QUATORZE

Rachel estava imersa na água escaldante, agarrando-se às laterais da banheira, enquanto sua cabeça girava. Tinha sido uma ideia estúpida tomar um banho de banheira enquanto ainda estava bêbada após a reunião da Tupperware. Provavelmente iria acabar escorregando ao sair e fraturar o quadril.

Talvez essa fosse uma boa estratégia. Rob e Lauren desistiriam de Nova York e ficariam em Sydney para cuidar dela. Veja Lucy O’Leary. Sua filha viera de Melbourne para tomar conta dela assim que soube que a mãe havia quebrado o tornozelo. Até tirara o filho da escola em Melbourne, o que, pensando bem, tinha sido um pouco de exagero.

Lembrar-se delas fez Rachel pensar em Connor Whitby e na sua expressão ao ver Tess. Rachel perguntou-se se deveria alertar Lucy. É só um aviso. Connor Whitby pode ser um assassino.

Ou talvez não. Também poderia ser um professor de educação física perfeitamente gentil.

Alguns dias, quando Rachel o via com as crianças na pista de corrida, à luz do sol, o apito em volta do pescoço, comendo uma maçã, pensava: Não há a menor chance de que esse cara legal tenha machucado Janie! E então, em outros dias amargos, ao avistá-lo caminhando sozinho, o rosto impassível, os ombros largos o bastante para matar, pensava: Você sabe o que aconteceu com a minha filha.

Ela apoiou a cabeça na banheira, fechou os olhos e se lembrou da primeira vez em que ficara sabendo da existência dele. O Sargento Bellach lhe dissera que a última pessoa que vira Janie viva fora um garoto da escola pública local chamado Connor Whitby, e Rachel havia pensado: Não pode ser, nunca ouvi falar dele. Ela conhecia todos os amigos de Janie e a mãe de cada um deles.

Ed dissera a Janie que ela não tinha permissão para namorar sério antes de terminar o ensino médio. Ele havia feito muito alarde com relação a isso. Mas Janie não discutira, e Rachel presumira, alegre, que ela ainda nem se interessava muito por garotos.

Ela e Ed viram Connor pela primeira vez no enterro de Janie. Ele apertou a mão de Ed e pressionou sua bochecha fria na de Rachel. Connor era parte do pesadelo, tão irreal e errado quanto o caixão. Meses depois, Rachel encontrou aquela foto dos dois juntos na festa de alguém. Ele estava rindo de algo que Janie dissera.

E então, após tantos anos, ele arrumara um emprego na St. Angela. Rachel nem o tinha reconhecido até ver seu nome na ficha de emprego.

— Não sei se está lembrada de mim, Sra. Crowley — dissera ele pouco depois de ter sido contratado, quando os dois estavam sozinhos na secretaria.

— Eu me lembro de você — respondeu ela friamente.

— Ainda penso em Janie — confessou ele. — O tempo todo.

Rachel não soubera o que dizer. Por que você pensa nela? Porque a matou?

Definitivamente havia algo parecido com culpa em seus olhos. Não era imaginação dela. Rachel trabalhava como secretária da escola havia quinze anos. Connor tinha o mesmo olhar de uma criança que fora mandada para a sala do diretor. Mas aquilo seria culpa por assassinato? Ou por alguma outra coisa?

— Espero que não seja desconfortável para a senhora o fato de eu trabalhar aqui.

— Não há o menor problema — respondeu ela, objetiva, e essa foi a última vez que tocaram no assunto.

Ela pensara em pedir demissão. Trabalhar na escola primária em que Janie estudara sempre fora meio contraditório. Garotinhas com pernas finas de Bambi passavam correndo por ela no pátio e Rachel vislumbrava Janie; nas tardes quentes de verão, via as mães buscando seus filhos e se lembrava de verões distantes, indo buscar Janie e Rob e os levando para tomar sorvete; seus rostinhos corados. Janie estava no ensino médio quando morreu, por isso as lembranças que Rachel tinha de St. Angela não haviam sido maculadas pelo seu assassinato. Isto é, até Connor Whitby surgir com aquela sua terrível moto barulhenta no meio de suas recordações delicadas e em tom de sépia.

