4.12. Seleta de artigos


CAVALHEIRO, Edgard. Aventuras e desventuras de um biógrafo. Jornal da Manhã, [São Paulo], 25 maio 1941.



O estímulo de amigos e a paixão pelo assunto, levou-me algum tempo ao exercício da crítica literária. Um dia, com um volume ao lado e o papel na máquina, fiz mentalmente esta reflexão: “tenho comentado inúmeros livros, mas seria capaz de escrever algum?”. Ocorreu-me, então, certa conversa com médico amigo, que confessava ter operado mais de cem clientes de apendicite e ainda ignorava como “era”, em verdade, um apêndice inflamado. Não sentira, pessoalmente, os sintomas do caso, ignorava as reações psíquicas do paciente, enfim, desconhecia a doença “por dentro”. Não ocultava o mórbido desejo de ser vítima, para mais tarde, dizia ele, “falar com conhecimento de causa”.

Escrever sobre livros está longe de ter alguma semelhança com operar apêndices. Mas, criticá-los e não ter ainda nenhum volume publicado, eis o problema que, apesar de tudo, começou a me apoquentar. Saberia eu o que representa “um livro”, para com tanta convicção continuar falando deles? Meu amigo médico embora desejasse sinceramente ter um “apêndice-prova”, não se atrevia a tanto, ou não podia tentar a experiência. Um livro, porém, não é um apêndice inflamado. O jeito era tentar a prova, para tirar a cisma. A experiência deu resultado e Fagundes Varela aí está. Acontece, no entanto, que dado o modesto resultado desse trabalho, ando agora numa roda viva para responder satisfatoriamente à curiosidade de amigos ou simples leitores que desejam saber o que publicarei em seguida, qual o futuro biografado e outras perguntas pelo estilo. É um assunto particularíssimo, talvez um tanto descabido numa crônica. Mesmo porque, pensando bem, há tantas coisas interessantes e dignas deste espaço, que não deixa de ser audácia e de beirar pelo cabotinismo, comentários em torno de um livro entre os milhares que se publicaram no Brasil, no ano de 1940. Confesso, no entanto, que há meses penso nestas linhas. E se não as escrevi antes, foi pelo instintivo e visceral horror no emprego da primeira pessoa. Tanto usam e abusam por aí do presente do indicativo (em assuntos, quase sempre, absolutamente impessoais), que só depois de longas hesitações, disponho-me a contar algumas das aventuras e desventuras acontecidas no período da colheita do material, isto é, durante os anos em que andei esmiuçando jornais e revistas, em arquivos públicos e particulares. Durante o tempo em que andei interrogando pessoas, descobrindo parentes do meu heroi, percorrendo idênticos caminhos que os percorridos por ele, embebendo-me em paisagens que deslumbraram seus olhos, lendo autores que ele terá lido e sobretudo, analisando pachorrentamente tudo que saiu de sua pena. E contarei, não pela possível vaidade que possa existir no autor que concluiu satisfatoriamente o seu trabalho e o viu compreendido e aplaudido por quase todos. Não. Contarei, por ajuizar que, de certa forma, estes pequenos e muitas vezes mesquinhos incidentes possam servir de lição ou roteiro a outros que tentem semelhante empresa. De uma coisa estou certo: quem mais aprendeu, em Fagundes Varela, foi o seu humilde autor. Nada paga, na verdade, o deslumbramento das lições recebidas aqui e ali, as surpresas que a cada passo surgiam. Um verdadeiro curso de romantismo, poesia, psicologia, história etc. Um verdadeiro curso, também, e sobretudo, de “conhecimento do homem”, do homem na sua mais séria e ao mesmo tempo pitoresca doença: a vaidade literária.

