5
Julia estava agora a olhar para a sua fotografia em vestido de noiva.
«Meu Deus, que aspeto horroroso!»
Decidiram não falar do noivado a ninguém e Julia contou apenas a Jimmie Langton, a duas ou três raparigas da companhia e à sua assistente de camarim. Obrigou-os a prometer segredo e não conseguiu compreender como, decorridas quarenta e oito horas, toda a gente no teatro parecia saber. Julia estava ditosamente feliz. Amava Michael mais apaixonadamente do que nunca e teria de bom grado casado logo com ele mas o bom senso de Michael prevaleceu. Nesse momento não passavam de um par de atores de província e começar a sua conquista de Londres como marido e mulher prejudicaria as suas hipóteses de carreira. Julia mostrou-lhe o mais claramente possível, e de facto não podia ser mais clara, que estava preparada para se tornar amante dele mas ele recusou. Era demasiado íntegro para se aproveitar dela.
– Não te podia amar, minha querida, tanto se mais não amasse a honra – citou.
Michael estava seguro de que, quando se casassem, se arrependeriam amargamente de já terem vivido juntos como marido e mulher. Julia sentia orgulho nos princípios dele. Ele era um noivo terno e afetuoso mas não tardou muito a tê-la como segura; pelos seus modos, afáveis mas casuais, dir-se-ia que estavam casados há muitos anos. Mas demonstrava uma grande afetividade ao permitir que Julia lhe prodigalizasse carinhos. Ela adorava sentar-se, aninhada nele, com o braço dele em redor da sua cintura, a cara encostada à cara dele, e era sublime quando conseguia colar a sua ávida boca aos seus lábios finos. Embora Michael preferisse, quando se sentavam assim lado a lado, conversar sobre os papéis que estavam a estudar ou fazer planos para o futuro, fazia-a muito feliz. Ela nunca se cansava de elogiar a beleza dele. Era divinal, quando lhe dizia como o seu nariz era perfeito e o cabelo ruivo e encaracolado encantador, senti-lo apertá-la um pouco mais e ver a ternura nos seus olhos.
– Querida, ainda me hás de pôr vaidoso como um pavão.
– Seria idiota fingir que não és divinalmente atraente.
Julia achava que ele era e dizia-o porque gostava de dizer mas também o dizia porque sabia que ele gostava de ouvir. Ele nutria afeto e admiração por ela, sentia-se à vontade com ela e confiava nela mas Julia tinha perfeita consciência de que não estava apaixonado por ela. Consolava-se pensando que a amava tanto quanto era capaz de amar e pensava que, quando estivessem casados, quando dormissem um com o outro, a sua própria paixão despertaria nele uma paixão igual. Entretanto, exercia todo o seu tato e todo o seu autocontrole. Sabia que não podia correr o risco de o enfadar. Sabia que nunca podia deixá-lo sentir que era um fardo ou uma responsabilidade. Ele podia abandoná-la para ir jogar golfe ou almoçar com algum conhecimento passageiro mas ela nunca permitiria, em momento nenhum, que ele a visse magoada. E suspeitando que o seu sucesso como atriz fortalecia os sentimentos dele por ela, trabalhava arduamente para representar ainda melhor.
Quando estavam noivos havia bastante mais de um ano, um empresário teatral americano, em busca de novos talentos e tendo ouvido falar da companhia de repertório de Jimmie Langton, apareceu em Middlepool e ficou muito bem impressionado com Michael. Enviou-lhe uma mensagem a pedir que o visitasse no hotel, na tarde do dia seguinte. Michael, ofegante de excitação, mostrou-a a Julia; só podia significar que lhe ia oferecer um papel. Ela sentiu um aperto no coração mas fingiu estar tão excitada como ele e acompanhou-o no dia seguinte ao hotel. Devia esperar no átrio enquanto Michael falava com o figurão.
– Deseja-me sorte – sussurrou ele, ao afastar-se dela para entrar no elevador. – É quase bom de mais para ser verdade.
Julia sentou-se numa ampla poltrona de couro, desejando com toda a sua alma que o empresário americano oferecesse a Michael um papel que ele recusasse ou um salário que ele considerasse demasiado indigno do seu valor para aceitar. Ou, em alternativa, que pedisse a Michael para ler o papel que tinha em mente e chegasse à conclusão de que ele não estava à altura. Mas quando viu, meia hora mais tarde, Michael a avançar na sua direção, de olhos brilhantes e passo bamboleante, percebeu que ele tinha conseguido. Por um momento, pensou que ia vomitar e, quando procurou forçar um sorriso ansioso e feliz, sentiu os músculos tensos e duros.
– Correu tudo bem. Ele diz que é um papel excelente, o papel de um rapaz de dezanove anos. Oito ou dez semanas em Nova Iorque e, depois, digressão. São quarenta semanas garantidas com o John Drew. Duzentos e cinquenta dólares por semana.
– Oh, querido, é uma oportunidade estupenda para ti.
