Serro

Mariana.

 

Não venha a lua de Armstrong

pisada, apalpada

analisada em fragmentos pelos geólogos.

 

Há de ser a lua mágica e pensativa

a lua de Alphonsus

sobre as três cidades de sua vida.

 

Comemore-se o centenário do poeta

com uma lua de absoluta primeira classe

bem mineira no gelado vapor de julho

bem da Virgem do Carmo do Ribeirão

dos menestréis de serenata

bem simbolista bem medieval.

 

Haja um luar de prata escorrendo sobre montanhas

inundando as prefeituras

os bancos de investimento de Belo Horizonte

a própria polícia militar

de modo que ninguém se esqueça, ninguém possa alegar:

 

Eu não sabia

que ele fazia

cem anos.

 

Mas não é para soltar foguete nem fazer

os clássicos discursos ao povo mineiro

dando ao espectro do poeta o que faltou ao poeta

numa vida banal sem esperança.

 

É para sentir o luar

extra que envolve

Ouro Preto, Mariana, Conceição

filtrado suavemente

da poesia de Alphonsus, no silêncio

de sua mesa de juiz municipal

meritíssimo poeta do luar.

 

Algum estudante, sim, espero vê-lo

debruçado sobre a Pastoral aos Crentes

do Amor e da Morte, penetrando

o cerne dociamargo

de um verso alphonsino cem por cento.

Algum velho da minha geração,

uns poucos doidos mansos, e quem mais?

Onde o poeta assiste, não há cocks

autógrafos, badalos, gravações.

Está cerrado em si mesmo (tel qu’en lui-même

enfin l’éternité le change...)

e descobri-lo é quase um nascimento

do verbo:

cada palavra antiga surge nova

intemporal, sem desgaste vanguardista, lua

nova, na página lunar.

 

E essa lua eu peço: aquela mesma

barquinha santa, gôndola

rosal cheio de harpas

urna de padre-nossos

pão de trigo da sagrada ceia

lua dupla de Ismália enlouquecida

lua de Alphonsus que ele soube ver

como ninguém mais veria

de seus mineiros altos miradouros.

 

O poeta faz cem anos no luar.

 

 

CARRANCAS DO RIO SÃO FRANCISCO

 

As carrancas do Rio São Francisco

largaram suas proas e vieram

para um banco da Rua do Ouvidor.

O leão, o cavalo, o bicho estranho

deixam-se contemplar no rio seco,

entre cheques, recibos, duplicatas.

Já não defendem do caboclo-d’água

o barqueiro e seu barco. Porventura

vêm proteger-nos de perigos outros

que não sabemos, ou contra os assaltos

desfecham seus poderes ancestrais

o leão, o cavalo, o bicho estranho

postados no salão, longe das águas?

Interrogo, perscruto, sem resposta,

as rudes caras, os lanhados lenhos

que tanta coisa viram, navegando

no leito cor de barro. O velho Chico

fartou-se deles, já não crê nos mitos

que a figura de proa conjurava,

ou contra os mitos já não há defesa

nos mascarões zoomórficos enormes?

Quisera ouvi-los; muito contariam

de peixes e de homens, na difícil

aventura da vida dos remeiros.

O rio, esse caminho de canções,

de esperanças, de trocas, de naufrágios,

deixou nas carrancudas cataduras

um traço fluvial de nostalgia,

e vejo, pela Rua do Ouvidor,

singrando o asfalto, graves, silenciosos,

o leão, o cavalo, o bicho estranho...

 

 

COPA DO MUNDO DE 70

 

O MOMENTO FELIZ

 

Com o arremesso das feras

e o cálculo das formigas

a Seleção avança

negaceia

recua

envolve.

É longe e em mim.

 

Sou o estádio de Jalisco, triturado

de chuteiras, a grama sofredora

a bola mosqueada e caprichosa.

Assistir? Não assisto. Estou jogando.

 

No baralho de gestos, na maranha

na contusão da coxa

na dor do gol perdido

na volta do relógio e na linha de sombra

que vai crescendo e esse tento não vem

ou vem mas é contrário... e se renova

em lenta lesma de replay.

Eu não merecia ser varado

por esse tiro frouxo sem destino.

Meus onze atletas

são onze meninos fustigados

por um deus fútil que comanda a sorte.

É preciso lutar contra o deus fútil,

fazer tudo de novo: formiguinha

rasgando seu caminho na espessura

do cimento do muro.

 

Então crescem os homens. Cada um

é toda a luta, sério. E é todo arte.

Uma geometria astuciosa

aérea, musical, de corpos sábios

a se entenderem, membros polifônicos

de um corpo só, belo e suado. Rio,

rio de dor feliz, recompensada

com Tostão a criar e Jair terminando

a fecunda jogada.

 

É gooooooooool na garganta florida

rouca exausta, gol no peito meu aberto;

gol na minha rua nos terraços

nos bares nas bandeiras nos morteiros

gol

na girandolarrugem das girândolas gol

na chuva de papeizinhos celebrando

por conta própria no ar: cada papel,

riso de dança distribuído

pelo país inteiro em festa de abraçar

e beijar e cantar

é gol legal é gol natal é gol de mel e sol.

 

Ninguém me prende mais, jogo por mil

jogo em Pelé o sempre rei republicano

o povo feito atleta na poesia

do jogo mágico.

Sou Rivelino, a lâmina do nome

cobrando, fina, a falta.

Sou Clodoaldo rima de Everaldo.

Sou Brito e sua viva cabeçada,

com Gérson e Piazza me acrescento

de forças novas. Com orgulho certo,

me faço capitão Carlos Alberto.

Félix, defendo e abarco

em meu abraço a bola e salvo o arco.

 

Como foi que esquentou assim o jogo?

Que energias dobradas afloraram

do banco de reservas interiores?

Um rio passa em mim ou sou o mar atlântico

passando pela cancha e se espraiando

por toda a minha gente reunida

num só vídeo, infinito, num ser único?

 

De repente o Brasil ficou unido

contente de existir, trocando a morte

o ódio, a pobreza, a doença, o atraso triste

por um momento puro de grandeza

e afirmação no esporte.

Vencer com honra e graça

com beleza e humildade

é ser maduro e merecer a vida,

ato de criação, ato de amor.

A Zagalo, zagal prudente,

e a seus homens de campo e bastidor

fica devendo a minha gente

este minuto de felicidade.