No fim, ela continuou ali por teimosia. Gostava do trabalho. Por que ela deveria sair? E, o mais importante, de um jeito estranho, ela sentia que devia isto a Janie: não fugir, enfrentar todos os dias aquele homem e o que quer que ele tivesse feito.

Se ele tivesse matado sua filha, será que aceitaria um emprego no mesmo lugar em que a mãe dela trabalhava? Será que diria: “Ainda penso em Janie”?

Rachel abriu os olhos e sentiu aquele bolo de fúria alojado permanentemente no fundo de sua garganta, como se ela estivesse engasgada com alguma coisa. Era o fato de não saber. O maldito fato de não saber.

Ela colocou mais água fria na banheira.

“É o fato de não saber”, dissera uma mulher baixinha, de aparência refinada, naquele grupo de apoio a vítimas de homicídio que ela e Ed haviam frequentado umas poucas vezes, sentados em cadeiras dobráveis naquele salão comunitário frio em algum lugar de Chatswood, segurando seus copos de isopor com café instantâneo nas mãos trêmulas. O filho daquela mulher tinha sido assassinado no caminho de volta para casa depois do treino de críquete. Ninguém ouviu nada. Ninguém viu nada. “O maldito fato de não saber.”

Houve uma onda de piscadelas suaves na roda. A mulher tinha uma voz doce e cristalina; era como ouvir a Rainha praguejar.

— Lamento lhe dizer isto, meu bem, mas saber não ajuda tanto assim — interrompeu um homem gordo, de rosto vermelho, que vira o assassino de sua filha ser condenado à prisão perpétua.

Rachel e Ed tomaram uma antipatia violenta pelo homem de rosto vermelho e deixaram de frequentar o grupo de apoio por causa dele.

As pessoas pensavam que a tragédia trazia sabedoria, que elevava automaticamente o sofredor a um patamar mais alto, mais espiritualizado; porém, para Rachel parecia, na verdade, ser o contrário. A tragédia tornava o indivíduo pequeno e rancoroso. Não lhe proporcionava nenhum grande conhecimento ou discernimento. Ela não entendia droga nenhuma da vida, exceto que era arbitrária e cruel, e que algumas pessoas se safavam de um assassinato, enquanto outras cometiam um erro insignificante, um deslize, e pagavam um preço terrível.

Ela pegou uma toalha de debaixo da pia, dobrou-a e a colocou na testa, como se estivesse com febre.

Sete minutos. Seu erro podia ser medido em minutos.

Marla era a única pessoa que sabia. Ed nunca soubera.

Janie vinha reclamando que se sentia cansada o tempo todo. “Pratique mais exercícios”, insistia Rachel. “Não vá dormir tão tarde. Coma mais!” Ela era tão alta e magra. E então começou a reclamar de uma dorzinha na lombar. “Mãe, desconfio seriamente de que estou com mononucleose.” Rachel marcara a consulta com a Dra. Buckley apenas para que ela dissesse para Janie que não havia nada de errado e que ela precisava fazer todas aquelas coisas que a mãe lhe dissera.

Em geral, Janie pegava o ônibus, descia no ponto da Wycombe Road e ia andando para casa. Elas tinham combinado que Rachel iria buscá-la na esquina do colégio e a levaria direto para o consultório da Dra. Buckley, em Gordon. Ela lembrara Janie do combinado naquela manhã.

Só que estava sete minutos atrasada para buscar a filha e, quando chegou à esquina, Janie não estava lá. Ela esqueceu, pensara Rachel, tamborilando com os dedos no volante. Ou cansou de esperar. Aquela menina era tão impaciente e agia como se Rachel fosse um tipo de transporte público conveniente, que tinha a obrigação de obedecer a uma tabela de horários. Não havia celular naquela época. Não havia nada que Rachel pudesse fazer além de aguardar no carro por mais dez minutos (na verdade, ela também não gostava muito de esperar) antes de finalmente voltar para casa e ligar para a secretária da Dra. Buckley cancelando a consulta.

Ela não tinha ficado preocupada. Estava irritada. Rachel sabia que não havia nada de errado com Janie. Era típico que ela se desse o trabalho de marcar uma consulta médica e a filha não se importasse. Só muito depois, quando Rob perguntou, com a boca cheia de sanduíche: “Cadê a Janie?”, que Rachel olhou para o relógio da cozinha e sentiu a primeira pontada gelada de medo.

