4.14. Seleta de artigos


CAVALHEIRO, Edgard. Jack London o grande vagabundo. [s.n.:S.l.], 31 ago. 1941.



Fazendo a defesa do vagabundo, no seu interessantíssimo livro A importância de viver, Lin Yutang traça curioso retrato do tipo humano que, a seu ver, deveria predominar na humanidade. Não se trata do vagabundo no sentido pejorativo, isto é, do preguiçoso, indolente, malandrão. O vagabundo glorificado por Lin Yutang deve reunir quatro qualidades características: curiosidade gratuita, capacidade para o sonho, senso de humor para corrigir o sonho e, finalmente, certa indocilidade e imprevisibilidade de comportamento. Sobretudo estas duas características são essenciais e fortemente acentuadas pelo amável filósofo chinês.

“Nesta nossa época de ameaças à democracia e à liberdade individual, escreve ele, provavelmente só o vagabundo e o espírito de vagabundagem nos salvarão de ver-nos perdidos, como unidades numeradas em séries, nas massas disciplinadas, obedientes, arregimentadas e uniformizadas”. Mostra em seguida, em conceitos nada amáveis para com os ditadores, a importância social dessa figura que, na sua opinião, carrega sobre os ombros o futuro da civilização moderna. Último e único guardião da dignidade humana, o vagabundo tem, assim, a responsabilidade de defender o pouco que nos resta das conquistas do homem em prol de uma vida mais digna e mais de acordo com a natureza humana. Impossível deixar de reler as páginas de Lin Yutang depois da aventura desconcertante que é a leitura da biografia que Irving Stone traçou do maior vagabundo de todos os tempos: Jack London. A vida errante de Jack London, em tradução de Genolino Amado e Geraldo Cavalcanti leva-nos, instintivamente, às páginas do filósofo de A importância de viver. Nenhuma síntese mais enaltecedora da personalidade tão viva e marcante de Jack London como estas palavras com que Lin Yutang exalta o vagabundo: “O vagabundo é provavelmente o tipo mais glorioso do ser humano. Será o campeão da dignidade humana e da liberdade individual e será o último que se possa ser conquistado”.

Não é outra, em verdade, a impressão que nos deixa a existência acidentada e tão cheia de incidentes do autor de O lobo do mar. Foi um grande, um sublime vagabundo. Nada lhe faltou para que o glorifiquemos com o tipo mais representativo, como modelo e exemplo para as gerações de hoje, gerações em vésperas de decisões fundamentais para os destinos da espécie humana.

Acompanhar, passo a passo, através da ampla e documentadíssima biografia de Irving Stone, a existência tumultuosa de Jack London, é assistir ao desenrolar de uma vida que é a própria aventura personificada. Não é possível nos limites de uma crônica dizer tudo quanto – amores, obras, empregos, atitudes políticas, sonhos e realizações etc. – Jack London fez nos quarenta anos que se demorou entre os homens.

Acredito que a grande dificuldade do seu excelente biógrafo tenha sido a de afastar e esquecer documentos e episódios, tal a quantidade de aspectos dignos de serem ressaltados. Ainda assim, cada página deste volume é uma surpresa, uma sensação. O que London já realizara – no campo da experiência humana – aos vinte anos de idade, é de causar inveja a quem, como o cronista e com toda a certeza a maioria dos leitores, leva esta vidinha incolor, sem horizontes desconhecidos para serem afrontados, sem grandes lances a marcarem, diariamente, a pasmaceira quotidiana. Basta acentuar que aos dezesseis anos de idade ele já era dono de um barco com o qual ganhava a vida contrabandeando ostras como um autêntico pirata. Tanto fez que acabou sendo considerado chefe do bando, admirado e invejado por velhos marujos. As circunstâncias que lhe conferiram a posse do barco e da mulher que o alegrava, espelham com toda a nitidez possível o caráter e a força máscula do adolescente. Do adolescente que, só para não ficar atrás de velhos e calejados marujos, tomava tremendos pileques, esbanjando em poucas horas o produto de longos e arriscados trabalhos.

Mas era um tipo estranho, bem diferente dos companheiros. Enquanto estes, passada a bebedeira, continuavam pelos botequins, que fazia Jack, o dono da “Razzle Dassle”? Dirigia-se à biblioteca do lugar e ali escolhia punhados de livros os mais diversos – de preferência romances de aventuras e histórias policiais – que ia devorar estirado na cabine do “Razzle Dassle”, um atrás do outro, numa sede de leitura que a nada atendia. Viveu dias perfeitos, dias inesquecíveis. Mas ele não era, evidentemente, feito com a mesma massa dos companheiros de pirataria e de porres. Se fosse como os outros o seu fim seria muito triste e muito inglório o seu destino. Aquela vida de constantes bebedeiras e de riscos contra os fiscais do governo não poderia durar muito tempo. Curioso é que depois de ter experimentado os perigos como contrabandista, passou a fazer parte da patrulha da pesca, encarregada, precisamente, de perseguir esses contrabandistas. Representara como pirata. Achava divertido representar agora do outro lado. Ingressou, portanto, na patrulha, e imediatamente se distinguiu pelo arrojo e presença de espírito na primeira vez em que se viu em apuros. Não tinha ainda dezessete anos de idade, mas já vivera muito, uma vida nem sempre agradável, mas sempre movimentada e cheia de imprevistos.

“Era grande, robusto, audaz, com a confiança e o ar de homem feito”, acentua Irving Stone. Trabalhou quase um ano na patrulha de pesca. Estava enjoado do serviço. Já não lhe oferecia sensações novas. Queria ver o mundo. E para isso só havia um meio: tornar-se marinheiro de longo curso.

