CAVALHEIRO, Edgard. Uma biografia. Cultura, São Paulo, set. 1940.
Poucos são os escritores entre nós que se arriscam a biografar vultos de nosso passado. As dificuldades e a série de empecilhos deparados a todo momento, desanimam os mais bem intencionados. Tudo é difícil. Uma simples consulta bibliográfica demanda tempo e paciência. Tempo e paciência quase sempre inutilmente consumidos, pois o hábito de ocultarem informes ou de sabotagem material está muito arraigado, não somente entre os particulares, como até mesmo entre as próprias instituições criadas e mantidas para tais fins. Dispensável mencionar nomes ou instituições. Lembro, de passagem, para exemplificar, as quatro ou cinco cartas que a propósito de Fagundes Varela dirigi à Academia Brasileira de Letras. Até hoje aguardo resposta. O caso não é único nem excepcional.
Penso nessas pequenas misérias ao concluir a leitura de Santos Dumont, do sr. Gondim da Fonseca. Imagino, como desculpa para a sua pobreza bibliográfica, as cartas que o autor terá escrito, as recusas que terá ouvido, e o número de incidentes desagradáveis que terá suportado para levar a cabo o seu trabalho. É a primeira biografia sobre o grande inventor brasileiro. Infelizmente está longe de ser a biografia exigida pela figura extraordinária de Santos Dumont. Sobretudo na parte referente à documentação, o volume pode ser considerado como fraquíssimo. Basta acentuar que o autor não tomou conhecimento do riquíssimo material existente no Museu Paulista. São duas salas, amplas e bem arrumadas, com uma infinidade de objetos de uso pessoal, de trabalhos executados nas preliminares dos seus inventos, sem falarmos na quantidade de fotografias das fases mais diversas e características desse “paulista honorário”, talvez a única figura brasileira de real projeção no estrangeiro. Se o sr. Gondim da Fonseca tivesse feito essa imprescindível visita ao Museu, não teria escrito com tanta convicção esta notinha: “Não existe, infelizmente, uma única boa obra sobre Bartolomeu de Gusmões, o que é pena”. É desconhecer o arquivo existente no já referido Museu Paulista e o exaustivo e completo trabalho de pesquisa de Afonso de Taunay, em dois grossos volumes.
São essas as lacunas que mais de perto nos alertaram quanto à pobreza de documentação apresentada pelo sr. Gondim da Fonseca neste volume que Vecchi editor apresentou com tanto cuidado. Deixando, porém, de lado esse ângulo importantíssimo numa biografia, que encontramos que possa compensá-lo? O estilo? A interpretação convincente ou a compreensão exata da figura estudada?
A prosa do sr. Gondim da Fonseca não é má. Ele escreve com grande vivacidade e humor. Mas que desleixo, santo Deus! Que irritante uso e abuso do presente do indicativo. Certas páginas nos deixam a impressão de que ele não está retratando Santos Dumont, mas sim fazendo a sua autobiografia. Vejam esses pedacinhos: “Minha mãe, coitada, se desgraçava toda para vir de Santa Teresa pagar as visitas das pessoas que a iam ver para a consolar, depois da morte do velho. Acabou doente e o nosso médico, que era o dr. Guarany Goulart (talvez vocês conhecessem pois ele viveu até 1920 ou 22) pediu-lhe que se transferisse para a cidade afim de a não obrigar a subir o morro. Viemos para a rua da Saúde e foi lá que ela morreu. Morreu em 1905”. Acham pouco? Mas ele continua, imperturbável. Não custa nada transcrever: “O cais do porto veio com o Passos. Vadiei muito, em guri, por aquelas paragens”. É o caso de perguntarmos: e nós, com isso?
Afinal de contas, estamos lendo uma biografia de Alberto Santos Dumont e não a história sem interesse do menino Gondim da Fonseca. No prefácio, como que prevenindo essas objeções, ele deixou acentuado: “Não pode conseguintemente o meu livro ser exalçado ou condenado por uma só passagem, um só trecho, uma só frase: há de considerar-se em conjunto, visto como o subordinei a um plano geral”.
É uma desculpa prévia. Mas não nos convence. A verdade é que não se trata de uma frase ou trecho apanhados depois de cuidadosa procura. Pelas trezentas e poucas páginas do volume, tanto as frases como os trechos (e, às vezes, páginas inteiras) vão se amontoando e o conjunto, está claro, sofre profundamente com isso. E não se pode, com a maior boa vontade do mundo, considerar frase ou trecho, os treze capítulos que enchem as páginas 101 a 176. Estas setenta e tantas páginas, destinadas à reconstituição do Rio de Janeiro em 1903, nada tem a ver com a vida de Santos Dumont. Para contar as homenagens prestadas pelo Brasil ao seu filho que regressava vitorioso da Europa o autor espalha-se por todos esses capítulos, onde descreve como se pensava, como se escrevia, se comia e se bebia no Rio, em princípios do século. Mostra-nos, também, como era a cidade, seus meios de transportes, seus habitantes, o que vestiam, quais os ordenados que percebiam, como se divertiam, quais os grandes homens públicos etc. Nem uma vez encontramos o nome de Santos Dumont ou qualquer referência à sua vida. Além de constituir uma evocação histórica já realizada brilhantemente por Luís Edmundo, que importância moral na vida do homem ou na história dos inventos de Santos Dumont, têm tudo isso. Moldou-lhe, modificou-lhe o caráter? Abriu novos rumos para as suas invenções? Note-se que ele vinha de Paris, a passeio, e por pouco tempo. Sua estada não ultrapassou os dezesseis dias. Para quê, então, todos esses informes históricos, uma vez que o biografado não vivia nesse meio, não condicionava sua vida a tal ambiente? Só há uma explicação: que isso não passava de um pretexto para o autor fazer algumas perfídias e muitas gracinhas, absolutamente deslocadas e impróprias num trabalho dessa natureza. Leiam os trechos sobre Herbert Moses, de um mau gosto e de uma impropriedade incríveis. Sobre impropriedade, principalmente de expressões, o sr. Gondim da Fonseca é fértil. Mencionamos uma, para que essas notas não se alonguem muito: “E mais do que os seus sucessos, os seus desastres celebrizavam-no, demonstravam a sua têmpera dura, de obstinado, de trabalhador, de verdadeiro “bull-dog” da aerostação”. Imagem nada feliz, sem a menor dúvida.
A conclusão se impõe e é tempo de fazê-la: Santos Dumont é uma biografia escrita por um polemista desabusado. Ora, nada mais contraditório e errado do que um polemista a meter-se em fazer biografias. Salve-se, contudo, nesse trabalho, a defesa de prioridade do “mais pesado que o ar”, disputada ao nosso patrício pelos irmãos Orville e Wilbur Wright. Por estar no seu elemento, o sr. Gondim da Fonseca convence, defendendo para justo o título de “pai da aviação”.