4.4. Seleta de artigos


CAVALHEIRO, Edgard. Um retrato de Tobias Barreto. Folha da Manhã, São Paulo, [set?] 1939.



Figura realmente curiosa a desse mestiço desabusado e inteligentíssimo que foi Tobias Barreto. Sua vida, acidentada e tumultuosa, deixou marcas profundas, influindo poderosamente em toda uma geração. Endeusado por uns, combatido por outros, detratado por muitos, ainda hoje o eco de sua voz ressoa em mensagens vivas e cheias de interesse para a nossa cultura. Grande afirmador, não recuando frente aos obstáculos que se lhe apresentassem, afeito e atrevido como poucos, era lógico que errasse muito, que cometesse inúmeras injustiças e contradições, naturais aliás, em todo autodidata. Numa terra de intelectuais dúbios e penumbrentos, de pensadores incertos e incolores, foi bem uma gritante e escandalosa mancha em vermelho. Teria, forçosamente, que viver em atrito com os seus contemporâneos. Gostava da discussão, não enjeitando brigas de espécie alguma, “em qualquer terreno”, como costumava dizer. Vaidoso como poucos, ao se julgar dono de uma verdade, tornava-se a intransigência feita homem. Foi o primeiro “dono do assunto” entre nós. Depois a classe proliferou e hoje é um perigo muito grande a gente se aventurar em searas alheias.

Tobias Barreto teve, inegavelmente, grandes defeitos, quer como homem, quer como intelectual. Não é possível esquecer seu pernosticismo somente porque sabia alemão, porque lera Kant no original. Pernóstico e cabotino, o que em nada diminui ou desmerece o seu valor, pois se teve pontos baixos, no mais das vezes pairou muito acima dos seus contemporâneos.

Depois do estudo do Sr. Hermes Lima, estudo claro e sereno, profundo e exaustivo, sobre a época em que ele viveu e as ideias que agitou, temos agora o seu retrato excelentemente realizado pelo sr. Omer Mont'Alegre. (Tobias Barreto. Rio de Janeiro, Vecchi Editor, 1939). Um retrato excelente, repetimos, que é ao mesmo tempo um roteiro seguro para a sua obra. Acompanhando o homem, passo a passo, vai o sr. Omer Mont'Alegre abordando as suas produções, ressaltando aqui e ali, o caminho para onde se dirigiu o seu espírito inquieto e variável, insaciável e insatisfeito. Está claro que nem tudo quanto afirma este biógrafo a gente pode aceitar sem discussões. Mas a maioria das afirmativas mostram muito bem o nenhum embasbacamento frente à figura estudada. Sabe conservar seu próprio ponto de vista, mesmo quando oposto ao do biografado. A complexidade que apresenta a obra e a ação de Tobias Barreto não permite opiniões estereotipadas. Os pontos de discordância serão sempre inúmeros. Afirma, por exemplo, o sr. Omer Mont'Alegre, que Tobias “era modesto”, “que nunca falou dogmaticamente, nunca proferiu uma proposição categórica”, o que me parece tão errado como afirmar que ele não sofria “aquilo que tanto afeiou Machado de Assis: o complexo de inferioridade”. Reforçando esse conceito, diz que sendo mulato, o “sergipano sempre soube entrar e sair em qualquer parte que lhe aprouvesse e a cor nunca foi empecilho na sua vida”. Bem, mas isso não anula o complexo de inferioridade. Machado de Assis também entrava e saía de qualquer parte, a cor nunca lhe prejudicou, socialmente falando. A diferença entre Tobias e Machado, é que este recalcou o seu complexo e aquele exteriorizava o seu, a todo momento e lugar. Veja-se a briga com Castro Alves ou aqueles versos, injustos e medíocres contra Nabuco.

Mas esses e outros pequenos detalhes de que se pode discordar são, como disse antes, mais devidos à complexidade da personalidade de Tobias Barreto, que propriamente aos defeitos do biógrafo. Este também sabe – e quantas vezes! – ver os pontos fracos do seu homem. Há mesmo anotações de uma grande felicidade. O caso de Tobias escravocrata, caso difícil e espinhoso, encontra nele uma compreensão das mais lúcidas e uma conclusão das mais aceitáveis. “Não quero, de nenhum modo, escreve o sr. Omer Mont'Alegre, inocentá-lo; há, nas poucas passagens de sua obra que se refere ao abolicionismo, muito fel político derramado contra o visconde do Rio Branco”.

Também o poeta, encontra nele a sua definição exata e precisa: “Como poeta Tobias não esteve nunca acima da mediocridade”. Isso mostra a perfeita independência mantida pelo autor. Mas não é só. Vejam também este pedacinho: “Evitemos citar as opiniões de Sílvio Romero que são, por demais, fruto da amizade mais do que fraterna que sempre o ligou a Tobias”. Agora uma definição das melhores que conheço sobre o grande sergipano: “Tobias era um ajudante dos sábios da época, neste laboratório; ele próprio nunca foi um sábio”. E completa seu pensamento, por muitas outras páginas, mostrando como ele, não possuindo força criadora, descarregou todo o seu talento na obra notável de divulgador, de grande intérprete dos sábios do além-mar, ou melhor, da “sua cara” Alemanha.

Por esses detalhes, apanhados aqui e acolá, é fácil verificar que o trabalho do sr. Omer Mont'Alegre está longe de ser uma apologia oca e adjetivosa. Teve o bom senso de não levar seu heroi às nuvens, num endeusamento sistemático. Fez, numa prosa simples e clara, sempre apoiado nas melhores fontes e informações, um retrato fiel, de corpo inteiro, que tanto eleva o biografado como o biógrafo.