Ninguém vira Janie esperando na esquina, ou, se alguém viu, nunca falou nada. Rachel jamais soube que diferença aqueles sete minutos fizeram.

O que ela acabou descobrindo com a investigação policial foi que Janie fora à casa de Connor Whitby por volta das três e meia e os dois assistiram a um filme juntos (Como eliminar seu chefe, com Dolly Parton), antes de Janie dizer que tinha “algo a fazer em Chatswood” e Connor levá-la à estação de trem. Ninguém mais voltou a vê-la viva. Ninguém se lembrava de tê-la visto no trem ou em qualquer outro lugar de Chatswood.

Seu corpo foi encontrado na manhã seguinte, por dois garotos de nove anos que andavam de bicicleta BMX no parque Wattle Valley. Eles pararam no parquinho e a encontraram deitada na beira do escorrega. Estava com o casaco da escola por cima do corpo, como se fosse um cobertor, como se estivesse lá para mantê-la aquecida do frio, e tinha um terço nas mãos. Havia sido estrangulada por alguém com as mãos nuas. A causa da morte foi asfixia traumática. Não havia sinais de luta. Resíduo algum em suas unhas. Nenhuma digital aproveitável. Nada de fios de cabelo. Nem de DNA. Rachel fizera essas perguntas quando lera sobre casos solucionados por testes de DNA no final dos anos 1990. Não havia suspeitos.

“Mas para onde ela estava indo?”, Ed não parava de questionar, como se ela enfim fosse lembrar a resposta caso ele repetisse a pergunta vezes suficientes. “Por que ela estava andando pelo parque?”

Às vezes, depois de indagar isso a Rachel repetidamente, ele acabava chorando de raiva e frustração. Rachel não conseguia suportar aquilo. Não queria ter nada a ver com o sofrimento do marido. Não queria saber dele, senti-lo ou compartilhá-lo. Seu próprio sofrimento já era ruim o bastante. Como ela poderia ser capaz de carregar o dele também?

Agora Rachel se perguntava por que eles não podiam contar um com o outro para dividir o sofrimento. Sabia que se amavam, mas quando Janie morreu, nenhum dos dois suportava ver as lágrimas do outro. Eles se apoiaram assim como estranhos faziam em casos de desastres naturais, seus corpos rígidos, dando tapinhas desajeitados no ombro do outro. E no meio daquilo havia o pequeno Rob, pobrezinho, um adolescente tentando em vão fazer tudo certo, todos os sorrisos falsos e mentiras alegres. Não era de espantar que tivesse se tornado corretor de imóveis.

Agora a água estava fria demais.

Rachel começou a tremer incontrolavelmente, como se estivesse com hipotermia. Pôs as mãos nas laterais da banheira e tentou ficar de pé.

Não ia conseguir. Passaria a noite inteira encalhada ali. Seus braços, finos como gravetos e de um branco cadavérico, não tinham força. Como era possível que aquele corpo inútil, frágil e cheio de veias azuis fosse o mesmo que antes era moreno, firme e forte?

“Que belo bronzeado para abril”, dissera-lhe Toby Murphy naquele dia. “Você pega sol, Rachel?”

Fora por isso que ela se atrasara sete minutos. Estava flertando com Toby Murphy. Toby era casado com sua amiga Jackie. Ele era empreiteiro e precisava de uma auxiliar de escritório. Rachel tinha ido fazer uma entrevista, e ficara no escritório de Toby por mais de uma hora, flertando. Toby era um galanteador incorrigível, e ela estava usando o vestido novo que Marla a convencera a comprar; ele não parava de olhar para suas pernas à mostra. Rachel jamais trairia Ed, e Toby adorava a esposa, então os votos de casamento de todos os envolvidos estavam seguros, mas mesmo assim ele olhava para suas pernas, e ela gostava disso.

