5.3. Discurso na Câmara Municipal de Espírito Santo do Pinhal-SP, em 24 fev. 1956.


Discurso em agradecimento a homenagens, por ocasião da publicação da biografia de Monteiro Lobato (fonte: AS HOMENAGENS a Edgard Cavalheiro. A Folha, Espírito Santo do Pinhal-SP, 26 fev. 1956).



Quando Carolino Sucupira Mendes Silva, o nosso Calú, me falou a respeito da realização dessa seção, destinada a homenagear um filho da terra que alcançou algum êxito nos meios literários do País, minha primeiro tentação foi a de esquivar-me. Não por falsa modéstia, ou tolo orgulho. Mas por não encontrar, realmente, razões especiais para um ato tão comovente, tão cheio de significado, tão caro ao meu coração.

E não encontro razões para pensar como o poeta, que só se julgava nobre por ser da sua terra, que só se julgava rico por ser da sua gente.

“Se amo, padeço, e sonho, a recompensa

É a melhor que me dais, neste agasalho:

Desta ternura, sobre mim suspensa,

Desce todo o valor do quanto valho.”

Realmente, que somos nós, do maior ao menor, senão produtos da terra que nos viu nascer, que nos primeiros passos nos deu a direção a ser percorrida? Voltando os olhos para o passado, que realmente já começa a tornar-se remoto, e rememorando com alguma paciência os anos decorridos, é que, com mais nitidez, nos damos conta da dívida assumida para com o chão que nos serviu de berço, e que no período de formação nos amparou e guiou. Alguns repórteres me tem perguntado, com alguma constância, como nasci para as letras, se a vocação me veio do berço, ou se houve algum impulso exterior que me tivesse levado ao livro. Até agora só tenho dado respostas vagas, incompletas, inconclusivas. Mas ao pensar no que poderia dizer hoje, aqui, em meio da família pinhalense, o que vale dizer, da minha própria família, achei que não podia encontrar melhor oportunidade para uma tentativa de roteiro que levasse, se não a uma explicação, pelo menos a uma compreensão.

Marcel Proust nos ensinou que é procurando o tempo perdido que nos melhor nos acharemos. Outra oportunidade como esta não surgirá facilmente. Pois aqui todos me entenderão, uma vez que falarei de nomes, pessoas e coisas, familiares a todos nós. Se mencionar o bairro baixo, ou o bairro alto, de Nova Louzã, meus amigos Lindor Leite ou Adelino Guarinelo, saberão logo do que se trata. Se lembrar ruas e casas, e gentes, todos logo reconhecerão, com certeza terão lembranças idênticas, acontecimentos similares. Ainda há poucos meses, sem saudação pública, por delegação vossa, Antônio Machado Florence lembrou alguma coisa desse passado. Lembrou, com a sua alta eloquência, o menino do grupo escolar Dr. Almeida Vergueiro que gazeava a aula para ir nadar no ribeirão, de onde o velho Manoel Gonçalves o punha para fora em doídas correrias. Recordou as valentes peladas na praça atrás do Grupo, muitas vezes interrompida por alguma vidraça da vizinhança espatifada. E de tantas outras molecagens mais que, como todas as crianças de todos os tempos, éramos tão pródigos. Seria aliás fácil enumerá-las, lembrando o tabuleiro da Rosinha, de onde furtávamos pés de moleques e bons-bocados, ou as pequenas e porque não dizer perversas provocações contra a Zabé-louca. Ou contra aquele pitoresco Jacareí, com as suas patacoadas sobre a Guerra do Paraguai. Tudo tão vivo, tão presente! E tão fácil de reconstruir! Aos olhos do menino de então, os pequenos sucesso assumiam grandezas insuspeitadas. Revivê-los é empresa das mais agradáveis. E revivendo-os não me sentirei fora de foco se a emoção vier perturbar-me. Pois a verdade é que em todas as visitas à casa paterna, encontraremos sempre, pelos cantos, a sombra da ilusão, ou de uma saudade.

