CAVALHEIRO, Edgard. Um grande amigo dos livros. Folha da Manhã, São Paulo, 15 jan. 1939.
Tem sido verdadeiramente grande o interesse pela figura de D. Pedro II nestes últimos tempos. Os livros onde a personalidade política e humana do nosso segundo e último imperador é focalizada, em todos os seus ângulos, amontoam-se de forma por todos os títulos louvável. Na verdade, um homem que nos governou (bem ou mal não interessa no momento) durante mais de cinquenta anos terá, forçosamente, deixado profundas e inapagáveis marcas na nossa formação política ou social. Se tanto essa influência como a sua personalidade não foi ainda analisada com a argúcia necessária, tudo faz prever, porém, que esse ou esses estudos não tardarão. O campo é fértil e tentador. O material acumulado não é nada desprezível. Basta um golpe de vista pelas mais recentes novidades. Somente na “Brasiliana”, da Editora Nacional, em edições ou reedições, encontramos um contingente apreciável.
O volume do Visconde de Taunay não passa, infelizmente, de trechos esparsos de um diário ainda inédito, alguns discursos de louvor em nome do Instituto Histórico e Geográfico, uma dúzia de cartas etc.
Já a biografia que o sr. Pedro Calmon traçou é bem mais interessante e completa. Aqui, D. Pedro II é o filósofo, estudado por um dos mais amáveis historiadores que temos. Tão amável, que Maciel Filho, completando certa frase de Nelson Werneck Sodré, a propósito deste volume, falou em “Delly da nossa história”, “literatura água flor de laranjeira” etc. Realmente, se há escritor que faça tudo para não causar tristes emoções ou profundas reviravoltas aos seus leitores, é o autor de Espírito do Brasil Colonial, cujo otimismo tem resistido mesmo ao bolor das pesquisas históricas. Intimamente estará convicto de que somos o país mais rico do mundo, os homens mais inteligentes etc. Cotadíssimo em Portugal ou na Argentina, embaixador da nossa cultura e da nossa história nesses países, de uma coisa podemos ficar descansados: a celebérrima “cordialidade brasileira” terá granjeado mais alguns pontos, graças à sua ação. Homem cordial, historiador cordial. Mas, evidentemente, a história dispensa tanta cordialidade.
Ainda tratando diretamente de D. Pedro II, acaba de aparecer o primeiro volume de uma biografia que promete, pelo menos quanto ao tamanho, ser a mais ampla e completa possível. Refiro-me a História de Pedro II, de Heitor Lyra. Com o subtítulo de Ascensão, abrange um período que vai de 1825 a 1870. Somente para esses anos, são dedicadas mais de 500 páginas. Qualquer juízo sobre essa obra será prematuro. A impressão é que, com mais dois volumes idênticos, estará concluída a grande e indispensável biografia do nosso Imperador. Não queremos, com isso, falar em biografia definitiva, pois todos sabem muito bem como, graças à versatilidade dos historiadores, os grandes homens ora são figuras gigantescas, ora tristes e ridículos manequins. A verdade é que poucas vezes uma biografia nos satisfaz integralmente. Em geral, uma interpretação é sempre um encontro. O simples fato (e refiro-me, está claro, aos verdadeiros biógrafos) de escolher esta ou aquela figura, já denota qualquer ponto de contato muito íntimo entre biógrafo e biografado. Muitas vezes, quando se trata de um criador de emoções, é uma libertação, um alijamento do “fantasma de cabeceira”. Outras, quando se referem a homens públicos, governantes ou títeres, é o meio, o cenário em que a figura se movimentou, que nos atrai e prende. No caso de D. Pedro II, particularmente, é todo um longo e cheio período de acontecimentos dos mais marcantes, da nossa história, é toda a nossa vida como nação independente, durante mais de meio século. Acrescente-se ainda o drama do Imperador como homem, drama dos mais curiosos pelos contrastes que apresenta. Alma de professor, mestre-escola por tendência, literato desviado, poeta de segunda categoria, chefe de família típico, enfim, um sem número de classificações já foram empregadas para defini-lo e, quase todas, concordam em situá-lo um tanto fora do cargo que, por força do nascimento, ocupou como exemplar funcionário público que foi.
