14

 

 

 

 

No dia seguinte, Julia foi à Cartier e comprou um relógio para enviar a Tom Fennell em substituição do que ele tinha empenhado e, duas ou três semanas mais tarde, ao descobrir que era o aniversário dele, enviou-lhe uma cigarreira de ouro.

– Sabe, toda a vida desejei ter uma coisa destas.

Ela pensou se ele estaria com lágrimas nos olhos. Ele beijou-a apaixonadamente.

Depois, sob um pretexto qualquer, enviou-lhe botões de colarinho em madrepérola, abotoaduras e botões para o colete. Excitava-a oferecer-lhe presentes.

– É horrível não poder oferecer-lhe nada em troca – disse ele.

– Dê-me o relógio que empenhou para me pagar o jantar.

Era um pequeno relógio de ouro que não podia ter custado mais de dez libras mas dava-lhe prazer usá-lo de vez em quando.

Foi só depois da noite em que jantaram juntos que Julia admitiu a si mesma que se tinha apaixonado por Tom. Essa admissão constituiu um choque para ela. Mas sentiu-se jubilosa.

«E eu que pensei que nunca mais me apaixonaria por ninguém. Claro que não pode durar. Mas porque é que não hei de aproveitar o máximo que puder?»

Decidiu que ele devia voltar a Stanhope Place. Não tardou a surgir uma oportunidade.

– Sabes aquele teu contabilista? – disse ela a Michael. – Chama-se Tom Fennell. Encontrei-o ao jantar no outro dia à noite e convidei-o para almoçar no próximo domingo. Precisamos de mais um homem.

– Ah, achas que ele não destoa?

Era um grupo de convidados bastante ilustre. Julia tinha-os usado como pretexto para o convidar. Pensou que ele gostaria de travar conhecimento com algumas das pessoas que só conhecia de fotografias. Já se apercebera de que ele tinha um lado snob. Pois ainda bem, podia dar-lhe todas as pessoas elegantes que ele quisesse. Julia era perspicaz e sabia perfeitamente que Tom não estava apaixonado por ela. Ter um romance com ela fortalecia o seu ego. Era um jovem altamente sexual e adorava praticar sexo. Com base em alusões, em histórias que lhe tinha arrancado, descobriu que tinha tido, desde os dezassete anos, um grande número de mulheres. Era do ato que gostava, mais do que da pessoa. Considerava-o o supremo prazer do mundo. E ela compreendia por que razão ele tinha tanto sucesso. Havia um lado sedutor na sua constituição franzina, o seu corpo não passava de pele e osso, era por isso que a roupa lhe assentava tão bem, e um lado encantador na sua frescura lavada. A sua timidez e impudência combinavam-se para o tornar irresistível. Era estranhamente lisonjeiro para uma mulher ser tratada como um objeto sexual que se atira para cima de uma cama.

«O que ele tem, claro, é sex appeal

Ela sabia que a beleza dele se devia à sua juventude. Quando envelhecesse, ficaria encarquilhado, mirrado e macilento; o adorável rubor das suas faces transformar-se-ia num brilho violáceo e a sua pele delicada ficaria enrugada e pálida; mas a sensação de que aquilo que amava nele duraria tão pouco tempo intensificava a sua ternura. Sentia por ele uma estranha compaixão. Ele possuía a vivacidade da juventude e ela sorvia-a como um gatinho sorve o leite. Mas não tinha sentido de humor. Embora se risse quando Julia dizia um gracejo, ele próprio nunca dizia nenhum. Ela não se importava. Achava a sua insipidez repousante. Na sua companhia, sentia-se mais despreocupada do que nunca e possuía talento intelectual pelos dois.

As pessoas não se cansavam de dizer a Julia que ela parecia dez anos mais nova e que nunca tinha representado tão bem. Ela sabia que era verdade e conhecia a razão. Mas convinha-lhe agir com prudência. Não podia perder a cabeça. Charles Tamerley dizia sempre que aquilo de que uma atriz precisava não era inteligência mas sensibilidade e talvez tivesse razão; talvez não fosse inteligente mas tinha os sentidos apurados e confiava neles. Agora advertiam-na de que nunca devia dizer a Tom que o amava. Teve o cuidado de tornar perfeitamente claro que não lhe fazia exigências e que ele era livre para fazer o que entendesse. Assumia a atitude de que todo o caso não passava de um desvario a que nenhum deles devia dar importância. Mas não se poupava a esforços para o prender a ela. Ele gostava de festas e ela levava-o a festas. Conseguiu que Dolly e Charles Tamerley o convidassem para almoçar. Ele gostava de dançar e ela arranjou-lhe convites para bailes. Para lhe agradar ela própria ia durante uma hora e tinha consciência da satisfação que ele sentia ao ver como as pessoas a cumulavam de atenções. Sabia que ele ficava deslumbrado com os grandes e apresentou-o a pessoas eminentes. Felizmente Michael simpatizava com ele. Michael gostava de conversar e Tom sabia ouvir. Era profissionalmente arguto. Um dia, Michael disse a Julia:

– Um tipo esperto, o Tom. É um entendido no imposto sobre o rendimento. Estou convencido que me ensinou uma maneira de poupar duas ou três centenas de libras na próxima declaração.

Michael, em busca de novos talentos, levava-o com frequência ao teatro à noite, em Londres ou nos subúrbios; depois do espetáculo, iam buscar Julia e ceavam os três juntos. De vez em quando, Michael convidava Tom para jogar golfe com ele ao domingo e, depois, se não tivessem convidados, levava-o a almoçar em sua casa.

– É bom ter a companhia de um tipo destes – dizia. – Uma pessoa assim não enferruja.

Tom era de um trato muito agradável quando estava em casa deles. Jogava gamão com Michael ou fazia paciências com Julia e, quando punham o gramofone a tocar, estava sempre por perto a mudar os discos.

– Há de ser um ótimo amigo para o Roger – disse Michael. – O Tom tem a cabeça no sítio e é muito mais velho do que o Roger. Há de exercer uma boa influência sobre ele. Porque é que não o convidas a passar as férias connosco?

