DEZ

Houve uma batida na porta.

— Ignore. — A mãe de Tess não tirou os olhos do livro.

Liam, Tess e sua mãe estavam sentados em poltronas diferentes na sala de estar de Lucy, cada um lendo um livro com pequenas tigelas de passas com cobertura de chocolate no colo. Esse fora um dos hábitos da rotina diária de Tess quando criança: comer passas com cobertura de chocolate enquanto lia com a mãe. Elas sempre faziam polichinelos depois, para compensar o chocolate.

— Deve ser o papai.

Liam baixou seu livro. Tess ficara surpresa com quão prontamente ele concordara em se sentar e ler. Devia ter sido por causa das passas com chocolate. Ela nunca conseguia convencê-lo a fazer as leituras para a escola.

E agora, bizarramente, ele iria para uma nova escola. Simples assim. Amanhã. Era desconcertante o modo como aquela mulher peculiar o convencera a começar no dia seguinte, com a promessa de uma caça a ovos de Páscoa.

— Você falou com seu pai em Melbourne há poucas horas — lembrou ela, mantendo a voz neutra.

Ele e Will tinham conversado por vinte minutos. “Vou falar com o papai mais tarde”, dissera Tess quando Liam foi lhe entregar o telefone. Já havia falado com Will uma vez naquela manhã. Nada mudara. Ela não queria ouvir aquela sua terrível nova voz séria mais uma vez. E o que ela poderia dizer? Mencionar que tinha esbarrado com um ex-namorado na St. Angela? Perguntar se ele estava com ciúmes?

Connor Whitby. Devia fazer mais de quinze anos desde a última vez que o vira. Eles tinham namorado menos de um ano. Ela nem o reconhecera quando ele entrou na secretaria. Tinha perdido todo o cabelo e parecia muito maior, uma versão mais larga do homem de quem ela se lembrava. Tudo aquilo tinha sido tão estranho. Já era ruim o bastante que ela estivesse sentada de frente para uma mulher cuja filha fora assassinada.

— Talvez papai tenha pegado um avião para nos fazer uma surpresa — disse Liam.

Alguém deu uma batidinha na janela bem perto da cabeça de Tess.

— Sei que todos vocês estão aí! — acusou uma voz.

— Pelo amor de Deus. — A mãe de Tess fechou o livro com um estalo.

Tess se virou e viu o rosto da tia pressionando a janela da sala de estar, as mãos em concha em volta dos olhos, para poder espiar do lado de dentro.

— Mary, eu falei para você não aparecer! — A voz de Lucy subiu várias oitavas. Ela sempre parecia quarenta anos mais nova quando falava com a irmã gêmea.

— Abra a porta! — Tia Mary bateu de novo no vidro. — Preciso conversar com Tess!

— Tess não quer falar com você! — Lucy ergueu a muleta e a balançou no ar, na direção de Mary.

— Mãe — disse Tess.

— Ela é minha sobrinha! Tenho direitos! — Tia Mary tentou empurrar a moldura de madeira da janela para cima.

— Ela tem direitos — bufou Lucy. — Que monte de…

— Mas por que ela não pode entrar? — perguntou Liam, com a testa franzida.

Tess e a mãe se entreolharam. Elas vinham sendo muito cuidadosas com o que falavam na frente de Liam.

— É claro que ela pode entrar. — Tess deixou seu livro de lado.

Querida — disse tia Mary quando Tess abriu a porta. — E Liam! Você cresceu mais ainda! Como isso é possível?

— Oi, tio Phil.

Tess foi beijar a bochecha do tio, mas, para sua surpresa, ele de repente a puxou para um abraço desajeitado. Cheirava a Old Spice e a cigarro. Falou baixinho no ouvido dela:

— Estou profundamente envergonhado da minha filha. — Então se empertigou e declarou: — Vou fazer companhia a Liam enquanto vocês, mulheres, conversam.

Com Liam e tio Phil acomodados na frente da TV, Mary, Lucy e Tess se sentaram na cozinha para tomar chá.

— Deixei bem claro que vocês não deveriam aparecer aqui — disse a mãe de Tess. Mas não estava tão irritada com a irmã a ponto de dispensar seus deliciosos brownies de chocolate.

Mary revirou os olhos, apoiou os cotovelos na mesa e apertou a mão de Tess entre suas palmas pequenas, mornas e enrugadas.

— Meu bem, sinto muito que isso tenha acontecido com você.

— Não foi algo que simplesmente aconteceu com ela — explodiu Lucy.

— A questão é que acho que Felicity não teve mesmo escolha — disse Mary.

— Ah! Não tinha me dado conta! Pobre Felicity! Alguém pôs uma arma na cabeça dela, foi? — Lucy fez o gesto, pondo uma arma de mentira na própria cabeça.

Tess se perguntou quando fora a última vez que sua mãe medira a pressão sanguínea.

Decidida, Mary ignorou a irmã e se dirigiu a Tess:

— Meu bem, você sabe que isso jamais seria uma opção para Felicity. É uma tortura para ela. Uma tortura.

— Isso é uma piada? — Lucy deu uma mordida feroz no brownie. — Você espera mesmo que Tess sinta pena de Felicity?

— Só espero que seu coração possa perdoá-la. — Mary estava fazendo um excelente trabalho fingindo que Lucy não estava presente.

