8
Assim que a guerra acabou, Michael foi desmobilizado e conseguiu imediatamente um papel. Quando regressou aos palcos era muito melhor ator do que quando os deixou. A desenvoltura que tinha adquirido no exército era eficaz. Era um indivíduo equilibrado, normal e bem-disposto, com um sorriso fácil e um riso franco. Adaptava-se na perfeição à comédia ligeira. A sua voz jovial imprimia um efeito peculiar a uma fala irreverente e, embora nunca conseguisse cortejar de forma convincente, era capaz de se sair bem de uma cena de amor jocosa fazendo um pedido de casamento como se fosse um gracejo ou uma declaração como se estivesse a rir-se de si próprio, num estilo que o público considerava cativante. Nunca tentava representar ninguém senão ele próprio. Especializou-se em homens sofisticados e mundanos, jogadores de trato fino, soldados da guarda nacional e jovens vigaristas com um lado bom. Os empresários gostavam dele. Trabalhava arduamente e acatava bem as indicações de encenação. Desde que conseguisse trabalho era-lhe relativamente indiferente que papel interpretava. Insistia em receber o salário que achava merecer mas se não o obtivesse preferia aceitar menos a estar ocioso.
Traçava meticulosamente os seus planos. Durante o inverno que se seguiu ao fim da guerra houve uma epidemia de influenza. O pai e a mãe morreram. Herdou quase quatro mil libras que, acrescidas às suas próprias poupanças e às de Julia, elevou o capital conjunto de ambos para sete mil. Mas as rendas dos teatros tinham aumentado terrivelmente, assim como os salários dos atores e dos técnicos, pelo que o custo de funcionamento de um teatro era então muito superior ao de antes da guerra. Uma quantia que antes chegava perfeitamente para assumir a direção de um teatro revelava-se agora insuficiente. A única solução era arranjar um homem rico que se associasse a eles de forma a que um ou dois fiascos iniciais não destruíssem definitivamente os seus projetos. Dizia-se que era sempre possível encontrar um tanso na City que passasse um cheque gordo para a produção de uma peça mas, quando chegava o momento da verdade, descobria-se que a primeira condição era que o principal papel fosse interpretado por uma bonita senhora por quem ele se interessava. Anos antes, Michael e Julia tinham-se rido muitas vezes da velha rica que se apaixonaria por ele e o lançaria numa carreira de empresário. Há muito que ele tinha aprendido que nunca encontraria uma velha rica que investisse na carreira de empresário de um jovem ator cuja mulher era uma atriz a quem ele era absolutamente fiel. Acabaram por arranjar o dinheiro junto de uma mulher rica, que nem sequer era velha mas que estava interessada, não em Michael, mas em Julia.
Mrs. de Vries era viúva. Era uma mulher baixa e avantajada com uns belos olhos e nariz de judia, uma energia extraordinária, um trato simultaneamente efusivo e acanhado e um ar um tanto viril. Nutria uma paixão pelo teatro. Quando Julia e Michael tinham decidido tentar a sorte em Londres, Jimmie Langton, a quem ela acudira por vezes quando o encerramento do seu teatro de repertório parecia inevitável, tinha-lhe escrito a pedir que fizesse por eles tudo o que estivesse ao seu alcance. Ela tinha visto Julia em cena em Middlepool. Organizava festas para que os jovens atores pudessem travar conhecimento com empresários e convidava-os a ficar na sua majestosa casa, próximo de Guildford, onde eles desfrutavam de um luxo com que nunca haviam sonhado. Não gostava particularmente de Michael. Julia aceitava as flores com que Dolly de Vries lhe inundava a casa e o camarim, mostrava-se convenientemente encantada com as prendas que ela lhe oferecia, carteiras, estojos de toilette, colares de contas semipreciosas, alfinetes de peito; mas parecia ignorar que a generosidade de Dolly se devesse a outra coisa que não a admiração pelo seu talento. Quando Michael partiu para a guerra, Dolly insistiu para que Julia fosse viver com ela na sua casa de Montagu Square mas Julia, com protestos de profunda gratidão, recusou em termos tais que Dolly, com um suspiro e uma lágrima, só pôde admirá-la ainda mais. Quando Roger nasceu Julia convidou-a para ser a madrinha.