(«Por sorte sou boa atriz.») Mas constituiu um esforço disfarçar a alegria na voz e impedir que a exultação que lhe fez o coração pulsar com violência não se lhe revelasse na expressão. – Não é má ideia – respondeu. – Se quiseres, convido-o.

O espetáculo continuava em cena durante o mês de agosto e Michael tinha alugado uma casa em Taplow para passarem o pico do verão. Julia viajaria até Londres para os espetáculos e Michael quando o trabalho o exigisse; no entanto, ela passaria o dia e os domingos no campo. Tom tinha duas semanas de férias; aceitou o convite com satisfação.

Mas, um dia, Julia reparou que ele estava anormalmente calado. Estava pálido e a sua disposição animada tinha-o abandonado. Julia sabia que havia um problema qualquer mas ele recusava-se a dizer-lhe o que tinha; limitava-se a alegar que estava terrivelmente preocupado. Por fim, ela obrigou-o a confessar que se tinha endividado e estava a ser importunado pelos comerciantes a quem devia dinheiro. A vida para que ela o arrastara levara-o a gastar mais dinheiro do que tinha e, com vergonha da sua roupa barata nas festas importantes a que ela o levava, fora a um alfaiate caro e encomendara fatos novos. Tinha apostado num cavalo na esperança de ganhar dinheiro suficiente para saldar as dívidas e o cavalo perdeu. Para Julia a quantia que ele devia era insignificante, cento e vinte e cinco libras, e achava absurdo que uma pessoa se deixasse abater por uma ninharia dessas. Disse imediatamente que lhe dava o dinheiro.

– Oh, não posso aceitar. Nunca poderia aceitar dinheiro de uma mulher.

Ficou muito corado; só a ideia causava-lhe vergonha. Julia recorreu a todas os seus poderes de adulação. Argumentou, fingiu-se ofendida, até chorou um pouco e, por fim, como se fosse um grande favor, ele concordou em aceitar um empréstimo. No dia seguinte, ela enviou-lhe uma carta que continha notas de banco no valor de duzentas libras. Ele ligou-lhe a dizer que ela tinha enviado muito mais do que ele queria.

– Ora, eu sei que as pessoas mentem sempre acerca das dívidas que têm – disse ela, soltando uma gargalhada. – Tenho a certeza que deves mais do que disseste.

– Juro que não. És a última pessoa a quem eu mentiria.

– Então guarda o resto para alguma coisa que surja. Detesto ver-te pagar a conta quando jantamos juntos. E táxis e essas coisas.

– Não, sinceramente. É humilhante.

– Que disparate! Já sabes que eu não sei o que fazer ao dinheiro. Como é que podes levar-me a mal a felicidade que sinto em livrar-te de um aperto?

– És de uma bondade sem limites. Não imaginas o alívio que é. Não sei como te agradecer.

Mas a sua voz denotava perturbação. Pobre querido, era tão convencional. Mas era verdade, enchia-a de uma excitação inaudita dar-lhe dinheiro; despertava nela uma paixão surpreendente. E tinha outro esquema em mente que, durante a quinzena que Tom passaria em Taplow, julgava poder pôr em prática. O estúdio de Tom, em Tavistock Square, tinha-lhe parecido inicialmente encantador pela sua sordidez e a mobília humilde enternecera-a. Mas o tempo destruíra estas tocantes características. Uma ou outra vez tinha-se cruzado com pessoas nas escadas e achou que a fitavam de forma estranha. Havia uma empregada de aspeto desmazelado que arrumava o quarto de Tom e lhe cozinhava o pequeno-almoço e Julia tinha a sensação de que ela sabia o que se passava e a espiava. Uma vez tinham tentado abrir a porta fechada à chave, quando Julia estava no quarto, e ao sair encontrou a empregada a limpar o pó aos corrimões. A mulher lançou a Julia um olhar hostil. Julia detestava o odor a comida râncida que pairava nas escadas e, com a sua visão apurada, não tardou a descobrir que o quarto de Tom não estava devidamente limpo. As cortinas miseráveis, a carpete puída, a mobília de má qualidade; tudo a arrepiava. Pois acontecia que, pouco tempo antes, Michael, sempre atento à possibilidade de um bom investimento, tinha comprado uma série de garagens perto de Stanhope Place. Com o aluguer das que não queria, concluiu que a garagem deles não lhes custaria nada. Havia algumas divisões por cima. Ele dividiu-as em pequenos apartamentos, um para o motorista e um que se propunha arrendar. Este continuava vago e Julia sugeriu a Tom que o alugasse. Seria estupendo. Ela podia dar lá um salto e passar uma hora com ele quando ele voltasse do escritório; podia por vezes aparecer depois do teatro sem que ninguém soubesse. Seriam livres aí. Falou-lhe do prazer que teriam em mobilá-lo; tinha a certeza de que havia imensas coisas em casa que não queriam e, ao guardar-lhas, ele estaria a fazer-lhes um favor. O resto comprariam juntos. Tom sentiu-se tentado pela ideia de ter um apartamento próprio mas estava fora de questão; a renda, embora baixa, excedia as suas possibilidades. Julia sabia. Sabia também que, se se oferecesse para a pagar, ele recusaria, indignado. Mas estava crente de que, durante essa repousante e luxuosa quinzena junto ao rio, seria capaz de vencer os escrúpulos dele. Apercebia-se de que a ideia o tentava imenso e não tinha grandes dúvidas de que era capaz de congeminar um meio de o persuadir de que, ao aceitar a proposta, estaria no fundo a fazer-lhe um favor.

«As pessoas não querem razões para fazer o que gostariam de fazer», refletiu. «Querem desculpas.»

Julia aguardava a visita de Tom a Taplow com excitação. Seria esplêndido dar um passeio com ele pelo rio de manhã e, à tarde, sentar-se na companhia dele no jardim. Com Roger em casa, estava determinada em não correr riscos com Tom; a decência proibia-o. Mas seria sublime passar quase todo o dia com ele. Quando tivesse matinées, ele podia divertir-se com Roger.

