UNIDADE

 

As plantas sofrem como nós sofremos.

Por que não sofreriam

se esta é a chave da unidade do mundo?

 

A flor sofre, tocada

por mão inconsciente.

Há uma queixa abafada

em sua docilidade.

 

A pedra é sofrimento

paralítico, eterno.

 

Não temos nós, animais,

sequer o privilégio de sofrer.

 

 

A CASA DO TEMPO PERDIDO

 

Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.

Bati segunda vez e outra mais e mais outra.

Resposta nenhuma.

A casa do tempo perdido está coberta de hera

pela metade; a outra metade são cinzas.

 

Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando

pela dor de chamar e não ser escutado.

Simplesmente bater. O eco devolve

minha ânsia de entreabrir esses paços gelados.

A noite e o dia se confundem no esperar,

no bater e bater.

 

O tempo perdido certamente não existe.

É o casarão vazio e condenado.

 

 

A GRANDE DOR DAS COUSAS QUE PASSARAM

 

A grande dor das cousas que passaram*1

transmutou-se em finíssimo prazer

quando, entre fotos mil que se esgarçavam,

tive a fortuna e graça de te ver.

 

Os beijos e amavios que se amavam,

descuidados de teu e meu querer,

outra vez reflorindo, esvoaçaram

em orvalhada luz de amanhecer.

 

Ó bendito passado que era atroz,

e gozoso hoje terno se apresenta

e faz vibrar de novo a minha voz

 

para exaltar o redivivo amor

que de memória-imagem se alimenta

e em doçura converte o próprio horror!

 

 

A ILUSÃO DO MIGRANTE

 

Quando vim da minha terra,

se é que vim da minha terra

(não estou morto por lá?),

a correnteza do rio

me sussurrou vagamente

que eu havia de quedar

lá donde me despedia.

 

Os morros, empalidecidos

no entrecerrar-se da tarde,

pareciam me dizer

que não se pode voltar,

porque tudo é consequência

de um certo nascer ali.

 

Quando vim, se é que vim

de algum para outro lugar,

o mundo girava, alheio

à minha baça pessoa,

e no seu giro entrevi

que não se vai nem se volta

de sítio algum a nenhum.

 

Que carregamos as coisas,

moldura da nossa vida,

rígida cerca de arame,

na mais anônima célula,

e um chão, um riso, uma voz

ressoma incessantemente

em nossas fundas paredes.

 

Novas coisas, sucedendo-se,

iludem a nossa fome

de primitivo alimento.

As descobertas são máscaras

do mais obscuro real,

essa ferida alastrada

na pele de nossas almas.

 

Quando vim da minha terra,

não vim, perdi-me no espaço,

na ilusão de ter saído.

Ai de mim, nunca saí.

Lá estou eu, enterrado

por baixo de falas mansas,

por baixo de negras sombras,

por baixo de lavras de ouro,

por baixo de gerações,

por baixo, eu sei, de mim mesmo,

este vivente enganado, enganoso.

 

 

APARIÇÃO AMOROSA

 

Doce fantasma, por que me visitas

como em outros tempos nossos corpos se visitavam?

Tua transparência roça-me a pele, convida

a refazermos carícias impraticáveis: ninguém nunca

um beijo recebeu de rosto consumido.

 

Mas insistes, doçura. Ouço-te a voz,

mesma voz, mesmo timbre,

mesmas leves sílabas,

e aquele mesmo longo arquejo

em que te esvaías de prazer,

e nosso final descanso de camurça.

 

Então, convicto,

ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve

e continua existindo, puro som.

Aperto... o quê? A massa de ar em que te converteste

e beijo, beijo intensamente o nada.

 

Amado ser destruído, por que voltas

e és tão real assim tão ilusório?

Já nem distingo mais se és sombra

ou sombra sempre foste, e nossa história

invenção de livro soletrado

sob pestanas sonolentas.

Terei um dia conhecido

teu vero corpo como hoje o sei

de enlaçar o vapor como se enlaça

uma ideia platônica no espaço?

 

O desejo perdura em ti que já não és,

querida ausente, a perseguir-me, suave?

Nunca pensei que os mortos

o mesmo ardor tivessem de outros dias

e no-lo transmitissem com chupadas

de fogo aceso e gelo matizados.

 

Tua visita ardente me consola.

Tua visita ardente me desola.

Tua visita, apenas uma esmola.

 

 

AS IDENTIDADES DO POETA

 

De manhã pergunto:

Com quem se parece Fernando Pessoa?

Com seus múltiplos eus, expostos, oblíquos

em véu de garoa?

Com tripulantes-máscaras de esquiva canoa?

Com elfo imergente

em frígida lagoa?

Com a garra, a juba, o pelo amaciado

de velha leoa?

 

Quem radiografa, quem esclarece

Fernando Pessoa,

feixe de contrastes, união de chispas,

aluvião de lajes

figurando catedral ausente de cardeais,

com duendes oficiando absconso ritual

vedado a profanos?

 

Que sina, frustrado destino, foi a coroa

desse Pessoa,

morto redivivo, presentifuturo

no céu de Lisboa?

