CAVALHEIRO, Edgard. A vida secreta de D'Annunzio. Folha da Manhã, São Paulo, 1 out. 1939.
Confesso, com toda a franqueza, que Gabriel D'Annunzio nunca me impressionou fortemente, quer como homem, quer como escritor. É verdade que são poucos os livros que dele conheço. Il Fuoco, quatro ou cinco peças, um volume de poesias, artigos ou poemas avulsos, eis o que me foi possível suportar. Do homem, sabia um pouco mais. O que faltava saber, Tom Antongini vem de me contar, nesta Vida secreta de D'Annunzio, excelentemente traduzida pelo sr. Manuel Bandeira, que a Editora Nacional incluiu na sua coleção “Vidas Célebres”. Tom Antongini foi secretário particular do autor de La figlia de Iorio durante uns trinta anos e, nessa qualidade, pode acompanhar, passo a passo, o seu biografado, em várias e das mais importantes fases da sua existência. Também escritor, teve o cuidado de tomar notas minuciosas de tudo quanto se referisse ao patrão, a quem admira sem restrições. Este volume pode, portanto, ser considerado um dos mais completos e fieis entre os já escritos sobre D'Annunzio. A própria documentação apresentada não deixa dúvida alguma nesse sentido.
Resta verificar se compensa o tempo perdido. São quase setecentas páginas de texto. Confessemos que a leitura é das mais agradáveis. Os fatos narrados são sempre pitorescos, e as personagens que transitam pelo volume, em contatos ora longos, ora curtos, com o poeta, justificam o interesse, mesmo do leitor displicente ou desinteressado quanto à figura central da obra. E Tom Antongini sabe envolvê-los numa onda de humor dos mais sadios. Há sempre uma anedota amenizando o relato árido dos acontecimentos. Há sempre um fato curioso e sensacional quebrando as considerações ou amortecendo os elogios, que volta e meia o autor resolve despejar para cima do seu ídolo.
A conclusão a que se chega é que a obra de D'Annunzio não nos diz nada como documento humano, e ele próprio, como homem, também grande, a justificar cultos ou nada possuía de heroico ou de apologias. Compreendo agora o estrilo que o sr. Anísio Teixeira deu lá na Editora, quando se falou em incluir este livro na “Biblioteca do Espírito Moderno”, ao lado de Madame Curie. “Um cabotino como esse não pode ficar ao lado de Madame Curie”, teria dito o autor de Educação para a democracia. A verdade é que a vida de Gabriel D'Annunzio estaria deslocada numa “Biblioteca do Espírito Moderno”. Ninguém mais fora de época, mais inatual, menos espírito do nosso tempo.
Já disseram, e não custa repetir, que a sua morte literária data de 1914, ao estalar da grande guerra. Desde então deixou de interessar como escritor. Mais ou menos o caso do nosso Coelho Netto, depois que Graça Aranha fez aquele barulho na Academia. Como homem, também já foi dito, devia ter morrido no período de Fiume. Mas o destino, caprichoso e vingativo, deu-lhe mais vinte e tantos inúteis anos de vida. É o período estéril e com o seu tanto de ridículo do Vittoriale. A senilidade mental que lentamente o foi atacando, repercutia aqui fora em atos que causavam desolação entre os raros fieis dos bons tempos. Os gestos de grande cabotinismo, que sempre soube usar em proveito da própria glória, cresciam à medida que o esquecimento e o desinteresse iam cercando seu nome. Foi uma luta desesperada, constante, para se manter no cartaz.
Tom Antongini procura, em diversos pontos, defender D'Annunzio da pecha de cabotino. Mas as próprias frases que transcreve, os próprios casos que transmite, não fazem senão confirmar o fato que procura, tão sem argumentos, negar. Seria fácil enumerar uma dezena de situações apanhadas aqui e ali, sem muita escolha. Vejam este trecho: “Um galgo, ou um cavalo de corrida bem amestrados, as pernas de Ida Rubinstein, o corpo de um verdadeiro “ardito” de regresso dos vaus do Piave, o modelado e as junturas do meu crânio perfeitamente polido: eis as quatro belezas mais expressivas do mundo”. Concordo que isso pode ser levado à conta de uma excessiva vaidade pessoal. Mas não é só. Sem tocarmos na sua surpresa (fingida surpresa) de que lhe viessem cobrar imposto, temos a confissão do próprio D'Annunzio nestas palavras: “Mais de uma vez escrevi o meu próprio louvor sem nenhuma timidez”. E se acham pouco, leiam esta dedicatória, oferecendo as Laudes a um amigo francês: “A A. D., este píncaro da poesia de todos os tempos e de todos os países”. Aliás, Antongini mesmo conclui, esquecendo afirmações anteriores, que D'Annunzio considerava a humanidade dividida em duas metades: ele de um lado, o resto do outro.
