CAVALHEIRO, Edgard. Posição de Rui Barbosa. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 abr. 1942.
Quando Rui Barbosa morreu, o movimento de Arte Moderna desencadeado em S. Paulo já começava a se alastrar pelo pais. Esse movimento visava, antes de mais nada, uma volta ao Brasil até então esquecido pelos poetas e prosadores. Assunto brasileiro tratado brasileiramente, não só nos seus temas mas também na forma. Plena liberdade estilística. Todas as concessões possíveis aos galicismos, anglicismos, enfim, uma revolução em largo estilo que não deixou de causar escândalo aos puristas, aos que tinham bebido em Camilo e Herculano os ensinamentos filológicos de que tanto se orgulhavam. Poderíamos acrescentar: em Rui Barbosa também, pois sua prosa tornara-se modelo, seus conceitos e dogmas e, sobretudo entre os bacharéis, sua palavra era lei aceita e aplaudida por todos. Não havia orador por esse Brasil afora que não iniciasse seu discurso comemorativo de qualquer cousa sem um “Quisera ser Rui Barbosa...”.
Nenhum outro brasileiro alcançara até então a sua popularidade. Semideus para uns, gênio para outros, mestre incontestado para a maioria. Mesmo os adversários políticos reconheciam-lhe o talento e a grandeza. A fama alastrara-se, e quando, a primeiro de março de 1923 ele deixou de existir, a nação sentiu um abalo. Morrera o Mestre! Desaparecera o gênio! O resultado foi um endeusamento desabrido, um coro unânime de vozes a louvá-lo sem discernimento. O homem, o ser humano, com defeitos e virtudes inerentes a qualquer mortal, jamais surgia, de leve que fosse. O mais grave é que a exaltação abrangia todos os setores, estirava-se por todas as latitudes. Nada de separarem o prosador do advogado, o estilista do político, o crítico do jurista, o deputado ou senador do literato. Ele era o maior em tudo. Indistintamente. Maior sem competidor. Na política e na literatura, no direito e nas artes. Seus conceitos eram artigos de fé, a sua palavra a verdade, muitas vezes com maiúscula.
A meu ver isso constituiu um grande mal para Rui Barbosa e para a literatura brasileira, sobretudo no capítulo que a oratória poderia ter conquistado em nossas histórias literárias. Como disse, o movimento de Arte Moderna estalara um ano antes e um grupo de rapazes heroicamente afrontava a onda contrária a qualquer liberdade filológica, a qualquer inovação ao já estabelecido. Rui, principalmente, era o grande empecilho, a grande montanha a atravancar a estrada. Não sei de livro que mais tenha atrapalhado a nossa evolução linguística (e consequentemente toda a evolução do pensamento brasileiro) do que a Réplica. Verdadeiro fantasma. O pior foi que poucos quiseram perceber que a sua grandeza nada possuía de comum com a literatura, cousa bem diferente da retórica ou da riqueza vocabular. Meu professor de português, por exemplo, tinha a mania de nos mandar descrever voos de pássaros, mortes de pássaros, ninhos de pássaros, que sei lá... E como castigo daquilo que ele julgava fraqueza em nossas composições, obrigava-nos a ouvir a leitura daquelas páginas sobre as andorinhas de Campinas, três vezes por semana. Era o modelo, por ele nos deveríamos guiar. Tudo muito aborrecido para quem, embora adolescente, já se deliciava com alguns livros de Mário de Andrade, que por milagre tinham caído na longínqua fazenda onde vegetava à espera de melhores dias. Mas não era somente aborrecido. Era cacete.
Tal e qual a análise lógica das estrofes camonianas. Essa ligação de Rui Barbosa com a literatura brasileira causou inúmeros males aos nossos prosadores, e não duvido que tenha inutilizado muita vocação. Tudo por causa de um mal-entendido. Por excesso de zelo pela glória póstuma do grande advogado. Ainda há poucos meses esteve entre nós mister William Berrien, um norte americano que leciona português nas universidades ianques, e que não só é um grande amigo do Brasil como é também um perfeito conhecedor da nossa vida espiritual. Entrevistado por um jornalista, este lhe pergunta que tal achava Rui Barbosa. Berrien, com o bom humor que tanto o caracteriza, procurou desviar a conversa, respondendo que num curso de literatura não podia se deter muito tempo em Rui Barbosa. Citou Machado de Assis como grande figura capaz de interessar aos seus alunos dos Estados Unidos. Foi o suficiente para que dias depois alguns jornais investissem contra ele, em termos violentos. “A ojeriza intelectual de um professor de literatura”, dizia a “manchete” de um deles, completada com estes subtítulos: “Para o sr. Berrien a obra de Rui Barbosa tem pouco interesse literário... É compreensível a vertigem das alturas que sente o original crítico, em face do poder criador da inteligência do genial brasileiro...” E num longo texto, o jornalista patrício desancou o professor norte-americano, mostrando-lhe ser Rui o autêntico representante da literatura nacional etc. e tal. Ainda e sempre o mal-entendido. O caso não é único nem isolado. Os recortes carinhosamente guardados revelam uma unanimidade de entristecer. O sr. Elmano Cardim, por exemplo, autor de uma conferência em muitos pontos justíssima sobre o grande tribuno, só pode concluí-la com este trecho tão infeliz e absurdo: “Mas a grande construção de Rui, o momento imperecível da sua glória, a catedral gótica do seu gênio, foi a sua obra de escritor, na incomparável pureza e no deslumbrante fascínio do seu estilo opulento de galas, rico de grandezas e fecundo de pensamento”. Como é fácil verificar, o mal-entendido se prolonga...
