CAVALHEIRO, Edgard. A vida patética de Dostoiévski. Folha da Manhã, São Paulo, 24 dez. 1939.
Um livro que estava faltando, entre tantas e nem sempre felizes traduções, era, incontestavelmente, aquele que nos viesse contar a vida de Fiódor Dostoiévski. Temos, é certo, o lúcido e penetrante ensaio do sr. Hamilton Nogueira, publicado há alguns anos, ensaio rico de observações sobre a obra do grande romancista russo. Circula também, por aí, a tradução do estudo de Stefan Zweig, feito com muito brilho e pouca profundidade, como aliás, sempre acontece com tudo o que tem produzido. Mas uma “vida mesmo”, não tínhamos, em português.
Coube a Vecchi editor lançá-la. Trata-se da Vida patética de Dostoiévski, de André Levinson, em tradução muito bem cuidada do sr. Costa Neves.
A bibliografia existente, no mundo, sobre o autor de Crime e castigo, é vastíssima. Somam-se dezenas, entre estudos críticos e biográficos, já publicados. Henry Troyat, o romancista laureado de L'Araignée, acaba de publicar um trabalho com mais de 600 páginas em torno da sua vida e da sua obra. Grandes nomes, como Berdiaeff e Merejewsky, estudaram-no carinhosamente, tanto sua filha como sua viúva nos deixaram páginas da maior importância sobre o homem. Cartas, depoimentos dos contemporâneos etc., não faltam. A dificuldade para o biógrafo que se aventurasse a contar a sua vida não estava, portanto, na penúria de material, mas no excesso. Extrair, dessa enorme massa de informações, o essencial, não era tarefa fácil ou cômoda. André Levinson, porém realizou, brilhantemente, a empresa. E num volume de duzentas e poucas páginas, acrescente-se.
Capítulos rápidos, cenas capitais apanhadas ao vivo e, sobretudo, uma felicidade muito grande na escolha dos detalhes abordados, constituem qualidades dignas de serem destacadas, em primeiro lugar. É preciso notar que acima das informações bebidas em outras fontes, André Levinson foi procurar na própria obra de Dostoiévski a feição mais característica do seu espírito. Como ele mesmo diz em nota final, este livro “não pretende ser nem um estudo literário, nem uma discussão doutrinal. É uma biografia dum escritor. Portanto, não se poderia prescindir o exame dos seus escritos. Mas a obra é tratada em função de sua vida. Situar essa vida no seu quadro material e no seu ambiente intelectual, eis a principal precaução que tive”.
Não resta dúvida alguma de que o conseguiu e da maneira mais convincente e satisfatória. A imagem que nos oferece do biografado é das mais aceitáveis. Logo de início nos coloca na frente do momento culminante da vida de Dostoiévski. O momento em que caminhava para morrer fuzilado pelo crime de ter ideias. “Estava prestes a morrer. Aos 27 anos, em pleno vigor! Ora, era-lhe necessário imaginar, o mais rápido e claramente possível, como se dera tudo aquilo: ele existia ainda, vivia e, dentro de três minutos, seria qualquer coisa ou alguém completamente diferente. Mas, quem? Tinha dois minutos para decidir isso. O penúltimo, porém, se esgotava. O último, o supremo, destinava-o a olhar em redor de si. Na proximidade da praça, erguia-se uma catedral; o sol batia de chapa sobre a cúpula dourada. Cravou os olhos nessa cúpula com incrível fixidez. Não podia desviá-los daqueles raios que lhe pareciam participar dessa nova natureza, desse além, onde iria precipitar-se daí a um momento”.
Depois sons de clarins, rufos de tambores, armas que apontam e o silêncio trágico que precede os grandes momentos. Silêncio que não foi quebrado pela palavra “fogo”, como todos esperavam, mas por um zum-zum prenunciador de novas inesperadas. Era a comutação da pena, para desterro perpétuo. Vinte anos depois, ao recordar esse dia, Dostoiévski dizia à esposa: “Não me recordo doutro dia tão feliz...”.
Esse acontecimento, verdadeiramente patético, marcou toda sua existência. Predisposto à epilepsia (pai alcoólico, ele de uma susceptibilidade doentia, a mãe fraca, constantemente acamada), sofreu bem mais profundamente que os outros esse incrível e estúpido castigo do Czar. Os olhos fitos na cúpula da catedral, aquela Bíblia que esposas de desterrados lhe deram, quando a caminho do exílio, uma inata predisposição para o misticismo, a conveniência forçada com os prisioneiros, levá-lo-iam, quando retomasse a pena, para desnudar as almas humanas ao cristianismo. São do diário do escritor, de agosto de 1880, estas palavras: “Conheço nosso povo! Vivi com ele no presídio! Ele me fez voltar ao Cristo que aprendi a conhecer em criança, na minha casa paterna, e que mais tarde perdi, quando me tornei um “liberal europeu”. Esse reencontro com o mais íntimo do seu ser, marcá-lo-ia profundamente, virando a diretriz do seu pensamento. Assunto por tantos já debatido e estudado, embora as controvérsias ainda predominem, pode-se afirmar sem hesitações que ele foi, acima de tudo, um romancista cristão. Claro que essa definição comporta inúmeras nuances, são inúmeras as variáveis, as faces com que pode ser encarada.