Durante algum tempo, Michael tinha andado a considerar a possibilidade de Dolly de Vries entrar com o dinheiro de que precisavam mas tinha a perspicácia suficiente para saber que, embora ela pudesse fazê-lo por Julia, não o faria por ele. Julia recusou-se a abordá-la.
– Ela já tem sido tão generosa connosco que não lhe posso pedir e seria humilhante se ela recusasse.
– É um bom investimento e mesmo que ela perdesse dinheiro não dava por isso. Tenho a certeza que conseguias convencê-la se tentasses.
Julia também tinha a certeza de que conseguia. Em certos aspetos Michael era muito ingénuo; não se sentiu obrigada a chamar-lhe a atenção para a evidência dos factos.
Mas ele não era homem para deixar passar uma coisa em que estivesse empenhado. Iam passar o fim de semana a Guildford com Dolly e viajaram até lá, depois do espetáculo de sábado à noite, no novo carro que Julia tinha oferecido a Michael pelos anos. Estava uma noite bonita e amena. Michael tinha comprado os direitos de preferência, embora tivesse sido com um nó na garganta que passara os cheques, sobre três peças de que ambos gostavam e tivera conhecimento de um teatro que podiam alugar em condições razoáveis. Estava tudo preparado para o empreendimento exceto o capital. Insistiu com Julia para que aproveitasse a oportunidade que o fim de semana oferecia.
– Pede-lhe tu então – disse Julia com impaciência. – Eu não peço, podes crer.
– Se for eu a pedir, ela recusa. Tu consegues manipulá-la como queres.
– Hoje sabemos o que é financiar uma peça de teatro. As pessoas financiam peças por duas razões... porque querem notoriedade ou porque estão apaixonadas por alguém. Há muitas pessoas que falam de arte mas é raro vê-las entrar com dinheiro vivo a não ser que tenham alguma coisa a ganhar.
– Pois, e nós damos à Dolly a notoriedade toda que ela quiser.
– Mas acontece que não é isso que ela quer.
– Como assim?
– Não adivinhas?
Michael compreendeu e ficou tão surpreendido que abrandou. Era possível que a suspeita de Julia fosse verdade? Nunca tinha sequer pensado que Dolly gostasse muito dele quanto mais que estivesse apaixonada por ele – a ideia nunca lhe tinha passado pela cabeça. Julia, claro, era uma observadora perspicaz, não lhe escapava muita coisa, mas era uma criatura ciumenta, estava sempre a pensar que as mulheres não o largavam. Era certo que Dolly lhe tinha oferecido um par de botões de punho no Natal mas achava que tinha sido apenas para ele não se sentir negligenciado por ter oferecido a Julia um alfinete de peito que devia ter custado, pelo menos, duzentas libras. Podia ser simplesmente uma questão de astúcia da parte dela. Pois podia afirmar com toda a honestidade que nunca tinha feito nada que lhe desse a mais pequena esperança. Julia soltou uma risadinha.
– Não, querido, não é por ti que ela está apaixonada.
Era desconcertante como Julia lhe lia os pensamentos. Não era possível esconder nada desta mulher.
– Então porque é que me meteste a ideia na cabeça? Só queria que te exprimisses de uma forma inteligível.
Foi o que Julia fez.
– Nunca ouvi tamanho disparate – exclamou ele. – Levas tudo para o mal.
– Deixa-te disso, querido!
– Não acredito que haja um grão de verdade nisso. Eu também tenho olhos. Achas que eu não teria reparado? – Estava mais irritável do que ela alguma vez o vira. – E mesmo que seja verdade, tu sabes olhar por ti. É uma hipótese em mil e eu acho que seria uma loucura não a aproveitar.
– Claudio e Isabella em Medida por Medida.
– Isso não é coisa que se diga, Julia. Com os diabos, eu sou um cavalheiro.
– Nemo me impune lacessit.
Fizeram o resto do caminho num silêncio pesado. Mrs. de Vries estava à espera deles.
– Não me quis deitar sem os ver – disse, abraçando Julia e beijando-a em ambas as faces. A Michael deu um enérgico aperto de mão.