Mas as coisas correram de forma inesperada. Nunca lhe ocorrera que Roger e Tom viessem a simpatizar tanto um com o outro. Havia cinco anos de diferença entre os dois e ela pensou, ou teria pensado se tivesse dedicado um momento ao assunto, que Tom consideraria Roger como um rapazola, simpático naturalmente, mas alguém que se tratava como tal, que fazia recados e se mandava brincar quando não se queria ser incomodado. Roger tinha dezassete anos. Era um rapaz atraente, com cabelo ruivo e olhos azuis, mas era o melhor que se podia dizer dele. Não tinha a vivacidade e os cambiantes expressivos da mãe nem a beleza de feições do pai. Julia sentia-se levemente desapontada com ele. Em criança, quando era constantemente fotografada com ele, Roger era adorável. Agora era bastante apático e tinha um ar sisudo. Na realidade, examinando-o bem, os seus únicos traços interessantes eram os dentes e o cabelo. Julia era-lhe muito afeiçoada mas não podia deixar de o considerar um pouco insípido. Quando estava a sós com ele, o tempo custava a passar. Ela mostrava um vivo interesse pelas coisas em que o imaginava interessado, críquete e atividades desse tipo, mas ele parecia ter pouco a dizer sobre elas. Receava que ele não fosse muito inteligente.

«Já sei que é novo», dizia com otimismo. «Talvez melhore com a idade.»

Desde que ele ingressara na escola preparatória, raramente o via. Durante as férias tinha sempre espetáculos à noite e ele saía com o pai ou um amigo e, ao domingo, jogava golfe com o pai. Se por acaso almoçasse fora, acontecia com frequência não o ver durante dois ou três dias, exceto durante alguns minutos de manhã quando ele ia ao quarto dela. Era uma pena que não pudesse continuar a ser o menino bonito e amoroso que brincava no quarto dela sem a incomodar e era fotografado, a sorrir para a objetiva, com o braço em redor do seu pescoço. Ocasionalmente ia a Eton visitá-lo e tomava chá com ele. Sentia-se lisonjeada por ele ter no quarto várias fotografias suas. Tinha consciência de que, quando ia a Eton, despertava um certo alvoroço e Mr. Brackenbridge, em cuja casa ele estava alojado, fazia questão em ser extremamente cortês com ela. Quando o semestre terminou, Michael e Julia já se tinham instalado em Taplow e Roger viajou diretamente para lá. Julia beijou-o com emoção. Ele não estava tão excitado com o regresso a casa como ela esperara. Mostrou-se bastante indiferente. De súbito, parecia ter-se tornado muito sofisticado.

Disse imediatamente a Julia que desejava deixar Eton no Natal, pois considerava que já tinha aprendido aí tudo o que tinha a aprender, e queria ir para Viena durante alguns meses, estudar alemão antes de ir para Cambridge. Michael tinha desejado que ele seguisse uma carreira militar mas ele opunha-se resolutamente à ideia. Ainda não sabia o que queria ser. Tanto Julia como Michael viviam obcecados, desde o início, com o medo de que ele seguisse uma carreira no teatro mas, aparentemente, ele não sentia qualquer inclinação nesse sentido.

– De qualquer modo, não seria bom ator – opinou Julia.

Roger fazia a sua própria vida. Ia passear pelo rio e repousava no jardim, a ler. Julia tinha-lhe oferecido, quando fez dezassete anos, um elegante descapotável em que ele andava pelo campo a velocidades vertiginosas.

– Pelo menos há uma consolação – dizia Julia. – Não aborrece ninguém. Parece perfeitamente capaz de se divertir sozinho.

Aos domingos, recebiam um grande número de visitas para passar o dia, atores e atrizes, um ou outro escritor, e alguns dos seus amigos mais ilustres. Julia achava estas ocasiões muito divertidas e sabia que as pessoas gostavam de aparecer. No primeiro domingo, depois da chegada de Roger, chegou uma multidão considerável. Roger foi muito educado com os convidados. Cumpriu as suas obrigações de anfitrião com a sofisticação de um homem mundano. Mas Julia teve a impressão de que, de um modo estranho, se mantinha distante como se estivesse a representar um papel que não interiorizara e teve a inquietante sensação de que não aceitava as pessoas mas antes as julgava friamente. Pareceu-lhe que não levava nenhuma delas a sério.

Tom tinha combinado chegar no sábado seguinte e viajou de carro com ela depois do espetáculo. Estava uma noite de luar e, àquela hora, as estradas estavam desertas. A viagem foi muito agradável. Julia desejou que nunca mais terminasse. Aninhou-se contra ele e, de vez em quando, no escuro, ele beijava-a.

– Estás feliz? – perguntou ela.

– Completamente.

Michael e Roger já se haviam deitado mas a ceia esperava-os na sala de jantar. A casa silenciosa transmitiu-lhes a sensação de ali estarem clandestinamente. Podiam ser um par de vagabundos que tinham surgido da noite, entrado numa casa vazia e encontrado um lauto repasto preparado para eles. Era romântico. Tinha um pouco a atmosfera de um conto de As Mil e Uma Noites. Julia indicou-lhe o quarto, que ficava ao lado do de Roger, e depois foi deitar-se. No dia seguinte, acordou tarde. Estava um dia esplêndido. Para poder ter Tom só para si não tinha convidado ninguém. Quando se vestisse, podiam ir dar um passeio juntos pelo rio. Tomou o pequeno-almoço e um banho. Pôs um vestido branco, que se enquadrava bem na soalheira paisagem ribeirinha e lhe assentava lindamente, e um chapéu de palha vermelho de abas largas cuja cor lhe projetava uma radiância quente no rosto. Tinha aplicado muito pouca maquilhagem. Olhou-se ao espelho e sorriu de satisfação. Estava com um ar muito bonito e jovem. Saiu para o jardim. Havia um relvado que se estendia até ao rio onde avistou Michael cercado pelos jornais de domingo. Estava sozinho.

– Pensei que tinhas ido jogar golfe.

– Não, os rapazes foram. Achei que se divertiam mais se os deixasse ir sozinhos. – Sorriu no seu modo afável. – São demasiado ativos para mim. Às oito da manhã já estavam a tomar banho e, assim que tomaram o pequeno-almoço, partiram disparados no carro do Roger.

– Ainda bem que se entenderam.

Julia falou com sinceridade. Sentia-se levemente desapontada por não poder ir passear no rio com Tom mas estava ansiosa que Roger gostasse dele, tinha a impressão de que Roger não gostava de qualquer pessoa, e no fim de contas dispunha de quinze dias para estar com Tom.

