CAVALHEIRO, Edgard. Em busca do amor. [s.n.:S.l.], 22 mar. 1942.
Ao terminar a leitura da biografia que Marie Jenney Howe traçou de George Sand (Em busca do amor – José Olympio Editor), o leitor compreenderá por que ainda se fala tanto nessa escritora tão pouco lida atualmente. Pouquíssimos, em verdade, os leitores de hoje que se aventuraram pelas páginas de Valentine, Indiana, Lélia, André Spiridion, Janne, enfim, toda uma longa fileira de volumes empoeirados pelo tempo, sem possibilidades de retorno à preferência do público, volumes outrora disputados e discutidos como poucos outros. O único que talvez encontre leitores é História de minha vida, no qual George Sand nos conta algumas intimidades da sua formação e muitos pormenores da acidentada carreira literária e amorosa, tão intensamente vivida. E encontrará leitores não pelo estilo, pela profundeza de conceitos ou pelo humano que seus capítulos possam encerrar mas sim pela razão muito simples de que a classe de leitores ávidos de escândalos, de intimidades, sobretudo de alcova, jamais desaparecerá ou diminuirá. Tais leitores, tão amigos de escarafuncharem tudo que represente material para satisfação de mórbidos apetites, julgam encontrar, nesta existência tão agitada, escandalosa por vezes, farto, variado e pitoresco material. A conclusão é melancólica, mas não vemos outra: George Sand somente permanecerá na lembrança dos homens pelas suas aventuras. No entanto, foi o maior gênio conhecido na literatura feminina até a sua época. Mulher alguma, como acentua Marie Jenney Howe, jamais se igualou ao seu poder criador e nenhuma se aproximou da sua capacidade de produção. Suas obras enchem 110 volumes.
Não devemos, portanto, concluir ter sido ela imoral ou simples gozadora, sem o mínimo valor intelectual. Trabalhou incessantemente e, encarada dentro a sua época, possui uma importância nada desprezível. Começando pela ficção romântica, aventurando-se depois às novelas de caráter social, escrevendo mais tarde novelas pastorais, seu sucesso sempre foi espantoso. O fato de não ser lida nos nossos dias talvez possa ser explicado pela própria existência que levou.
Neste sentido, tanto o pequeno trabalho de Alphonse Séché e Jules Bertaut como a excelente biografia de Marie Jenney Howe representam esforços consideráveis não só de reabilitação pessoal como de análise equilibrada e justa da sua obra. É verdade que moralmente falando, a opinião mais difundida e aceita, principalmente entre os que ouviram referências às dezenas de amantes ou só conhecem vagamente meia dúzia de anedotas quase sempre exageradas ou deturpadas das aventuras em que se viu envolvida, é de que ela não passa de uma gozadora sem peias ou escrúpulos. Esteve longe de ser uma “santinha”, evidentemente.
Como anota Marie Jenney Howe, ela estava bastante mais adiantada que as mulheres dos seus dias e daí a necessidade que sentiu de buscar o convívio exclusivo dos homens e, como é natural, pela convivência, adotou as maneiras daqueles com quem convivia. Inútil, portanto, que um escritor como o Sr. Maurício Roya perca tempo tentando provar ter sido seu filho Maurício o grande amor de sua vida. Terá amado Maurício, é claro. Uma coisa, no entanto, nada tem a ver com a outra. E garantir, mesmo gastando um volume, que é o maior, não deixa de ser exagero. Sandeau ou Musset, Miguel ou Malefille, todos foram amados, cada um foi o maior, pelo menos em certos dias, naqueles dias em que ela, amorosa absorvente, a qualquer deles se entregava, de corpo e alma, em busca do amor. Para todos terá dito ou escrito ser o único, embora fosse o décimo, que verdadeiramente amava. E são esses amores, sem dúvida alguma, que a fazem tão curiosa, tão pitoresca e que a trazem constantemente ao cartaz literário. Constitui mesmo um dos mais deliciosos e encantadores capítulos da história literária da França. Nenhum título suplantará o de grande amorosa, que o tempo e a história lhe concederam. Poderíamos, forçando a verdade dos fatos, tentar uma defesa da romancista autora de 110 volumes, ou da feminista, da precursora de algumas reinvidações em prol das suas irmãs de sexo. Mas o feminismo de George Sand não convence, e seus romances, alguns cacetíssimos, se não existissem, pouco ou nada perderia o patrimônio cultural e artístico da humanidade. Interessam como documento de uma época, são curiosos quando conseguimos localizá-los no quadro em que nasceram.