— Ok, já chega — disse Lucy. — Não quero ouvir mais uma palavra sair da sua boca.

— Lucy, às vezes o amor é simplesmente fulminante! — Mary enfim reconheceu a presença da irmã. — Acontece! Do nada!

Tess encarou sua xícara de chá e a girou. Tinha sido mesmo do nada? Ou sempre estivera ali, bem diante dos olhos dela? Era óbvio que Felicity e Will tinham se dado bem assim que se conheceram. “Sua prima é uma figura”, dissera Will a Tess depois que os três saíram para jantar pela primeira vez. Tess tomou aquilo como um elogio, porque Felicity era parte dela. Sua companhia animada era algo que Tess tinha a oferecer. E o fato de Will ter aprovado Felicity (nem todos os seus namorados anteriores tinham feito o mesmo; alguns não haviam gostado dela nem um pouco) era um grande ponto a seu favor.

Felicity também gostara de Will de cara. “Você pode se casar com esse”, dissera a Tess no dia seguinte. “Ele é o cara. E tenho dito.”

Será que Felicity já tinha uma queda por Will naquela época? Aquilo era inevitável? Previsível?

Tess se lembrou da euforia que sentira naquele dia seguinte, depois de ter apresentado os dois. Era como se ela tivesse alcançado um destino glorioso, o topo de uma montanha. “Ele é perfeito, não é?”, perguntara ela a Felicity. “Ele nos ganhou. Foi o primeiro que realmente nos ganhou.”

Ele nos ganhou. Não me ganhou.

Sua mãe e sua tia continuaram falando, ignorando o fato de Tess não estar contribuindo com uma palavra sequer.

Lucy tinha tapado os olhos com a mão.

— Isso não é uma história de amor maravilhosa, Mary! — Ela tirou a mão dos olhos e balançou a cabeça para a irmã, num gesto de desgosto, como se ela fosse uma criminosa da pior espécie. — O que há de errado com você? Sério, o que há de errado? Tess e Will são casados. E você se esqueceu de que há uma criança envolvida? Meu neto?

— Mas, olhe só, eles estão desesperados para encontrar um jeito de fazer tudo da forma correta — disse Mary a Tess. — Os dois a amam muito.

— Que ótimo — comentou Tess.

Nos últimos dez anos, Will nunca reclamara que Felicity passava tempo demais com eles. Talvez isso fosse um sinal. Uma pista de que só Tess não bastava para ele. Que marido normal estaria disposto a ter a prima gorda de sua esposa junto com eles nas férias anuais de verão? A menos que estivesse apaixonado por ela. Tess era uma idiota por não ter percebido. Ela gostava de ver Will e Felicity brincando, implicando e discutindo um com o outro. Nunca se sentira excluída. Tudo ficava melhor, mais vívido, divertido e ousado quando Felicity estava por perto. Tess sentia-se mais ela mesma perto de Felicity, porque a prima a conhecia melhor do que ninguém. Felicity permitia que Tess brilhasse. Era ela quem ria mais alto das piadas de Tess. Ela ajudava a moldar e a definir a personalidade de Tess, de forma que Will visse a esposa como ela realmente era.

E Tess se sentia mais bonita com Felicity por perto.

Ela pressionou as pontas geladas dos dedos nas bochechas, que queimavam. Apesar de vergonhoso, era verdade. Tess nunca sentira repulsa pela obesidade de Felicity, mas sentia-se particularmente magra e ágil perto dela.

E nada mudou na cabeça de Tess depois que a prima emagreceu. Nunca lhe ocorrera que Will olharia para Felicity de um jeito sexual. Estava muito segura de sua posição naquele estranho triângulo. Tess era o ápice do triângulo. Will a amava mais que tudo. Felicity a amava mais que tudo. Quanto egocentrismo da parte dela!

— Tess? — chamou Mary.

— Vamos falar de outra coisa. — Tess pousou a mão no braço da tia.

Duas lágrimas pesadas escorreram, deixando um rastro pegajoso nas bochechas rosadas e empoadas de Mary. Tess teve a estranha sensação de que era a primeira vez que olhava direito para a tia, como se nunca tivesse se dado o trabalho de encará-la nos olhos. Será que era possível que Tess jamais houvesse pensado em sua mãe e em sua tia como pessoas, sem que estivessem relacionadas a ela? Sempre que ela e Felicity estavam com as mães, deixavam seus corpos de trinta e cinco anos ficarem preguiçosos, se tornavam despreocupadas e loquazes, cheias da confiança que se tem quando se é adorado. Suas mães ficavam nervosas e estridentes enquanto Tess e Felicity lhes contavam como era a vida no mundo real. Mas agora Tess, Lucy e Mary eram apenas três mulheres sentadas à mesa, enfrentando aquela situação triste e absurda.

Mary secou de leve o rosto com um guardanapo amassado.

— Phil não queria que eu viesse. Ele disse que eu iria causar mais mal do que bem, mas só achei que poderia conseguir um jeito de consertar tudo. Passei a manhã inteira vendo fotos suas e de Felicity quando estavam crescendo. Como se divertiram juntas! Essa é a pior parte. Não vou suportar se vocês se tornarem estranhas.

Tess deu tapinhas no braço da tia. Seus olhos estavam secos e nítidos. Seu coração estava fechado como um punho.

— Acho que vai ter que suportar — disse ela.