 

Que levava (leva) no bolso

Fernando Reis de Campos Caeiro Pessoa:

irônico bilhete de identidade,

identity card

válido por cinco anos ou pela eternidade?

 

Que leva na alma:

augúrios de sibila,

Portugal a entristecer,

a desastrosa máquina do universo?

 

Fernando Pessoa caminha sozinho

pelas ruas da Baixa,

pela rotina do escritório

mercantil hostil

ou vai, dialogante, em companhia

de tantos si-mesmos

que mal pressentimos

na seca solitude

de seu sobretudo?

 

Afinal, quem é quem, na maranha

de fingimento que mal finge

e vai tecendo com fios de astúcia

personas mil na vaga estrutura

de um frágil Pessoa?

 

Quem apareceu, desapareceu na proa

de nave-canção

e confunde nosso pensar-sentir

com desconforto de ave poesca

e doçura de flauta de Pã?

 

À noite divido-me:

anseio saber,

prefiro ignorar

esse enigma chamado Fernando Pessoa.

 

 

CANÇÃO FINAL

 

Oh! se te amei, e quanto!

Mas não foi tanto assim.

Até os deuses claudicam

em nugas de aritmética.

 

Meço o passado com régua

de exagerar as distâncias.

Tudo tão triste, e o mais triste

é não ter tristeza alguma.

 

É não venerar os códigos

de acasalar e sofrer.

É viver tempo de sobra

sem que me sobre miragem.

 

Agora vou-me. Ou me vão?

Ou é vão ir ou não ir?

Oh! se te amei, e quanto,

quer dizer, nem tanto assim.

 

 

DIANTE DE UMA CRIANÇA

 

Como fazer feliz meu filho?

Não há receitas para tal.

Todo o saber, todo o meu brilho

de vaidoso intelectual

 

vacila ante a interrogação

gravada em mim, impressa no ar.

Bola, bombons, patinação

talvez bastem para encantar?

 

Imprevistas, fartas mesadas,

louvores, prêmios, complacências,

milhões de coisas desejadas,

concedidas sem reticências?

 

Liberdade alheia a limites,

perdão de erros, sem julgamento,

e dizer-lhe que estamos quites,

conforme a lei do esquecimento?

 

Submeter-me à sua vontade

sem ponderar, sem discutir?

Dar-lhe tudo aquilo que há

de entontecer um grão-vizir?

 

E se depois de tanto mimo

que o atraia, ele se sente

pobre, sem paz e sem arrimo,

alma vazia, amargamente?

 

Não é feliz. Mas que fazer

para consolo desta criança?

Como em seu íntimo acender

uma fagulha de confiança?

 

Eis que acode meu coração

e oferece, como uma flor,

a doçura desta lição:

dar a meu filho meu amor.

 

Pois o amor resgata a pobreza,

vence o tédio, ilumina o dia

e instaura em nossa natureza

a imperecível alegria.

 

 

ENUMERAÇÃO

 

Velhos amores incompletos

no gelo seco do passado,

velhos furores demenciais

esmigalhados no mutismo

de demônios crepusculares,

velhas traições a doer sempre

na anestesia do presente,

velhas jogadas de prazer

sem a menor deleitação,

velhos signos de santidade

atravessando a selva negra

como cervos escorraçados,

velhos gozos de torva índole,

velhas volúpias estagnadas,

velhos braços e mãos e pés

em transtornada oscilação

logo detida, velhos choros

que não puderam ser chorados,

velhos issos, velhos aquilos

dos quais sequer me lembro mais...

 

 

GLAURA REVIVIDA

 

Certa rua começa algures e vem dar no meu coração.

Nessa rua passa um conto feito de pedacinhos de histórias

de ouro, de velhos, de estrume, de seleiros falidos.

Nessa rua acaba de passar

a menina e moça de tranças e blue jeans pela calçada.

É um violão andando, um som

unindo algures de ontem a nenhures de eternidade.

 

 

PERTURBAÇÃO

 

Quando estou, quando estou apaixonado

tão fora de mim eu vivo

que nem sei se vivo ou morto

quando estou apaixonado.

 

Não pode a fera comigo

quando estou, quando estou apaixonado,

mas me derrota a formiga

se é que estou apaixonado.

 

Estarei, quem, e entende, apaixonado

neste arco de danação?

Ou é a morta paixão

que me deixa, que me deixa neste estado?

 

 

VERBOS

 

Sofrer é outro nome

do ato de viver.

Não há literatura

que dome a onça escura.

 

Amar, nome-programa

de muito procurar.

Mas quem afirma que eu

sei o reflexo meu?

 

Rir, astúcia do rosto

na ameaça de sentir.

Jamais se soube ao certo

o que oculta um deserto.

 

Esquecer, outro nome

do ofício de perder.

Uma inútil lanterna

jaz em cada caverna.

 

Verbos outros imperam

em momentos acerbos,

Mas para que nomeá-los,

imperfeitos gargalos?


* Verso de Camões (N.A.)