AS CONTRADIÇÕES DO CORPO

 

Meu corpo não é meu corpo,

é ilusão de outro ser.

Sabe a arte de esconder-me

e é de tal modo sagaz

que a mim de mim ele oculta.

 

Meu corpo, não meu agente,

meu envelope selado,

meu revólver de assustar,

tornou-se meu carcereiro,

me sabe mais que me sei.

 

Meu corpo apaga a lembrança

que eu tinha de minha mente.

Inocula-me seu páthos,

me ataca, fere e condena

por crimes não cometidos.

 

O seu ardil mais diabólico

está em fazer-se doente.

Joga-me o peso dos males

que ele tece a cada instante

e me passa em revulsão.

 

Meu corpo inventou a dor

a fim de torná-la interna,

integrante do meu id,

ofuscadora da luz

que aí tentava espalhar-se.

 

Outras vezes se diverte

sem que eu saiba ou que deseje,

e nesse prazer maligno,

que suas células impregna,

do meu mutismo escarnece.

 

Meu corpo ordena que eu saia

em busca do que não quero,

e me nega, ao se afirmar

como senhor do meu Eu

convertido em cão servil.

 

Meu prazer mais refinado,

não sou eu quem vai senti-lo.

É ele, por mim, rapace,

e dá mastigados restos

à minha fome absoluta.

 

Se tento dele afastar-me,

por abstração ignorá-lo,

volta a mim, com todo o peso

de sua carne poluída,

seu tédio, seu desconforto.

 

Quero romper com meu corpo,

quero enfrentá-lo, acusá-lo,

por abolir minha essência,

mas ele sequer me escuta

e vai pelo rumo oposto.

 

Já premido por seu pulso

de inquebrantável rigor,

não sou mais quem dantes era:

com volúpia dirigida,

saio a bailar com meu corpo.

 

 

A METAFÍSICA DO CORPO  A Sonia von Brusky

 

A metafísica do corpo se entremostra

nas imagens. A alma do corpo

modula em cada fragmento sua música

de esferas e de essências

além da simples carne e simples unhas.

 

Em cada silêncio do corpo identifica-se

a linha do sentido universal

que à forma breve e transitiva imprime

a solene marca dos deuses

e do sonho.

 

Entre folhas, surpreende-se

na última ninfa

o que na mulher ainda é ramo e orvalho

e, mais que natureza, pensamento

da unidade inicial do mundo:

mulher planta brisa mar,

o ser telúrico, espontâneo,

como se um galho fosse da infinita

árvore que condensa

o mel, o sol, o sal, o sopro acre da vida.

 

De êxtase e tremor banha-se a vista

ante a luminosa nádega opalescente,

a coxa, o sacro ventre, prometido

ao ofício de existir, e tudo mais que o corpo

resume de outra vida, mais florente,

em que todos fomos terra, seiva e amor.

 

Eis que se revela o ser, na transparência

do invólucro perfeito.

 

 

O MINUTO DEPOIS

 

Nudez, último véu da alma

que ainda assim prossegue absconsa.

A linguagem fértil do corpo

não a detecta nem decifra.

Mais além da pele, dos músculos,

dos nervos, do sangue, dos ossos,

recusa o íntimo contato,

o casamento floral, o abraço

divinizante da matéria

inebriada para sempre

pela sublime conjunção.

 

Ai de nós, mendigos famintos:

pressentimos só as migalhas

desse banquete além das nuvens

contingentes de nossa carne.

E por isso a volúpia é triste

um minuto depois do êxtase.

 

 

AUSÊNCIA

 

Por muito tempo achei que a ausência é falta.

E lastimava, ignorante, a falta.

Hoje não a lastimo.

Não há falta na ausência.

A ausência é um estar em mim.

E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,

que rio e danço e invento exclamações alegres,

porque a ausência, essa ausência assimilada,

ninguém a rouba mais de mim.