– Fazem-me sentir um pobre diabo de meia-idade, acredita – observou Michael.

– Que disparate! És muito mais bonito que qualquer um deles e sabes muito bem, meu anjo.

Michael espetou um pouco o queixo e encolheu a barriga.

Os rapazes só regressaram quando o almoço estava praticamente pronto.

– Desculpem o atraso – disse Roger. – Estava uma multidão horrível e tivemos de esperar em quase todos os tees. Só jogámos metade da partida.

Estavam com fome e com sede, excitados e satisfeitos consigo mesmos.

– É fantástico não ter cá ninguém hoje – disse Roger. – Estava com medo que tivessem convidado uma chusma de gente e tivéssemos de nos comportar como senhores muito finos.

– Achei que seria bom passarmos um dia sossegado – disse Julia.

Roger olhou-a de relance.

– Há de fazer-te bem, mamã. Estás com um ar terrivelmente cansado.

(«Malditos olhos. Não, não posso dar a entender que me importo. Felizmente, sei representar.»)

Julia riu alegremente.

– Passei a noite acordada a pensar no que havemos de fazer a respeito das tuas borbulhas.

– Eu sei. São repugnantes, não são? O Tom diz que também já teve.

Julia olhou para Tom. Com a camisa de ténis aberta no pescoço, o cabelo despenteado, os efeitos do sol já visíveis no rosto, estava com um ar incrivelmente jovem. Não parecia de facto mais velho do que Roger.

– Seja como for, o nariz dele vai esfolar – continuou Roger com uma gargalhada. – Há de ficar bonito.

Julia sentiu-se ligeiramente constrangida. Parecia-lhe que Tom tinha rejuvenescido de tal modo que se tornara coetâneo de Roger e não apenas na idade. Disseram uma série de parvoíces. Comeram com voracidade e beberam canecas de cerveja. Michael, comendo e bebendo moderadamente, como lhe era habitual, observava-os, divertido. Estava a desfrutar a juventude e a boa disposição deles. Fez lembrar a Julia um velho cão estendido ao sol, a bater levemente com a cauda no chão enquanto assistia às cabriolas de um par de cachorrinhos à sua volta. Tomaram café no jardim. Julia achou muito agradável estar ali sentada à sombra, a contemplar o rio. Tom era esguio e elegante com as suas calças brancas compridas. Nunca o tinha visto fumar cachimbo. Achou a imagem estranhamente comovente. Mas Roger troçou dele.

– Fumas porque te faz sentir másculo ou porque gostas?

– Cala-te – disse Tom.

– Acabaste o café?

– Acabei.

– Então anda, vamos dar uma volta no rio.

Tom lançou um olhar hesitante a Julia. Roger apercebeu-se.

– Ora, não faz mal, não te preocupes com os meus respeitáveis pais, eles têm os jornais de domingo. A minha mãe deu-me um esquife há pouco tempo.

(«Tenho de me controlar. Tenho de me controlar. Como é que fui fazer a asneira de lhe dar um esquife?»)

– Vão lá dar uma volta no rio – disse ela com um sorriso indulgente –, mas não caiam à água.

– Não nos faz mal nenhum se cairmos. Voltamos à hora do chá. O campo está marcado, papá? Depois do chá, vamos jogar ténis.

– É possível que o teu pai arranje alguém para poderem jogar uma partida a quatro.

– Ora, não te preocupes. A dois é melhor e faz-se mais exercício. – Depois dirigiu-se a Tom. – A ver quem chega primeiro à casa dos barcos.

Tom pôs-se em pé de um salto e largou a correr com Roger no encalço. Michael pegou num dos jornais e procurou os óculos.

– Estão a dar-se lindamente, não achas?

– Parece que sim.

– Estava com medo que o Roger se sentisse enfadado aqui sozinho connosco. Há de ser ótimo para ele ter alguém com quem se divertir.

– Não achas que o Roger mostra uma certa falta de consideração?

– Referes-te ao ténis? Oh, minha querida, é-me indiferente jogar ou não. É mais que natural que os rapazes queiram jogar sozinhos. Para eles, não passo de um velho e acham que só lhes vou estragar a partida. Afinal, o importante é que se divirtam os dois.

Julia sentiu uma pontada de remorso. Michael era banal, agarrado ao dinheiro, enfatuado, mas de uma bondade e altruísmo extraordinários. Não possuía uma ponta de inveja. Dava-lhe uma profunda satisfação, desde que não custasse dinheiro, fazer os outros felizes. Julia lia-lhe o pensamento como um livro aberto. Era verdade que as suas ideias eram sempre triviais mas nunca eram reprováveis. Era exasperante que, com tantas qualidades que lhe mereceriam o seu afeto, ele a enfadasse tão intensamente.

– Acho que és um ser humano muito melhor do que eu, meu amor – disse ela.

– Não, querida, eu fui muito atraente mas tu tens génio.

