24
Na quarta de manhã, Julia fez uma massagem ao rosto e uma permanente ao cabelo. Para o jantar, não conseguia decidir-se entre um vestido florido de organdi, muito bonito e primaveril com uma sugestão da Primavera de Botticelli, e um de cetim branco imaculado e com um corte impecável que realçava a sua figura jovem e esguia; mas durante o banho decidiu-se pelo vestido de cetim branco: indicava com grande subtileza que o sacrifício que tencionava fazer tinha a natureza de uma expiação pela sua duradoura ingratidão para com Michael. Não pôs joias à exceção de um colar de pérolas e uma pulseira de diamantes; além da aliança, apenas um diamante de talhe em baguete. Gostaria de ter aplicado um tom levemente bronzeado, dar-lhe-ia um aspeto de rapariga saudável e ficava-lhe bem mas, refletindo sobre o que se passaria, absteve-se. Não podia propriamente, como o ator que se pinta todo de preto para representar Otelo, bronzear o corpo inteiro. Sempre pontual, desceu no momento em que abriam a porta de entrada a Charles. Cumprimentou-o com um olhar ao qual imprimiu ternura, um charme malicioso e intimidade. Charles tinha agora o cabelo grisalho, que começava a rarear, bastante comprido e, com a passagem dos anos, as suas distintas feições intelectuais tinham-se tornado um pouco flácidas; estava ligeiramente encurvado e a roupa dava a impressão de precisar de ser engomada.
«Mundo estranho este em que vivemos», pensou Julia. «Os atores fazem tudo para parecer grandes senhores e os grandes senhores fazem tudo para parecer atores.»
Não havia dúvida de que estava a produzir sobre ele o efeito pretendido. Ele deu-lhe a abertura perfeita.
– Porque é que estás tão encantadora esta noite? – perguntou.
– Porque estou desejosa de jantar contigo.
Com os seus belos olhos expressivos, olhou-o nos olhos de forma penetrante. Apartou os lábios no estilo que achava profundamente sedutor nos retratos de Romney de Lady Hamilton.
Jantaram no Savoy. O chefe de mesa conduziu-os a uma mesa junto da passagem, onde ficaram expostos à admiração geral. Embora toda a gente estivesse supostamente fora de Londres, o restaurante estava bastante cheio. Julia inclinou a cabeça e sorriu a vários amigos que avistou. Charles tinha muito que contar; ela ouviu-o com interesse.
– És a melhor companhia do mundo, Charles – disse-lhe ela.
Tinham chegado tarde, jantaram bem e, quando Charles terminou o conhaque, já começavam a chegar pessoas para a ceia.
– Não me digas que os espetáculos já acabaram – disse ele, consultando o relógio. – Como o tempo voa quando estou contigo. Achas que querem ver-se livres de nós?
– Não me apetece nada ir para a cama.
– O Michael deve estar a chegar a casa, não?
– Suponho que sim.
– Porque é que não vamos para minha casa conversar?
Era o que Julia chamava pegar na deixa.
– Adorava – respondeu, insinuando na voz o leve rubor que achava lhe teria assentado bem nas faces.
Entraram no carro dele e dirigiram-se a Hill Street. Ele levou-a para o escritório. Ficava no rés do chão e dava para um pequeno jardim. As portas envidraçadas estavam completamente abertas. Sentaram-se num sofá.
– Apaga algumas das luzes e deixa a noite penetrar na sala – disse Julia, acrescentando numa citação de O Mercador de Veneza: – «Numa noite como esta, quando o doce vento beijou ternamente as árvores...»
Charles apagou tudo, deixando apenas aceso um candeeiro de quebra-luz e, quando voltou a sentar-se, ela enroscou-se nele. Ele pôs-lhe o braço à volta da cintura e ela pousou a cabeça no ombro dele.
– Isto é o paraíso – murmurou ela.
– Tive tremendas saudades tuas durante todos estes meses.
– Fizeste asneiras?
– Bem, comprei um desenho de Ingres e paguei muito dinheiro por ele. Tenho de to mostrar antes de ires embora.
– Não te esqueças. Onde é que o puseste?
Julia tinha-se interrogado, ao entrar na casa, se a sedução teria lugar no escritório ou no andar de cima.
– No quarto – respondeu ele.
