DEZESSEIS
Tess acordou de repente, irreparavelmente alerta. Olhou para o relógio digital ao lado de sua cama e resmungou. Eram apenas onze e meia da noite. Acendeu a luminária com um movimento brusco e se deitou de costas, os olhos fixos no teto.
Aquele era seu antigo quarto, mas não havia muita coisa ali que a fizesse lembrar de sua infância. Tess mal tinha saído de casa quando sua mãe transformara o cômodo num elegante quarto de hóspedes, com uma cama queen size, mesinhas de cabeceira combinando e luminárias. O oposto de tia Mary, que reverentemente mantinha o quarto de Felicity tal qual ela o deixara. O quarto da prima parecia um sítio arqueológico preservado com perfeição, os pôsteres da TV Week ainda colados nas paredes.
A única parte do quarto de Tess que permanecera intocada tinha sido o teto. Ela deixou os olhos percorrerem as bordas onduladas das cornijas brancas. Antes, ela ficava deitada na cama olhando para o teto nas manhãs de domingo, preocupada com o que falara na festa da noite anterior, ou com o que não falara, ou com o que deveria ter dito. Festas a apavoravam. Até hoje. Era a falta de estrutura, a casualidade, não saber onde se sentar. Se não fosse por Felicity, ela nunca teria ido a uma, mas a prima estava sempre louca para ir. Ela ficava num canto com Tess, tecendo críticas ácidas sobre todos os convidados em voz baixa, fazendo a prima rir.
Felicity fora sua salvadora.
Isso era verdade?
Naquela noite, ao se sentar com a mãe para tomar um copo de conhaque e comer chocolate demais — “Foi assim que enfrentei a situação quando seu pai foi embora”, explicara Lucy. “É terapêutico” —, conversaram sobre o telefonema de Felicity, e Tess perguntou:
— Na outra noite, você adivinhou que o problema era Will e Felicity. Como sabia?
— Felicity nunca deixou que você tivesse algo só para si — disse a mãe.
— O quê? — Tess ficou perplexa, incrédula. — Isso não é verdade.
— Você quis aprender piano. Felicity estudou piano. Você jogava basquete. Felicity foi jogar basquete. Você era muito boa no esporte, então Felicity ficou para trás; e depois você perdeu de repente o interesse no basquete. Você seguiu carreira publicitária. E que surpresa! Felicity seguiu carreira publicitária.
— Ah, mãe — disse Tess. — Não sei. Você faz tudo parecer tão premeditado. Apenas gostávamos de fazer as mesmas coisas. De todo modo, Felicity é designer gráfica! Eu era gerente de marketing. São coisas bem diferentes.
Mas não para a mãe dela, que havia comprimido os lábios como se soubesse do que estava falando antes de tomar o resto do conhaque.
— Olhe, não estou dizendo que ela é de todo má. Mas Felicity sufocava você! Quando você nasceu, me lembro de ter agradecido a Deus por não ter tido gêmeas, pois assim você poderia levar a sua vida como bem entendesse, sem toda aquela comparação e competitividade. E então, de algum modo, você e Felicity acabaram como Mary e eu, como gêmeas! Pior do que gêmeas! Eu me perguntava que tipo de pessoa você teria se tornado se ela não tivesse ficado respirando no seu cangote o tempo todo, que amigos teria feito…
— Amigos? Eu não teria feito amigo algum! Era tímida demais! Tão tímida que era praticamente incapacitada. E continuo sendo meio esquisitona em situações sociais.
Ela parou quando estava prestes a contar para a mãe seu autodiagnóstico.
— Felicity a deixava tímida — disse Lucy. — Era conveniente para ela. Você não era tão envergonhada assim.
Tess mexeu o pescoço encostado no travesseiro. Era duro demais; ela sentia falta do seu próprio travesseiro que ficara em casa, em Melbourne. Será que o que sua mãe dissera era verdade? Ela tinha passado a maior parte da vida numa relação nada saudável com a prima?
Pensou naquele verão quente, estranho e terrível quando o casamento de seus pais chegara ao fim. O pai colocara as roupas na mala que a família usava nas férias e fora morar num apartamento que cheirava a mofo e tinha móveis finos e estreitos típicos da casa de uma senhora. E a mãe passara os oito dias seguintes com o mesmo vestido velho e sem caimento, andando pela casa rindo, chorando e murmurando: “Já vai tarde, cara.” Tess tinha dez anos. Foi Felicity que a ajudou a passar por aquele verão, que a levou à piscina pública e se deitou ao seu lado no concreto, sob o sol escaldante (e Felicity, com sua bela pele branca, detestava tomar sol), pelo tempo que Tess quisesse, que gastou o próprio dinheiro num álbum de grandes hits só para que ela se sentisse melhor, que buscou tigelas de sorvete com cobertura de chocolate sempre que ela se sentava no sofá e chorava.
Foi para Felicity que Tess ligou quando perdeu a virgindade, quando perdeu o primeiro emprego, quando um namorado terminou com ela pela primeira vez, quando Will disse “eu te amo”, quando ele a pediu em casamento, quando a bolsa estourou, quando Liam deu os primeiros passos, quando ela e Will tiveram a primeira briga séria.
Elas haviam compartilhado tudo a vida inteira. Brinquedos. Bicicletas. A primeira casa de bonecas das duas (que ficava na casa da avó delas). O primeiro carro. Os primeiros apartamentos. As primeiras férias no exterior. O marido de Tess.