Julia soltou uma risadinha. Um homem que nunca sabia do que se estava a falar não deixava de ser divertido. Mas que queriam dizer quando afirmavam que uma atriz tinha génio? Julia tinha-se interrogado muitas vezes sobre o que lhe teria finalmente conferido uma tal superioridade em relação às suas contemporâneas. Tivera detratores. A certa altura, tinham-na comparado desfavoravelmente com uma ou outra atriz que, nesse momento, gozava da simpatia do público mas agora ninguém disputava a sua supremacia. Era verdade que não possuía a notoriedade mundial das estrelas de cinema; tinha tentado a sorte no cinema mas não obtivera sucesso; o seu rosto, tão flexível e expressivo no palco, por qualquer razão não saía favorecido na tela e, após uma tentativa, tinha recusado com a aprovação de Michael as propostas que ocasionalmente lhe foram dirigidas. Esta atitude digna tinha-lhe granjeado uma boa e útil publicidade. Mas Julia não sentia inveja das estrelas de cinema; estas iam e vinham, ela continuava. Quando podia, ia assistir ao trabalho de atrizes que interpretavam papéis principais no teatro londrino. Era generosa nos seus elogios e era sincera ao expressá-los. Por vezes, considerava-as honestamente tão boas que tinha dificuldade em compreender por que razão as pessoas a tinham em tão alta conta. Era demasiado inteligente para ignorar a estima que o público nutria por ela mas era modesta a respeito de si própria. Ficava sempre surpreendida quando as pessoas se entusiasmavam com alguma coisa que tinha feito pois saía-lhe com tal naturalidade que nunca julgara possível fazê-la de outro modo. Os críticos admiravam a sua maleabilidade. Elogiavam em especial a sua capacidade para se insinuar num papel. Não tinha consciência de observar deliberadamente as pessoas mas quando começava a estudar um novo papel acometiam-na vagas lembranças, surgidas não sabia de onde, e descobria que conhecia aspetos ignorados da personagem que ia representar. Ajudava-a pensar em alguém que conhecia ou mesmo alguém que vira na rua ou numa festa; combinava esta recordação com a sua própria personalidade e construía assim uma personagem baseada na realidade mas enriquecida pela sua experiência, pelo seu conhecimento e técnica e pelo seu extraordinário magnetismo. As pessoas pensavam que ela apenas representava durante as duas ou três horas em que estava em cena; não sabiam que a personagem que interpretava habitava o seu espírito de manhã à noite, quando conversava com os outros, aparentando a maior atenção, ou durante qualquer atividade com que estivesse ocupada. Tinha muitas vezes a impressão de que era duas pessoas, a atriz, a popular favorita, a mulher mais bem vestida de Londres, que era uma sombra, e a mulher que representava à noite, que era a substância.

«Diabos me levem se sei o que é o génio», disse consigo mesma. «Mas uma coisa sei, dava tudo o que tenho para ter dezoito anos.»

Mas sabia que não era verdade. Se lhe dessem a oportunidade de retroceder no passado, agarrá-la-ia? Não. Francamente, não. Não era à popularidade, à celebridade, digamos, que dava importância nem ao domínio que exercia sobre o público, ao verdadeiro carinho que lhe votavam, não era decerto ao dinheiro que tudo isto lhe permitira ganhar; era o poder que sentia dentro de si, a sua mestria do jogo do ator, que a empolgava. Conseguia entrar num papel, talvez nem muito bom, com réplicas desinteressantes, e através da sua personalidade, da destreza natural que possuía, insuflá-lo de vida. Não havia ninguém capaz de fazer o que ela fazia com um papel. Por vezes, sentia-se como Deus.

«E além disso», troçou, «o Tom ainda não era nascido.»

Afinal, era perfeitamente natural que ele gostasse de se distrair com Roger. Pertenciam à mesma geração. Era o primeiro dia das férias dele, devia deixá-lo divertir-se; ainda havia uma quinzena inteira pela frente. Ele não tardaria a cansar-se de passar o tempo todo com um rapaz de dezassete anos. Roger era um amor mas era enfadonho; não podia consentir que a afeição maternal lhe retirasse objetividade. Devia ter o máximo cuidado para não revelar a mínima irritação. Desde o início que tinha decidido nunca fazer exigências a Tom; seria fatal se ele sentisse que lhe devia alguma coisa.

– Michael, porque é que não alugas ao Tom o apartamento por cima das garagens? Agora que ele passou no exame e é um contabilista diplomado não pode continuar a viver num estúdio.

– Não é má ideia. Vou fazer-lhe essa sugestão.

– Poupavas a comissão de um agente. Podíamos ajudá-lo a mobilá-lo. Temos imensa tralha guardada. Podíamos perfeitamente deixá-lo usá-la em lugar de estar a ganhar bolor nas águas-furtadas.

Tom e Roger regressaram e lancharam lautamente, jogando em seguida ténis até ao crepúsculo. Depois do jantar, jogaram dominó. Julia deu o enternecedor espetáculo de uma mãe ainda nova a observar afetuosamente o filho e o amigo. Foi deitar-se cedo. Pouco depois, também os dois subiram. Os quartos deles ficavam diretamente por cima do dela. Ouviu Roger entrar no quarto de Tom. Começaram a conversar; a janela do quarto de Julia e a do quarto deles estavam abertas e ela ouviu as suas vozes em animada conversa. Pensou, exasperada, no que teriam a dizer um ao outro. Nunca tinha considerado nenhum deles particularmente falador. Pouco depois, a voz de Michael interrompeu-os.

– Vá, meninos, toca a deitar. Podem continuar a conversa amanhã.

Ela ouviu-os rir.

– Está bem, papá – exclamou Roger.

– Um par de papagaios, é o que vocês são.

Ouviu novamente a voz de Roger.

– Então boa-noite, meu velho.

E a resposta cordial de Tom. – Até amanhã, meu caro.

«Idiotas!», disse ela consigo mesma, zangada.

Na manhã seguinte, quando Julia estava a tomar o pequeno-almoço, Michael entrou no quarto dela.

– Os rapazes saíram para jogar golfe em Huntercombe. Querem jogar duas partidas e perguntaram se tinham de voltar para o almoço. Disse-lhes para não se preocuparem.

– Não sei se me agrada muito a ideia de o Tom se comportar como se a casa fosse um hotel.

– Oh, minha querida, não passam de miúdos. Na minha opinião, é deixá-los divertir-se o máximo que puderem.

Nesse dia, não estaria sequer com Tom pois tinha de partir para Londres entre as cinco e as seis para chegar a horas ao teatro. Michael podia perfeitamente adotar uma atitude benevolente em relação a tudo. Mas ela estava magoada. Sentiu vontade de chorar. Devia ser-lhe completamente indiferente, referia-se a Tom pois era nele que estava agora a pensar; e tinha tomado a decisão de que aquele dia seria muito diferente do anterior. Tinha acordado determinada em ser tolerante e aceitar as coisas como elas eram mas não estava preparada para uma desfeita daquelas.

– Os jornais já chegaram? – perguntou, de mau humor.

Foi de carro para a cidade, a ferver de raiva.