Estou a ver aquele “sabedor de coisas”, usando de toda malícia e esperteza para apanhar informes, e nada soltando, nem um indício sequer. Com que habilidade de velho experimentado e causídico ele ia me levando para a sua rede e armava o bote, certo de apanhar a vítima desprevenida! Artes que empregava com verdadeira volúpia, uma vez que o seu interesse no assunto era antes de diletante que propriamente de autor angustiado por falta de dados, de pontos de partida. No fundo, o homem não possuía quase nada, mas o pouco que possuía, com que avareza, com que egoísmo, com que ciúmes ele defendia de olhares estranhos aos seus. Uma simples data ou certidão, ou mesmo um poema que julgava inédito, era-lhe preciosidade que valorizava por subentendidos, por sorrisos e olhares cheios de intenções ocultas. Se ele soubesse que na terceira ou quarta visita levei-lhe dados falsos e documentos que não eram verdadeiros senão em parte, e que esses dados e documentos serviram para fazê-lo soltar o que possuía, certo de que eles nada mais valiam... Se ele soubesse que eu não possuía cartas de que garantia ter cópias! Pequenos “truques” contra a esperteza de quem, na primeira vista, conseguiu burlar a minha boa fé e ingenuidade. Com que intuito? Divulgar em primeira mão o inédito ou o fato até então desconhecido. Vaidade de “rato” de biblioteca. Aliás, a fauna é imensa e variada e com ela terá que se haver quem quer que tente incursões por esse domínio. Sobretudo se está lidando com membros dos “Institutos Históricos”. É considerável o número de indivíduos que julgam o documento original como o maior galardão de suas glórias de escritores. Não perceberam ainda que o documento em si pouco vale se na análise que dele se fizer ou na sua interpretação, o autor não souber situá-lo convenientemente ou dele tirar todo o partido possível. Convém bater na tecla: o documento é importante, mas não é tudo. Que valor terá ele nas mãos de um simples copista ou de um desses historiadores convictos de que a história é transcrição? Nenhum, está claro. Ou este, bem definido: o de facilitar aos que nele procuram pontos de apoio para conclusões psicológicas, históricas, sociais ou, simplesmente, cronológicas. Um documento, mesmo quando importante sob qualquer ponto de vista, não vale pelo que revela, mas sim pelo que dele podemos concluir. A interpretação é que importa. Mas pessoas que possuem documentos e os guardam avaramente para depois publicá-los pela glória de se revelarem grandes pesquisadores, não faltam, infelizmente, entre nós.

Contarei de um, que a piedade me obriga a não revelar o nome. A piedade e a firme intenção de não dar caráter pessoal a estas notas. Aliás, este é de um pitoresco que se aproxima do cômico. Nas vésperas da saída do livro, cheio de intimidades e de abraços, revelava grande curiosidade, querendo saber em que provas estava, quando sairia, se ainda estava em tempo para mais alguns acréscimos etc. Quando lhe afirmei que não mais haveria tempo para a alteração de uma vírgula, pude notar a alegria como que recebeu a nova. Dias depois, precisamente três dias, um vespertino da capital publica um artigo com um documento que eu lhe solicitara insistentemente e que ele sempre negara possuir. O documento de pouca ou nenhuma importância, já lhe deu margem para dois ou três artigos. Não passa, é claro, de simples pretexto, uma vez que não esclarece nem explica nada. Interessante é que nesses artigos, a partir do segundo, compreende-se, ele começa, sempre, contando a vida do poeta, com dados extraídos do meu livro, tendo, porém, a extrema cautela de nem de leve mencioná-lo. Desconhece-o completamente. Mais curioso é este pormenor: nas 350 páginas do volume tenho plena consciência de não ter feito senão afirmativas que pudesse, de pronto, documentar. Mas, não querendo enfastiar os leitores com a descrição árida da vida e obra do poeta, ao lado do fato em si, por duas ou três vezes acrescentei um pormenor ou uma frase pitoresca, sem apoio de ninguém, a não ser na possibilidade do fato ter acontecido, possibilidade oriunda da série de circunstâncias que o prepararam etc. Pois bem, um desses pormenores, que não direi qual é, absolutamente lógico, mas exclusivamente de minha inventiva, é citado pelo tal articulista. Ele só o poderia ter lido no meu livro, mas no seu extenso e minucioso artigo, escrito com o fito único de revelar uma pequena informação de caráter subsidiário, informação que anteriormente negara possuir, nem de leve deixa perceber que acabava de devorar atentamente o volume que lhe fornecera todas aquelas datas e fatos. Num dos últimos artigos chega mesmo a algumas indiretas “ao recente e incompleto biógrafo do poeta”.

Curioso é que, dias depois, um comentarista enumerando as pessoas que tinham tecido louvores ao volume, colocou o nome do tal na lista. Não podia desejar vingança mais completa e satisfatória.

