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Tom foi passar o Natal com a família a Eastbourne. Como Julia tinha dois espetáculos no dia 26 de dezembro, os Gosselyn ficaram na cidade; foram a uma grande festa de passagem de ano no Savoy, oferecida por Dolly de Vries e, alguns dias mais tarde, Roger partiu para Viena. Enquanto ele esteve em Londres, Julia raramente viu Tom. Não perguntou a Roger o que faziam quando saíam juntos, não queria saber, esforçava-se por não pensar e distraía-se indo a todas as festas que podia. E tinha sempre o trabalho; assim que entrava no teatro, a sua angústia, humilhação e ciúmes apaziguavam-se. Dava-lhe uma sensação de triunfante poder descobrir, no boião de base por assim dizer, outra personalidade que nenhuma dor humana tocava. Com esse refúgio sempre ao seu alcance, era capaz de suportar tudo.

No dia em que Roger partiu, Tom telefonou-lhe do escritório.

– Vais fazer alguma coisa logo à noite? Que tal se fôssemos para a farra?

– Não, estou ocupada.

Não era verdade mas as palavras escaparam-lhe involuntariamente da boca.

– Ai estás? Amanhã então?

Se ele se tivesse mostrado dececionado, se lhe tivesse pedido que cancelasse o compromisso que pensava que ela tinha, talvez tivesse tido forças para romper imediatamente com ele. A indiferença dele neutralizou-a.

– Está bem, amanhã.

– Ótimo. Vou buscar-te ao teatro depois do espetáculo.

Julia estava pronta e à espera quando ele foi conduzido ao camarim. Estava estranhamente nervosa. O rosto dele iluminou-se ao vê-la e, quando Evie saiu do camarim, ele tomou-a nos braços por um momento e beijou-a ardentemente nos lábios.

– Já me sinto melhor – disse ele, rindo.

Olhando para ele, tão jovem, vivo e ingénuo, tão bem-disposto, ninguém o julgaria capaz de lhe causar tanto sofrimento. Ninguém o julgaria tão enganador. Era perfeitamente claro que não se tinha apercebido de que, durante mais de duas semanas, mal a tinha visto.

(«Caramba, só queria conseguir correr com ele.»)

Mas olhou para ele com um sorriso alegre nos seus belos olhos.

– Onde é que vamos?

– Reservei uma mesa no Quag’s. Têm um número novo, um ilusionista americano que é espetacular.

Julia conversou com vivacidade durante todo o jantar. Falou-lhe das várias festas a que tinha ido e das reuniões teatrais a que não tinha conseguido furtar-se, dando a impressão de que só os compromissos dela os tinham impedido de se encontrar. Desconcertou-a aperceber-se de que ele encarava a situação como perfeitamente natural. Estava satisfeito por vê-la, disso não havia dúvida, mostrava interesse em saber o que ela tinha feito e com que pessoas tinha estado, mas também era claro que não tivera saudades dela. Para ver a reação dele, disse-lhe que tinha recebido uma proposta para levar a peça em que representava atualmente a Nova Iorque. Falou-lhe das condições sugeridas.

– São fantásticas – disse ele, com os olhos brilhantes. – É um negócio vantajoso! Não perdes nada e ainda és capaz de ganhar um dinheirão.

– O problema é que não me agrada muito estar fora de Londres.

– Porque não? A mim parece-me uma proposta irrecusável. A peça já teve uma longa carreira, provavelmente está nas últimas quando chegar a Páscoa e, se quiseres tentar a sorte na América, não pode haver melhor oportunidade.

– Não vejo razão para a peça não continuar durante o verão. Além disso, não gosto muito de estrangeiros. Sou muito afeiçoada aos meus amigos.

– Acho isso um disparate. Os teus amigos passam muito bem sem ti. E vais ver que te vais divertir imenso em Nova Iorque.

O alegre riso de Julia foi extremamente convincente.