 

 

HISTÓRIA NATURAL

 

Cobras-cegas são notívagas.

O orangotango é profundamente solitário.

Macacos também preferem o isolamento.

Certas árvores só frutificam de 25 em 25 anos.

Andorinhas copulam no voo.

O mundo não é o que pensamos.

 

 

AS SEM-RAZÕES DO AMOR

 

Eu te amo porque te amo.

Não precisas ser amante,

e nem sempre sabes sê-lo.

Eu te amo porque te amo.

Amor é estado de graça

e com amor não se paga.

 

Amor é dado de graça,

é semeado no vento,

na cachoeira, no eclipse.

Amor foge a dicionários

e a regulamentos vários.

 

Eu te amo porque não amo

bastante ou demais a mim.

Porque amor não se troca,

não se conjuga nem se ama.

Porque amor é amor a nada,

feliz e forte em si mesmo.

 

Amor é primo da morte,

e da morte vencedor,

por mais que o matem (e matam)

a cada instante de amor.

 

 

ASPIRAÇÃO

 

Tão imperfeitas, nossas maneiras

de amar.

Quando alcançaremos

o limite, o ápice

de perfeição,

que é nunca mais morrer,

nunca mais viver

duas vidas em uma,

e só o amor governe

todo além, todo fora de nós mesmos?

 

O absoluto amor,

revel à condição de carne e alma.

 

 

A HORA DO CANSAÇO

 

As coisas que amamos,

as pessoas que amamos

são eternas até certo ponto.

Duram o infinito variável

no limite de nosso poder

de respirar a eternidade.

 

Pensá-las é pensar que não acabam nunca,

dar-lhes moldura de granito.

De outra matéria se tornam, absoluta,

numa outra (maior) realidade.

 

Começam a esmaecer quando nos cansamos,

e todos nos cansamos, por um ou outro itinerário,

de aspirar a resina do eterno.

Já não pretendemos que sejam imperecíveis.

Restituímos cada ser e coisa à condição precária,

rebaixamos o amor ao estado de utilidade.

 

Do sonho de eterno fica esse gosto acre

na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.

 

 

VERDADE

 

A porta da verdade estava aberta,

mas só deixava passar

meia pessoa de cada vez.

 

Assim não era possível atingir toda a verdade,

porque a meia pessoa que entrava

só trazia o perfil de meia verdade.

E sua segunda metade

voltava igualmente com meio perfil.

E os meios perfis não coincidiam.

 

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.

Chegaram ao lugar luminoso

onde a verdade esplendia seus fogos.

Era dividida em metades

diferentes uma da outra.

 

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

Nenhuma das duas era totalmente bela.

E carecia optar. Cada um optou conforme

seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

 

 

O SEU SANTO NOME

 

Não facilite com a palavra amor.

Não a jogue no espaço, bolha de sabão.

Não se inebrie com o seu engalanado som.

Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).

Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão

de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra

que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.

Não a pronuncie.

 

 

DEUS E SUAS CRIATURAS

 

Quem morre vai descansar na paz de Deus.

Quem vive é arrastado pela guerra de Deus.

Deus é assim: cruel, misericordioso, duplo.

Seus prêmios chegam tarde, em forma imperceptível.

Deus, como entendê-lo?

Ele também não entende suas criaturas,

condenadas previamente sem apelação a sofrimento e morte.

 

 

COMBATE

 

Nem eu posso com Deus nem pode ele comigo.

Essa peleja é vã, essa luta no escuro

entre mim e seu nome.

Não me persegue Deus no dia claro.

Arma, à noite, emboscadas.

Enredo-me, debato-me, invectivo

e me liberto, escalavrado.

De manhã, à hora do café, sou eu quem desafia.

Volta-me as costas, sequer me escuta,

e o dia não é creditado a nenhum dos contendores.

Deus golpeia à traição.

Também uso para com ele táticas covardes.