Euclides da Cunha traçou-lhe um perfil dos mais felizes, pela concisão e firmeza dos traços: “O Imperador, em que pese a sua educação perfeita e as sensíveis falhas de estadista, era o grande plenipotenciário do nosso bom senso equilibrado e da nossa seriedade. A sua bela meia ciência, toda ornada de excertos hebraicos, e das estrelas da astronomia doméstica de Flammarion, mas ansiosamente atraída para o convívio dos sábios e contumaz frequentadora de institutos, era a nossa mesma ânsia, talvez precipitada mas nobilíssima, de acertar, e a sua bonomia, os seus hábitos modestos, certos sem brilhos, mas em todo caso decentes, com que andávamos na história. Tinha a força sugestiva e dominadora dos símbolos, ou das imagens. Era, para a civilização, tão distraída por infinitos assumptos mais urgentes e mais sérios, um índice abreviado onde ela apreciava de um lance os aspectos capitais da nossa vida: o epítome vivo do Brasil”.
Suas cartas, sobretudo as trocadas com o conde de Gobineau, confirmam plenamente tudo o que Euclides da Cunha escreveu. Documentos vivos e humanos como não existem outros, elas espelham, como sempre, a alma verdadeira, o outro homem que a vida raramente deixava aparecer. Escritas sem olhos no grande juiz que é o povo, constituem flagrantes e comoventes confissões. É certo que talvez, intimamente, D. Pedro II receasse virem a público, num futuro remoto, todas as cartas que escrevia. Não podia desconhecer a importância do papel que representava, a repercussão dos seus gestos e atitudes. Embora não fosse dotado de uma autocrítica muito rigorosa, não lhe seria possível afastar de si, por mais que o desejasse, o imperador, o governante de um dos mais vastos territórios do mundo.
A correspondência com o barão de Cotegipe reunida e anotada pelo sr. Wanderley Pinho, de índole diversa da trocada com o conde de Gobineau, é feita mais de bilhetinhos e recadinhos ao ministro, sobre miudezas incríveis, nada oferecendo com o seu esforço. Vale pelos comentários aliás, que ocupam quase todo o volume. Quem escreve é sempre o chefe de Estado, preocupado com os acontecimentos da guerra do Paraguai: remessa de lanchas, notícias do front, rabiscadas às carreiras, quase sempre. Coisas assim: “sr. Cotegipe – Nada recebi ainda do Paranhos. Talvez o Vassimon traga notícias importantes. Deve estar cá de 10 por diante. D. Pedro 2º”. Ou assim: “sr. Cotegipe – Faça-me o favor de mandar esta carta ao Caxias – D. Pedro II”. Não há confissões do homem. Sobram, isso sim, impertinências de governante, que tudo quer saber, que deseja estar ao corrente dos mínimos detalhes. Revela, contudo, um interesse muito humano pelos que sofriam nas trincheiras. Tentava, por todos os meios ao seu alcance, aplainar as naturais dificuldades que se ofereciam aos soldados, lá no Sul. No íntimo esta guerra devia lhe causar um profundo desgosto. Não fora feito para as grandes agitações. Ambicionava, antes de mais nada, entregar-se ao puro diletantismo intelectual, no conforto sossegado do gabinete de leituras. A menor quebra no ritmo desses passeios espirituais aborrecia-o grandemente, punha-o fora de si, desnorteado. Essa conclusão se impõe especialmente depois de lida a correspondência com o conde Gobineau. O refrão das cartas é sempre o mesmo, e os assuntos giram sempre sobre um único ponto. “A política não é para mim, senão o duro cumprimento de um dever”. Ou então: “Há trinta e três anos carrego a minha cruz”. A cruz eram os encargos políticos, pois queixava-se, “apenas da falta dessa verdadeira vida de espírito”, que julgava indispensável para continuar a viver. As lamentações vão num crescendo comovente. Em dezembro de 1877 escreve: “O trabalho é também o meu grande consolo e, no entanto, não tenho a atmosfera artística no meio da qual viveis, para me proteger contra os miasmas da política”. Volta a tocar no assunto na carta seguinte: “eu vos invejo, pois vejo-me cercado de miasmas políticos”. Retorna ainda, em outro desabafo: “faço o que posso para me desvencilhar desta política que por vezes me sufoca”.