O dia seguinte não foi muito melhor. Os rapazes não saíram para jogar golfe mas foram jogar ténis. A sua atividade incessante irritava Julia intensamente. Tom de calções, com as pernas nuas e uma camisa de críquete, não parecia realmente ter mais de dezasseis anos. A tomarem banho como tomavam três ou quatro vezes por dia não conseguia conservar o cabelo colado à cabeça e, assim que este secava, espalhava-se-lhe pela cabeça em caracóis revoltos. Dava-lhe um ar mais jovem do que nunca mas tão encantador que Julia sentia um aperto no coração. E parecia-lhe que o seu comportamento se tinha estranhamente alterado; na companhia constante de Roger, o lado mundano, obcecado com a figura, cuidadoso em vestir a roupa certa, tinha desaparecido e ele tornara-se novamente um colegial desleixado. Nunca deixava escapar uma insinuação, nem traía através de um relance, que era amante dela; tratava-a como se ela não passasse da mãe de Roger. Em todos os comentários que fazia, nas suas brincadeiras, nos seus modos educados, fazia-a sentir que pertencia a uma geração mais velha. A sua conduta não tinha nada da cortesia galante que um jovem poderia demonstrar para com uma mulher fascinante; era a simpatia indulgente com que poderia tratar uma tia solteira.

Julia sentia-se irritada por Tom se deixar submissamente comandar por um rapaz muito mais novo do que ele. Indicava falta de carácter. Mas não o censurava; censurava Roger. O egoísmo de Roger indignava-a. A idade não bastava para o desculpar. A sua indiferença ao prazer dos outros revelava uma maneira de ser desprezível. Era rude e inconsiderado. Agia como se a casa, os criados, o pai e a mãe estivessem ali para o seu conforto particular. Teria muitas vezes preferido ser ríspida com ele mas não ousava, perante Tom, assumir o papel da mãe disciplinadora. E, quando era repreendido, Roger tinha uma forma exasperante de se mostrar profundamente magoado, como uma corça ferida, que a fazia sentir que tinha sido cruel e injusta. Também ela era capaz de assumir esse ar, era uma expressão de olhos que ele herdara dela; Julia tinha-a usado vezes sem conta no palco com comovente eficácia e sabia que não queria necessariamente dizer grande coisa, mas quando a via nos olhos dele ficava destroçada. A simples ideia de provocar tal reação fê-la agora sentir ternura por ele. E essa súbita mudança de sentimento revelou-lhe a verdade; sentia ciúmes de Roger, ciúmes loucos. Esta perceção causou-lhe como que um choque, não sabia se havia de rir ou de sentir vergonha. Refletiu por um momento.

«Pois bem, vou arruinar-lhe os planos.»

Não estava disposta a deixar o domingo seguinte correr como o anterior. Felizmente Tom era um snob. «Uma mulher atrai os homens pelo seu charme e prende-os pelos vícios deles», murmurou e pensou se teria sido ela a inventar o aforismo ou se o recordava de alguma peça em que tinha entrado.

Deu instruções para que fossem feitos vários contactos telefónicos. Convidou os Dennorant para passar o fim de semana. Charles Tamerley estava em Henley e aceitou um convite para aparecer no domingo e trazer o seu anfitrião, Sir Mayhew Bryanston, que era Ministro das Finanças. Para o divertir a ele e aos Dennorant, pois sabia que as altas classes não gostam de se encontrar em meios que considerem boémios, preferindo a companhia de artistas, convidou Archie Dexter, o primeiro ator que contracenava com ela e a sua bonita mulher, que representava sob o nome de solteira, Grace Hardwill. Estava perfeitamente segura de que o convívio de um marquês e de uma marquesa e o deslumbramento com um ministro dissuadiriam Tom de jogar golfe com Roger ou de passar a tarde num barco. Num grupo destes, Roger ficaria reduzido ao seu lugar de colegial em quem ninguém reparava e Tom veria como ela era capaz de brilhar quando queria. Antevendo o seu triunfo, conseguiu suportar corajosamente os dias que faltavam. Raramente viu Roger e Tom. Nos dias em que teve matinée, nem sequer os viu. Quando não estavam a jogar uma partida qualquer, andavam a acelerar pelo campo no carro de Roger.

Depois da peça, Julia deu boleia aos Dennorant. Roger tinha ido deitar-se mas Michael e Tom estavam à espera deles para cearem juntos. Foi uma excelente refeição. Os criados também se tinham recolhido e a ceia foi servida por eles próprios. Julia notou a tímida ansiedade com que Tom se certificava de que não faltava nada aos Dennorant e a alegria com que se levantava de um salto se pudesse ser prestável. A sua civilidade revelava um certo excesso de zelo. Os Dennorant eram um jovem casal despretensioso, a quem nunca tinha ocorrido que a sua posição pudesse impressionar quem quer que fosse, e George Dennorant ficou um pouco embaraçado quando Tom levantou o prato sujo dele e lhe passou outro para se servir do prato seguinte.

«Quer-me parecer que amanhã o Roger não joga golfe», disse Julia consigo mesma.

Ficaram a conversar e a rir até às três da manhã e, quando Tom se despediu dela, tinha os olhos brilhantes; se era de amor ou do champanhe, não sabia. Ele apertou-lhe a mão.

– Pessoas estupendas – observou.

Era tarde quando Julia, esplendorosa, vestida de organdi, saiu para o jardim. Viu Roger numa espreguiçadeira com um livro.

– A ler? – disse, erguendo as suas delicadas sobrancelhas. – Porque é que não foste jogar golfe?

Roger estava ligeiramente mal-humorado.

– O Tom disse que estava demasiado calor.

– Ah – disse ela com um sorriso encantador. – Estava a ver se te tinhas sentido obrigado a ficar para fazer companhia aos convidados. São muitas pessoas, podemos perfeitamente passar sem ti. Onde é que estão os outros?

– Não sei. O Tom está a atirar-se à Cecily Dennorant.

– Não admira, ela é muito bonita.

– Quer-me parecer que o dia de hoje vai ser horrivelmente enfadonho.

– Espero que o Tom não pense assim – disse ela, como se estivesse seriamente preocupada.

Roger ficou calado.