E o vencedor (se vencedor houver) não sentirá prazer

pela vitória equívoca.

 

 

CANÇÃO DE ITABIRA  A Zoraida Diniz

 

Mesmo a essa altura do tempo,

um tempo que já se estira,

continua em mim ressoando

uma canção de Itabira.

 

Ouvi-a na voz materna

que de noite me embalava,

ecoando ainda no sono,

sem que faltasse uma oitava.

 

No bambuzal bem no extremo

da casa de minha infância,

parecia que o som vinha

da mais distante distância.

 

No sino maior da igreja,

a dez passos do sobrado,

a infiltrada melodia

emoldurava o passado.

 

Por entre as pedras da Penha,

os lábios das lavadeiras

o mesmo verso entoavam

ao longo da tarde inteira.

 

Pelos caminhos em torno

da cidade, a qualquer hora,

ciciava cada coqueiro

essa música de outrora.

 

Subindo ao alto da serra

(serra que hoje é lembrança),

na ventania chegava-me

essa canção de bonança.

 

Canção que este nome encerra

e em volta do nome gira.

Mesmo o silêncio a repete,

doce canção de Itabira.

 

 

O ANO PASSADO

 

O ano passado não passou,

continua incessantemente.

Em vão marco novos encontros.

Todos são encontros passados.

 

As ruas, sempre do ano passado,

e as pessoas, também as mesmas,

com iguais gestos e falas.

O céu tem exatamente

sabidos tons de amanhecer,

de sol pleno, de descambar

como no repetidíssimo ano passado.

 

Embora sepultos, os mortos do ano passado

sepultam-se todos os dias.

Escuto os medos, conto as libélulas,

mastigo o pão do ano passado.

 

E será sempre assim daqui por diante.

Não consigo evacuar

o ano passado.

 

 

LIÇÃO

 

Tarde, a vida me ensina

esta lição discreta:

a ode cristalina

é a que se faz sem poeta.

 

 

EU, ETIQUETA

 

Em minha calça está grudado um nome

que não é meu de batismo ou de cartório,

um nome... estranho.

Meu blusão traz lembrete de bebida

que jamais pus na boca, nesta vida.

Em minha camiseta, a marca de cigarro

que não fumo, até hoje não fumei.

Minhas meias falam de produto

que nunca experimentei,

mas são comunicados a meus pés.

Meu tênis é proclama colorido

de alguma coisa não provada

por este provador de longa idade.

Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,

minha gravata e cinto e escova e pente,

meu copo, minha xícara,

minha toalha de banho e sabonete,

meu isso, meu aquilo,

desde a cabeça ao bico dos sapatos,

são mensagens,

letras falantes,

gritos visuais,

ordens de uso, abuso, reincidência,

costume, hábito, premência,

indispensabilidade,

e fazem de mim homem-anúncio itinerante,

escravo da matéria anunciada.

Estou, estou na moda.

É doce estar na moda,

ainda que a moda

seja negar minha identidade,

trocá-la por mil, açambarcando

todas as marcas registradas,

todos os logotipos do mercado.

Com que inocência demito-me de ser

eu que antes era e me sabia

tão diverso de outros, tão mim mesmo,

ser pensante, sentinte e solidário

com outros seres diversos e conscientes

de sua humana, invencível condição.

Agora sou anúncio,

ora vulgar ora bizarro,

em língua nacional ou em qualquer língua

(qualquer, principalmente).

E nisto me comprazo, tiro glória

de minha anulação.

Não sou — vê lá — anúncio contratado.

Eu é que mimosamente pago

para anunciar, para vender

em bares festas praias pérgulas piscinas,

e bem à vista exibo esta etiqueta

global no corpo que desiste

de ser veste e sandália de uma essência

tão viva, independente,

que moda ou suborno algum a compromete.

Onde terei jogado fora

meu gosto e capacidade de escolher,

minhas idiossincrasias tão pessoais,

tão minhas que no rosto se espelhavam,

e cada gesto, cada olhar,

cada vinco da roupa

resumia uma estética?

