VINTE E TRÊS
Liam disse algo que Tess não conseguiu ouvir, largou a mão dela e parou de súbito bem na porta da St. Angela. O fluxo de pais e crianças mudou seu curso para contornar o repentino obstáculo no caminho, passando ao redor deles. Tess se ajoelhou ao lado do filho, e o cotovelo de alguém bateu na parte de trás de sua cabeça.
— O que foi? — perguntou ela, esfregando a área onde fora atingida.
Sentia-se agitada, nervosa e superestimulada. Deixar o filho na escola era tão ruim ali quanto em Melbourne: uma versão muito particular do inferno para alguém como ela. Pessoas, pessoas por toda parte.
— Quero voltar para casa — disse Liam para o chão. — Quero o papai.
— O que você disse? — perguntou Tess, embora tivesse ouvido. Ela tentou segurar a mão do menino. — Primeiro vamos sair do caminho dos outros.
Tess sabia que aquilo ia acontecer. Tinha sido tudo fácil demais, o que era suspeito. Liam parecera estranhamente confiante em relação à mudança de escola abrupta e não planejada. “Ele tem tanta facilidade de se adaptar”, dissera a mãe dela, maravilhada, mas Tess achava que aquilo tinha mais a ver com os problemas que ele vinha enfrentando na escola antiga do que com um verdadeiro entusiasmo em começar numa nova.
Liam puxou o braço de Tess, e ela teve que se agachar de novo.
— Você, papai e Felicity deviam parar de brigar — disse ele, colocando as mãos ao redor do ouvido de Tess. Seu hálito estava aquecido e cheirava a pasta de dente. — Apenas peçam desculpas. Digam que não queriam ter feito isso. E, então, podemos voltar para casa.
O coração de Tess parou.
Idiota. Idiota, idiota, idiota. Ela achou mesmo que ia conseguir esconder os fatos de Liam? Ele sempre os surpreendia com uma ótima percepção do que acontecia à sua volta.
— A vovó pode ir ficar com a gente em Melbourne — continuou o menino. — A gente pode cuidar dela lá, até o tornozelo dela melhorar.
Engraçado. Essa ideia nunca ocorrera a Tess. Era como se pensasse que sua vida em Melbourne e a vida da sua mãe em Sydney acontecessem em planetas diferentes.
— Tem cadeiras de rodas no aeroporto — declarou Liam em tom solene, bem na hora que a ponta da mochila de uma menininha raspou no seu rosto e atingiu o canto de seu olho.
Liam contorceu o rosto e as lágrimas começaram a rolar de seus lindos olhos dourados.
— Querido — disse Tess, impotente, quase chorando também. — Olhe. Você não precisa ir para a escola. Essa foi uma ideia maluca…
— Ora, bom dia, Liam. Eu estava me perguntando se você já tinha chegado!
Era aquela diretora excêntrica.
Ela abaixou ao lado de Liam com a mesma facilidade de uma criança. Deve fazer ioga, pensou Tess.
Um garoto mais ou menos da idade de Liam passou e deu um tapinha carinhoso em sua cabeça grisalha e de cabelo cacheado, como se ela fosse o cachorro da escola, e não a diretora.
— Oi, Sra. McDuff!
— Bom dia, Harrison!
A diretora Trudy levantou a mão e o xale que ela usava escorregou.
— Sinto muito. Estamos criando um engarrafamento aqui — começou Tess, mas Trudy apenas deu um sorrisinho para ela, ajeitou o xale com uma das mãos e voltou sua atenção para Liam.
— Sabe o que eu e a sua professora, a Sra. Jeffers, fizemos ontem à tarde?
Liam deu de ombros e enxugou as lágrimas.
— Transformamos sua sala de aula em outro planeta. — Os olhos dela brilhavam. — Nossa caça aos ovos de Páscoa vai ser no espaço sideral.
Liam fungou.
— Como? — perguntou ele, parecendo extremamente cínico. — Como vocês fizeram isso?
— Venha ver. — Trudy se levantou e pegou a mão dele. — Diga tchau para a sua mãe. À tarde você pode contar a ela quantos ovos encontrou no espaço.
Tess deu um beijo no topo da cabeça do filho.
— Bem, então tudo bem. Tenha um ótimo dia, e não esqueça que vou…
— Tem uma espaçonave, é claro. Adivinha quem vai voar nela? — disse Trudy, levando-o embora.
Tess viu Liam erguer os olhos para a diretora, seu rosto subitamente radiante, com uma esperança cautelosa, antes de ser engolido por uma multidão de uniformes azuis e brancos quadriculados.
Tess se virou e saiu para a rua. Teve aquela estranha sensação de estar desacorrentada que sempre experimentava ao deixar Liam sob os cuidados de outra pessoa, como se a gravidade desaparecesse. O que ela ia fazer agora? E o que diria a ele hoje depois da escola? Não podia mentir e falar que não estava acontecendo nada, mas tampouco podia lhe dizer a verdade, não é? Papai e Felicity estão apaixonados. Papai deveria me amar mais. Então estou zangada com eles. Estou muito magoada.