Ed não ficaria nada contente se ela fosse trabalhar para Toby. Ele não sabia da entrevista. Rachel sentia que ele nutria uma certa competitividade em relação a Toby, algo que tinha a ver com o fato de ele ter um trabalho de “macho”, enquanto o emprego de Ed, como representante farmacêutico, era bem menos masculino. Ed e Toby jogavam tênis juntos, e, em geral, Ed perdia. Ele fingia não se importar, mas Rachel sabia que isso sempre o deixava irritado.

Portanto, era especialmente cruel de sua parte gostar do olhar de Toby para suas pernas.

Seus pecados naquele dia haviam sido tão banais. Vaidade. Autoindulgência. Uma insignificante traição a Ed. Uma insignificante traição a Jackie Murphy. Mas talvez esses pecadinhos banais fossem os piores. Era provável que a pessoa que matou Janie fosse doente, maluca, enquanto Rachel era sã e autoconsciente, e sabia exatamente o que estava fazendo quando deixou o vestido deslizar um pouco mais para cima dos joelhos.

A espuma de banho que ela havia despejado na água flutuava na superfície como gotas de óleo, viscosa e escorregadia. Rachel tentou outra vez se levantar na banheira e falhou.

Talvez fosse mais fácil se ela deixasse a água escorrer primeiro.

Ela arrancou o tampão com os dedos do pé e o barulho da água descendo pelo ralo, como sempre, parecia o rugido de um dragão. Rob tinha pavor daquele ralo. “Raaah!”, gritava Janie, com as mãos em forma de garras. Quando toda a água escorreu, Rachel se inclinou para a frente. Ela se apoiou nas mãos e nos joelhos. Suas rótulas pareciam estar sendo esmagadas.

Deu um impulso para ficar meio de pé, agarrou-se a uma borda da banheira e, hesitando, pôs uma perna para fora, depois a outra. Tinha saído. Seu coração se acalmou. Graças a Deus. Nenhum osso quebrado.

Talvez aquele fosse o último banho de banheira da sua vida.

Rachel se secou com a toalha e pegou o roupão no gancho atrás da porta. O roupão era de um tecido bonito e macio. Outro presente atencioso escolhido por Lauren. A casa de Rachel estava cheia de presentes atenciosos escolhidos por Lauren. Por exemplo, aquela vela grossa que tinha cheiro de baunilha e ficava dentro de um pote de vidro, na bancada do banheiro.

“Uma grande vela fedorenta”, teria dito Ed.

Ela sentia falta de Ed em momentos divertidos. Sentia falta de discutir com ele. Sentia falta do sexo. Eles continuaram fazendo sexo depois da morte de Janie. Ambos ficaram surpresos com isso, e enojados com o fato de seus corpos ainda reagirem do mesmo modo que antes, mas continuaram fazendo.

Ela sentia falta de todos eles: sua mãe, seu pai, seu marido, sua filha. Cada ausência era sentida como se fosse uma pequena ferida cruel e diferente. A morte de nenhum deles tinha sido justa. O assassinato de Janie fora responsável por todas elas. Causas naturais uma ova!

Não se atreva foi o estranho pensamento que veio à mente de Rachel quando viu Ed cair de joelhos no corredor numa manhã quente de fevereiro. E quis dizer: Não se atreva a me deixar aqui para lidar sozinha com essa dor. Ela soube na mesma hora que ele estava morto. Disseram que foi um derrame agressivo, mas Ed e os pais dela haviam morrido por causa de seus corações partidos. Somente o coração de Rachel se recusara, com teimosia, a fazer o que era certo e continuara batendo. Isso a fazia sentir vergonha, assim como seu apetite sexual. Ela continuava respirando, comendo, transando, vivendo, enquanto Janie apodrecia debaixo da terra.

Rachel passou a palma da mão pelo espelho embaçado e analisou seu reflexo por trás das gotas d’água. Pensou no jeito como Jacob a beijava, com suas mãozinhas gorduchas apertando as bochechas dela, seus grandes olhos azul-claros cravados nos dela, e toda vez que ele fazia isso, ela sentia uma gratidão inesperada por seu rosto enrugado poder inspirar tamanha adoração.

Em busca de algo para fazer, esbarrou de leve na vela, deslizando-a até a beira da bancada, o que a fez tombar no chão e se espatifar em cacos de vidro com cheiro de baunilha.