Mas não se trata de analisar sua posição em face do pensamento russo, ou melhor, do pensamento humano. O livro de André Levinson, como já mostramos, pretende ser apenas uma biografia.
Em linhas gerais, a sua vida é de todos conhecida, como conhecidos são os fatos que envolveram sua estreia literária com Os pobres diabos. Primeiro a leitura a Grigorovich, que “sufoca o entusiasmo concentrado”. Depois a corrida à casa de Nekrassorff e a volta, alta madrugada, ao quarto de Dostoiévski, onde os dois o abraçam tumultuosamente, entusiasmados com o livro e decidem o seu destino: “Toca a levá-lo a Bielinski, o grande crítico consagrador, o homem capaz de fazer ou desfazer uma celebridade”. E Bielinski, depois de alguma relutância, aceita em receber os originais. A entrevista dos dois homens nunca mais deveria apagar-se da memória de Dostoiévski. Um quarto de século mais tarde, descreve-a aos leitores do seu diário: “Assim pois (era o dia seguinte), levaram-me à casa de Bielinski. Recordo-me que de início impressionei-me fortemente com o seu aspecto, seu nariz, sua fronte; queria saber porque havia imaginado inteiramente outro esse “crítico terrível”. Recebeu-me com um ar desdenhoso e dos mais reservados. “Não podia ser de outra maneira”, digo a mim mesmo. Mas cinco minutos ainda não eram decorridos e tudo mudou: aquele ar importante não provinha de sua pessoa, do grande crítico recebendo um jovem principiante e sim, se bem nos explicamos, do respeito para com os sentimentos que deseja exprimir-me o mais breve possível, para com as graves palavras que se apressava tão singularmente a dizer-me. Discorreu com calor, os olhos brilhantes de paixão: Sim, o senhor mesmo, acaso compreende – repetia, no tom grandiloquente a que estava habituado – acaso compreende o que escreveu aí? – Ele tinha certo jeito de levantar a voz sempre que experimentava um sentimento poderoso. – Por ser o senhor sinceramente um artista de extrema sensibilidade é que conseguiu escrever semelhante coisa; mas mediu o senhor todo o alcance da tremenda verdade que nos descreveu? Não é possível que a tenha compreendido, o senhor, que nem vinte anos tem!”.
E nesse tom Bielinski continuou a analisar o trabalho tímido do estreante, que ali sentado à sua frente, mudo de comoção, bebia com os olhos, ouvidos, todo o corpo, as palavras quentes que o crítico entusiasmado ia soltando.
A seguir é a consagração do público, a inveja dos concorrentes, a vida nos salões onde não faz papel brilhante devido à sua extrema timidez, a conspiração de Petrachevski, o exílio, a volta, o casamento, enfim a série de acontecimentos ora tristes, ora alegres, ora trágicos, que encheram a vida e que, entremeados com a publicação de suas obras mais importantes, foram por André Levinson encarados de uma forma das mais precisas e concludentes. Ao finalizar o volume, coloca ele num post-scriptum confidencial, trechos de cartas de Tolstoi, Strakoff, Turgueneff e Constantino Pobiesonoszeff, em que esses contemporâneos se exprimem sobre o grande escritor. Diz o primeiro: “Não vi nunca esse homem, e tão depressa morreu, logo compreendi que não havia para mim homem mais precioso, mais chegado, mais necessário...”. Strakoff, crítico e autor de uma célebre biografia sobre ele, confessa francamente: “Não posso considerar Dostoiévski nem um homem de bem, nem um homem feliz. Foi mau, invejoso, depravado, que passou a vida entre tribulações tais que o teriam tornado digno de lástima e ridículo, se não tivesse sido ao mesmo tempo tão mau e tão inteligente”.
Não é melhor a opinião de Turgueneff, que o compara ao “mui famoso marquês de Sade”. Constantino Pobiesonoszeff, porém, numa súplica ao Czar, em favor da família Dostoiévski, além de considerar a grande perda que para a Rússia representava a sua morte, confessa que ninguém poderia substituí-lo no coração da mocidade, que tinha confiança nele e a ele acorria “verbalmente ou por cartas, como a um diretor espiritual”.
Essas opiniões, tão contraditórias, mostram suficientemente que o processo da vida e da obra de Fiódor Dostoiévski ainda está em curso, ainda não foi julgado definitivamente. E, se pensarmos bem, talvez nunca o seja. Consola-nos a certeza de que um escritor é tanto mais poderoso quanto maior for a sua capacidade de reação frente às interpretações dos homens de todas as idades e tendências, que dele se acercam.