“Orgulho desmesurado, desconhecido até dos anjos rebeldes”, escreve o fiel secretário, acrescentando que devia, em homenagem à verdade, confessar que “a partir de 1923 as suas declarações, públicas e privadas, sobre o valor de sua obra, assumiam formas muito menos modestas, muito menos reservadas”. O imprimtur que deu para a edição nacional das suas “obras completas”, é típico. Uma assinatura e esta pequena frase: “inebriado de si mesmo”. Poderia continuar enumerando fatos e fatos. Aquelas vigas de ferro, por exemplo, que ele fez o arquiteto colocar na entrada da sua “cidadela espiritual”, vigas que obrigavam o visitante a se curvar para transpor a portam numa reverência forçada, dispensa comentários. É bem verdade que ele próprio, certo dia, deu com a testa nelas, ferindo-se com alguma gravidade...
Nada disso, porém, teria importância se Gabriel D'Annunzio tivesse sido um autor mais interessado na “condição humana”. Bernard Shaw ainda hoje faz coisas piores e ninguém reclama. Qualquer crítico, mesmo sem muita percuciência, poderia apontar os grandes defeitos da obra d'annunziana. Sem dúvida que o excesso verbal seria a primeira coisa a ser condenada. Mas não é esse o meu intuito. Desejo somente acentuar a nenhuma importância social de suas obras, a nenhuma lição que sua vida oferece. Pelo menos lição no sentido moral, de paradigma, de exemplo. Mesmo a luta permanente pelo dinheiro, a eterna luta do gênio contra as condições materiais, está longe de impressionar o mais ingênuo dos leitores. Lendo, ainda hoje, as cartas de um Baudelaire, principalmente algumas dirigidas à sua mãe, nós nos comovemos, somos solidários com a trágica e miserável existência que suportou. É que Baudelaire, como tantos outros, queria dinheiro para as coisas essenciais da vida. D'Annunzio não. Sempre foi o supérfluo que o levou aos braços dos credores. Duzentas luxuosas almofadas para esta casa, dez ou vinte cavalos de raça para aquela cavalariça, ou então, um sem número de cães, tratados com um carinho que jamais terá dispensado a um pobre diabo qualquer. A luta que enfrentava era sempre para o supérfluo, nunca para o essencial, repitamos. Ele mesmo se julgou um “animal de luxo para o qual o supérfluo é tão necessário quanto o ar”. Daí a nenhuma solidariedade do leitor com as suas desventuras financeiras. E se nesse ponto, que talvez tenha sido o único em que verdadeiramente conheceu reveses sérios, nós não estamos de acordo com ele, que fará nos outros.
As sugestões que esse variado e pitoresco volume de Tom Antongini oferece são tantas, que não cabem numa simples crônica. Narrando sempre muito bem, embora sem espírito crítico de espécie alguma, consegue segurar o leitor até a página final. Nesta época, um volume de setecentas páginas precisa, em verdade, ser muito interessante para que a gente não o largue pelo meio. Isso, apesar de Antongini cair, de vez em quando, em plena euforia adjetivosa. Interessante, contudo, é que os trechos transcritos para exemplificar o valor do poeta causam sempre o efeito oposto almejado. Escolhe sempre mal. Os casos que conta, porém, são sempre dos melhores, dos mais sugestivos e divertidos. A visita ao Marechal Hermes da Fonseca, por exemplo, se conhecida aqui, naquela época, teria ocasionado um número incalculável de piadas e canções. Das melhores – e estou que é a melhor – é a história do grafólogo. Vale a pena transcrevê-la. Não encontro fecho melhor para estas linhas: “Em Lucerna, onde estivemos juntos, conta Antongini, D'Annunzio sofreu a sua maior desilusão grafológica. Mandou-me submeter a sua letra à apreciação de um grafólogo que residia no Hotel Scheweiverhof. O grafólogo não sabia de quem se tratava. Compulsou longamente o manuscrito e em seguida sentenciou: “Megalomaníaco, sem sombra de engenho”. D'Annunzio divertiu-se muito com essa definição e contou-a a todo o mundo. No Libro secreto, aludiu ao fato, modificando ligeiramente a resposta do grafólogo. Este ter-se-ia limitado a dizer: “Espírito um pouco pesado”.