Pensava nessas coisas todas à medida que ia devorando a esplêndida Vida de Rui Barbosa, do sr. Luiz Viana Filho, recentemente editada pela Cia. Editora Nacional. Trata-se de um amplo e excelente trabalho, uma das melhores biografias já escritas entre nós. Sem fazer apologia, embora não oculte uma quente admiração pelo biografado, o sr. Luiz Viana Filho conta-nos o que foi a existência de Rui Barbosa, seus altos e seus baixos, sua verdadeira grandeza e suas pequenas fraquezas. Mostra-nos, por miúdo, todos os passos importantes que em conjunto constituem sua movimentada trajetória entre nós. Todos os passos, tanto os do homem público como os do homem doméstico, do marido, do pai, do avô, do amigo, do ser humano, em suma. Um Rui humanizado, eis o que Luiz Viana Filho conseguiu fixar com precisão e honestidade invulgares. Está claro que muitas afirmativas ou conclusões são discutíveis. Nem poderia ser de outra maneira. A função do biógrafo não é esmiuçar e condenar os defeitos do seu heroi e sim explicá-los, defendendo-o sempre que possível. A tarefa, em se tratando de uma personalidade como Rui Barbosa, não é nada fácil. Muitos acontecimentos continuam vivos na sensibilidade de tanta gente. E sobre certos fatos a história ainda não disse a última palavra. Mesmo a história da república não foi escrita de forma definitiva, quanto mais os acontecimentos posteriores. Atravessando verdadeiro cipoal de contradições, Luiz Viana Filho conseguiu focalizar o seu heroi em termos que nos parecem justos e precisos. Pelo menos convencem. E se a imagem final não é a de um semideus, nem a de um gênio, é, indiscutivelmente, a de um grande homem. Um grande homem que teve alguns momentos geniais. Não como escritor, entenda-se, mas sim como advogado, como defensor dessa palavra tão em descrédito atualmente: liberdade.
“Nada mais contestável do que a minha valia em letras”, disse o próprio Rui certa vez, acrescentando que seu lugar era nos dias de adversidade, nos dias de luta, nos dias de receio. “Aí o meu espírito se eleva, dobram-se as minhas forças e alguma coisa me impele a tomar um lugar obscuro, mas constante, entre os soldados da boa razão e da justiça”. Soldado do direito e da justiça, eis o que ele soube ser como poucos outros entre nós. Algumas das principais campanhas em que se envolveu, dizem melhor do que qualquer comentário da importância da sua atuação nos momentos decisivos de nossa história social e política. Em 1869, pelo Radical Paulistano, derrocando o princípio da propriedade servil, constrói o alicerce em que se apoiaria a emancipação dos filhos dos escravos. Três anos depois, no Diário da Bahia, investindo contra o sistema eleitoral, abre caminho para o princípio da eleição direta, cuja lei foi por ele feita. E nas vésperas da proclamação da república, combatendo a centralização do império, delineia os princípios da federação brasileira, princípios que os estadistas da república não desdenhariam. Proclamada a república, quando a ditadura militar ameaçava direitos rijamente conquistados, investe contra a prepotência e a força. No cenário universal de Haia defende o princípio da igualdade entre as nações pequenas e grandes. E por ocasião da grande guerra (a de 14, está claro) faz-se o paladino do princípio de que não pode haver neutralidade entre o direito e a injustiça, entre a lei e o crime, contra a civilização e a barbárie. Esse princípio, aliás, sempre o norteou. Capistrano de Abreu, descrevendo-o a um amigo, diz que a sua formação camiliana deve ter concorrido para dar à sua inteligência “uma feição prussiana, sempre mobilizada, prestes a partir em guerra ao primeiro toque de corneta”. Nada mais compreensível, portanto, do que as suas preferências pelo jornalismo e pela advocacia, setores nos quais lhe foi possível entregar-se de corpo e alma ao apostolado que a si mesmo se impusera. Apostolado que se resume na defesa do fraco contra o forte, do oprimido contra o opressor, do direito contra a injustiça, do bem contra o mal. Ao primeiro toque de corneta atirava-se à luta, integralmente, sem medir consequências ou perigos. “Pugnar pelo oprimido, quando o estimamos, é trivial e fácil; expormo-nos pela sua liberdade, sem prezarmos, unicamente por horror à opressão, é extraordinário”, escreveu ele.
Defensor do homem, da dignidade humana, eis o que Rui soube ser em tantos momentos com uma grandeza verdadeiramente exemplar. E como se tornava interessante quando a corrente lhe era contrária! Seu lugar, como ele não ignorava, era nos dias de adversidade. Aí o homenzinho crescia, se agigantava, tornava-se, por vezes, sublime. Nesses momentos ele sentia o cenário mesquinho, longe da importância de grande ator que era, apesar do físico e da voz. Vaidoso e amigo das encenações, lamentava a pobreza do ambiente e a um amigo, “com um sorriso triste”, ele disse certa vez: “ninguém neste país suspeita o que eu sei”.
A verdade é que o país o julgava mais sábio ainda. E por assim tê-lo julgado tantos anos é que perdura a onda de incompreensão e exagero em torno da sua personalidade. O sr. Luiz Viana Filho veio, com o seu volume, prestar um excelente serviço, tanto ao biografado como aos leitores em geral. Reconstruindo a vida de Rui Barbosa com fidelidade e clareza, ele conseguiu, sem exageros ou deformações, fixar de forma indelével a verdadeira feição do grande tribuno, dando a todos que percorrerem seu trabalho, uma imagem sólida e precisa do homem e do político em toda a sua complexidade humana.