Procurando, no mais fundo da memória, a mais antiga lembrança, me vejo, criança de cinco ou seis anos, diante do velho Trianon, ao lado da Matriz, com o seu Nicola a atender a sua seleta freguesia. Ao lado do Clube, onde as figuras provectas do lugar decidiam os destinos da cidade: os velhos coronéis, homens solenes, sérios, sóbrios no vestir e no viver. Mais tarde um pouco, sete ou oito anos, a escolinha mista de Nova Louzã, bairro baixo, diante de Dona Ernestina, mulher do sr. Branco – goleiro do time de futebol – uma mulher alta e magra, paciente e boa. É com ela que o caipirinha aprende as primeiras letras, entre caboclos e caboclinhas cujos nomes constituem, infelizmente, apenas apagados ecos na memória. Um ou outro mais presente não responderia, bem sei, a chamada, que o companheiro lhe fizesse. Onde andarão eles? Benjamim? Benedito? Sebastião? Nomes apenas. Vagos nomes. Das mãos de dona Ernestina para as de Benedito Teles, ou de Oscar de Almeida – o que fazia versos e os publicava na cidade, na folha de Otaviano Costa, ou Laurindo Marques – crescendo aos olhos do menino que já então descobrira essa coisa maravilhosa, tão maravilhosa que substituía por vezes o jogo de pião, de malha ou as longas peregrinações rodando arcos. Era um pequeno livrinho que contava uma história muito engraçada de um caipira que botava sapatos até nas galinhas do seu sítio. Era o Jeca Tatuzinho, de Monteiro Lobato. Como para tantos outros da minha geração, foi esse o primeiro livro, a chave mágica que abriu o mundo encantado da leitura. Com que alegria o adulto pagou a dívida ao seu autor, escrevendo-lhe a vida!

Mas Nova Louzã era apenas uma pequena etapa dos estudos. Concluído o segundo ano na escolinha rural, era mister prosseguir no curso. Diariamente o trenzinho da mogiana trazia o menino de manhã, devolvendo-o à tarde. José Ferreira Neves fez, como professor, esse percurso, muitas vezes.

O Grupo Escolar Dr. Almeida Vergueiro! Era todo um mundo novo. Caras novas. Mestres novos. Muitas caras novas. Muitos mestres novos. Como esquecê-los. José Floriano de Azevedo Marques, Domingos Ramacciotti, Ruy Barbosa, Humberto Leal... Está muito viva na minha memória a primeira emoção realmente séria, o primeiro triunfo, aquilo que se poderia, imodestamente, chamar-se de prenúncio do futuro escritor. Não é por vaidade que relembro o episódio, mas sim porque ele, em verdade, marcou a sensibilidade infantil, e inconscientemente terá agido como mola impulsionadora. Foi assim: a aula era de composição. Terceiro ano. Professor José Floriano. Assunto: carta a um amigo convidando-o a passar férias na fazenda. No dia seguinte, com surpresa, é o terceiro anista, meio tímido e meio encabulado, conduzido ao quarto ano, onde o professor Ramacciotti, diante da sua classe atenta, o fez ler, com a necessária ênfase, aquilo que julgavam uma brilhante epístola e que fora, na tarde anterior, motivo de reunião na sala da diretoria. Estão lembrados desse pequeno episódio os professores Ramacciotti e Floriano?

O primeiro triunfo! Que sabor ele nos deixa! Por mais que esmiúce na memória, não encontro outro fato tão marcante a levar-me para o campo das letras. Claro que apenas isso não bastaria, mas o episódio marca uma tendência, o que somos nós senão homens marcados pelo berço?