Hoje sou costurado, sou tecido,

sou gravado de forma universal,

saio da estamparia, não de casa,

da vitrina me tiram, recolocam,

objeto pulsante mas objeto

que se oferece como signo de outros

objetos estáticos, tarifados.

Por me ostentar assim, tão orgulhoso

de ser não eu, mas artigo industrial,

peço que meu nome retifiquem.

Já não me convém o título de homem.

Meu nome novo é coisa.

Eu sou a coisa, coisamente.

 

 

LEMBRETE

 

Se procurar bem, você acaba encontrando

não a explicação (duvidosa) da vida,

mas a poesia (inexplicável) da vida.

 

 

FAVELÁRIO NACIONAL

 

À memória de Alceu Amoroso Lima,

que me convidou a olhar para as favelas

do Rio de Janeiro.

1. PROSOPOPEIA

 

Quem sou eu para te cantar, favela,

que cantas em mim e para ninguém a noite inteira de sexta

e a noite inteira de sábado

e nos desconheces, como igualmente não te conhecemos?

 

Sei apenas do teu mau cheiro: baixou a mim, na viração,

direto, rápido, telegrama nasal

anunciando morte... melhor, tua vida.

 

Decoro teus nomes. Eles

jorram na enxurrada entre detritos

da grande chuva de janeiro de 1966

em noites e dias e pesadelos consecutivos.

Sinto, de lembrar, essas feridas descascadas na perna esquerda

chamadas Portão Vermelho, Tucano, Morro do Nheco,

Sacopã, Cabritos, Guararapes, Barreira do Vasco,

Catacumba catacumbal tonitruante no passado,

e vem logo Urubus e vem logo Esqueleto,

Tabajaras estronda tambores de guerra,

Cantagalo e Pavão soberbos na miséria,

a suculenta Mangueira escorrendo caldo de samba,

Sacramento... Acorda, Caracol. Atenção, Pretos Forros!

O mundo pode acabar esta noite, não como nas Escrituras se estatui.

Vai desabar, grampiola por grampiola,

trapizonga por trapizonga,

tamanco, violão, trempe, carteira profissional, essas drogas todas,

esses tesouros teus, altas alfaias.

 

Vai desabar, vai desabar

o teto de zinco marchetado de estrelas naturais

e todos, ó ainda inocentes, ó marginais estabelecidos, morrereis

pela ira de Deus, mal governada.

 

Padecemos este pânico, mas

o que se passa no morro é um passar diferente,

dor própria, código fechado: Não se meta,

paisano dos baixos da Zona Sul.

 

Tua dignidade é teu isolamento por cima da gente.

Não sei subir teus caminhos de rato, de cobra e baseado,

tuas perambeiras, templos de Mamallapuram

em suspensão carioca.

Tenho medo. Medo de ti, sem te conhecer,

medo só de te sentir, encravada

favela, erisipela, mal do monte

na coxa flava do Rio de Janeiro.

 

Medo: não de tua lâmina nem de teu revólver

nem de tua manha nem de teu olhar.

Medo de que sintas como sou culpado

e culpados somos de pouca ou nenhuma irmandade.

Custa ser irmão,

custa abandonar nossos privilégios

e traçar a planta

da justa igualdade.

Somos desiguais

e queremos ser

sempre desiguais.

E queremos ser

bonzinhos benévolos

comedidamente

sociologicamente

mui bem comportados.

Mas, favela, ciao,

que este nosso papo

está ficando tão desagradável.

Vês que perdi o tom e a empáfia do começo?

 

2. MORTE GAIVOTA

 

O bloco de pedra ameaça

triturar o presépio de barracos e biroscas.

Se deslizar, estamos conversados.