Ela deixara Felicity desfrutar de Will. É claro que deixara. Havia permitido que Felicity fosse como uma mãe para Liam e como uma esposa para Will. Tinha dividido toda a sua vida com ela. Porque, sem dúvida, Felicity era gorda demais para encontrar o próprio marido e ter a própria vida. Era isso que Tess pensava no seu subconsciente? Ou era porque ela considerava Felicity gorda demais para sequer precisar de uma vida própria?
E então Felicity ficou gananciosa. E quis Will só para ela.
Se tivesse sido qualquer mulher que não Felicity, Tess jamais teria dito: “Tenha seu casinho e depois devolva meu marido.” Seria inconcebível.
Mas como era Felicity estava… tudo bem? Era perdoável? Era isso que ela queria dizer? Tess já tinha dividido uma escova de dentes com Felicity, então também a deixaria usar seu marido? Contudo, ao mesmo tempo, isso também tornava a traição pior. Um milhão de vezes pior.
Ela se virou de bruços e apertou o rosto no travesseiro. Seus sentimentos por Felicity eram irrelevantes. Precisava pensar em Liam. (“E quanto a mim?”, perguntava a menina de dez anos que fora um dia, quando os pais se separaram. “A minha opinião não conta?” Ela achava que era o centro do mundo deles, e então descobrira que não tinha poder de voto. Nenhum controle.)
Para as crianças, não existe essa coisa de divórcio amigável. Ela havia lido isso em algum lugar, apenas algumas semanas atrás, antes de tudo acontecer. Mesmo quando a separação era absolutamente amigável, mesmo se ambos os pais se esforçassem bastante, as crianças sofriam.
Tess chutou as cobertas e saiu da cama. Precisava ir a algum lugar, sair daquela casa e fugir de seus pensamentos. Will. Felicity. Liam. Will. Felicity. Liam.
Ela pegaria o carro da mãe e sairia dirigindo. Baixou os olhos para sua calça de pijama listrada e a camiseta. Deveria se trocar? Não tinha nada para vestir, de qualquer jeito. Não havia trazido roupas suficientes. Não importava. Ela não iria sair do carro. Calçou um par de sapatilhas e se arrastou para fora do quarto, descendo o corredor, os olhos se adaptando à escuridão. A casa estava silenciosa. Tess acendeu a luz da sala de jantar e deixou um bilhete para a mãe, caso ela acordasse.
Volto logo, fui dar uma volta no quarteirão. Bjs, Tess
Pegou a carteira, a chave do carro da mãe que estava num gancho atrás da porta e saiu para o doce e suave ar noturno, respirando fundo.
Dirigiu o Honda da mãe pela Pacific Highway com os vidros abertos e o rádio desligado. A Costa Norte de Sydney estava silenciosa, deserta. Um homem carregando uma maleta, que devia ter pegado o trem para casa depois de trabalhar até tarde, andava apressado pela calçada.
Uma mulher provavelmente não iria sozinha da estação para casa a pé àquela hora da noite. Tess lembrou que, certa vez, Will lhe falara que detestava andar atrás de uma mulher à noite, para que ela não ouvisse seus passos e pensasse que ele era um maníaco. “Sempre tenho vontade de gritar: ‘Está tudo bem! Não sou um maníaco’”, confessara ele. “Eu sairia correndo para salvar minha vida se alguém gritasse isso para mim”, dissera Tess. “Viu, não tem jeito”, concluíra Will.
Sempre que alguma coisa ruim acontecia na Costa Norte, os jornais descreviam o lugar como “a frondosa Costa Norte de Sydney”, para que tudo parecesse ainda mais terrível.
Tess parou num sinal de trânsito, baixou os olhos e viu a luz vermelha da reserva de combustível.
— Droga — reclamou ela.
Havia um posto vinte e quatro horas bastante iluminado na próxima esquina. Ela pararia ali. Foi até lá e saiu do carro. O local estava vazio, exceto por um homem numa moto do outro lado do pátio, colocando de volta o capacete depois de ter abastecido.
Ela abriu o tanque de combustível do carro e tirou a pistola da bomba do suporte.
— Oi — disse uma voz masculina.
Ela pulou de susto e se virou. O homem tinha se aproximado com a moto, e estava do outro lado do carro dela. Ele levantou o capacete. As luzes fortes do posto de gasolina brilhavam nos olhos de Tess, ofuscando sua visão. Não conseguia distinguir os traços dele, apenas a forma branca e assustadora de um rosto.
Os olhos dela se desviaram para o balcão vazio dentro da loja de conveniência do posto. Onde estava o maldito atendente? De forma protetora, Tess colocou o braço na frente do peito sem sutiã. Pensou num programa da Oprah que tinha visto com Felicity, no qual um policial ensinava às mulheres o que elas deveriam fazer se alguma vez fossem abordadas. Você deveria ser extremamente agressiva e gritar coisas como: “Não! Vá embora! Não quero confusão! Vá embora! Vá!” Por um tempo, ela e Felicity se divertiram muito gritando isso para Will sempre que ele entrava num cômodo.
Tess pigarreou e cerrou os punhos, como se estivesse numa de suas aulas de luta. Seria muito mais fácil ser agressiva se estivesse de sutiã.
— Tess — disse o homem. — Sou eu. Connor. Connor Whitby.