Mas para este caso encontro explicação. O homem é romancista. Há tempos mandou-me seu livro com extensa e adjetivosa dedicatória. No exercício da crítica, procurando sempre fazer um trabalho honesto acima das panelinhas e amizades, disse o que pensava sobre o seu romance: subliteratura, pornografia disfarçada em freudismo etc. Já viram, no Brasil, alguém receber uma crítica contra e não guardar rancor?

Se este caso, como estão vendo, tem a sua explicação, que dizer de ilustre membro da Academia Brasileira de Letras, bombardeado durante anos com cartas solicitando alguns informes que ele poderia prestar com toda facilidade? Cartas que até hoje nem sequer foram respondidas. Aliás, nem mesmo o mais corriqueiro agradecimento do exemplar que lhe foi enviado, ingenuamente, pelo autor. Pouca coisa, pode-se esperar da Academia Brasileira de Letras e da maioria dos seus membros, em qualquer gênero de informação que dela ou dele solicitemos. Fazem ouvidos de mercador. Nada informam, nada ouvem, nada querem saber. O interessado que arranje pistolões, viaje para o Rio e se defenda como puder. Com paciência e tempo, talvez consiga saber que aquilo que procura está em poder de acadêmico Fulano, que prepara um trabalho sobre idêntico assunto. Há quantos anos? Quatro, cinco, dez. Que importa o tempo para quem tem a imortalidade garantida?

Lidar com instituições, porém, não é nada em comparação com os parentes. Ah! Os parentes... Aquela senhora, por exemplo, sobrinha em não me lembro quantos graus, do poeta. Nada sabia, mas que habilidade e que insistência para entrar no livro! Que imaginação e que desrespeito à verdade, com os seus casos absurdos que “ouvira em pequena e nunca mais esquecera”. Jurava, se fosse preciso, que tinha acontecido daquele jeito mesmo. Mas esta, a gente ainda pode perdoar. Afinal de contas não se mostrava envergonhada do parentesco, revelava mesmo certo orgulho da descendência e não tinha nada a objetar quanto a detalhes da embriaguez e da vida conjugal do poeta. Detalhes que levou à mais furiosa indignação certo cavalheiro, também parente longínquo, que por nada deste mundo queria aceitar a boemia ou os desregramentos do parente. Toda essa história, garantia ele, não passava de lendas forjadas por inimigos e difamadores do poeta. Até que ele sempre foi um bom rapaz. Gostava do seu violão, é verdade, mas somente para tocar peças clássicas, de Chopins e outros que tais. O pior, contudo, para o biógrafo à cata de informes, foi o suplício de ouvir durante horas e horas histórias já sabidas, que senhoras e cavalheiros lhe transmitiam certos de estarem dizendo sensacionais novidades. Episódios batidos, poemas mais do que populares, eram mencionados com ares misteriosos, como se estivessem a transmitir segredos de Estado. Ouvindo tudo, concordando quase sempre, raramente opondo minhas dúvidas, fingia tomar notas e mais notas, ante os olhares satisfeitos e felizes. Boa gente, no fundo. O livro é o maior culpado. Ele exerce uma atração muito grande e quanto não dariam eles para verem as referências às suas pessoas no texto. Ah! Os parentes! Leitor amigo, se algum dia tentares semelhante empresa, arma-te de paciência, escuta-os na mais intransigente inocência e ouve tudo, mas tudo o que lhe quiserem contar. Depois some de vista. Muda de endereço e esquece, propositadamente, de enviar o exemplar ao parente que não pudeste incluir na bibliografia ou no texto.

Como estão vendo, não é sem tropeços que se reúne material para uma biografia, entre nós. E ainda nada disse da correspondência mantida com pessoas que acham um trabalhão responder à mais corriqueira pergunta. Também estou passando por cima da absoluta falta de organização em arquivos particulares e até mesmo em alguns públicos. Nesses lugares, em geral há sempre um gênio preparando qualquer trabalho sobre o assunto, trabalho que será uma formidável revelação, e que jamais aparecerá. As desculpas que arranjaram para não permitirem que olhares estranhos devassem o mistério, não variam: ou o volume procurando está na encadernação ou foi retirado para limpeza. Nada disse, também, dos horários de nossas bibliotecas. Horários erradíssimos que não permitem tempo para nada, arranjados parece que exclusivamente para impedirem consultar aos que são obrigados a ter o seu emprego.