– Quem te ouvir, há de pensar que estás ansioso por te veres livre de mim.

– Claro que vou ter imensas saudades tuas. Mas são apenas alguns meses. Se eu tivesse uma oportunidade dessas, não hesitava.

Mas quando acabaram de jantar e o porteiro lhes chamou um táxi, ele deu a morada do apartamento como se estivesse implícito que era esse o seu destino. No táxi, Tom pôs-lhe o braço em torno da cintura e beijou-a e, mais tarde, quando estava deitada nos seus braços na pequena cama de solteiro, ela sentiu que todo o sofrimento das duas últimas semanas não era um preço demasiado elevado a pagar pela tranquila felicidade que lhe enchia o coração.

Julia continuou a frequentar restaurantes elegantes e clubes noturnos na companhia de Tom. Se as pessoas quisessem pensar que ele era amante dela, que pensassem; há muito que deixara de se importar. Mas mais do que uma vez aconteceu ele estar comprometido quando ela quis sair com ele. Tinha constado entre os amigos mais distintos de Julia que Tom era exímio a ajudar as pessoas a preparar as declarações de rendimentos. Os Dennorant tinham-no convidado a passar um fim de semana no campo onde ele tinha conhecido várias pessoas que não se fizeram rogadas em tirar partido dos seus conhecimentos técnicos. Começou a receber convites de pessoas que Julia não conhecia. Simples conhecidos começaram a falar-lhe dele.

– Conhece o Tom Fennell, não conhece? É muito inteligente, não é? Ouvi dizer que poupou centenas de libras aos Gillian no imposto sobre o rendimento.

Julia não andava nada satisfeita. Se não fosse ela, ele nunca teria sido convidado para as festas a que queria ir. Começava a parecer que, neste capítulo, podia passar sem ela. Tom era agradável e despretensioso, agora vestia-se impecavelmente, e tinha um ar fresco e composto que era cativante; conseguia poupar dinheiro às pessoas; Julia conhecia suficientemente bem o mundo a que ele ansiava pertencer para saber que não tardaria a assegurar nele uma posição. Não tinha em grande conta a moralidade das mulheres que ele viria a conhecer nesses meios e sabia de mais de uma aristocrata que não hesitaria em deitar-lhe a mão. A única consolação de Julia era que eram todas umas unhas de fome. Dolly tinha dito que ele só ganhava quatrocentas libras por ano; uma coisa era certa, com esse dinheiro não podia movimentar-se nesses círculos.

Julia tinha declinado resolutamente a proposta americana ainda antes de a ter mencionado a Tom; a peça estava a ter muito boas casas. Mas uma dessas crises inexplicáveis que ocasionalmente se abatem sobre o teatro grassava agora em Londres e as receitas sofreram uma quebra inesperada. Dava ideia de que não poderiam prolongar a carreira muito para lá da Páscoa. Tinham uma nova peça em que depositavam grandes esperanças. Chamava-se Nos Dias de Hoje e a intenção era montá-la no início do outono. Tinha um excelente papel para Julia e a vantagem de um papel masculino que assentava a Michael como uma luva. Era o género de peça que podia facilmente estar um ano em cena. Michael não gostava muito da ideia de a encenar em maio, com o verão a chegar, mas não parecia haver solução e ele começou a formar elenco.

Uma tarde, durante o intervalo de uma matinée, Evie levou a Julia uma mensagem. Ela ficou surpreendida ao reconhecer a caligrafia de Roger.

 

Querida Mãe,

Apresento-te, por este meio, Miss Joan Denver de quem te falei. Ela está muito interessada em trabalhar no Siddons Theatre e contentar-se-ia perfeitamente com um papel de substituta, por mais pequeno que seja.

O teu filho afeiçoado,

Roger.

 

Julia sorriu do modo formal como ele escreveu; ficou encantada ao aperceber-se de que ele já era suficientemente crescido para tentar arranjar trabalho para as namoradas. Depois, subitamente, lembrou-se de quem era Joan Denver. Joan e Jill. Era a rapariga que tinha seduzido o pobre Roger. A sua expressão ensombrou-se. Mas sentiu curiosidade em conhecê-la.