Toda gente lá em cima sabe disso

e espera o milagre,

ou, se não houver milagre, o aniquilamento instantâneo,

enquanto a Geotécnica vai tecendo o aranhol de defesas.

Quem vence a partida? A erosão caminha

nos pés dos favelados e nas águas.

Engenheiros calculam. Fotógrafos

esperam a catástrofe. Deus medita

qual o melhor desfecho, senão essa

eterna expectativa de desfecho.

 

O morro vem abaixo esta semana

de dilúvio

ou será salvo por Oxóssi?

Diáfana, a morte paira no esplendor

do sol no zinco.

Morte companheira. Morte,

colar no pescoço da vida.

Morte com paisagem marítima,

gaivota,

estrela,

talagada na manhã de frio

entre porcos, cabritos e galinhas.

Tão presente, tão íntima que ninguém repara

no seu hálito.

Um dia, possivelmente madrugada de trovões,

virá tudo de roldão

sobre nossas ultra, semi ou nada civilizadas cabeças

espectadoras

e as classes se unirão entre os escombros.

 

3. URBANIZA-SE? REMOVE-SE?

 

São 200, são 300

as favelas cariocas?

O tempo gasto em contá-las

é tempo de outras surgirem.

800 mil favelados

ou já passa de um milhão?

Enquanto se contam, ama-se

em barraco e a céu aberto,

novos seres se encomendam

ou nascem à revelia.

Os que mudam, os que somem,

os que são mortos a tiro

são logo substituídos.

Onde haja terreno vago,

onde ainda não se ergueu

um caixotão de cimento

esguio (mas vai-se erguer)

surgem trapos e tarecos,

sobe fumaça de lenha

em jantar improvisado.

 

Urbaniza-se? Remove-se?

Extingue-se a pau e fogo?

Que fazer com tanta gente

brotando do chão, formigas

de formigueiro infinito?

Ensinar-lhes paciência,

conformidade, renúncia?

Cadastrá-los e fichá-los

para fins eleitorais?

Prometer-lhes a sonhada,

mirífica, róseo-futura

distribuição (oh!) de renda?

Deixar tudo como está

para ver como é que fica?

Em seminários, simpósios,

comissões, congressos, cúpulas

de alta vaniloquência

elaborar a perfeita

e divina solução?

 

Um som de samba interrompe

tão sérias cogitações,

e a cada favela extinta

ou em vila transformada,

com direito a pagamento

de COMLURB, ISS, Renda,

outra aparece, larvar,

rastejante, desafiante,

de gente que nem a gente,

desejante, suspirante,

ofegante, lancinante.

O mandamento da vida

explode em riso e ferida.

 

4. FELIZ

 

De que morreu Lizélia no Tucano?

Da avalanche de lixo no barraco.

Em seu caixão de lixo e lama ela dormiu

o sono mais perfeito de sua vida.

 

5. O NOME

 

Me chamam Bonfim. A terra é boa,

não se paga aluguel, pois é do Estado,

que não toma tenência dessas coisas

por enquantemente. Na vala escorre

a merda dos barracos. Tem verme

n’água e n’alma. A gente se acostuma.

A gente não paga nada pra morar,

como ia reclamar?

 

Meu nome é Bonfim. Bonfim geral.

Que mais eu sonho?

 

6. MATANÇA DOS INOCENTES

 

Meu nome é Rato Molhado.

Meus porcos foram todos sacrificados

para acabar com a peste dos porcos.

Fiquei sem saúde e sem eles.

Uma por uma ou todas de uma vez

pereceram minhas riquezas. Em Inhaúma

sobram meus ratos incapturáveis.

 

7. FAZ DEPRESSA

 

Aqui se chama Faz Depressa

porque depressa se desfaz

a casa feita num relâmpago

em chão incerto, deslizante.

Tudo se faz aqui depressa.

Até o amor. Até o fumo.

Até, mais depressa, a morte.

Ainda mesmo se não se apressa,

a morte é sempre uma promessa

de decisão geral expressa.