Em tese, a verdade era sempre a melhor opção.
Ela havia criado toda aquela situação. Tinha fingido para si mesma que estava fazendo tudo por Liam. Arrancara o filho de sua casa, sua escola e sua vida porque, na verdade, era o que ela queria fazer; queria ficar o mais longe possível de Will e Felicity, e agora a felicidade de Liam dependia de uma mulher estranha de cabelo cacheado chamada Trudy McDuff.
Talvez ela devesse educá-lo em casa até que tudo aquilo fosse resolvido. Conseguiria se virar com a maioria das matérias. Inglês, geografia. Poderia ser divertido! Menos matemática. Era o seu ponto fraco. Tess era péssima em matemática. Felicity a ajudara a passar nessa matéria quando estavam na escola, e agora era responsável por ajudar Liam. Outro dia mesmo ela dissera que estava ansiosa para redescobrir a equação de segundo grau quando Liam chegasse ao ensino médio, e Tess e Will tinham se entreolhado, dado de ombros e rido. Felicity e Will haviam se comportado de um jeito tão normal! O tempo todo. Guardando seu segredinho sujo para eles próprios.
Tess estava caminhando pela rua da escola, voltando para a casa da mãe, quando ouviu uma voz atrás de si.
— Bom dia, Tess.
De repente, Cecilia Fitzpatrick estava andando ao lado dela, seguindo na mesma direção, a volumosa chave do carro pendendo de uma das mãos, fazendo um barulho metálico. Havia algo estranho no modo como ela andava, como se mancasse.
Tess respirou fundo, de modo revigorante.
— Bom dia! — cumprimentou ela.
— Acabou de deixar Liam para seu primeiro dia na escola, não foi? — perguntou Cecilia. Ela usava óculos de sol, então Tess foi poupada de um apavorante contato visual. Pela voz, ela parecia estar ficando gripada. — Ele ficou bem? É sempre um pouco complicado.
— Ah, bem, na verdade não, mas Trudy…
Tess parou, distraída, pois acabara de notar os sapatos de Cecilia. Eles não pareciam combinar. Num pé ela usava uma sapatilha preta. No outro, uma sandália dourada de salto. Não era de admirar que estivesse andando de um jeito engraçado. Tess desviou o olhar e lembrou de continuar falando.
— Mas aquela diretora, Trudy. Ela foi maravilhosa com ele.
— Ah, sim. Trudy é única, com certeza — concordou Cecilia. — Bem, este é o meu carro. — Ela apontou para um veículo branco brilhante, com tração nas quatro rodas e a logo da Tupperware na lateral. — Esquecemos que Polly tinha educação física hoje. Eu nunca… Bem, esquecemos, então preciso voltar em casa para buscar os tênis dela. Polly está apaixonada pelo professor de educação física, por isso terei um problemão se me atrasar.
— Connor — disse Tess. — Connor Whitby. Ele é o professor de educação física. — Ela lembrou-se dele na noite anterior, no posto, com o capacete debaixo do braço.
— É, isso mesmo. Todas as menininhas estão apaixonadas por ele. Na verdade, metade das mães também.
— É mesmo. — Slosh, slosh, fazia o colchão d’água.
— Bom dia, Tess. Oi, Cecilia.
Era Rachel Crowley, a secretária da escola, vindo da direção contrária, usando um par de tênis de corrida branco com sua saia formal e camisa de seda. Tess se perguntou se alguma vez as pessoas olhavam para Rachel sem pensar em Janie Crowley e no que acontecera com ela naquele parque. Era impossível acreditar que Rachel já havia sido uma mulher normal, que ninguém pressentira a tragédia que a aguardava.
Rachel parou na frente delas. Mais conversa. Isso não acabava nunca. Ela estava pálida e parecia cansada, o cabelo branco não estava tão bem penteado quanto no dia anterior, quando Tess a encontrara.
— Obrigada mais uma vez pela carona ontem à noite — disse ela para Cecilia. Então sorriu para Tess. — Estive em uma das reuniões da Tupperware promovidas pela Cecilia ontem à noite e bebi demais. Por isso vim a pé hoje. — Ela gesticulou para os pés. — Vergonhoso, não é?
Houve um silêncio constrangedor. Tess estava confiante de que Cecilia falaria algo em seguida, mas ela parecia distraída com alguma coisa ao longe e estava estranha e quase bizarramente quieta.
— Parece que a noite foi divertida — comentou Tess, por fim. Sua voz soou muito alta e forte. Por que ela não podia falar como uma pessoa normal?
— É, foi mesmo. — Rachel franziu a testa de leve, olhando para Cecilia, que ainda não dissera uma palavra. Voltou sua atenção para Tess. — Liam foi direitinho para a sala?
— A Sra. McDuff o levou debaixo das asas — contou Tess.
— Que bom — disse Rachel. — Ele vai ficar bem. Trudy tem um cuidado todo especial com as crianças novas. É melhor eu ir começar meu dia. Tirar esses sapatos ridículos. Tchau, meninas.
— Tenha um ótimo… — A voz de Cecilia saiu áspera e ela pigarreou. — Tenha um ótimo dia, Rachel.
