5.2. Discurso no Hotel Esplanada, São Paulo, em 23 dez. 1955.


Discurso proferido em cerimônia que homenageou Edgard Cavalheiro pela publicação de Monteiro Lobato: vida e obra (fonte: RETRIBUIÇÃO pelo Jeca Tatuzinho – Edgard Cavalheiro expõe as razões pelas quais escreveu Monteiro Lobato: vida e obra. Correio Paulistano, São Paulo, 25 dez. 1955. Pensamento e Arte).



Poucos meses antes de partir para sempre, Monteiro Lobato foi convidado pelos seus amigos da Bahia a visitar Salvador, para ali receber algumas homenagens. Em resposta, passou à comissão organizadora o seguinte telegrama: “Irei, se não houver discursos”. Pensamento idêntico me ocorreu quando alguns amigos me anunciaram este jantar. Discursos são coisas incômoda, e um incrível pudor me tem levado a evitá-los na medida do possível. Alguém já disse que a posição mais desfavorável para o orador é a de falar diante de pessoas que comem. Tudo poderia, pois, ser substituído por um comovido e realmente sincero “muito obrigado”. Mas quando acrescentaram que a saudação oficial estava a cargo de Rui Bloem, o oferecimento tinha um sentido todo especial: acontece que foi pelas suas mãos generosas e cordiais que ingressei na imprensa paulista. Ele franqueou as páginas das “Folhas”, nelas acolhendo os pruridos literários de um então jovem bancário tímido e cheio de sonhos que, para sua desventura ou ventura, não tinha, evidentemente, vocação de especie alguma para as letras de câmbio. O “guichê” do banco era-lhe penosa prisão. Para dela sair, o estímulo de Rui Bloem foi decisivo. É ele o responsável por estarmos aqui comemorando o simples lançamento de um livro, e não a abertura de uma filial de um estabelecimento bancário, ou a promoção de qualquer gerente para diretor, ou coisa que o valha. Nada disso.

Apenas estamos reunidos porque um livro foi publicado. No entanto, ainda há poucos dias um repórter, com o ar mais sério do mundo: Vale a pena escrever? Como quem pergunta: compensa ser escritor no Brasil? Em termos econômicos, é claro que não. A profissão é das mais ingratas. Meu amigo Nelson Palma Travassos não pensa assim: ele acha que se vive, e muito bem, dos livros. Mas acontece que Nelson, embora possua tudo para ser um escritor dos melhores da língua, prefere imprimir os amigos. Acha, portanto, muito compensador que se escreva e se publique milhares de livros no Brasil. Mas os livros que escrevemos, com raras exceções, não trazem proventos econômicos, o que eles nos dão em troca compensa fartamente o trabalho de escrevê-los. Pois eles produzem essa coisa admirável, insubstituível, sem a qual a vida não faria sentido: amigos.

Outros ofícios oferecerão, talvez, melhores oportunidades. Nenhum, porém, mais propício para atrair simpatias, ternuras e amizades.

O ter despertado com a vida de Monteiro Lobato novo e mais vivo interesse pela sua obra, já seria mais do que suficiente para as canseiras da empresa. Um biógrafo é sempre alguém que se coloca em segundo plano, pois mais do que as próprias qualidades, o que importa é o retratado. Isto é o que é o centro absoluto de atração da obra. Há num livro desse gênero, pouco lugar para expansões pessoais. As afinidades porventura existentes são de tal maneira subjetivas e sutis, que mesmo o mais atilado dos leitores não deverá ter conhecimento. Do que todos, no entanto, logo percebem, é que nas páginas de quase todas as biografias predomina sempre uma admiração do retratista pelo retratado. Nas páginas do meu livro a admiração é bem visível. Mas creio também ter deixado bem claro que além de admirador, Monteiro Lobato foi visto por um amigo, um amigo que procurou compreendê-lo para melhor poder explicá-lo. Desde o dia em que, nos socavões de uma fazenda perdida no interior do Estado me caiu nas mãos um exemplar do “Jeca Tatuzinho”, o amigo estava conquistado. O livro que vocês agora tão carinhosamente comemoram nada mais representa do que a retribuição do bem que fez ao menino da escola rural esse livrinho do escritor paulista. Como para tantos outros da minha geração, foi esse o primeiro livro, a chave que abriu o mundo encantado da leitura.

Razões nos sobram, portanto, a todos nós, quando afirmamos que vale a pena escrever no Brasil. Pois sem isso, como reunir numa sala, ao redor de uma mesma mesa, tantos amigos?