– Está aí o George? – George era o porteiro. Evie indicou que sim e abriu a porta.

– George.

Ele entrou.

– A senhora que trouxe esta carta ainda aí está?

– Está, Miss Lambert.

– Diz-lhe que a recebo depois do espetáculo.

No último ato, Julia usava um vestido de noite de cauda; era um vestido faustoso que realçava a sua bela figura. No cabelo escuro usava diamantes e nos braços pulseiras de diamantes. A sua aparência, como o papel aliás exigia, era majestosa. Recebeu Joan Denver depois da última chamada ao palco para agradecer os aplausos. Julia era capaz de passar do papel para a vida privada num abrir e fechar de olhos mas agora, sem qualquer esforço, continuou a representar a personagem imperiosa, distante, imponente e bem-nascida.

– Já a retardei tanto que achei melhor não a fazer esperar até mudar de roupa.

O seu sorriso cordial era o sorriso de uma rainha; a sua afabilidade criava uma distância respeitosa. Num relance, registou a jovem que entrou no seu camarim. Era nova, com uma cara bonita e nariz arrebitado, e estava bastante, se bem que mal, maquilhada.

«As pernas são demasiado curtas», pensou Julia. «Qualidade inferior.»

Era evidente que ela vestira a melhor roupa que tinha e, no mesmo relance, Julia tirou as suas conclusões sobre ela.

(«Shaftesbury Avenue. Pronto-a-vestir.»)

A pobrezinha estava, neste momento, terrivelmente nervosa. Julia fê-la sentar-se e ofereceu-lhe um cigarro.

– Tem fósforos ao seu lado.

Viu as mãos dela tremer quando tentou acender um fósforo. Este partiu e ela riscou um segundo três vezes na caixa até conseguir acendê-lo.

(«Se o Roger a visse agora! Rouge barato, bâton barato e tolhida de medo. Uma rapariga cheia de vida, foi o que ele pensou que ela era.»)

– Trabalha no teatro há muito tempo, Miss... desculpe mas esqueci-me do seu nome.

– Joan Denver. – Tinha a garganta seca e mal conseguia falar. Deixou apagar o cigarro e ficou a segurar nele desamparadamente. Respondeu à pergunta de Julia. – Há dois anos.

– Que idade tem?

– Dezanove anos.

(«É mentira. Tens pelo menos vinte e dois.») – Conhece o meu filho, não conhece?

– Sim.

– Acabou de deixar Eton. Foi para Viena estudar alemão. É muito novo, claro, mas eu e o pai achámos que lhe faria bem passar alguns meses no estrangeiro antes de ingressar em Cambridge. E que papéis interpretou? O seu cigarro apagou-se. Não quer outro?

– Oh, não faz mal, obrigada. Tenho andado em digressão. Mas estou muito ansiosa por ficar em Londres. – O desespero deu-lhe coragem e proferiu o discurso que tinha evidentemente preparado. – Tenho uma admiração extraordinária pela senhora, Miss Lambert. Não me canso de dizer que é a maior atriz de teatro do nosso tempo. Aprendi mais consigo do que em todos os anos que passei na RADA1. A minha maior ambição é trabalhar no seu teatro, Miss Lambert, e se fosse possível dar-me um pequeno papel, sei que seria a oportunidade mais maravilhosa que uma rapariga pode ter.

– Importa-se de tirar o chapéu?

Joan Denver tirou o pequeno chapéu barato da cabeça e, com um gesto rápido, sacudiu os caracóis muito curtos.

– Tem um cabelo muito bonito – disse Julia.