O dia decorreu exatamente como ela tinha esperado. Era verdade que quase não vira Tom mas Roger viu-o ainda menos. Tom teve um grande sucesso junto dos Dennorant; explicou-lhes como podiam passar a pagar menos impostos sobre o rendimento. Ouviu respeitosamente o Ministro das Finanças discorrer sobre o teatro e Archie Dexter exprimir a sua opinião sobre a situação política. Julia estava em grande forma. Archie Dexter era um homem espirituoso, possuía um repertório de histórias sobre o teatro e um dom magnífico para as contar; em conjunto, puseram os convivas ao almoço a rir estrondosamente; e depois do chá, quando os jogadores de ténis se cansaram de jogar, Julia deixou-se convencer (o que não foi difícil) a fazer as suas imitações de Gladys Cooper, Constance Collier e Gertie Lawrence. Mas não se esqueceu que Charles Tamerley a amava com uma paixão dedicada e não correspondida e teve a consideração de ir dar um pequeno passeio a sós com ele ao entardecer. Com ele não procurava ser alegre nem brilhante, era terna e melancólica. Sofria apesar da fulgurante representação que dera durante o dia; e foi com quase total sinceridade que, com suspiros, olhares tristes e frases entrecortadas, lhe deu a entender que a sua vida era vazia e que, apesar do seu contínuo sucesso profissional, não podia deixar de sentir que lhe escapara qualquer coisa. Por vezes pensava na vivenda em Sorrento, na baía de Nápoles. Um belo sonho. Podia ter conhecido a felicidade; tinha sido uma tola; afinal o que eram os triunfos do palco senão ilusão? I Pagliacci. As pessoas nunca se apercebiam de como era verdade; Vesti la giubba e tudo isso. Sentia-se desesperadamente só. Claro que não havia necessidade de dizer a Charles que sofria, não por causa das oportunidades perdidas, mas porque um certo jovem parecia preferir jogar golfe com o filho ao seu amor.

Mais tarde, Julia e Archie Dexter uniram esforços. Depois do jantar, quando todos estavam sentados na sala de visitas, tendo começado com algumas palavras ditas com naturalidade em conversa, explodiram inesperadamente, como se fossem amantes, numa discussão de ciúmes. Por um momento, ninguém se apercebeu de que era uma brincadeira até que as suas acusações recíprocas se tornaram de tal modo insultuosas e obscenas que se desfizeram em gargalhadas. Depois, improvisaram a cena de um cavalheiro inebriado a engatar uma prostituta francesa em Jermyn Street. A seguir, com profunda seriedade, enquanto o seu reduzido público se contorcia de riso, representaram Mrs. Alving em Espectros a tentar seduzir o pastor Manders. Acabaram com uma representação que já tinham feito em reuniões teatrais vezes suficientes para garantir um efeito extraordinário. Era uma peça de Tchekov em inglês mas, nas passagens de paixão, irromperam numa língua que soava exatamente como o russo. Julia aplicou todos os seus talentos trágicos mas realçou-os com apontamentos de farsa, conseguindo um efeito incrivelmente cómico. Carregou a representação de toda a angústia que lhe ia na alma e, com o seu apurado sentido do grotesco, cobriu-a de ridículo. Os espectadores rebolavam-se às gargalhadas nas cadeiras; estavam prestes a estourar; gemiam numa agonia de riso. Era como se Julia nunca tivesse representado antes. Representava agora para Tom e só para ele.

– Vi a Bernhardt e a Réjane – disse o ministro. – Vi a Duse e a Ellen Terry e Mrs. Kendal. Nunc Dimittis.

Julia, radiante, deixou-se cair numa cadeira e sorveu de um trago uma taça de champanhe.

«Ponho as mãos no fogo em como arruinei os planos do Roger», pensou.

Mas, apesar disso, os dois rapazes tinham saído para jogar golfe quando ela desceu na manhã seguinte. Michael tinha levado os Dennorant à cidade. Julia sentia-se fatigada. Fez um esforço para se mostrar alegre e faladora quando Tom e Roger apareceram para almoçar. À tarde, foram os três andar de barco no rio mas Julia teve a impressão de que a tinham levado, não por desejarem muito a sua companhia mas porque não conseguiram furtar-se. Abafou um suspiro quando pensou na ansiedade com que tinha aguardado as férias de Tom. Agora contava os dias que faltavam para acabarem. Soltou um profundo suspiro de alívio quando entrou no carro para ir para Londres. Não estava zangada com Tom mas profundamente magoada; estava exasperada consigo própria por ter perdido o controle dos seus sentimentos. Mas quando chegou ao teatro, sentiu que tinha escorraçado a obsessão por ele como um pesadelo de que se acorda; no camarim, recuperou o autodomínio e os assuntos banais da rotina diária reduziram-se à sua insignificância. No fundo, nada tinha importância quando tinha ao seu alcance esta possibilidade de ser livre.

Assim, decorreu a semana. Michael, Roger e Tom divertiam-se. Tomavam banho, jogavam ténis, jogavam golfe, andavam de barco no rio. Faltavam apenas quatro dias. Faltavam apenas três dias.

(«Agora consigo aguentar. Há de ser diferente quando voltarmos para Londres. Não posso mostrar como estou deprimida. Tenho de fingir que está tudo bem.»)

– Foi uma sorte este tempo magnífico – observou Michael. – O Tom foi um sucesso, não foi? É pena não poder ficar mais uma semana.

– Sim, é uma tremenda pena.

– Acho que é um ótimo amigo para o Roger. Um rapaz inglês absolutamente normal e de ideias saudáveis.

– Absolutamente. («Grande idiota, grande idiota.»)

– Vê-los comer é um autêntico regalo.

– É, parece que apreciaram a comida. («Meu Deus, só queria que se tivessem engasgado com ela.»)

Tom devia voltar para Londres muito cedo de comboio, na segunda de manhã. Os Dexter, que tinham uma casa em Bourne End, tinham-nos convidado para almoçar no domingo. Combinaram ir de lancha. Agora que as férias de Tom tinham praticamente chegado ao fim, Julia sentia-se satisfeita por nunca, nem com a mais leve crispação da fronte, ter traído a sua irritação. Tinha a certeza de que ele não fazia ideia de que a magoara tão profundamente. Afinal de contas, devia ser tolerante, ele não passava de um rapaz e, falando sem subterfúgios, ela tinha idade para ser mãe dele. Era uma maçada sentir o que sentia por ele mas não podia fazer nada contra isso; desde o início que dissera a si própria que nunca podia deixá-lo sentir que era possessiva em relação a ele. Não tinham convidados ao jantar no domingo. Desejava ter Tom só para ela no seu último dia; era impossível mas, em todo o caso, podiam ir dar uma volta sozinhos pelo jardim.