 

8. GUAIAMU

 

Viemos de Minas, sim senhor,

fugindo da seca braba lá do Norte.

Em riba de cinco estacas fincadas no mangue

a gente acha que vive

com a meia graça de Deus Pai Nosso Senhor.

Diz-que isto aqui tem nome Nova Holanda.

Eu não dou fé, nem sei onde é Holanda velha.

Me dirijo à Incelência: Isso é mar?

Mar, essa porcaria que de tarde

a onda vem e limpa mais ou menos,

e volta a ser porcaria, porcamente?

Vossa Senhoria tá pensando

que a gente passa bem de guaiamu

no almoço e na janta repetido?

Guaiamu sumiu faz tempo.

Aqui só vive gente, bicho nenhum

tem essa coragem.

Espia a barriga,

espia a barriga estufada dos meninos,

a barriga cheia de vazio,

de Deus sabe o quê.

Ele não podendo sustentar todo mundo

pelo menos faz inchar a barriga até este tamanho.

 

9. OLHEIROS

 

Pipa empinada ao sol da tarde,

sinal que polícia vem subindo.

Sem pipa, sem vento,

sem tempo de empinar,

o assovio fino vara o morro,

torna o corpo invisível, imbatível.

 

10. SABEDORIA

 

Deixa cair o barraco, Ernestilde,

deixa rolar encosta abaixo, Ernestilde,

deixa a morte vir voando, Ernestilde,

deixa a sorte brigar com a morte, Ernestilde.

Melhor que obrigar a gente, Ernestilde,

a viver sem competência, Ernestilde,

no áureo, remoto, mítico

— lúgubre

conjunto habitacional.

 

11. COMPETIÇÃO

 

Os garotos, os cães, os urubus

guerreiam em torno do esplendor do lixo.

Não, não fui eu que vi. Foi o Ministro

do Interior.

 

12. DESFAVELADO

 

Me tiraram do meu morro

me tiraram do meu cômodo

me tiraram do meu ar

me botaram neste quarto

multiplicado por mil

quartos de casas iguais.

Me fizeram tudo isso

para meu bem. E meu bem

ficou lá no chão queimado

onde eu tinha o sentimento

de viver como queria

no lugar onde queria

não onde querem que eu viva

aporrinhado devendo

prestação mais prestação

da casa que não comprei

mas compraram para mim.

Me firmo, triste e chateado,

Desfavelado.

 

13. BANQUETE

 

Dia sim dia não, o caminhão

despeja 800 quilos de galinha podre,

restos de frigorífico,

no pátio do Matruco,

bem na cara do Morro da Caixa-d’Água

e do Morro do Tuiuti.

O azul das aves é mais sombrio

que o azul do céu, mas sempre azul

conversível em comida.

Baixam favelados deslumbrados,

cevam-se no monturo.

Que morador resiste

à sensualidade de comer galinha azul?

 

14. AQUI, ALI, POR TODA PARTE

 

As favelas do Rio transbordam sobre Niterói

e o Espírito Santo fornece novas pencas de favelados.

O Morro do Estado ostenta sem vexame sua porção de miséria.

Fonseca, Nova Brasília (sem ironia)

estão dizendo: “Um terço da população urbana

selou em nós a fraternidade de não possuir bens terrestres”.

Os verdes suspensos da Serra em Belo Horizonte

envolvem de paisagem os barracos da Cabeça de Porco.

Se não há torneiras, canos de esgoto, luz elétrica,

e o lixo é atirado no ar e a enchente carrega tudo, até os vivos,

resta o orgulho de ter aos pés os orgulhosos edifícios do Centro.

Belo Horizonte, dor minha muito particular.

Entre favelas e alojamentos eternamente provisórios de favelados expulsos

(pois carece mandá-los para “qualquer parte”, pseudônimo do Diabo),

São Paulo cresce imperturbavelmente em esplendor e pobreza,

com 20 mil favelados no ABC.

