2.15. Biógrafo

Com certeza vão esconder o mais importante para um biógrafo: as fraquezas do biografado. (Edgard Cavalheiro)1



Ao lado da escrita de teor crítico literário, desde os primeiros momentos Edgard Cavalheiro cultiva também os estudos biográficos. É assim que, sete anos depois de iniciar sua produção escrita em periódicos nacionais, em 1940, com quase três centenas de artigos publicados, lança seu primeiro livro, a biografia do poeta Fagundes Varela.

No início dos anos 40, Sérgio Milliet, um dos diretores da coleção Caderno Azul, da editora Guaíra, sugere a Edgard Cavalheiro que reúna em livro os estudos sobre a escrita biográfica, que o escritor vinha divulgando na imprensa. Em 1943 chega às livrarias Biografias e biógrafos2, livro que apresenta questões ligadas à escrita biográfica. Apesar de se tratar de ensaio substancioso, o autor subestima o livro, nas dedicatórias dos volumes endereçados a conhecidos, localizadas pela pesquisa. Remete o autor à “preguiça”, afirma que a obra “não vale nada”, e que se trata de um “opúsculo sem nenhum caráter”3.

Em 1946, Edgard Cavalheiro publica obra sobre a vida e a obra do poeta espanhol Federico Garcia Lorca, pela Livraria Martins Editora. Em 1953 saem dois ensaios sobre Álvares de Azevedo e Fagundes Varela, pela editora Melhoramentos e, em 1955, Monteiro Lobato: vida e obra. A elaboração desse livro teve como marco inicial simbólico o ano de 1940. Nesse ano, Edgard Cavalheiro envia um exemplar do seu primeiro livro publicado, Fagundes Varela, a Monteiro Lobato. Trata-se de um dos primeiros episódios da amizade que se desenvolverá entre os dois autores, afinidade que, anos depois, fomentará o lançamento de suas principais obras. Nelson Palma Travassos avalia:

Lobato teve muitos amigos. Muitos e incondicionais. Atemo-nos entretanto somente a dois deles, que são os que interessam a esta obra. O maior, a quem ele mais distinguia, foi Octalles Marcondes Ferreira, que o acompanhou desde os tempos da Revista do Brasil. Era a opinião de Lobato. Mas houve outro, que lhe surgiu no fim da vida, e para quem ele dedicou especial estima – Edgard Cavalheiro […] a Edgard Cavalheiro Lobato deve a publicação do seu maior livro, A barca de Gleyre. Dele partiu a ideia, dele o trabalho seletivo. E foi pena que o arquivo de Lobato não tivesse permanecido em suas mãos, depois da morte do autor de Urupês4.

O “arquivo de Lobato”, citado, refere-se à grande quantidade de matéria documental que Monteiro Lobato deixou, pouco antes de sua mudança para a Argentina, em 1946, com Edgard Cavalheiro. De acordo com o biógrafo, eram “milhares de cartas e documentos” que, segundo Lobato, nas palavras de Cavalheiro, “talvez se prestasse para reconstituir certa época da vida literária brasileira”5. Sobre o material epistolar, comentou Araújo Nabuco em coluna de jornal, “cerca de 1.200 (mil e duzentas!) cartas e dentre elas as dos mais famosos nomes da nossa literatura […] Quanto “veneno” não se poderia fazer com esses documentos...”6.

Monteiro Lobato ruma para o Prata a 6 de junho de 19467. Exatos quatro meses depois, Edgard Cavalheiro escreve para Buenos Aires:

Creio que não há razões de vulto para ocultar-lhe meus intuitos: escrever a tua vida, contar aos brasileiros de hoje, de amanhã (e de depois de amanhã, como diria o Apporelly) as lutas, glórias e decepções do velho Lobato. Há muito que penso nisso; agora é uma ideia fixa. O trabalho é grande, demandará algum tempo, mas o assunto - posso dizer com conhecimento de causa - vale a pena. Ou como diria nosso caipira, paga a pena. A história da tua vida é um pouco a história do Brasil contemporâneo. O arquivo oferece um material muito bom, mas não é tudo. É preciso reconstituir coisas do passado, começar do começo. Não sei se conheces a vida do Bernard Shaw, contada pelo Frank Harris. Este biógrafo, durante o período de “colheita de material” vivia amolando o biografado com pedidos de dados e esclarecimentos, até que Shaw, meio cansado, respondeu-lhe de que não via interesse algum em perder tempo com um biógrafo que, no mínimo, iria transformá-lo num marinheiro de sua Majestade. Que para ele, Shaw, seria preciso um Shakespeare. Para Lobato, seria preciso alguém como Euclides, pois entre nós não existe “um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades...”. O que tínhamos – Euclides – foi morto como um cão sem dono. O outro – Lobato – não pode falar dele mesmo, pois Wilde já observou que é só ironicamente que podemos falar na primeira pessoa. E para contar a história do livro, da literatura infantil, do petróleo, do ferro, de tantas coisas mais, precisa-se de muitas coisas, menos de ironia e impropérios, de palavrões, talvez, mas de ironias não.8