Sempre com o seu sorriso levemente imperioso mas infinitamente cordial, o sorriso que uma rainha dirige aos seus súbditos num desfile real, Julia examinou-a. Não falou. Recordava-se da máxima de Jane Taitbout: Nunca faças uma pausa a não ser que haja uma razão mas, quando fizeres, aguenta-a o mais possível. Quase sentia o coração da rapariga pulsar e sentia-a encolher-se na roupa de pronto-a-vestir, encolher-se dentro da pele.

– O que a levou a lembrar-se de pedir ao meu filho uma recomendação para mim?

O rosto de Joan corou por debaixo da maquilhagem e a rapariga engoliu em seco antes de responder.

– Conheci-o em casa de um amigo e falei-lhe da enorme admiração que sinto por si e ele disse que achava que talvez tivesse qualquer coisa para mim na sua próxima peça.

– Estou precisamente a rever mentalmente os papéis.

– Não estava a pensar num papel. Se pudesse trabalhar como substituta... quero dizer, se me desse a oportunidade de assistir aos ensaios e de estudar a sua técnica. Só por si é uma formação. Toda a gente concorda que é assim.

(«Grande tonta, a tentar adular-me. Como se eu não soubesse isso. E a que propósito é que eu havia de a formar?») – É muito simpático da sua parte pôr as coisas nesses termos. No fundo, eu sou uma pessoa perfeitamente normal. O público é muito bondoso, muito bondoso. É muito bonita. E nova. Não há nada mais belo do que a juventude. A nossa política sempre foi dar uma oportunidade aos jovens. Afinal de contas, não somos eternos e consideramos um dever para com o público formar atores e atrizes para um dia ocuparem o nosso lugar.

Julia pronunciou estas palavras com tal naturalidade, na sua voz maravilhosamente modulada, que Joan Denver exultou de prazer. Tinha convencido a velhota e o papel de substituta estava praticamente no papo. Tom Fennell tinha dito que, se jogasse bem os seus trunfos com Roger, era perfeitamente possível que conseguisse alguma coisa.

– Oh, mas ainda falta muito para isso, Miss Lambert – disse ela, com um brilho nos olhos, nos seus bonitos olhos escuros.

(«Nisso tens razão, minha menina, toda a razão. Aposto que aos setenta anos ainda sou capaz de te comer a cena.»)

– Tenho de refletir. Neste momento, ainda não sei bem de que atores substitutos vamos precisar na próxima peça.

– Ouvi dizer que a Avice Crichton vai interpretar o papel da rapariga. Pensei que talvez pudesse estudar o papel dela.

Avice Crichton. Nem através de um pestanejo Julia deixou transparecer que o nome significava o que quer que fosse para ela.

– O meu marido falou nela mas ainda não está nada decidido. Não a conheço. É boa atriz?

– Acho que sim. Andei na academia com ela.

– E ouvi dizer que tem uma figura de sonho. – Levantando-se para indicar que a entrevista tinha terminado, Julia pôs de lado a atitude majestosa. Mudou de tom e subitamente tornou-se a atriz jovial e afável, capaz de fazer um favor a qualquer um, se pudesse. – Pois bem, deixe-me o seu nome e endereço e, se se arranjar alguma coisa, eu informo-a.

– Não se vai esquecer de mim, Miss Lambert?

– Não, prometo que não. Gostei muito de a conhecer. Tem uma personalidade muito agradável. Sabe sair, não sabe? Adeus.

«Há de pôr os pés neste teatro a correr muito», disse Julia a si mesma depois de ela sair. «Cabrazinha, a seduzir o meu filho. Pobre querido. É uma vergonha, é o que é; mulheres destas haviam de ser banidas da face da Terra.»

Mirou-se no espelho ao tirar o belo vestido de noite. O seu olhar era duro e os lábios estavam revirados numa expressão sardónica. Dirigiu-se à sua imagem no espelho.

«E deixa-me que te diga, rapariga: há uma pessoa que não vai entrar Nos Dias de Hoje e chama-se Avice Crichton.»

1 Royal Academy of Dramatic Art. (N. da T.)