Mas não bastam para garantir-lhe notoriedade. Claro que será absurdo aceitar a injúria biliosa do crítico de que ela foi feminista ou romancista somente como pretexto para encobrir “sem-vergonhismos e safadezas”. Não. Como tantas outras não passou de uma mulher superior ao meio. Revoltada contra a série de preconceitos e restrições à liberdade da mulher, soube reagir e avançou um pouco mais do que o permitido. Chegou mesmo a assumir atitudes de franco desprezo pelas convenções e intrigas sociais. Aliás, tanto seu temperamento como as suas atitudes não foram novidades de última hora, influências do meio ou excentricidades improvisadas. Já na infância, em Nohan, servia de excelente pretexto à maledicência alheia, por causa da amizade um tanto suspeita com um certo rapazinho do lugarejo, com quem andava pelos bosques, em idílios à Paulo e Virgínia, à Dafnes e Cloé. Foi livre, integralmente livre. Do seu feminismo, podemos dizer que foi mais de atitudes do que pelas ideias expendidas em artigos e livros.
Se como feminista George Sand não deve ser encarada como precursora ou mesmo adepta decidida das reivindicações da mulher, como “política” também é pequeno o papel por ela desempenhado. A revolução de 1848 poderia ter revelado, com maior nitidez, uma outra face de mulher, se o desânimo não a tivesse invadido logo.
Cedo abandonou as atividades iniciadas com tanto ardor. Ou porque os homens que dirigiam o movimento desmerecessem sua dedicação, ou porque o seu entusiasmo, romântico demais para a realidade dos fatos, não a colocasse em situação propícia, proporcionando-lhe participação mais intensa e mais direta nos acontecimentos. O certo é que desiste de tudo, retirando-se para Nohan, com os filhos, netos e alguns amigos. Ali, onde passara a infância, num teatrinho de fantoches, organizado para distrair os netos e convidados, viveu os momentos mais alegres e calmos da sua vida. Numa completa mutação de cenário, de meios de vida e de conduta, chega a causar espanto a perfeita adaptação da romancista. Da George Sand que escandalizara Paris, da mulher que, de charuto e em trajes masculinos, fora a grande curiosidade dos cafés parisienses, que restava? Uma senhora com propensão para a gordura, muito calma e muito boa, tão boa que ficou logo conhecida como “boa senhora de Nohan”, querida de todos os camponeses dos arredores, mãe e avó amantíssima. Uma senhora sem outras ambições que o sossego e a calma dos dias longos e monótonos, e que se entrega, não ao último amante, mas à natureza, à natureza que então descobre e canta com exaltação, sentindo, por momentos, o sangue correr-lhe de novo nas veias, ardente e sensual: “Há horas, escreve ela, em que me sinto erva, pássaro, seiva de árvore, nuvem, água corrente, horizonte, cor, forma e sensações diversas, mutáveis, cambiantes e infinitas”. Ela já não era mais criticada. Era venerada e adorada. Seus prazeres eram inúmeros.
“O jardim que cultivava durante anos era uma riqueza em florescência e perfume. As flores encantavam-na a tal ponto que nunca as deixava arrancar”. Ainda escrevia, sim. Ao festejar o 73º aniversário, trabalha em Aldine, novela já bastante adiantada. Chegara ao capítulo VII e, embora sentisse que o corpo ameaçava cambalear, continuava trabalhando e ocultando dos seus as sombrias perspectivas que pressentia. Tendo atingido, porém, o último grau de sofrimento, chamou o médico. “Assim que entrei no seu estúdio, relatou este, vi Mme. Sand sentada à sua mesa de trabalho. Um cigarro aceso pendia de seus lábios e segurava na mão a caneta”. Ela o encarou com um sorriso. Foi o último dia em que pôde permanecer de pé. E poucos dias depois, cercada dos filhos e netos, cessava de existir.
Victor Hugo uma vez lhe escreveu estas palavras: “Muito obrigado por serdes uma alma tão grande”. A história dessa “alma tão grande” é contada por Marie Jenney Howe com simplicidade e clareza. Pouco ou quase nada nos diz de original. Mas o escrúpulo e a precisão com que focaliza os aspectos mais importantes da existência de George Sand, fazem desta biografia um livro encantador e indispensável aos que desejarem um quadro fiel e honesto do que foi a existência de Amandine Aurore Lucie Dupin.