Ao chegar a estas alturas, uma pergunta se impõe: quer, tudo isso, dizer que não vale a pena tentar escrever trabalhos históricos, entre nós, não é? Não concluo pela afirmativa, embora hesite na negativa. Estou expondo fatos, ou melhor, alguns contratempos da série anotada, por curiosidade, num caderninho. Se é verdade que as anotações contrárias, ou antes, desanimadoras de qualquer tentativa ocupam maior espaço no caderno, não é menos verdade que algumas páginas estão reservadas às vantagens ou benefícios colhidos no trabalho. Não falo, da alegria encontrada neste ou naquele momento, quando o desânimo parecia chegar e um acontecimento qualquer vinha afastá-lo, substituindo-o por redobrado entusiasmo. Ou então dos instantes de pura satisfação ao descobrir um inédito ou um detalhe que escapou a todos que vieram antes, como, para citar um exemplo, aquela declaração do credor do poeta, J. J. Oswald, até então jamais mencionadas e que tantas coisas esclarecem. Mas são detalhes que somente quem os experimentou poderá avaliá-los. Quero é falar das amizades conseguidas, das pessoas que ao primeiro contato se interessam pelo nosso trabalho ou daqueles que, mesmo sem nos conhecer, nos ajudam e estimulam, tornam-se amigos, compartilham do nosso entusiasmo e procuram ajudar no que podem. Jamais poderei esquecer, por exemplo, de um Frei, do convento de Angra dos Reis. Infelizmente perdi a carta que me escreveu e não retive na memória o seu nome – um nome alemão dificílimo de ser guardado – e nem sequer pude colocá-lo entre as pessoas que me enviaram material. Pois esse homem, que imagino um velho, em mãos de quem uma carta dirigida por palpite do sr. “Vigário de Angra dos Reis”, não só respondeu satisfatoriamente, como copiou em folhas de papel almaço histórias e lendas de Angra. Fará mais de vinte páginas, em letra trêmula, mas caprichadas, num esforço que ainda não pude agradecer, pois quando da visita que fiz à Angra, não mais o encontrei por lá.

Gestos como esse, poderia contar alguns outros. Estas notas, no entanto, já estão se tornando demasiadamente longas e ainda resta falar dos amigos cujos conselhos muito valeram, de amigos que afrontaram uma, duas e mais vezes os tremendos originais, como Amadeu de Queiroz, Rudolf Franke, Mário Donato ou Araújo Nabuco. Mas estes são amigos e dos amigos não é demais esperar gestos assim. Dignos de menção são os amigos que o livro trouxe. Não posso deixar de mencionar um nome, entre outros.

É o de Rubens Borba de Moraes, diretor da Biblioteca Municipal de São Paulo. Confesso que se a ideia de escrever novos livros de pesquisa ainda não se afastou de minha intenção, é por saber que, dirigindo a nossa principal Biblioteca, está um diretor como Rubens Borba de Moraes. Não o conhecia, senão de nome e referência de amigos comuns. Isso não foi empecilho para que me facilitasse tudo, para que ele próprio, interessado no livro, indicasse fontes e se locomovesse para consegui-las. Não são muitos, infelizmente, os diretores de Biblioteca que compreendem que a função na qual estão investidos é a de ajudarem os consulentes e estudiosos, e se possível, orientá-los pelo caminho mais fácil. Diretores que compreendem ser contra todas as leis de qualquer moral em qualquer parte do mundo, o uso do cargo para sabotagem de material, para despistamentos dos pesquisadores bem intencionados. Com a agravante, ainda, de virem, mais tarde, se vangloriarem, em artigos e livros comodamente feitos, sobre esse material que não lhes pertence e sim à coletividade, da esperteza com que burlaram a boa fé do consulente.

Verifico que já fui longe e muito resta a dizer. Muito resta a dizer pró e contra o trabalho. Nesta tarde ensolarada, antes de bater ponto final nesta linhas, lembro-me daquele crepúsculo em Mangaratiba, onde fui parar na peregrinação de caminhos palmilhados pelo poeta. Quanto tempo durou o reflexo do sol sobre a baía quieta e bem comportada, não saberia dizê-lo. Ainda tenho na retina o espetáculo deslumbrante. Crepúsculo assim só o de Porto Alegre, visto de certo andar do Clube do Comércio. Valia a pena escrever outro livro, para de novo gozá-lo. Mas os crepúsculos como os dias, não se repetem, idênticos.