Do grupo para o ginásio e escolas de comércio, e depois para a vida prática, os anos voaram, juntamente com os cabelos. Mas no meio desse período há o interregno de um ano inteiro em Nova Louzã, inativo, indeciso quanto ao futuro. Foi no ano trágico de 30, quando a incerteza e o temor pairou sobre tantas casas. A inatividade em Nova Louzã, para o adolescente já preso ao livro, e que às ocultas versejava, enchendo cadernos e mais cadernos de rimas, seria altamente benéfica. Acontece que havia lá um farmacêutico, um homem alto e magro, sempre risonho e brincalhão. Esse homem possuía uma coisa muito importante, muito rara por aquelas bandas: uma estante carregada de livros. Oh! A biblioteca do Lindor! Como eu lamento nessa hora não ser um altissonante poeta para cantá-la! Que de alexandrinos clangorosos a lira entoaria em seu louvor! Era uma biblioteca eclética, com grandes e pequenas obras, e que durante um ano inteiro foi devorada em média de um livro por dia. O sol podia cantar lá fora clarinadas de luz! Os cafezais podiam vestir-se das mais lindas flores na mais esplêndida floração! O rapazinho só tinha olhos para ler, só sabia ir todas as manhãs ao bairro baixo trocar o livro lido na véspera, e voltar correndo para o bairro alto, a enfurnar-se no quarto por horas e mais horas. Quantos sábados e domingos não deixou de ir à cidade, perdendo formidáveis partidas futebolísticas em que brilhavam craques como o Lau, o Bartô, o Didi, e tantos outros mais. Sacrificava mesmo aquelas saborosas voltas no jardim da praça da Matriz, resistindo à tentação dos tímidos namoros, como aliás convinha a quem sonhava com virgens loiras e gemia débeis poemas de amor. Mais forte do que o olhar da eventual namorada – onde andarão elas? – ou de uma sessão no Éden, eram as páginas telúricas do Canaã de Graça Aranha, ou o ambiente cheio de oropéis de Coelho Netto. De tudo havia na estante do Lindor! Me lembro, como se fora hoje, do pasmo, do impacto que foi a descoberta do Losango cáqui, de Mário de Andrade. Aquilo vinha para destruir todos os Bilacs, todos os Vicentes de Carvalho, todos os Raimundo Correia, que devorara insaciavelmente. E me lançava numa confusão tremenda, pobre autodidata perdido entre tantos iconoclastas. Pois de um modernista audacioso como Mário de Andrade, o pulo era para um realista como Malheiro Dias ou Aluízio Azevedo, ou um romântico como Alencar ou Macedo.

Como disse, era uma estranha, inquietante e perturbadora estante a do meu amigo Lindor. As cartas aos amigos da capital – e um deles recentemente me mostrou uma delas – iam pejadas de reflexões, de ingênuas reflexões, naturalmente. Mas o vírus literário estava realmente inoculado. E para ele, ai de nós! Não há remédio. E como não havia mesmo remédio, o jeito era procurar a válvula de escape. Laurindo Marques Júnior, que depois se agastaria com o seu colaborador, abriu as páginas de A Folha e nelas, sob o pseudônimo de Afrânio, muitas poesias, inúmeras crônicas, dezenas de artigos foram publicados. Revendo velho álbum de recortes encontro páginas que trazem títulos como “Crônica de orgulho pra terra distante”, “D. Sebastião Leme”, “O Jacareí”, e tantos outros mais. Era o aprendizado do escritor, feito graças à paciência e boa vontade do Laurindinho, que não lhe regateava colunas, nem estímulos. É certo que do outro lado, aquela pitoresca figura que encheu durante tantos anos o jornalismo pinhalense, o falecido Sampaio Júnior, não perdoava o principiante, e em “Espirros” (nota do editor: coluna no jornal A Notícia, de Pinhal) contundentes zurzia o colaborador de A Folha. Não é sem melancólico sorriso que releio essas velhas páginas e recordo o Sampaio abraçando-me rumoroso e explicando as razões dos ataques. Eram apenas para chamar a atenção, agitar o ambiente, nada mais. E se não é sem um sorriso que releio essas páginas, não é também sem grata emoção que me volto para aqueles tempos em que a publicação de um simples artigo enchia de júbilo e de altos sonhos a cabeça do jovem candidato à literatura.

