CAVALHEIRO, Edgard. Bolívar – o cavalheiro da glória. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 nov. 1942.
A vida de Simon Bolívar constitui, nestes dias inquietos que atravessamos, um belo exemplo a ser apresentado à mocidade americana. Que fez ele? Lutou durante 15 anos em 500 batalhas sobre 3.000.000 de milhas quadradas, libertando do jugo espanhol territórios que compreendem a Venezuela, a Colômbia, o Equador, a Bolívia e o Peru. Mas Simon Bolívar não foi somente o general que, à frente das suas tropas, escorraçou os invasores. Foi mais, muito mais do que um grande cabo de guerra. Foi um genial estadista, um homem extraordinário, uma personalidade realmente invulgar.
“O céu – disse ele – me destinou a ser o libertador dos povos oprimidos. Por isso não serei nunca o conquistador de uma aldeia sequer”. Não libertava para mandar. Sabia, no entanto, que não bastava libertar. Era preciso constituir a nação, dar normas de viver dignas ao povo que saía do jugo brutal dos conquistadores espanhóis. Ao povo acorrentado e infeliz, inculto e faminto. Fácil teria sido ao libertador tornar-se “dono” dos países libertados. Habituados ao mando de oligarquias sem escrúpulos, eles mal acreditavam na possibilidade de se governarem a si próprios. Mesmo a maioria dos chefes e políticos sentiam-se incapazes de dirigir o Estado sem a estimulante presença de Bolívar. Ele, porém, não tinha ambições de mando. Consciente de que ainda não chegara o momento de falar em democracia pura aos povos que mal saíam da escravidão, procurava, inquietamente, um meio termo, fugindo, no entanto, de toda ideia de governos não apoiados livremente pelo povo. “É necessário – escrevia ele – que um governo se identifique, por assim dizer, com as circunstâncias, tempos e homens que o cercam”. Esse realismo político jamais o abandonou. Notável, nesse sentido, é o seu encontro com San Martin. Dois grandes homens, bem intencionados e preocupados exclusivamente em servir ao mesmo povo, mas com pontos de vista diametralmente opostos. Enquanto San Martin, que libertara a parte sul da América, desejava um regime monárquico. Bolívar, dotado sem dúvida alguma de visão política mais ampla, defendia uma forma de governo que tornasse possível no mais curto espaço de tempo, a prática constante da democracia pura. “A democracia – dizia ele – que floresceu até no solo corrompido da Europa, medraria com toda a certeza no solo virgem da América. Aqui não há nenhum elemento real de aristocracia, a não ser uma criatura lamentável. Não há, portanto, meu caro general, elementos de monarquia nesta terra de Deus. Deixemos formar-se aqui uma democracia e a dignidade crescerá nos homens, a necessidade e o hábito de trabalhar para ter benefícios sociais serão criados e estes produzirão riquezas e indústria comercial que atrairá a imaginação da Europa, onde o proletariado tem falta de terra, podendo achá-la aqui. É impossível fazer voltar atrás o progresso da raça humana”.
Assim falava esse homem extraordinário, que não sabia ser somente um grande guerreiro, mas também um hábil político, um penetrante observador dos fenômenos sociais e históricos. Podia, por isso mesmo, garantir a San Martin esta verdade: “uma ideia, quando implantada no povo, é impossível de se extinguir; a ideia da democracia ficou firmemente enraizada aqui nestes doze anos de luta gloriosa, cheia de exemplos de abnegação e heroísmo”.
Não é outra a impressão que nos deixa a leitura da sua vida, escrita por Thomas Rourke, Bolívar, o cavaleiro da glória (Livraria Martins, S. Paulo, tradução de Miroel Silveira), mostra-nos que se hoje a América se enfileira ao lado dos países que lutam pela liberdade contra a tirania, pelo direito contra a força, é porque sabe que assim procedendo não faz senão defender aquilo que custou muitas vidas humanas. Sim, muito sangue foi derramado para que o invasor abandonasse suas pretensões, e desistisse de pretender dominar países que já tinham adquirido o sentido da liberdade, sem a qual a vida não vale a pena de ser vivida. Uma liberdade tão duramente conquistada não pode ser abandonada com um displicente dar de ombros. Preservá-la é mais do que um dever, é uma sagrada missão. O juramento que o jovem Simon Bolívar fez no Monte Sacro, em Roma, de quebrar as algemas que ligavam seu país à Espanha, pode, perfeitamente, ser hoje repetido por todos os homens que prezam o direito de viver como bem desejam, o direito de serem humanos e não simples autômatos nas mãos de enlouquecidos ditadores.
