4.17. Seleta de artigos


CAVALHEIRO, Edgard. Lincoln e a democracia. [s.n.:S.l.], 30 jul. 1942.



Poucas vidas são tão dignas de serem recordadas nestes dias tumultuosos como a de Abraão Lincoln. Ele foi, no mais amplo sentido do vocábulo, a mais perfeita incarnação do homem público que uma democracia poderia apresentar. Sua vida constitui eloquente exemplo de dignidade humana e sabedoria. Vida em linha reta, se assim podemos nos expressar. Autodidata integral, hauriu na floresta os elementos que iriam compor os pilares de sua grandeza. A floresta ensinou-lhe a ser puro e simples, leal e audacioso. Nela adquiriu toda a infatigável obstinação que o nortearia quando em defesa de uma ideia que se lhe afigurasse justa. Nela aprendeu, também, que a solidão deve ser preservada até mesmo quando a vida pública nos atira no redemoinho das paixões políticas. A floresta deu-lhe, ainda, a simplicidade que implica completo desinteresse pelas vaidades mundanas, a ternura pelos animais – primeira etapa na ternura pelos seres humanos -, e o desprendimento absoluto pela própria vida. Muitas surras apanhou ele do pai, por soltar animaizinhos apanhados nas armadilhas. Muitas vezes arriscou a vida no mistério das matas invioladas.

Filho da floresta, jamais perdeu o amor às longas caminhadas, verdadeiros banhos de limpeza interior, que não só o fortaleciam moral e espiritualmente, como lhe davam novas forças para prosseguir na tarefa empreendida. Tarefa que nos últimos anos se tornou gigantesca e que ele soube levar a cabo com uma segurança e paciência que poucos o julgavam capaz. “Eu só me sinto bem depois de examinar uma ideia de leste a oeste, e de norte a sul”, escreveu certa vez. E a história nos mostra como mesmo em meio aos mil e um problemas surgidos com a guerra civil, ele sempre conseguiu pensar fria e serenamente, antes de dizer a última palavra, ou a palavra definitiva sobre o assunto. Mas a partir desse momento, tornava-se outro homem. Convicto da sua “verdade”, sabia como impô-la, como convencer aos adversários. Nada mais falso, no entanto, do que concluirmos por qualquer espécie de prepotência de sua parte. Absolutamente. Lincoln era todo doçura e bondade. Convencia em lugar de impor. Sabia esperar o momento oportuno. Seus mais acérrimos inimigos acabaram seus mais convictos colaboradores. Sem se desviar por um momento que fosse da linha traçada, levou de vencida todos os adversários. Nada prometia que não pudesse cumprir.

Homem bom, amigo do gênero humano, despido de todo e qualquer formalismo. Lincoln representa, hoje, uma espécie de símbolo, e não só para os norte-americanos que o cultuam com veneração, mas para todos os homens que ainda não descreram da força das ideias que ele soube tão admiravelmente encarnar. Símbolo da democracia, força poderosa a serviço de uma humanidade mais digna, a vida e os feitos de Lincoln norteiam, atualmente, milhões de seres humanos para os quais o regime imposto pelas forças de destruição nazista, fascista ou nipônica representa a pior espécie de cancro social, cancro que todos os sacrifícios para extirpar serão pequenos. A narração de sua vida pessoal, “especialmente dos móveis de sua ação, como foram revelados e aprofundados no transe da guerra civil”, encontra em Nathaniel Wright Stephenson (tradução de Monteiro Lobato para a Cia. Editora Nacional) um analista penetrante e compreensivo. Ele nos mostra como Lincoln caminhou para a libertação dos escravos – consequência natural das ideias que defendia. Neste sentido, Emil Ludwig – autor de uma excelente biografia romanceada de Lincoln – se engana ao dar como Leitmotiv central da sua existência a questão da escravatura. Está claro que o menino que apanhava surras por soltar pequenos animaizinhos apanhados em armadilhas sempre foi contra a escravidão. Mas o móvel principal da sua vida, acentua Nathaniel Stephenson, foi a defesa da unidade americana e com ela suas instituições livres, instituições que garantiam a todos os homens igualdade no seu direito à liberdade e à justiça. Campeão da unidade, ele, o mais pacífico dos homens, sustentou uma guerra civil terrível e avassaladora. Nada o demoveu, no entanto, de prosseguir. Sabia que acima dos interesses individuais estava o interesse da coletividade, e que esta somente poderia viver e prosperar num país livre, num país no qual qualquer ser humano pudesse pensar e exteriorizar suas ideias livremente, bem como se locomover para onde e como quiser. Nada o repugnava tanto como a escravidão, mas ele jamais permitiu que esse problema – no fundo dependente de outro – ocupasse o primeiro plano dos seus pensamentos. A luta que travou abrangia horizontes mais largos. Sua visão ia mais longe do que a simples liberdade concedida aos pretos. Não desapontar o “espírito de liberalismo do mundo” e provar que a democracia, quando aplicada em larga escala, tinha em si força suficiente para permanecer intacta, por maiores que fossem os agentes da desintegração, eis o que visava, antes de tudo. Se a escravidão pudesse ser abolida sem abalo do governo popular, que ele encarnava, tanto melhor. Conseguia sufocar no íntimo do seu ser todo e qualquer sentimentalismo, convicto como estava de que tudo quanto ameaçasse a essência do grande Estado democrático – que lhe parecia fato central do mundo – levaria não somente o país à ruína, mas destruiria no coração dos homens o sentido da honra e dignidade humanas. “Temos aqui, disse ele na sua primeira mensagem, essencialmente uma luta do povo. Do lado da União é uma luta para manter no mundo aquela forma e essência de governo cujo principal objeto está na elevação da condição dos homens; está na remoção de cargas artificiais de todos os ombros; está em proporcionar a todos iguais oportunidades na luta pela existência”.