Velha aspiração que enfim precisava ser realizada. “Ser marinheiro era coisa virtualmente resolvida no seu destino desde quando, quatro anos antes, havia comprado por dois dólares o seu pequenino e desconjurado bote, pondo-se a velejar no estuário. Agora, havia nas docas de São Francisco muitos navios entre os quais poderia fazer a sua escolha: cargueiros, escunas, navios de passageiros etc”. Jack escolheu o mais romântico de todos: um veleiro destinado à pesca de focas. O seu roteiro abrangia a Coreia, o Japão, a Sibéria e noventa dias de pesca de arpão no alto mar. Era a aventura, o desconhecido, o absolutamente novo. Engajou-se, portanto.

Impossível sintetizar em poucas páginas tudo quanto Jack London realizou. Embora tendo vivido apenas quarenta anos, soube de tal maneira enchê-los, que eles representam bem cem anos de uma vida comum. Está claro que o lado mais interessante, ou melhor, o lado que mais de perto nos interessa, é o do escritor, do homem que escreveu algumas obras primas da literatura norte-americana. Pelos seus livros jamais desaparecerá da lembrança dos homens. Mas como acontece com a maioria dos grandes escritores, esses volumes de tal maneira estão entrelaçados com as aventuras do seu autor, que não é possível falar dele sem lembrá-los. A obra é parte integrante da vida, ou antes, é complemento da vida. Seus contos fortes e ásperos sobre a existência dura no Alasca, por exemplo, são resultantes da estafante viagem em busca de ouro, viagem que, se falhou quanto à sua finalidade principal, foi de enorme importância pelo material fornecido ao conteur e ao romancista. As cenas de mar, que podemos apreciar vivas e movimentadas nessa obra prima que é O lobo do mar, que representam senão as experiências do marujo da Sophie Sutherland, a velha escuna com a qual foi pescar focas nos mares longínquos? E assim nos cinquenta ou sessenta volumes que nos deixou, não fez ele outra coisa senão transpor para o papel parte das suas experiências pelos mais estranhos caminhos da vida. Vagabundo de estrada, perito em tomar rabeiras de trens, correspondente de guerra, explorador, entregador de jornais, tudo ele foi e de tudo soube tirar, mais tarde, páginas densas e humanas como poucas.

A literatura norte-americana, quando Jack London começou a enviar seus trabalhos para os magazines mais populares, estava mais ou menos estacionada num cômodo puritanismo muito bem comportado e perfumado. Predominavam as histórias alambicadas de amores contrariados, histórias que arrancavam fundos suspiros das donzelas e mancebos, como se dizia. Mas esse tipo de literatura causava indignação e revolta ao rapaz que teve com a vida brutal e impiedosa os mais duros contatos. Pouco lhe importava que o achassem brutal e antiestético. Bolas para o esteticismo! Com uma fecundidade espantosa, tinha crises de intensa produtividade. Eram contos e mais contos. Quase todos eram devolvidos. Custou a se impor, a se fazer aceito. Mas um dia lhe fizeram justiça e as histórias nas quais punha o melhor de si mesmo, trouxeram-lhe glória e fortuna. Sempre pensou em fazer das letras uma profissão, mas nem em sonho imaginava as alturas que iria atingir no conceito de seus patrícios e do mundo. Embora a glória lhe tenha bafejado ainda em vida e o dinheiro ganho superasse todas as expectativas, não soube ele tirar proveito nem de um, nem de outro. Sobretudo do último. Da sua vida, como da de Balzac, pode-se dizer que foi um desesperador e inesgotável produzir para pagar quantias de antemão gastas, ou mais precisamente, esbanjadas. Seja construindo um iate, seja transformando-se em fazendeiro modelo, nos últimos anos. Jack London sempre andou errado em questões financeiras. Ganhou milhões, mas não soube aproveitá-los. Foi explorado, saqueado pelos amigos. Era quem menos aproveitava a sua fonte de renda que era a sua pena, obrigada a um trabalho de três a quatro mil palavras por dia.

Como a maioria dos grandes homens, também não foi feliz em amores. É certo que experimentou alguns bons momentos, ora com a primeira, ora com a segunda esposa. Mas nenhuma lhe deu o filho que sonhava com tanta intensidade. Creio que aquela Mamie, que ele conquistou de revólver em punho de French Frank – tinha dezesseis anos e Frank cinquenta -, foi a que menos trabalho e maiores alegrias lhe deu. Irving Stone não nos adianta nada sobre ela, mas talvez por isso mesmo é que a sua figurinha fica para sempre na memória do leitor, pois este tem toda a liberdade de imaginá-la como bem entender.

Vida de lutas e de aventuras a de Jack London. Mas vida de trabalhos e de realizações, também. Ao concluir Três corações, escreveu ele: “Esta novela é comemorativa. Completando-a, comemoro meu quadragésimo aniversário, meu quinquagésimo livro e meu décimo sexto ano no jogo de escrever”. Vida heroica, portanto, vida de quem, como acentua Irving Stone, cometera muitos erros, muitas loucuras, mas com a grata satisfação de saber que foram sempre grandes erros, grandes loucuras. Sim, Jack London viveu no superlativo. Tudo nele foi excepcional. Tipos dessa espécie, pletóricos de vida, sequiosos de novos horizontes, sonhadores inveterados ao mesmo tempo que realizadores admiráveis, fortes e leais não só para os outros como para consigo mesmos, salvariam, como diz Lin Yutang, a dignidade humana e com ela as conquistas da civilização, conquistas ameaçadas de perecerem ou estacionarem. Pena que existam tão poucos num mundo tão grande.