«É sem dúvida muito mais confortável», refletiu.
Riu secretamente ao imaginar o pobre Charles a congeminar um truque tão simples para a levar para o quarto. Os homens eram uns tolos! Tímido, era esse o problema dele. Sentiu uma súbita pontada no coração ao pensar em Tom. Que vá para o diabo! Charles era adorável e ela estava determinada a recompensar finalmente a sua dedicação de muitos anos.
– Tens sido um amigo fantástico, Charles – disse na sua voz gutural e rouca. Voltou-se um pouco, aproximando muito o seu rosto do dele, com os lábios, mais uma vez como os de Lady Hamilton, ligeiramente abertos. – Infelizmente, nem sempre fui muito generosa contigo.
Estava com um ar tão deliciosamente dócil, como um pêssego maduro pronto a ser colhido, que parecia inevitável que ele a beijasse. Depois enlaçá-lo-ia com os seus braços macios e brancos. Mas ele limitou-se a sorrir.
– Não deves dizer isso. Foste sempre divinal.
(«Está com medo, pobre querido.») – Acho que nunca ninguém me amou tanto como tu.
Ele apertou-a ao de leve.
– Ainda amo. Sabes bem. Foste a única mulher da minha vida.
No entanto, como ele não tomou os lábios oferecidos, ela virou-se um pouco. Olhou reflexivamente para a lareira elétrica. Era pena que não estivesse ligada. A cena exigia um fogo.
– Como as coisas teriam sido diferentes se tivéssemos fugido daquela vez. Ai de mim!
Nunca tinha percebido bem o que significava «ai de mim!» mas usava-se muito no teatro e, dito com um suspiro, tinha sempre um efeito muito triste.
– A Inglaterra teria perdido a sua maior atriz. Sei agora como fui terrivelmente egoísta quando to propus.
– O sucesso não é tudo. Às vezes penso que se, para satisfazer a minha estúpida ambição, não perdi a coisa mais importante do mundo. Afinal, o amor é a única coisa que importa. – Nesse momento, voltou a olhar para ele com olhos mais belos do que nunca na sua melíflua ternura. – Sabes, se pudesse voltar atrás, acho que te dizia «leva-me».
Avançou a mão para pegar na dele. Ele apertou-a com delicadeza.
– Oh, minha querida.
– Penso muitas vezes nessa tua villa de sonho. Oliveiras e oleandros e o mar azul. Paz. Por vezes, fico horrorizada com a monotonia e a vulgaridade da minha vida. O que tu me ofereceste foi a beleza. Agora é demasiado tarde, eu sei; na altura, não sabia a que ponto gostava de ti, nunca imaginei que, com o tempo, viesses a ter cada vez mais importância para mim.
– É sublime ouvir-te dizer isso, meu anjo. Faz com que tanta coisa valha a pena.
– Faria tudo no mundo por ti, Charles. Tenho sido egoísta. Arruinei-te a vida sem saber o que estava a fazer.
Falou numa voz baixa e trémula e lançou a cabeça para trás, revelando o pescoço que lembrava uma coluna branca. O seu vestido decotado mostrava parte dos seios pequenos e firmes e, com as mãos, projetou-os um pouco para a frente.
– Não deves dizer isso, não deves pensar assim – respondeu Charles suavemente. – Foste sempre perfeita. Nem eu te desejei diferente. Oh, minha querida, a vida é tão curta e o amor tão transitório. A tragédia da vida é que, por vezes, conseguimos aquilo que queremos. Ao olhar agora para o nosso passado juntos, sei que foste mais sensata do que eu. «Que engrinaldada lenda assombra a tua traça?» Lembras-te como é? «Amante audacioso, nunca a beijarás, embora quase a beijes... não te dês ao pranto: ela não envelhece, embora a não possuas, para sempre amarás quem terá sempre encanto.»
(«Idiota.») – São versos tão bonitos – disse Julia, com um suspiro. – Talvez tenhas razão. Ai de mim!
Charles continuou a recitar. Era um hábito seu que Julia sempre tinha considerado um tanto enfadonho.
