CAVALHEIRO, Edgard. Machado de Assis, na crítica e na biografia. Folha da Manhã, São Paulo, 16 abr. 1939.
Com relação a Machado de Assis dá-se um fato curioso: sendo o escritor brasileiro que mais atenção tem merecido dos nossos críticos e homens de letras, é, ao mesmo tempo, o menos satisfatoriamente explicado por todos eles. O que sobre sua personalidade e obra já se escreveu, constitui, sem dúvida, uma excelente e nada desprezível bibliografia. Depoimentos dos que o conheceram pessoalmente não faltam. Cartas que escreveu, atos íntimos que praticou, são conhecidos. Excetuando a infância, mais ou menos na obscuridade, sua vida está aí, aos olhos dos que a queiram conhecer e devassar. Tem sido interpretada de todas as maneiras. E, no entanto, ainda nos dava a impressão de alguém com quem restava algumas contas por ajustar. Essa terá sido a impressão dos que leram os primores literários que são os livros de Graça Aranha e Alfredo Pujol, ou dos que conheceram o capcioso estudo de Sílvio Romero e a carinhosa defesa de Labieno. Mesmo as páginas de comovente e fiel admiração de Mário de Alencar, seu amigo mais chegado nos últimos anos, não conseguem satisfazer o leitor exigente, não deixam uma ideia nítida, precisa, do que ele foi e qual a significação da sua obra em relação ao tempo e à sua pessoa mesmo.
É lugar comum o afirmar-se que os seus contemporâneos não o compreenderam. Elogiavam-no ou detratavam-no, nesses elogios ou doestos incolores, que afetam, quando muito, o homem, nunca o escritor, que escreve para ser compreendido, que tem uma mensagem para transmitir, um recado a dar, como se diz hoje em dia. A correspondência trocada com Graça Aranha, Joaquim Nabuco, José Veríssimo e outros, revela, com muita clareza, o quanto esses amigos (todos inteligentíssimos) estavam longe de perceber a grandeza do monumento que ele estava construindo. Ultimamente, depois do estudo do sr. Augusto Meyer, que desceu com muita felicidade aos subterrâneos “machadianos” e dos ensaios do sr. Mário Cassasanta, Peregrino Júnior etc., alguma luz se fez (embora insuficiente para iluminá-lo em toda extensão) na vida e na obra daquele que é, numa quase unanimidade, considerado o nosso maior escritor.
Explica-se essa incompreensão revelada pela maioria dos que dele preocuparam, se atentarmos em que, com raras exceções, e assim mesmo em pequena escala, separavam, antes de mais nada, o criador da criação, julgando-o incapaz de confidências, de desabafos, mesmo através de personagens. Tirando o Memorial de Aires, confessadamente autobiográfico, que explica os últimos anos de vida, o restante da obra era, de caso pensado, relegada para um plano secundário, afastando-se, dessa maneira, da fonte mais pura, do veio mais precioso.
Coube à sra. Lúcia Miguel Pereira (Machado de Assis, estudo crítico e biográfico, Editora Nacional, Coleção Brasileira, Rio de Janeiro) quebrar o tabu, num excelente trabalho, agora reaparecido em segunda edição, com algumas corrigendas e um curso prefácio. Mostra-nos ela que Machado de Assis não faz outra coisa senão se confessar, com uma insistência que, há uns anos atrás, diríamos “freudiana”. Está inteiramente dentro das páginas que escreveu, naquele estilo “faz-que-vai-mas-não-vai”, que seus inúmeros discípulos ainda não conseguiram desmoralizar. Desde quando moleque de morro, doente, franzino, com “umas coisas esquisitas”, até seus últimos dias em Cosme Velho, na casa em que viveu com a compreensiva e meiga Carolina, um terço da existência, pode o leitor perceber na sua obra referências, ora veladas, ora expostas com subterfúgios curiosíssimos, como, por exemplo, o de se expandir por lábios femininos, num despistamento que somente a perspicácia da autora (não fosse ela mulher) perceberia. Ele não terá, como acentua dona Lúcia Miguel Pereira, “contado propriamente as circunstâncias de sua existência, mas exprimiu os sentimentos que elas lhe provocavam”. A obra que deixou não será, portanto, o simples reflexo de uma existência, mas precisamente o avesso de sua vida “não esquecendo que o avesso, aqui, não significa o lado oposto, mas o lado de dentro, inseparável do de fora, condicionado por ele”. Essas conclusões encontram o melhor ponto de apoio no fato dele somente sentir-se à vontade quando escrevia na primeira pessoa. As Memórias Póstumas de Brás Cubas é escrito dessa forma. Assim como Memorial de Aires, D. Casmurro (seus melhores livros) etc. Os exemplos sobre a importância autobiográfica dos seus livros são muitos e não é este o lugar apropriado para enumerá-la. O melhor é, se ainda não o fizeram, ler o volume de dona Lúcia Miguel Pereira. Machado de Assis está vivo, muito vivo nestas páginas. Estou certo de que ele apreciaria este estilo discreto, elegante, nítido, com que a autora acompanhou a linha ascensional que foi a sua vida. Linha ascensional magnífica, que constitui mesmo um comovente exemplo de amor ao trabalho, de honestidade intelectual, de perseverança e aplicação.
