4.7. Seleta de artigos


CAVALHEIRO, Edgard. Vida e confissões de Oscar Wilde. Folha da Manhã, São Paulo, 4 fev. 1940.



O processo sobre a vida e a obra de Oscar Wilde, tem a sua reconstituição e o seu juizamento na forma mais completa e convincente, neste exaustivo e admirável volume de Frank Harris, Oscar Wilde – Sua vida e confissões, que a Editora Nacional acaba de apresentar ao público brasileiro através da tradução de Godofredo Rangel. O nome deste tradutor dispensa comentários. É um dos mais honestos e cuidadosos que contamos.

Poucas vidas oferecerão um interesse humano tão grande como a do autor de Salomé. Sua personalidade (mais interessante para muitos do que sua obra) somente será compreendida e poderá ser satisfatoriamente explicada quando estiver bem localizada no meio em que viveu, dentro mesmo daquela sociedade hipócrita e cretina, sociedade que teve em Lord Queensberry seu tipo padrão, e nos juízes que o condenaram, seus representantes oficiais. Frank Harris, com uma coragem e com uma audácia das mais raras, nos expõe cruamente, sem nada ocultar, toda a falsa moral em que viviam aqueles que condenaram Wilde, tudo aquilo que sobre ele lançaram, dos mais baixos insultos às mais incríveis humilhações. “Na Grã-Bretanha”, conclui Frank Harris, “o homem de gênio é temido e execrado na proporção de sua genialidade; e se, por acaso, é escritor ou músico, tratá-lo-ão além disso com maior desprezo. A prevenção contra Oscar Wilde se manifestou com veemência de todos os lados. O juiz Collins não proibiu as aclamações que acolhiam no tribunal o triunfo do Lord Queensberry. Nenhum dos policiais que se encontravam perto da porta tentou conter a assuada da multidão, que perseguiu Oscar Wilde com apupos e injúrias quando ele se retirou. Oscar já estava julgado e condenado antes de qualquer ação que lhe movessem”. Não são nada lisonjeiros para o caráter de uma raça os fatos narrados quando do processo e da condenação infamante do esteta de Dorian Gray. “Mas ah! Os ingleses”, como disse Goethe, “são pedantes; prezam mui pouco os homens de letras ou de outros méritos puramente espirituais. Gostam de ater-se à regra, sem cuidar das exceções, salvo quando as exceções são homens de grandes títulos, ou fortunas, ou “pessoas de importância” para o governo. Os ingleses em sua maioria são muito ignorantes para conhecerem o valor de um livro”.

Mas não será esse, talvez, o lado mais interessante deste interessantíssimo volume. O que importa ressaltar, nesta vida tão agitada e trágica, é o eterno problema da sinceridade em arte. Tanto os romances como as peças teatrais, os ensaios como as pequenas obras, que Wilde escreveu no período anterior à prisão, são belos, algumas obras de arte podem ser apontadas, não há dúvida. Mas inegavelmente falta em qualquer dessas obras uma certa nota, nota que lhes garanta a perdurabilidade no decorrer dos anos. Quantas páginas não sacrificou ele pelos seus paradoxos de efeito! Paradoxos que tanto têm servido aos nossos cronistas sem assunto ou para enfeite desses horríveis álbuns de lembranças. Oscar Wilde, e não avanço novidade alguma, só foi grande e humano, grandemente humano, quando um dia, depois da prisão, escreveu aquela célebre “Balada do cárcere de Reading”, que nós podemos ler na excelente tradução de Gondim da Fonseca. Essa balada é uma parte do De profundis, esse grito angustioso de um homem que já viveu sua vida e aguarda o momento final, sem esperanças e sem consolo, garantem a sua eternidade nas letras. São gritos partidos do mais íntimo do seu ser. Sinceros, por isso mesmo que eternos.

Mas é preciso insistir: o mal de Oscar Wilde foi o meio. Mesmo na infância, quando cursava o Portora Royal School (não esquecer também o processo movido contra seu pai em Dublin) ou depois na adolescência em Oxford, o clima que encontrou era dos mais propícios para o desenvolvimento das suas tendências. A influência de Ruskin, esse hoje esquecido contemplativo da beleza, que poderia ter servido de rota ao adolescente, conquistador aplaudido de inúmeros prêmios literários, só se fez sentir de um lado, justamente o pior de sua obra. Wilde mesmo confessou que as ideias morais, piedosas etc., do seu mestre, não lhe interessavam. Suas aulas lhe provocavam bocejos. Seu estilo, porém, ah! Que maravilha, que sublimidade! O estilo e o amor puro à beleza. Tal e qual um autêntico grego dos tempos de Péricles. “Sou um grego nascido fora de seu tempo”, confessou certa vez. A beleza sempre, sob todas as formas. A defesa que, anos mais tarde, fazia das suas preferências, é uma dessas coisas arrepiantes. Frank Harris a transcreve, minuciosamente, e para essas páginas eu remeto o meu provável leitor.

Quando a pudicícia e a hipocrisia britânica o condenavam, no mais abjeto e safado dos julgamentos, ele se considera um homem liquidado, mentalmente morto, mesmo antes das torturas do cárcere. E quando Frank Harris, mais tarde, lhe aconselha, com tanta insistência, a ser um novo Dante, fazendo dos horrorosos meses na prisão um novo Inferno, responde desalentado que viera ao mundo para cantar a “alegria e o orgulho de viver, para cantar o prazer de existir, as delícias de tudo o que é belo no mais belo dos mundos”. E os homens, diz ele, “apoderaram-se de mim, torturaram-me até que eu conhecesse a piedade e a dor. Agora já não posso cantar sinceramente a alegria, porque conheço o sofrimento – e não fui feito para cantar a este. Detesto-o e apenas desejo entoar voluptuosamente canções de amor e de prazer. Unicamente a alegria me atrai; a alegria da vida, da beleza, do amor. Eu poderia cantar a canção de Apolo, o Deus-Sol, eles procuraram obrigar-me a cantar a de Márcias martirizado”.

Era sua mais ardente convicção. As cartas em prol dos presidiários, seus ex-companheiros, a “Balada imortal” e o De profundis são, porém, amostras mais do que suficientes do que, se ele quisesse ou as circunstâncias tivessem permitido, poderia ainda ter feito. Mas nada fez, a não ser cair de degradação em degradação, a menor das quais não será, talvez, aquela “grande paixão romântica” que Harris nos conta com tantos detalhes.

Disse, no início, que este volume constitui a mais completa e convincente das provas no processo sobre a sua vida e a sua obra. Resta acrescentar que a tradução brasileira, feita sobre a última edição inglesa, é integral tal como a deixou Frank Harris, com todos os acréscimos e alterações posteriormente feitos. Dessa maneira, nos é possível ler a “plena e final confissão de Lord Alfred Douglas”, escrita em 1925, logo após a saída de Vida e Confissões. As recordações que Bernard Shaw escreveu sobre Oscar Wilde também figuram na íntegra, entre os apêndices, bem como poesias de Lord Alfred Douglas, uma parte do De profundis, inúmeras cartas trocadas pelo autor em virtude da publicação do trabalho Os últimos dias de Oscar, descrição de Robert Ross, além da quantidade de notas e observações ocorridas mais tarde, tanto ao autor como aos seus amigos, ou aos amigos de Wilde.

Um grande livro, indiscutivelmente.