5.6. Discurso na Câmara Brasileira do Livro, em São Paulo, a 22 nov. 1956.


Discurso proferido em homenagem ao editor Savério Fittipaldi. (HOMENAGEM ao editor Savério Fittipaldi. Boletim Bibliográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 6, v. 4, p. 275-276, nov./dez. 1956).



Meu caro Savério Fittipaldi,

Embora avesso, por temperamento, à oratória – particularmente esta de sobremesa – é com o mais grato prazer, e a mais comovida ternura, que em nome de todos os seus colegas e amigos da “Câmara Brasileira do Livro”, venho trazer-lhe o aplauso público da classe à sua obra em prol do livro brasileiro – o que vale dizer – em prol da cultura brasileira.

Há cinquenta anos que o temos inteiramente dedicado ao nobre, porém bem pouco compensador, ofício de dar à nossa terra e à nossa gente o alimento espiritual consubstanciado nos milhões de volumes que já passaram pelas mãos do livreiro, editor e autor. Sim, pois todas as escalas do nosso comércio foram percorridas pelo menino que, aos doze anos de idade, iniciou suas atividades, a princípio como auxiliar do pai numa improvisada livraria junto ao velho Teatro de São Pedro, onde hoje se encontra o Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro.

Do rapazinho esperto, que amorosamente arrumava, todas as manhãs, num muro lateral do teatro, os mais variados livros; do menino vivo e sabido que aos 12 anos supria a sua banca, percorrendo os fornecedores; do pequeno vendedor, sempre solícito à heterogênea clientela, ao velho e querido Savério Fittipaldi da Editora das Américas, é longa a caminhada. Que ela foi áspera, às vezes duríssima, não é de estranhar num País como o nosso, ainda tão pouco afeito às coisas do espírito. Savério, como Quaresma, Teixeira, Alves, Saraiva, Briguiet, Garnier, Jacinto, o velho João Martins, e poucos mais, entre eles o grande Lobato, foram precursores, e aos precursores cabem sempre as tarefas mais difíceis, mais espinhosas. A história desse grupo de homens é a própria história, e por vezes dolorosa história, do livro no Brasil. Uma história nem sempre feliz, nem sempre otimista, pois que é marcada, aqui e ali, por fundas decepções, por amargas derrotas. Mas decepções ou derrotas não foram suficientes para afastar do caminho do livro homens como Fittipaldi.

No comércio do livro, sabemos todos nós, é imprescindível uma boa dose de sonho. Se vender ou editar livros não é, economicamente falando, um bom ou lucrativo negócio, é, pelo menos, um belo negócio. Se nele procurarmos unicamente proventos materiais, o melhor é desistir. Negócio personalíssimo, nisso consiste, aliás, um de seus maiores atrativos. Somente homens habituados ao sonho, sentem-se à vontade nele.

Savério Fittipaldi tinha um sonho, acalentava para a Pátria adotiva, a Pátria dos seus filhos, dessa forma investiu em algumas obras que julgava fundamentais para a nossa cultura. Tanto para o menino que apregoava a sua mercadoria ao ar livre como para o livreiro que se tornaria depois, o livro não foi nunca uma mercadoria como outra qualquer. Cada volume, mesmo a mais humilde brochura, dizia-lhe alguma coisa, trazia em suas páginas uma mensagem. Sabia que mesmo na brochura menos importante, há sempre um pensamento, uma frase, um parágrafo ou um capítulo digno de ser retido. Não havia, para ele, como para todos quanto amam verdadeiramente o livro, obra inútil. Esse apego à letra impressa foi, pouco a pouco, envolvendo-o e transformando-o, de simples vendedor, num leitor apaixonado e inveterado. Nas horas de folga, tirava dos volumes os mais diversos, os cursos que não lhe fora possível fazer. Essa curiosidade intelectual levá-lo-ia, naturalmente, a olhar com supersticioso respeito aos grandes vultos das letras que, no convívio das livrarias, se revelavam a seus olhos, homens como os demais, humanos, compreensivos, tolerantes, embora aqui e ali não faltassem os suficientes, ou esnobes. Quando, em 1919, Fittipaldi resolve abrir a sua própria livraria, deu-lhe o nome de Livraria Carioca. No entanto, pouco tempo depois, a rebatizava para Livraria João do Rio – homenagem a um amigo, e mais do que a um amigo – a um grande escritor que acabava de falecer.

Cerca de seiscentas obras, entre populares e clássicas, foram lançadas pela editora João do Rio que, num certo período, atraiu para a sua loja vultos dos mais eminentes das letras nacionais. Evaristo de Morais, Catulo da Paixão Cearense, Ronald de Carvalho, Agripino Grieco, João Ribeiro e outros, todos ali faziam ponto, ali iam não apenas à cata das últimas novidades mas, principalmente, para o convívio ameno e erudito de Savério Fittipaldi. Acontecera que no transcurso de tantos anos, o ex-vendedor de livros de praça pública e agora editor, não se limitara a vender e a editar. Lera muito. Passara noites debruçado sobre velhos calhamaços, familiarizando-se com as obras dos grandes mestres. Dotado de extraordinária memória, retinha minúcias que tornavam a sua palestra colorida, pitoresca. Tanto discorrendo sobre as mais intrincadas passagens da Bíblia, como sobre os mais insignificantes pormenores da História; seja falando sobre um autor antigo ou um moderno, Savério Fittipaldi revela um conhecimento autêntico, real, de quem, em verdade, mais do que mero e curioso leitor, foi um estudioso incansável, paciente.

Homem de permanente bom humor, solícito, acolhedor, sempre amável, de uma alegria e otimismo contagiantes, soube criar, graças a essas qualidades, um clima propício ao trato com os homens de letras que o frequentavam, transformando a Livraria João do Rio em algo mais do que uma simples casa de comércio de livros.

Mas, em 1937, Savério Fittipaldi transfere-se para São Paulo. Outros planos o preocupam. Mas é inútil qualquer tentativa que o afaste de forma definitiva dos livros. Logo mais vamos encontrá-lo na Praça da Sé, como sempre às voltas com originais e brochuras, com aquele ar aparentemente ausente, deixando a imaginação correr pelos amplos domínios do sonho.

Pouco depois dá início à publicação da História Universal, de Cesare Cantu. Em seguida publica A Bíblia Sagrada. Monta oficina própria, e de suas máquinas saem as Vidas Ilustres, de Plutarco, a série das biografia dos homens célebres e outras clássicas que o editor procurava, e conseguia, popularizar.

Hoje, a Editora das Américas, um sonho realizado: oficinas gráficas e de encadernação, e algumas dezenas de títulos a circularem pelo País, atestam um labor constante, bem orientado e dos mais profícuos.

Nós todos nos regozijamos com a vitória desse trabalhador do livro. E aqui estamos para reafirmar-lhe, publicamente, da nossa alegria por vê-lo obter, depois de tantos anos de dura luta, o justo e merecido prêmio. Que por muitos anos, meu caro Savério Fittipaldi, você possa usufruir dessa satisfação – e que novas vitórias venham coroar os esforços de quem, do livro, pelo livro e para o livro, tem vivido.