– «Felizes ramos, ah, que não podeis perder
As folhas, nem direis à primavera adeus;
E, ó músico feliz, sempre sem esmorecer
Tocando novos sempre os mesmos ritmos teus!...»2
A recitação deu a Julia uma oportunidade para pensar. Fixou intensamente a lareira apagada como se estivesse hipnotizada pela profunda beleza das palavras. Era perfeitamente evidente que ele não tinha compreendido. Não podia causar realmente surpresa. Ela fora surda às suas apaixonadas súplicas durante vinte anos e era mais do que natural que ele tivesse desistido da sua desesperada pretensão. Era como o pico do Evereste; se esses intrépidos alpinistas, que há tantos anos tentavam em vão alcançar o cume, acabassem por descobrir um acessível lanço de escadas que lá levasse, não acreditariam pura e simplesmente no que estavam a ver: pensariam que havia alguma ratoeira escondida. Julia achou que devia tornar-se um pouco mais explícita; devia, por assim dizer, estender uma mão para ajudar o fatigado peregrino.
– Está a fazer-se muito tarde – disse ela de mansinho. – Mostra-me o teu novo desenho e depois vou-me embora.
Ele levantou-se e ela estendeu-lhe as duas mãos para ele a ajudar a erguer-se do sofá. Subiram ao andar de cima. O pijama e o roupão dele estavam impecavelmente arranjados numa cadeira.
– Os homens solteiros tratam-se muito bem! É um quarto muito simpático e acolhedor.
Ele tirou o desenho encaixilhado da parede e aproximou-se dela para lho mostrar à luz. Era um retrato a lápis de uma mulher forte com uma capelina e um vestido decotado com mangas tufadas. Julia achou-a feia e o vestido ridículo.
– É esplêndido – exclamou.
– Já sabia que ias gostar. Um desenho excelente, não é?
– Espantoso.
Charles voltou a pendurar o pequeno quadro no respetivo prego. Quando se virou novamente ela estava em pé junto da cama, com as mãos atrás das costas, lembrando vagamente um escravo circassiano levado pelo chefe dos eunucos à inspeção do grão-vizir; a sua postura continha uma sugestão de pudico retraimento, uma deliciosa timidez e, ao mesmo tempo, a ansiedade da virgem ante a iminente entrada no seu reino. Julia soltou um suspiro levemente voluptuoso.
– Meu querido, foi uma noite maravilhosa. Nunca me senti tão próxima de ti.
Lentamente tirou as mãos de trás das costas e, com o extraordinário sentido de oportunidade que lhe era instintivo, levantou-as, estendendo os braços, com as palmas viradas para cima, como se nelas estivesse invisivelmente pousado um prato sumptuoso e, no prato, a oferenda do seu coração. Os seus belos olhos exibiam uma expressão terna e submissa e, nos seus lábios, dançava um sorriso de tímida rendição.
Viu o sorriso de Charles paralisar-se-lhe no rosto. Sim, ele tinha compreendido.
(«Ele não me quer, que diabo. Foi tudo um bluff.») A revelação desconcertou-a momentaneamente. («E agora, como é que me vou sair desta? Devo estar a fazer uma autêntica figura de parva.»)
Quase perdeu a compostura. Teve de pensar com uma rapidez vertiginosa. Ele estava ali de pé a olhar para ela, com uma atrapalhação que procurava disfarçar. Julia estava tomada de pânico. Não sabia o que fazer às mãos que seguravam no sumptuoso prato; apesar de pequenas, nesse momento davam a sensação de serem pernas de carneiro penduradas. Tão-pouco sabia o que dizer. Cada segundo que passava tornava a sua pose e a situação mais intoleráveis.
(«Canalha, maldito canalha. Ludibriar-me estes anos todos.»)
Fez a única coisa possível. Continuou o gesto. A contar mentalmente, para que o movimento não saísse demasiado precipitado, aproximou as mãos uma da outra até as juntar e, depois, lançando a cabeça para trás, levou-as, muito lentamente, até a um dos lados do pescoço. A posição que desenhou foi tão encantadora como a anterior e foi a posição que lhe sugeriu o que dizer. A sua voz profunda e cheia tremeu levemente de emoção.
– Quando olho para o passado, agrada-me imenso pensar que não temos nada a censurar-nos. A amargura da vida não é a morte, a amargura da vida é ver o amor morrer. – (Tinha ouvido uma frase parecida numa peça.) – Se tivéssemos sido amantes, há muito que te terias cansado de mim e que teríamos agora para recordar senão o remorso pela nossa própria fraqueza? Como é esse verso de Shelley que recitaste há pouco sobre envelhecer?