«Gostava de saber se ele se deu conta que não me beijou desde que aqui chegou.»

Podiam ir andar de barco. Seria sublime repousar nos braços dele por alguns minutos; compensaria tudo.

Os convidados em casa dos Dexter eram pessoas de teatro. Grace Hardwill, a mulher de Archie, era atriz de comédia musical, e havia um grupo de raparigas bonitas que dançavam no espetáculo em que ela então atuava. Julia representou, com grande naturalidade, o papel de uma primeira atriz despretensiosa. Foi encantadora com as jovens de cabelo oxigenado às ondas que ganhavam três libras por semana no corpo de dança. Um grande número de convivas tinha levado Kodaks e ela submeteu-se afavelmente às fotografias. Aplaudiu com entusiasmo quando Grace Hardwill cantou a sua famosa canção acompanhada pelo compositor. Riu com a mesma vontade que qualquer um dos presentes quando a atriz cómica a imitou num dos seus papéis mais conhecidos. Foi uma festa muito alegre, ruidosa e agradavelmente despreocupada. Julia divertiu-se mas, às sete horas, não sentiu pena nenhuma de ir embora. Estava a agradecer efusivamente aos donos da casa pelo estupendo almoço quando Roger se abeirou dela.

– Ouve, mamã, há um grupo de pessoas que vão jantar e dançar ao Maidenhead e querem que eu e o Tom também vamos. Não te importas, pois não?

O sangue subiu-lhe às faces. Não pôde deixar de responder rispidamente.

– E como é que voltam para casa?

– Não há problema. Pedimos boleia a alguém.

Ela olhou para ele com uma sensação de impotência. Não lhe ocorria nada para dizer.

– Vai ser espetacular. O Tom está louco por ir.

Sentiu um profundo desalento. Foi com uma enorme dificuldade que conseguiu não fazer uma cena. Mas dominou-se.

– Está bem, querido. Mas não cheguem demasiado tarde. Não te esqueças que o Tom tem de se levantar muito cedo.

Tom tinha-se aproximado e ouviu as últimas palavras.

– Não te importas de certeza? – perguntou.

– Claro que não. Espero que se divirtam.

Lançou-lhe um sorriso radioso mas o seu olhar estava gélido de ódio.

– Ainda bem que esses rapazes se foram embora – disse Michael quando entraram para a lancha. – Há imenso tempo que não temos uma noite a sós.

Ela cerrou os punhos para evitar mandá-lo calar a boca estúpida. Estava cega de raiva. Era a última gota. Tom tinha-a ignorado durante duas semanas, nem sequer a tratara com civilidade e ela tinha sido uma santa. Não havia mulher nenhuma no mundo que tivesse demonstrado tal paciência. Qualquer outra lhe teria dito que, se não era capaz de se comportar decentemente, se fosse embora. Egoísta, estúpido e vulgar, era o que era. Quase desejou que ele não partisse no dia seguinte para ter o prazer de o pôr na rua de armas e bagagens. E atrever-se a tratá-la assim, um homenzinho de meia-tigela que trabalhava na City; poetas, ministros, pares do reino não hesitariam um momento em cancelar os seus compromissos mais importantes para ter a possibilidade de jantar com ela e ele deixava-a para ir dançar com uma corja de louras oxigenadas que nem representar sabiam. Só mostrava como era um cretino. Seria de esperar que demonstrasse alguma gratidão. Inacreditável, até a roupa que trazia no corpo tinha sido paga por ela. A cigarreira em que tinha tanto orgulho, não tinha sido ela que lha tinha oferecido? E o anel que usava. Por Deus, havia de se vingar. Sim, e sabia como. Sabia qual o seu ponto mais vulnerável e como podia infligir-lhe o golpe mais cruel. Havia de lhe tocar na ferida. Experimentou uma vaga sensação de alívio ao trabalhar mentalmente o esquema. Estava impaciente por pôr imediatamente em prática a sua parte nele e, assim que entraram em casa, subiu até ao quarto. Tirou quatro moedas de uma libra da carteira e uma nota de dez xelins. Escreveu uma curta mensagem.

 

Caro Tom,

Junto o dinheiro para as tuas gorjetas pois já não te vejo de manhã. Dá três libras ao mordomo, uma libra à criada que tratou de ti e dez xelins ao motorista.

Julia.

 

Mandou chamar Evie e deu-lhe instruções para que a mensagem fosse entregue a Tom pela criada que o acordasse. Quando desceu para jantar sentia-se muito melhor. Manteve uma animada conversa com Michael durante a refeição e, mais tarde, jogaram besigue. Nem que tivesse dado voltas à cabeça durante uma semana não lhe teria ocorrido nada que humilhasse Tom mais amargamente.

Mas quando se foi deitar, não conseguiu adormecer. Estava à espera que Roger e Tom chegassem a casa. Ocorreu-lhe uma ideia que a deixou inquieta. Talvez Tom compreendesse que se tinha conduzido de modo execrável; se parasse um momento para pensar aperceber-se-ia de que estava a fazê-la infeliz, podia arrepender-se e, depois de chegar e se despedir de Roger, podia esgueirar-se até ao seu quarto. Se ele fizesse isso, perdoaria tudo. A carta devia estar na copa do mordomo; podia facilmente ir lá abaixo e reavê-la. Finalmente ouviu um carro encostar. Acendeu a luz para consultar as horas. Eram três. Ouviu os dois jovens subir as escadas e entrar nos respetivos quartos. Esperou. Acendeu a luz da mesinha de cabeceira para que, ao abrir a porta, ele pudesse ver. Faria de conta que estava a dormir e, depois, quando ele avançasse de mansinho em bicos de pés, abriria lentamente os olhos e sorrir-lhe-ia. Esperou. Na noite silenciosa, ouviu-o deitar-se e apagar a luz. Por um minuto fixou o vazio à sua frente e, depois, encolhendo os ombros, abriu uma gaveta da mesinha de cabeceira e tirou de uma carteira dois soporíferos.

«Se não dormir, enlouqueço.»