Julia passou uma manhã feliz na cama a ler os jornais de domingo. Começou por ler as notícias relacionadas com o teatro, passou para as colunas sociais e depois para as páginas femininas e, por fim, correu os olhos pelos títulos das notícias internacionais. Ignorou as críticas literárias; não compreendia como se desperdiçava tanto espaço com elas. Michael, que ocupava o quarto contíguo, tinha aparecido a dar os bons-dias e depois tinha saído para o jardim. Pouco depois, ouviu uma leve e tímida pancada na porta e Dolly entrou. Os seus grandes olhos negros brilhavam. Sentou-se na cama e pegou na mão de Julia.
– Querida, estive a falar com o Michael. Vou entrar com o dinheiro para a vossa empresa teatral.
Julia sentiu um aperto no coração.
– Não faças isso. O Michael não devia ter-te pedido. Não posso aceitar. Já tens sido de uma generosidade suprema para connosco.
Dolly baixou-se e beijou Julia nos lábios. O seu tom de voz era mais baixo do que o habitual e denotava um leve tremor.
– Oh, meu amor, não sabes que não há nada no mundo que eu não faça por ti? Vai ser maravilhoso, vai aproximar-nos ainda mais e eu vou sentir um orgulho enorme em ti.
Ouviram Michael a assobiar no corredor e, quando ele entrou no quarto, Dolly virou-se para ele com os grandes olhos vidrados de lágrimas.
– Acabo de lhe dizer.
Ele estava a transbordar de excitação.
– Grande mulher! – Sentou-se do outro lado da cama e pegou na mão livre de Julia. – Que dizes, Julia?
Ela lançou-lhe um breve olhar reflexivo.
– Vous l’avez voulu, Georges Dandin.
– O que é isso?
– Molière.
Assim que a escritura da sociedade foi assinada e Michael fez a reserva do teatro para o outono, contratou um agente publicitário. Foram enviados comunicados aos jornais a anunciar o novo projeto e Michael e o agente publicitário prepararam entrevistas para ele e Julia darem à imprensa. Surgiram nos semanários fotografias deles, individuais e conjuntas, com e sem Roger. A tónica doméstica foi explorada até à última gota. Das três peças que tinham, não conseguiam decidir-se com qual se estrear. Depois, uma tarde, estava Julia sentada no quarto a ler um romance, Michael entrou com um manuscrito na mão.
– Ouve, quero que leias esta peça imediatamente. Acaba de chegar de um agente. Acho que é fenomenal. Mas temos de dar urgentemente uma resposta.
Julia pousou o romance.
– Vou já começar.
– Eu estou lá em baixo. Avisa-me quando acabares que eu subo para a discutirmos. Tem um papel estupendo para ti.
Julia leu rapidamente, passando à frente as cenas que não lhe diziam respeito, mas lendo o principal papel feminino, o papel que naturalmente interpretaria, com grande concentração. Quando virou a última página, tocou à campainha e pediu à criada (que era também a sua assistente de camarim) que dissesse a Michael que estava pronta.
– Então, que achaste?
– A peça não é má. Não vejo como possa ser um fiasco.
Ele captou um certo ceticismo na sua voz.
– Então qual é o problema? O papel é fantástico. Isto é, é o género de papel que tu interpretas melhor que ninguém. Tem um lado de comédia acentuado e toda a emoção que tu queres.
– É um papel fantástico, eu sei; é o papel masculino.
– E depois? Também é um papel excelente.
– Eu sei, mas a personagem tem cinquenta anos e, se a tornares mais nova, destróis completamente a ideia da peça. Não queres com certeza interpretar o papel de um homem de meia-idade.
– Não estava a pensar em interpretar esse papel. Só há um ator para isso. O Monte Vernon. E podemos consegui-lo. Eu interpreto o George.
– Mas é um papel insignificante. Não podes interpretá-lo.
– Porque não?
– Julguei que a ideia de dirigir um teatro era podermos ser os dois primeiros atores.
– Ora, não faço questão nenhuma nisso. Desde que encontremos peças com grandes papéis para ti, eu não conto. Pode ser que na próxima peça também haja um bom papel para mim.