A partir dos primeiros passos, quando era ainda Joaquim Maria, pardinho, feio, de pés no chão e camisa de riscado, filho de um modestíssimo pintor de casas e de uma lavadeira, uma coisa logo é ressaltada e que constituirá, talvez, um dos traços primordiais de seu espírito: a curiosidade. Curiosidade que o levara aos quarenta e cinco anos a aprender o alemão e, aos setenta, o grego. Curiosidade que o encoraja, tímido como era, a frequentar meios estranhos, como a padaria de Mme. Gallot, onde lhe ensinaram as primeiras noções de francês, e a perder o melhor da mocidade enterrado nas salas do Gabinete Português de Leitura. Curiosidade que obriga o chefe das oficinas, quando ainda revisor de provas na Imprensa Nacional, a fazer queixa da sua constante distração ao diretor, pois volta e meia abandonava o serviço para se embeber na leitura de qualquer volume. Acentue-se que o diretor, o romancista de Memórias de um sargento de milícias, em lugar da repreensão esperada, acolhe-o generosamente, dando-lhe mesmo um lugar de maior destaque, que será como que uma mola a impulsioná-lo para frente. Dali para a casa de Paula Brito, desta para o jornalismo, ao lado de Quintino Bocaiúva, do jornalismo para o cargo de ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial, até a nomeação para a Secretaria da Agricultura, onde atinge o mais alto posto que o funcionalismo permite alcançar, muitas outras amizades conquistaria ele, simplesmente com o seu talento. Sizenando e Joaquim Nabuco, Bocaiúva e tantos outros mais, se honraram em tê-lo como amigo, e, ele, numa sucessão de sacrifícios, de heroicos esforços morais e intelectuais, tudo faz para se elevar ao nível social, que já em criança, timidamente cobiçara nos corredores do Colégio São Cristóvão, vendo as sinhás-moças chegarem acompanhadas pelos pagens, enquanto ele, de bandeja na mão, apregoava as quitandas que lhe garantiam o magro ganha-pão. Se a nossa imaginação dificilmente conseguirá reconstituir esse quadro, compreendemos, contudo, alguns gestos de audácia que praticou, gestos tão próprios dos grandes tímidos, e não nos espantamos de alguns trechos dos artigos políticos que escreveu, quando, como Dickens, fazia reportagens no Senado. Compreendemos esses gestos e essas atitudes, quando o vemos, órfão de pai e mãe, amparado pela madrasta, sonhando com o futuro, com as glórias que somente o estudo e o saber lhe permitiriam alcançar. Alcançou mais do que talvez sonhara. Poeta, crítico, cronista, jornalista, teatrólogo, conteur, romancista, é o nosso maior escritor, e o destino (em outros pontos tão adversos) permitiu que desfrutasse essa glória em vida. Numa análise rigorosa talvez salvássemos apenas o conteur e o romancista. Ainda assim é muito grande, paira muito acima da massa geral.
Do livro de estreia Queda que as mulheres têm para os tolos, cuja história dona Lúcia Miguel Pereira esclarece com argumentos convincentes, até o Memorial de Aires, foi uma lenta, mas segura ascensão. Longe de se envaidecer com os sucessivos triunfos, continuou sempre a produzir, sem visar fáceis sucessos, ou fazer concessões aos leitores e críticos. Produziu pouco, se o compararmos com um Coelho Netto, mas sempre do melhor. Acreditando na literatura e nos livros, foi um dos mais puros intelectuais que tivemos.
Condena-se muito a sua atitude com relação aos meios de onde saiu e, principalmente, o ter esquecido dos seus irmãos de cor e de idênticas condições sociais. Não teve palavras de solidariedade para eles. Ocultava ciosamente sua mestiçagem, ele. Isso dizem por aí. Que ele não gostava que o chamassem de mulato, é verdade. Como é fato de todos conhecido o ter fugido sempre às referências quanto às suas origens. São coisas de que se pode acusá-lo. Poderão também falar em complexos etc. É um ponto a ser estudado, de muito interesse, agora que estamos comemorando o centenário de seu nascimento. Por mim, com franqueza, desculpo não só essa possível falha, como outras mais que porventura tenha cometido. Antes de condená-lo, convém olhar o começo da sua carreira, aquilatar a luta heroica que foi obrigado a sustentar contra um destino que lhe negara tudo, no princípio. Gago, epilético, mestiço, paupérrimo, tudo teve que anular, por si mesmo, como de fato o fez, sem quebra de dignidade, sem descer às curvaturas palacianas, às incensadelas aos poderosos do dia. Embora tenha procurado ocultar sua condição de mestiço, não se “misturando”, é hoje ponto de referência aos que se dão ao trabalho de rebater os argumentos dos discípulos de Gobineau, sobre essa antipática e idiota questão de superioridade racial.
À medida que vai recuando para o passado, sentimos melhor o que representa para o Brasil esse mestiço que tanto elevou a sua raça e o seu povo, a pureza dessa personalidade que paira sobre a literatura brasileira como um símbolo da nobreza do pensamento e do poder do espírito, que inspirou não apenas a mente de dona Lúcia Miguel Pereira, mas de todos aqueles que se entregaram ao estudo da sua vida e da sua obra.