Era perfeitamente claro que ele tinha aceitado com alacridade. A ideia de recusar nunca lhe tinha sequer ocorrido.
«E eu... eu», pensou ela, «nem por mil dólares por semana ia, se implicasse estar separada do Michael.»
Tomou-a um desespero atroz. Não podia fazer nada. Devia fingir-se tão encantada quanto ele. Ele estava demasiado excitado para ficar calmamente sentado e levou-a para a rua movimentada para caminharem.
– É uma oportunidade maravilhosa. Claro que a vida é cara na América mas devo conseguir viver com cinquenta dólares por semana no máximo; dizem que os americanos são terrivelmente hospitaleiros e hei de ser convidado para muitos jantares. Não vejo razão para não poupar oito mil dólares nas quarenta semanas, e isso são mil e seiscentas libras.
(«Não me ama. Não se preocupa minimamente comigo. Odeio-o. Sinto vontade de o matar. Maldito empresário americano.»)
– E se ele me contratar mais um ano paga-me trezentos. Quer dizer que em dois anos conseguia juntar quase quatro mil libras. Pouco ficava a faltar para me lançar na direção de um teatro.
– Mais um ano! – Por um momento, Julia descontrolou-se e não conseguiu disfarçar a tristeza na voz. – Queres dizer que vais estar fora dois anos?
– Oh, no próximo verão estou de volta, claro. Pagam-me a viagem de regresso e eu vou viver para casa dos meus pais para não gastar dinheiro.
– Não sei como é que vou conseguir passar sem ti.
Pronunciou as palavras num tom vivo, de que estava ausente qualquer censura, mas um pouco casual.
– Ora, podemos passar um verão estupendo juntos e sabes que um ano, dois anos no máximo, enfim, passam como um relâmpago.
Michael tinha estado a caminhar sem destino mas Julia, sem ele dar conta, orientara-o na direção que pretendia e agora estavam diante do teatro. Ela estacou.
– Até logo. Tenho de dar um salto lá acima para falar com o Jimmie. – A expressão dele ensombrou-se.
– Não me vais deixar agora! Preciso de falar com alguém. Pensei que podíamos ir comer qualquer coisa antes do espetáculo.
– Peço imensa desculpa. O Jimmie está à minha espera e já sabes como ele é.
Michael lançou-lhe o seu terno e afável sorriso.
– Pronto, vai lá. Não vou ficar ressentido contigo por me desiludires uma vez.
Continuou a andar e ela entrou pela porta dos artistas. Jimmie Langton tinha arranjado um pequeno apartamento nas águas-furtadas para residir, ao qual se tinha acesso através do balcão. Ela tocou à campainha da porta de entrada e ele próprio a abriu. Ficou surpreendido mas satisfeito ao vê-la.
– Olá, Julia, entra.
Ela passou à frente, sem uma palavra, e quando entraram na sala de estar, desarrumada, com peças dactilografadas, livros e outras tralhas espalhados por todo o lado e os restos do frugal almoço dele ainda num tabuleiro junto da secretária, ela virou-se e encarou-o. Tinha os músculos da cara tensos e a expressão carregada.
– Estafermo!
Com um gesto rápido, aproximou-se dele, agarrou-o com as duas mãos pelo colarinho desapertado da camisa e sacudiu-o. Ele debateu-se para se libertar mas ela segurou-o com força e violência.
– Para com isso. Para com isso.
– Estafermo, monstro, patife nojento!
Ele tomou balanço e com a mão aberta deu-lhe uma potente bofetada. Ela largou-o instintivamente e levou a mão à face onde ele a tinha agredido. Irrompeu em lágrimas.
– Bruto! Safado, a bater numa mulher!
– Vai dar uma curva! Não sabias que quando uma mulher me bate respondo sempre na mesma moeda?
– Eu não te bati.
– Quase me estrangulaste.
– Foi merecido. Meu Deus, só queria matar-te.
– Vá, agora senta-te, minha linda, que eu dou-te uma gota de whisky para te recompores. E depois podes contar-me tudo.
Julia olhou à sua volta à procura de uma cadeira grande onde pudesse deixar-se convenientemente cair.
– Bolas, esta casa parece uma pocilga. Porque é que não arranjas uma empregada?
Com um gesto furioso varreu para o chão os livros que estavam numa poltrona, atirou-se para cima dela e começou a chorar copiosamente. Ele serviu-lhe uma dose de whisky puro, acrescentou uma gota de soda e obrigou-a a beber.
– Então, que cena à Tosca foi esta?
– O Michael vai para a América.
– Vai?
Ela libertou-se do braço que ele tinha posto em redor dos seus ombros.
– Como foste capaz? Como foste capaz?
– Eu não tive nada a ver com isso.
– Mentiroso. Às tantas vais dizer-me que nem sequer sabias que esse maldito empresário americano estava em Middlepool. Foi obra tua de certeza. Fizeste de propósito para nos separar.