Julia recostou-se na cadeira e os seus olhos encheram-se espontaneamente de lágrimas que lhe correram pelas faces.
– Oh, que insensível que eu sou!
Ele sorriu e o seu sorriso foi mais encantador do que nunca. Aproximou-se dela e, ajoelhando-se ao seu lado, apertou-a nos braços.
– Valha-me Deus, então que tem agora a nossa menina?
Quando Julia o olhava agora não sabia o que lhe tinha despertado uma paixão tão violenta por ele. A ideia de ter relações sexuais com Michael causava-lhe náuseas. Felizmente, ele sentia-se muito confortável no quarto que ela lhe tinha mobilado. Não era homem para quem o sexo fosse importante e ficou aliviado quando descobriu que Julia já não lhe fazia exigências. Pensava, com satisfação, que o nascimento do bebé a acalmara, tinha de admitir que havia pensado nisso, e só lamentava não terem tido um filho mais cedo. Quando, em duas ou três ocasiões, mais por delicadeza do que por desejo, sugerira que deviam retomar as suas relações maritais e ela se desculpara, dizendo que estava cansada, indisposta ou que tinha dois espetáculos no dia seguinte, para não falar de uma prova de manhã, ele aceitou a situação com serenidade. Julia tinha-se tornado uma pessoa de trato muito mais fácil, já não fazia cenas e ele sentia-se mais feliz do que nunca. Fizera um casamento perfeitamente satisfatório e, quando olhava para os casamentos dos outros, não podia deixar de concluir que tinha sido um felizardo. Julia era uma pessoa excelente e inteligente, esperta como um alho, podia-se conversar com ela sobre qualquer assunto. A melhor companheira que um tipo podia arranjar, meu caro. Não se importava de admitir que preferia passar um dia sozinho com ela do que ir jogar uma partida de golfe.
Julia ficou surpreendida ao descobrir em si um estranho sentimento de piedade por ele porque já não o amava. Era uma mulher complacente e compreendia que seria para ele um amargo golpe se alguma vez suspeitasse do pouco que significava para ela. Continuava a lisonjeá-lo. Apercebeu-se de que há muito tempo que ele se habituara a escutar com satisfação os elogios dela ao seu nariz perfeito e aos seus belos olhos. Secretamente, divertia-se com a sua credulidade. Adulava-o abertamente. Mas agora olhava com mais frequência para a sua boca de lábios finos. Estava a ficar mais feia com a idade e, quando ele fosse velho, não passaria de um traço inexpressivo e sem alma. A sua obsessão com a poupança, que nos primeiros tempos ela tinha considerado uma característica engraçada e até comovente, causava-lhe agora repugnância. Quando as pessoas estavam em dificuldades, o que no teatro era frequente, Michael oferecia-lhes simpatia e palavras de consolação mas quase nunca dinheiro. Julgava-se extraordinariamente generoso quando abria mão de um guinéu e uma nota de cinco libras era para ele o auge da generosidade. Não tardara a descobrir que Julia geria a casa com prodigalidade e, insistindo em libertá-la dessa preocupação, assumiu ele próprio essa responsabilidade. A partir desse momento, nunca mais houve dinheiro mal gasto. Todas as despesas eram justificadas até ao último tostão. Julia admirava-se que os criados não se despedissem. Não o faziam porque Michael era de uma extrema simpatia para com todos eles. Com os seus modos calorosos, joviais e afáveis levava-os a sentirem-se ansiosos por lhe agradar e a cozinheira tinha rejubilado, tanto como ele, quando descobriu um talho onde conseguia a carne mais barata dois dinheiros por quilo do que nos outros. Julia não podia deixar de rir quando pensava no estranho contraste entre a sua obsessão com a poupança e as criaturas irreverentes e gastadoras que ele tão bem retratava em cena. Pensava com frequência que ele era incapaz de um gesto de generosidade; e agora, como se fosse a coisa mais natural do mundo, estava pronto a abdicar das suas próprias aspirações para que ela pudesse ter a sua oportunidade. Ficou demasiado comovida para falar. Censurou-se amargamente por todos os pensamentos hostis que há tanto tempo alimentava contra ele.