Verifico, nestas alturas, que esta crônica destinada a tecer alguns comentários em torno da figura de Simon Bolívar, tal como nos é apresentada por Thomas Rourke, fugiu completamente aos intuitos iniciais. A culpa, evidentemente, não é do cronista, assoberbado com tão fabulosa personalidade. Como sintetizar em poucas páginas todos os feitos e atos deste grande homem? Como afastar um passado que tanto se assemelha com o presente? Rourke, nas trezentas e tantas páginas da sua biografia, limitou-se a contar o essencial, num mínimo de palavras possível. Um prodígio de síntese, não há dúvida. Somente os casos amorosos do Libertador justificariam um volume. É verdade que o seu grande amor foi a glória. Nenhuma mulher conseguiu desviá-lo do caminho que a si mesmo se traçara. Nem mesmo essa curiosa Manuela, a mais amada de todas. O amor para Bolívar jamais foi uma razão de ser. Simples acidentes no tumulto das suas lutas. O que foram essas lutas, é difícil resumir.
Na sua primeira campanha, por exemplo, marchou 1.200 quilômetros por uma região montanhosa e primitiva, travando seis batalhas, destruindo cinco exércitos e reconquistando toda a parte leste da Venezuela, no espaço somente de 90 dias. Numa outra campanha atravessou os Andes nas condições mais incríveis. Começando a ascensão com 3.200 homens conseguiu concluí-la, mas 2.000 tinham ficado pelo caminho. Uma dessas marchas, anota Rourke, daria assunto de conversa a um homem moderno para o resto da sua vida. Bolívar fez três delas em menos de um ano. Incrível a sua energia física. Somente comparável à sua energia moral. Não há divergências possíveis: foi um grande homem. Nenhuma ambição de mando o dominara, nenhuma inveja para com aqueles que o serviram lealmente. Poderia ter sido rei, se quisesse. Não queria nem mesmo ser o presidente constitucional das nações libertadas ou construídas. Essas nações, no entanto, existiam exclusivamente pela sua vontade. “Não foi como Washington ou San Martin, apenas o comandante de um exército revolucionário”. Foi o pai da Revolução. É certo que venceu porque o povo o apoiou. Esta verdade salta logo aos olhos do leitor menos prevenido. Enquanto os revolucionários não souberam interessar o povo na luta, as derrotas se sucediam ou as vitórias não conseguiam ser consolidadas. Bolívar, com sua genial visão dos problemas mais complexos, imediatamente percebeu que nada adiantaria expulsar os espanhóis se não desse ao povo, mesmo ao povo inculto e faminto, uma consciência revolucionária, isto é, se o povo não tivesse também o seu interesse na luta que se travava. O erro de Miranda não seria repetido por ele, depois do fracasso da primeira República. “O espírito de um escravo – escreveu – raramente se eleva o bastante para dar valor à liberdade organizada”. Essa preocupação em proporcionar ambientes livres e constituições sadias ao povo, é absorvente em Bolívar. A “carta da Jamaica”, admirável e lúcido ensaio sobre problemas políticos e sociais, está repleta de conceitos que revelam uma argúcia e um conhecimento dos mais sólidos e equilibrados sobre a arte de governar. Arte que ele, aliás, não fazia a mínima questão de praticar. Queria, isto sim, que o chamassem de “bom cidadão”.
Conhecendo a natureza humana, sabia, também, analisar a sua própria natureza. Tinha plena consciência da força magnética irradiada pela sua presença. Todas as rivalidades eram esquecidas e as dissenções desapareciam quando ele chegava. Era como “um raio purificador”, que afastasse, com a simples presença, as nuvens borrascosas que constantemente vinham perturbar a paz e o progresso das nações ainda hesitantes nos rumos a serem seguidos. Por isso considerava-se um homem perigoso num governo popular, e uma ameaça imediata à soberania nacional. “Apenas cidadão eu desejo ser, para garantir minha liberdade e a liberdade dos demais. Trocai, eu vos imploro, todos os meus títulos pelo de bom cidadão”. Rourke considera hipócritas essas afirmações. A verdade, no entanto, é que elas não passam de corolários a dezenas de outras idênticas. E todas transbordantes da sinceridade de que os seus atos pessoais são a garantia mais palpável. “Quem é que pode falar de liberdade sob uma ditadura? Apiedemo-nos, igualmente, do povo que obedece e do homem que dirige sozinho”, disse ele, certa vez.
Bolívar é muito vasto e complexo para ser apanhado assim de um golpe. Não há exagero algum em considerá-lo o maior dos sul-americanos e um dos maiores homens do mundo. Sua vida é um exemplo para todos os tempos e todas as idades. Em nenhum momento, no entanto, será mais útil e benéfico um contato com as suas ideias e os seus feitos do que neste que atravessamos. Bastaria lembrar que a ideia da primeira conferência pan-americana foi sua. Chegou mesmo a traçar todo um esplêndido programa para que num congresso permanente – a ser reunido pela primeira vez no Panamá – se discutissem e fixassem as normas que os Estados sul-americanos deveriam seguir, com o louvável intuito de defender seus interesses na paz ou na guerra, com as nações de outras três partes do mundo. O que então escreveu ainda hoje possui uma atualidade desconcertante. Acontece que ele não era somente um homem de ação, mas também um profeta. Mas, como diria Kipling, isso já é outra história. O melhor mesmo é lerem o livro de Rourke. Aos que nada ou pouco sabem sobre Bolívar, será uma revelação. Aos estudiosos, uma excelente amostra de como pode se escrever um livro histórico que se lê como um sensacional romance de aventuras.