Não uma guerra, conclui Nathaniel Stephenson, simplesmente para destruir a escravidão, ou para preservar o sistema constitucional, mas sim uma guerra para manter a soberania do “Nós, o Povo”.

O que torna o trabalho de Nathaniel Stephenson atual e importantíssimo para os nossos dias é o sentido de atualidade palpitante que dele transpira. Em lugar de escrever uma biografia propriamente dita do grande democrata, ele procurou realizar ampla e percuciente análise das razões morais e intelectuais que levaram Lincoln a defender tão intransigentemente o governo “do povo, pelo povo e para o povo”. Por uma curiosa e muito interessante coincidência, os problemas que Lincoln precisou enfrentar – e antes de enfrentá-los, adquirir a certeza de que iria trilhar o verdadeiro caminho – são os mesmos que todos os homens livres enfrentam atualmente. A eterna luta entre o direito e a injustiça, o bem e o mal, a liberdade e a opressão, o humano e o desumano. A mesma luta que os homens enfrentam hoje contra os povos escravizados da Alemanha, Itália e Japão. Certos trechos de Lincoln dir-se-iam dirigidos a Hitler. Entre o ditador nazista e o democrata americano existe a mesma diferença entre o bom e o ruim, assim como entre a democracia e o totalitarismo. E certos capítulos de Lincoln poderiam, perfeitamente, ser ajustados ao momento presente. Quando, por exemplo, os “vingativos” reclamam represálias contra os confederados que matavam os escravos aprisionados com armas nas mãos, a resposta do presidente era a de que não podia tomar homens e matá-los a sangue frio por crimes cometidos por outros. Se ele pudesse prender as pessoas culpadas o caso seria diferente, mas não podia matar inocentes em represália a crime de terceiros. “Ódio às ideias que considerava traição, diz Stephenson, mas nunca nenhum impulso de vingança contra a carne que aceitava essas ideias. Destruição da ideia, mas infinita clemência para os portadores da ideia – eis a atitude em que se firmou”. E na qual se manteve até o último dia de vida, podemos acrescentar.

Quando se quiser uma ou duas frases e mesmo um discurso que melhor exprimam o verdadeiro sentido do vocábulo democracia, é na obra de Lincoln que os interessados poderão encontrá-los. Poucos homens meditaram tanto sobre o assunto como ele. Simples, completamente despido de retórica, sabia como falar diretamente aos humildes. A linguagem que empregava era uma linguagem acessível a todos. “Assim como eu não quisera ser escravo, também não desejaria ser senhor de escravos. Eis em que consiste minha ideia de democracia. Todo o que difira disso, seja qual for essa diferença, não é democracia”. Para que maior simplicidade e clareza? Por isso mesmo sua vida é hoje constantemente relembrada, seus atos diariamente evocados como exemplo e estímulo aos que não descreram das possibilidades de um governo “do povo, pelo povo e para o povo”.