– Oh, minha querida, estás a ser injusta comigo. Por sinal, posso informar-te que lhe disse que podia levar qualquer ator que quisesse da companhia à exceção do Michael Gosselyn.
Julia não viu a expressão que os olhos de Jimmie assumiram ao dizer-lhe isto mas, se tivesse visto, ter-se-ia interrogado por que razão estava com o ar satisfeito de quem tinha pregado uma boa partida.
– Incluindo eu? – perguntou ela.
– Eu sabia que ele não queria mulheres. Mulheres não lhes faltam. Querem é homens que saibam usar a roupa e não cuspam na sala de estar.
– Oh, Jimmie, não deixes o Michael ir. Não aguento.
– Como é que posso impedi-lo? O contrato dele acaba no fim da temporada. É uma oportunidade única para ele.
– Mas eu amo-o. Quero-o. Imagina que ele conhece outra pessoa na América. Imagina que uma herdeira americana se apaixona por ele.
– Se o amor dele por ti não resiste a isso acho que só fazes bem em livrar-te dele.
O comentário reavivou a fúria de Julia.
– O que é que sabes sobre o amor, eunuco nojento?
– Estas mulheres – suspirou Jimmie. – Se tentamos ir para a cama com elas dizem que somos velhos obscenos e, se não tentamos, dizem que somos eunucos nojentos.
– Oh, tu não compreendes. Ele é tão atraente que elas se hão de derreter por ele como manteiga e o pobrezinho é tão suscetível à lisonja. Em dois anos tudo pode acontecer.
– Dois anos, que vem a ser isso?
– Se for um sucesso, fica mais um ano.
– Bem, não te preocupes com isso. Ele volta no fim da temporada e volta de vez. Esse diretor só o viu na Candida. É o único papel em que ele se safa mais ou menos. Acredita no que te digo, não há de demorar muito até descobrirem que levaram gato por lebre. O Michael vai ser um fiasco.
– O que é que tu sabes sobre trabalho de ator?
– Tudo.
– Apetecia-me arrancar-te os olhos.
– Aviso-te que, se tentares tocar-me, não te dou uma bofetadazinha, dou-te um soco de tal ordem nos queixos que não hás de conseguir comer em condições durante uma semana.
– Bolas, capaz disso és tu. E consideras-te um cavalheiro?
– Nem quando estou bêbado.
Julia desatou a rir e Jimmie achou que o pior da cena tinha passado.
– Vamos lá ver, sabes tão bem como eu que a representar o metes num chinelo. Acredita, vais ser a maior atriz desde Mrs. Kendal. Para que é que te queres enredar com um homem que há de ser sempre um empecilho para ti? Se quiseres ter o teu próprio teatro ele há de querer contracenar contigo. E nunca será suficientemente bom, minha querida.
– Tem boa figura. Eu chego para os dois.
– Tens-te em grande conta, não tens? Mas estás enganada. Se queres ter sucesso não te podes dar ao luxo de ter um primeiro ator que não está à altura.
– Não me importo. Prefiro casar com ele e ser um fracasso do que ser um sucesso e casar com outro.
– És virgem?
Julia desatou novamente a rir.
– Acho que não é da tua conta mas por acaso sou.
– Bem me queria parecer. Bem, a não ser que dês importância a essas coisas, porque é que não vais passar duas semanas com ele a Paris quando fecharmos? Ele só parte em agosto. Pode ser que deixes de estar obcecada por ele.
– Ele não ia. Não é esse género de homem. Não vês que se considera um senhor?
– Até as classes altas propagam a espécie.
– Não compreendes – disse Julia com altivez.
– E tu também não, aposto.
Julia não se dignou responder. Sentia-se profundamente deprimida.
– Não consigo viver sem ele, não consigo. Que hei de fazer à minha vida com ele ausente?
– Continua aqui. Eu dou-te contrato por mais um ano. Tenho muitos papéis novos para ti e tenho um jovem ator debaixo de olho que é um achado. Vais ficar surpreendida quando vires como é mais fácil representar com alguém capaz de te dar contracena. Pago-te doze libras por semana.
Julia aproximou-se dele e olhou-o de modo penetrante nos olhos.
– Fizeste isto tudo para me convenceres a ficar mais um ano? Destroçaste-me o coração e arruinaste a minha vida para me prenderes à porcaria do teu teatro?
– Juro que não. Gosto de ti e admiro-te. E nunca tivemos tanto sucesso como nos últimos dois anos. Mas, com os diabos, não te fazia uma patifaria dessas.
– Mentiroso, mentes com quantos dentes tens.
– Juro que é verdade.
– Então prova-o – disse ela violentamente.
– Como é que posso provar? Sabes muito bem que, no fundo, sou uma pessoa decente.
– Dá-me quinze libras por semana que eu acredito em ti.
– Quinze libras por semana? Sabes muito bem quais são as nossas receitas. Como é que eu podia? Pronto, está bem. Mas as três libras vão sair-me do bolso.
– Quero lá saber!