O tom não varia. Só deseja saber o que escreve o sr. Renan, o que pensa o sr. Berthelot, qual o juízo que fazem do último livro do sr. Victor Hugo. Não pergunta coisa alguma sobre reformas políticas ou sociais. Mas está em dia com todas as novidades científicas e literárias. “Vossa majestade não aprecia os generais”, escreve o conde Gobineau. Nem os generais nem os políticos. Em compensação, a morte de Merimée provoca-lhe insistentes pedidos de detalhes, palavras comovidas e o último livro de Renan, que tanto tarda a chegar, deixa-o ansioso, como uma criança à espera de um presente. Nas viagens pela Europa, seu interesse concentrava-se todo em torno dos grandes homens, sábios e artistas. Ia visitá-los. Pedia que viessem vê-lo. O encontro com Victor Hugo ficou célebre. Sempre às voltas com a ideia de fazer qualquer coisa puramente literária, tentava ora traduzir Tucídides, ora quase a por no papel suas impressões de viagem. Numa das últimas cartas, datada precisamente de 4 de novembro de 1881, confessava ao amigo: “O meu entusiasmo quase poético pelas ciências cresce dia a dia”.
A morte de Gobineau em outubro de 1882 vem interromper esta curiosa e sugestiva correspondência. Não cessa, porém, o interesse do Imperador pelas ciências, letras e artes. Talvez tenha mesmo aumentado. O Visconde de Taunay anota no seu diário íntimo, em abril de 1889: “O Imperador cada vez mais esquecido das coisas presentes e alheio aos assuntos políticos”. Seis meses antes de proclamada a República, o ambiente enfarruscado, o trono oscilante, que fazia sua majestade? É ainda o Visconde de Taunay quem informa: “Voltando à casa achei o volume de Pierre Lotti – Japonneries d'autonne – recambiado pelo Imperador, a quem eu o emprestara no dia 30 de abril pp. Vem cheio de indicações a lápis e várias notas bem interessantes”. E conclui com estas palavras, por demais significativas: “O manuseio indica que o livro foi lido e apreciado com todo o cuidado, página por página e sujeito a assídua leitura. É valioso documento de quanto está são o mecanismo mental, pelo menos em assuntos literários”. Esse “pelo menos em assuntos literários” é definitivo. Mas bastaria lembrar que, em pleno mar, a caminho do exílio, incorrigível literato que sempre timbrou em ser, é em sonetos que desafoga suas mágoas. Um deles se tornou conhecidíssimo pela chave de ouro “a justiça de Deus na voz da História”.
O exílio não fez senão acrescer esse interesse que se relacionasse com os livros. A poucos meses da morte, escreve ao Visconde de Taunay: “Arrisquei alguns passeios pelo Parnaso: sobretudo traduções como o poema de Lucrécio”. Volta a falar em traduções da Bíblia e das Mil e uma noites, “sofrivelmente adiantadas”. Estuda matemáticas com Picard e confessa que se o corpo está envelhecendo, o espírito continua sempre moço. Nas vésperas do descanso final, lembrando-se dos seus fieis e grandes amigos – que ficaram em São Cristóvão –, os livros, tantas vezes manuseados, numa inútil e melancólica esperança, diz ainda que espera revê-los “como a filhos queridos”.