— Você também.
Rachel seguiu na direção da escola.
— Então — disse Tess.
— Ai, meu Deus — exclamou Cecilia. Ela levou os dedos à boca. — Acho que vou… — Ela olhou ao redor, agitada, como se procurasse alguma coisa. — Merda.
E de súbito estava agachada no meio fio, vomitando violentamente.
Ai, meu Deus, pensou Tess, ouvindo o barulho das ânsias. Ela não queria ver Cecilia Fitzpatrick vomitando na sarjeta. Seria uma ressaca da noite passada? Intoxicação alimentar? Será que ela devia se agachar ao seu lado e segurar seu cabelo como faria uma amiga nos banheiros das boates depois de muitas doses de tequila? Como ela e Felicity tinham feito uma com a outra? Ou deveria esfregar as costas de Cecilia de leve, descrevendo movimentos circulares, como fazia quando Liam ficava doente? Ela deveria ao menos fazer algum som tranquilizante, demonstrando empatia, enquanto ficava ali assistindo, para mostrar que se importava? Em vez de apenas ficar de pé ali, se encolhendo e olhando para o outro lado? Mas ela mal conhecia aquela mulher.
Quando estava grávida de Liam, Tess sofrera com enjoos matinais, só que eles duravam o dia inteiro. Ela havia vomitado em diversos lugares públicos, e seu único desejo era que a deixassem em paz. Será que talvez ela devesse apenas sair de fininho? Mas não podia abandonar a pobre mulher. Olhava ao redor desesperada, procurando outra mãe da escola, uma daquele tipo capaz, que saberia o que fazer. Cecilia deveria ter dezenas de amigas naquela escola, mas de repente a rua estava deserta e silenciosa.
Então ela teve uma inspiração maravilhosa: lenços. A ideia de ser capaz de oferecer a Cecilia algo ao mesmo tempo útil e apropriado a encheu de um sentimento ridiculamente parecido com alegria. Ela vasculhou a bolsa e encontrou um pequeno pacote de lenços fechado e uma garrafa d’água.
“Você parece uma escoteira”, Will lhe dissera no início do relacionamento deles, quando ela puxara uma pequena lanterna da bolsa depois que ele deixou a chave do carro cair numa rua escura, voltando do cinema a caminho de casa. “Se ficássemos presos numa ilha deserta, seríamos autossuficientes graças à bolsa de Tess”, dissera Felicity, porque, é claro, ela também estava lá naquela noite, Tess se lembrou naquele momento. Quando Felicity não estivera presente?
— Meu Deus — lamentou Cecilia. Ela se aprumou, deixou-se cair na calçada e limpou a boca com as costas da mão. — Que constrangedor.
— Aqui. — Tess estendeu-lhe os lenços. — Você está bem? Será que foi alguma coisa que você comeu, talvez?
Ela notou que as mãos de Cecilia tremiam terrivelmente e seu rosto estava branco como cera.
— Não sei. — Cecilia assoou o nariz e ergueu os olhos para Tess.
Havia meias-luas púrpuras abaixo dos seus olhos lacrimosos, e minúsculas manchas de rímel em suas pálpebras. Sua aparência estava horrível.
— Sinto muito por isso. Você tem que ir. Deve ter um milhão de coisas para fazer.
— Na verdade, não tenho nada para fazer — disse Tess. — Nadinha mesmo. — Ela desenroscou a tampa da garrafa. — Quer um gole d’água?
— Obrigada.
Cecilia pegou a garrafa e tomou um gole. Tentou se levantar e cambaleou. Tess segurou-a pelo braço quando ela estava prestes a cair.
— Sinto muito, me desculpe. — Cecilia estava quase chorando.
— Está tudo bem. — Tess ajudou-a a se equilibrar. — Está tudo perfeitamente bem. Acho melhor eu levá-la para casa.
— Ah, não, não, é muito gentil da sua parte, mas estou bem mesmo.
— Não está, não — disse Tess. — Vou levá-la para casa. Você pode ir para a cama que eu trago os tênis da sua filha aqui para a escola.
— Não acredito que quase me esqueci de novo da droga dos tênis da Polly — resmungou Cecilia.
Ela parecia completamente horrorizada consigo mesma, como se tivesse posto a vida de Polly em risco.
— Venha — chamou Tess.
Ela pegou a chave da mão de Cecilia, que não ofereceu resistência, apontou o controle para o carro da Tupperware e apertou o botão de destravar. Estava tomada por uma estranha sensação de capacidade e determinação.
— Agradeço por isso. — Cecilia apoiou seu peso no braço de Tess, que a ajudava a se acomodar no banco do carona.
— Sem problemas — respondeu Tess, com uma voz firme e sensata que não parecia em nada a dela, fechando a porta e dando a volta para chegar no lado do motorista.
Que gentil e civilizado da sua parte!, disse Felicity em sua mente. O próximo passo é se juntar à Associação de Pais e Amigos!
Vá se ferrar, Felicity, pensou Tess e, com um movimento hábil do pulso, virou a chave de Cecilia na ignição.