– Keats – corrigiu ele. – «Ela não envelhece, embora a não possuas.»
– É isso. Continua.
– «Para sempre amarás quem terá sempre encanto.»
Julia abriu os braços num gesto amplo e grandioso e sacudiu o cabelo ondulado. Tinha encontrado uma saída.
– É verdade, não é? «Para sempre amarás e eu terei sempre encanto.» Que loucos teríamos sido se tivéssemos desperdiçado a maravilhosa felicidade que a nossa amizade nos deu. Não temos nada de que nos envergonhar. Estamos puros. Podemos caminhar de cabeça erguida e olhar o mundo inteiro de frente.
Instintivamente sentiu que era a réplica final e, colando o movimento às palavras, de cabeça bem erguida, recuou até à porta e abriu-a com ímpeto. O seu poder era tal que transportou consigo a emoção da cena pelas escadas abaixo. Depois, deixou-a extinguir-se e, com a mais absoluta simplicidade, voltou-se para Charles, que a tinha seguido.
– A minha capa.
– O carro está aí – disse ele ao colocar-lha sobre os ombros. – Eu levo-te a casa.
– Não, deixa-me ir sozinha. Quero gravar esta hora no coração. Beija-me antes de eu ir.
Ofereceu-lhe os lábios. Ele beijou-os. Mas ela afastou-se dele, com um soluço abafado, e abrindo a porta bruscamente correu para o carro estacionado.
Quando chegou a casa e entrou no quarto, soltou um profundo e sonoro suspiro de alívio.
«Grande idiota. Como é que me deixei enganar assim? Felizmente saí-me bem do aperto. Que imbecil, nem lhe deve ter passado pela cabeça onde eu queria chegar.» Mas aquele sorriso paralisado desconcertava-a. «É capaz de ter suspeitado, não podia ter a certeza e, mais tarde, deve ter concluído que se tinha enganado. Caramba, as parvoíces que eu disse. Mas devo dizer que não me saí mal de todo. Ainda bem que percebi a tempo. Mais um minuto e tinha tirado o vestido. Dessa já não me saía com a mesma facilidade.»
Julia começou a rir baixinho. A situação era confrangedora, claro, ele tinha-a feito passar por parva, mas só quem não tivesse um mínimo sentido de humor é que não via o lado cómico. Lamentava não ter ninguém a quem pudesse contar o que se tinha passado; mesmo em seu desabono, era uma boa história. O que lhe custava a aceitar era ter caído na comédia da paixão eterna que ele tinha representado durante todos aqueles anos; porque era evidente que não passava de afetação; sentia-se bem no papel do adorador fiel e a última coisa que queria, aparentemente, era a recompensa pela sua fidelidade.
«Ludibriou-me, foi o que foi, ludibriou-me completamente.»
Mas uma ideia ocorreu a Julia e ela deixou de sorrir. Quando um homem rejeita as investidas amorosas de uma mulher, ela pode tirar uma ou duas conclusões; uma é que ele é homossexual e a outra é que é impotente. Julia acendeu pensativamente um cigarro. Interrogou-se se Charles teria usado a dedicação que lhe votava como um disfarce para desviar as atenções das suas verdadeiras tendências. Mas abanou a cabeça. Se ele fosse homossexual, teria entrevisto com certeza algum sinal; afinal, desde a guerra que não se falava praticamente de outra coisa em sociedade. Era perfeitamente possível, claro, que fosse impotente. Considerou a idade dele. Pobre Charles. Voltou a sorrir. E, se fosse esse o caso, tinha sido ele, e não ela, quem ficou numa situação embaraçosa e até ridícula. Deve ter apanhado um susto de morte, coitado. Evidentemente não era o género de coisa que um homem gostasse de contar a uma mulher, sobretudo se estivesse loucamente apaixonado por ela; quanto mais refletia sobre o assunto, mais provável considerava a explicação. Começou a sentir uma pena terrível dele, uma ternura quase maternal.
– Já sei o que vou fazer – disse, começando a despir-se. – Amanhã vou mandar-lhe um grande ramo de lírios brancos.
2 Excerto do poema «Ode a uma Urna Grega», de John Keats, em tradução de Jorge de Sena. (N. da T.)