2.15.1Escritor dedicado à pesquisa, Edgard Cavalheiro percebe o grande potencial de exploração do importante arquivo que Monteiro Lobato, intencionalmente ou não, lhe confiara e, após o falecimento deste em 1948, publica sua biografia em 1955. O livro torna-se a principal realização bibliográfica de Edgard Cavalheiro.

O escritor Paulo Rónai defende a tese de que Monteiro Lobato escolheu seu biógrafo. O encaminhamento do arquivo de Lobato para Cavalheiro, portanto, seria o indício de uma estratégia que culminou na orientação do trabalho de seleção de documentos para a biografia publicada em 19559. Três anos antes da partida de Lobato para a Argentina, ou seja, em 1943, no entanto, o repórter Justino Martins registra: “Há muita coisa engraçada na vida de Monteiro Lobato que fará a delícia de seu futuro biógrafo (Edgard Cavalheiro já se candidatou)”10.

O arquivo de Monteiro Lobato confiado a Edgard Cavalheiro, material que tantas atenções recebeu da imprensa em inúmeras notas11, dispersou-se. Segundo Nelson Palma Travassos, no livro Minhas memórias dos Monteiros Lobatos, cujo trecho em questão foi transcrito acima, o arquivo não permaneceu com Edgard Cavalheiro. Cassiano Nunes, escritor que trabalhou com Edgard Cavalheiro, deixou, no início dos anos de 1980, um testemunho na mesma direção: “eu soube […] que depois que a biografia foi escrita, Dona Purezinha exigiu a volta do material”12.



2.15.2


1 Carta a Nelson Werneck Sodré. SODRÉ, N. W. Em defesa da cultura. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, p. 269.

2 Curitiba: Guaíra, 1943. (Caderno Azul, 12).

3 Cf. item “Dedicatórias”, nesta dissertação. Para um estudo detalhado a respeito dessa obra consultar GONÇALVES, Márcia de Almeida. Em terreno movediço: biografia e história na obra de Octávio Tarquínio de Sousa. São Paulo, 2003. 339 f. Tese (Doutorado História Social – Orientação: Elias Thomé Saliba) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

4 TRAVASSOS, Nelson Palma. Minhas memórias dos Monteiros Lobatos. São Paulo: Edart, 1964, p. 237-238.

5 CAVALHEIRO, Edgard. Monteiro Lobato: vida e obra. 2. t. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1955, p. 13.

6 NABUCO, Araújo. Sociedade livro do mês. Jornal de Notícias, São Paulo, 28 jul. 1946. Mundo literário.

7 MONTEIRO Lobato seguiu para Buenos Aires. Folha da Manhã, São Paulo, 7 jun. 1946.

8 CAVALHEIRO, Edgard. Carta para Monteiro Lobato. São Paulo, 6 out. 1946. UNICAMP, IEL, CEDAE, ref. MLb 3.2.00452.cx9.

9 RÓNAI, Paulo. Um escritor encontra o seu biógrafo. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 6 nov. 1955.

10 LOBATO, Monteiro. Um mundo sem roupa suja. Revista do Globo, Porto Alegre, p. 52, 25 set. 1943. Entrevista concedida a Justino Martins. Parênteses dele.

11 A esse respeito ver CONDÉ, João. Aventuras de um colecionador em São Paulo (partes 1 a 4). O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 31 out., 7 nov., 14 nov. e 21 nov. 1953. Ainda sobre o arquivo, escreve Cavalheiro para Lobato em carta já referida, de 6 de outubro de 1946: “O “arquivo” está sendo motivo de crônicas, visitas, o diabo. Tenho me defendido com unhas e dentes, pois todos querem “coisas”. Uma ova que darei.”

12 Museu da Imagem e do Som-SP, Midiateca, Projeto Memória de Monteiro Lobato, ref. A.0818A e B. Purezinha era a viúva de Monteiro Lobato.