Todos nós que fazemos das letras ofício, somos olhados de esguelha, com muita desconfiança, pelos seres bem pensantes e bem postos na vida. Num país em que tal atitude nada tem de produtiva e de rendosa, economicamente falando, não é realmente desrazoado dedicar-se alguém às belas letras? Assim seria olhado o colaborador d'A Folha que, certa manhã, entrou pelas largas portas do Banco do Estado, para o início daquilo que se poderia chamar de vida prática. Mas é evidente que as letras de câmbio seriam vencidas e postas de lado. Não foi, como seria fácil dramatizar, uma luta heroica, em que empecilhos tenham sido vendidos a duras penas, não. Desambicioso e tímido, mais do que a possível glória, o que o apagado bancário buscava, no doido afã de encher laudas e laudas de papel, era a sua própria salvação. Isto tem a literatura de bom, quando a servimos com paciência e honestidade, ela compensa. Compensa sempre. O conselho é não sair impaciente à cata de uma glória ilusória e falaz. Isso de nada servirá, se aquilo que fizermos não nos proporcionar esse mínimo de satisfação interior, sem a qual todo sucesso não terá nenhum sentido. Nenhum escritor autêntico, e nem é preciso discutir qualidade, pode ter o êxito como finalidade. O que deve importar – repetimos – é a satisfação íntima. O corpo pode se diluir em desgastes físicos, pois os anos são impiedosos, mas se a consciência está tranquila, se o espírito se manteve puro, incorrompível, se ele jamais foi caucionado a interesses escusos, ah! Então tudo é diferente. O rio pode muito bem ter desviado o seu curso e não mais o encontrarmos no local dos banhos à tardinha. As pedras da rua que pisamos podem não guardar mais as marcas dos nossos pés. Talvez nem mesmo encontremos quem nos indique os velhos caminhos, ou nos aponte as antigas moradas. Mesmo as árvores, se não são outras, mostrarão velhos troncos irreconhecíveis.

Talvez seja inútil perguntarmos pelos antigos companheiros. Muitas vozes silenciaram. Uns tragados pela morte. Outros pela própria vida. Mas se tivermos conseguido manter integral fidelidade aos ideais, se os embates da vida não poluíram tais ideais, é mais do que certo, é certíssimo, de que nossa imagem se refletirá no espelho nítida e forte, com a mesma pureza e mesmo encanto dos seus primeiros sorrisos, dos seus primeiros sonhos, das suas primeiras ambições.

Meus amigos, velhos companheiros, homens que me viram pequeno, ou que comigo brincaram, e que carinhosamente acompanhais, em silêncio e de longe, os passos do filho da Rosinha: não o louveis pelo êxito momentâneo de uma obra literária. O ter escrito alguns livros, o ter colaborado em jornais e revistas das mais importantes do País, não é façanha a que se deva prêmios ou louvores. Já vos mostrei que o caminho do escritor não tem, como disse o poeta, “aroma que vos não pertença”. O que talvez podeis louvar é a fidelidade do escritor aos sadios princípios hauridos da sua terra e da sua gente. Somos, sem a menor dúvida, produtos da infância. A tragédia só atinge o homem quando ele rompe o fio que o liga à terra natal. Se for incapaz, como o Anteu da lenda, de recuperar suas forças ao contato com a terra, é um homem perdido. Perdido para a vida, que não perdoa infidelidades dessa ordem.

Das muitas alegrias que a vida de escritor me tem a propor, nenhuma supera a de saber que pude refletir-me no espelho do passado com a pureza, o encanto e os sonhos das primeiras ambições. E saber que não vos decepcionei é, sem a menor dúvida, o melhor estímulo para prosseguir, certo de que, se o escritor não conseguiu ou não pôde alçar-se às alturas desejadas, soube, contudo, honrar as lições aprendidas, e da medida de suas forças continuar a tradição pinhalense de servir ao seu Estado e ao seu País, de que são exemplos os mais altos nomes como os de D. Sebastião Leme, Abelardo Vergueiro César, Machado Florence e tantos outros mais.

Agradeço, muito comovido, a Manoel Carlos Gonçalves, a Carolino Sucupira Mendes Silva e a Júlio Jardini terem propiciado esta reunião, e a todos a paciência com que ouviram este pobre orador.