Em Salvador, os alagados jungidos à última condição humana

colhem, risonhos, a chuva de farinha, macarrão e feijão

que jorra da visita do Presidente.

No Recife...

Quando se aterra o mangue

fogem os miseráveis para as colinas

entre dois rios. E tudo continua

com outro nome.

 

15. INDAGAÇÃO

 

Antes que me urbanizem a régua, compasso,

computador, cogito, pergunto, reclamo:

Por que não urbanizam antes

a cidade?

Era tão bom que houvesse uma cidade

na cidade lá embaixo.

 

16. DENTRO DE NÓS

 

Guarda estes nomes: bidonville, taudis, slum,

witch-town, sanky-town,

callampas, cogumelos, corraldas,

hongos, barrio paracaidista, jacale,

cantegril, bairro de lata, gourbville,

champa, court, villa miseria,

favela.

Tudo a mesma coisa, sob o mesmo sol,

por este largo estreito do mundo.

Isto consola?

É inevitável, é prescrito,

lei que não se pode revogar

nem desconhecer?

Não, isto é medonho,

faz adiar nossa esperança

da coisa ainda sem nome

que nem partidos, ideologias, utopias

sabem realizar.

Dentro de nós é que a favela cresce

e, seja discurso, decreto, poema

que contra ela se levante,

não para de crescer.

 

17. PALAFITAS

 

Este nasce no mangue, este vive no mangue.

No mangue não morrerá.

O maravilhoso Projeto X vai aterrar o mangue.

Vai remover famílias que têm raízes no mangue

e fazer do mangue área produtiva.

O homem entristece.

Aquilo é sua pátria,

aquele, seu destino,

seu lodo certo e garantido.

 

18. CIDADE GRANDE

 

Que beleza, Montes Claros.

Como cresceu Montes Claros.

Quanta indústria em Montes Claros.

Montes Claros cresceu tanto,

ficou urbe tão notória,

prima rica do Rio de Janeiro,

que já tem cinco favelas

por enquanto, e mais promete.

 

19. CONFRONTO

 

A suntuosa Brasília, a esquálida Ceilândia

contemplam-se. Qual delas falará

primeiro? Que tem a dizer ou a esconder

uma em face da outra? Que mágoas, que ressentimentos

prestes a saltar da goela coletiva

e não se exprimem? Por que Ceilândia fere

o majestoso orgulho da flórea Capital?

Por que Brasília resplandece

ante a pobreza exposta dos casebres

de Ceilândia,

filhos da majestade de Brasília?

E pensam-se, remiram-se em silêncio

as gêmeas criações do gênio brasileiro.

 

20. GRAVURA BAIANA

 

Do alto do Morro de Santa Luzia,

Nossa Senhora de Alagados, em sua igrejinha nova,

abençoa o viver pantanoso dos fiéis.

Por aqui andou o Papa, abençoou também.

A miséria, irmãos, foi dignificada.

Planejar na Terra a solução

fica obsoleto. Sursum corda!

Haverá um céu privativo dos miseráveis.

 

21. A MAIOR

 

A maior! A maior!

Qual, enfim, a maior

favela brasileira?

A Rocinha carioca?

Alagados, baiana?

Um analista indaga:

Em área construída

(se construção se chama

o sopro sobre a terra

movediça, volúvel,

ou sobre água viscosa)?

A maior, em viventes,

bichos, homens, mulheres?

Ou maior em oferta

de mão de obra fácil?

Maior em aparelhos

de rádio e de tevê?

Maior em esperança

ou maior em descrença?

A maior em paciência,

a maior em canção,

rainha das favelas,

imperatriz-penúria?

Tantos itens... O júri

declara-se perplexo

e resolve esquivar-se

a qualquer veredicto,

pois que somente Deus

(ou melhor, o Diabo)

é capaz de saber

das mores, a maior.