VINTE E OITO
Cecilia sentou-se no chão da despensa chorando, os braços em volta dos joelhos. Estendeu a mão para o rolo de papel-toalha na prateleira mais baixa, arrancou uma folha e assoou o nariz furiosamente.
Para começar, não conseguia se lembrar por que tinha ido à despensa. Talvez não tivesse nenhum outro motivo senão acalmar a mente olhando para seus potes da Tupperware. A agradável e objetiva geometria de suas formas interconectadas. Suas tampas azuis herméticas mantendo tudo fresco e crocante. Não havia segredos podres na despensa de Cecilia.
Ela sentia um leve cheiro de óleo de gergelim. Era sempre tão cuidadosa ao fechar aquela garrafa, mas ainda assim persistia um cheiro fraco. Talvez devesse jogá-lo fora, mas John-Paul adorava seu frango xadrez.
Quem se importava com o que John-Paul gostava? Os parâmetros conjugais nunca mais estariam empatados. Ela teria o controle e a última palavra para sempre.
A campainha tocou e Cecilia arfou. A polícia!, pensou ela.
Mas não havia motivo para a polícia aparecer agora, depois de todos aqueles anos, só porque Cecilia sabia. Odeio você por isso, John-Paul Fitzpatrick, pensou ela, ao se levantar. Seu pescoço doía. Pegou a garrafa do óleo de gergelim e a jogou na lixeira a caminho da porta. Não era a polícia. Era a mãe de John-Paul. Cecilia piscou, desorientada.
— Você estava no banheiro? — perguntou Virginia. — Eu já estava achando que teria que me sentar na escada. Minhas pernas estavam ficando cansadas.
A especialidade de Virginia era fazer você se sentir um pouco mal com qualquer coisa que ela pudesse. Tinha cinco filhos e cinco noras, e Cecilia era a única que ela não conseguira levar às lágrimas por raiva ou frustração uma vez sequer. Isso era por causa da confiança inabalável de Cecilia em suas habilidades como esposa, mãe e dona de casa. Manda ver, Virginia, às vezes ela pensava enquanto o olhar da sogra percorria tudo, desde as camisas sem uma dobra de John-Paul até os rodapés sem poeira.
Virginia “dava uma passada” na casa de Cecilia toda quarta-feira, depois da sua aula de tai chi, para tomar uma xícara de chá com algo recém-saído do forno. “Como você aguenta?”, resmungavam suas cunhadas, mas Cecilia não se incomodava tanto assim. Era como participar de uma batalha semanal, sem um objetivo específico, que Cecilia geralmente achava que vencia.
Mas não hoje. Não tinha forças para aquilo no momento.
— Que cheiro é esse? — perguntou Virginia, oferecendo a bochecha para um beijo. — É óleo de gergelim?
— É. — Cecilia cheirou as mãos. — Entre e sente-se. Vou pôr a chaleira no fogo.
— Não sou uma grande fã do cheiro de gergelim — disse sua sogra. — É muito asiático, não acha? — Ela se acomodou à mesa e olhou ao redor da cozinha, em busca de sujeira ou escolhas erradas. — Como John-Paul estava ontem à noite? Ele me ligou hoje de manhã. Que bom que voltou antes do previsto. As meninas devem estar felizes. São as garotinhas do papai, as três, não são? Mas não acreditei quando ele me disse que precisaria ir ao escritório esta manhã, depois de ter voltado de viagem ontem à noite! Ele deve estar com um jet lag terrível. Coitadinho.
John-Paul gostaria de ter ficado em casa hoje. “Não quero deixar você sozinha tendo que lidar com isso”, dissera ele. “Não vou ao escritório. Podemos conversar. Continuar a nossa conversa.”
Cecilia não conseguia pensar em nada pior do que mais conversa. Ela insistira em que ele fosse trabalhar, praticamente empurrando-o porta afora. Precisava ficar longe dele. Precisava pensar. Ele ligou a manhã inteira e deixou mensagens que revelavam seu nervosismo. Será que estava preocupado que ela fosse entregá-lo?
— John-Paul é muito certinho no trabalho — disse ela à sogra, enquanto preparava o chá. Imagine se você soubesse o que seu filhinho querido fez. Imagine só.
Ela sentiu os olhos de Virginia observando-a com sagacidade. Ela não era boba, Virginia. Esse era o erro que as cunhadas de Cecilia cometiam. Subestimavam o inimigo.
— Você não está muito bem — comentou a sogra. — Parece fraca. Deve estar exausta, não é? Você assume muitas responsabilidades. Ouvi dizer que organizou uma reunião ontem à noite. Estava conversando com Marla Evans no tai chi e ela falou que foi um sucesso. Pelo que parece, todo mundo ficou bêbado. Ela comentou que você deu uma carona a Rachel Crowley.
— Rachel é muito gentil — elogiou Cecilia.
Pôs o chá de Virginia na frente dela, acompanhado de uma variedade de guloseimas que tinha assado. (Eram o fraco de Virginia. E isso dava certa vantagem a Cecilia.) Conseguiria conversar com ela sem ficar nauseada?
— Eu acabei a convidando para a festa de pirata da Polly na semana que vem.
O que é simplesmente maravilhoso.
— Convidou? — perguntou Virginia. Houve uma pausa. — John-Paul sabe disso?
— Sabe — respondeu Cecilia. — Sabe, sim.
Era uma pergunta estranha vindo de Virginia. Ela sabia muito bem que John-Paul não se envolvia com o planejamento das festas de aniversário. Cecilia pegou o leite na geladeira e se virou para olhar a sogra.
— Por que a pergunta?
Virginia se serviu de uma fatia de bolo de coco.
— Ele não se importa?
— Por que se importaria?
Cecilia puxou com cuidado uma cadeira e sentou-se à mesa. Sentia como se alguém estivesse pressionando o polegar bem no meio da sua testa, como se sua cabeça fosse feita de massa de pão. Seu olhar encontrou o de Virginia. Ela tinha os olhos de John-Paul. Fora bonita no passado, e nunca perdoara uma de suas desafortunadas noras por não a ter reconhecido numa foto pendurada na sala de estar.
Virginia foi a primeira a desviar o olhar.
— Só achei que talvez ele fosse preferir não ter muitas pessoas de fora na festa da filha. — A voz dela parecia estranha.
Mordeu um pedaço do bolo de coco e o mastigou meio sem graça, como se apenas fingisse comer.
Ela sabe. A ficha caiu direto na cabeça de Cecilia com um baque.
John-Paul dissera que ninguém sabia. Estava certo de que mais ninguém sabia.
Elas ficaram em silêncio por alguns minutos. Cecilia ouviu o zumbido da geladeira. Sentiu o coração acelerar. Virginia não poderia saber, não é? Ela engoliu em seco: um súbito e involuntário sorvo de ar.
— Conversei com Rachel sobre a filha dela — contou Cecilia. Parecia sem fôlego. — Sobre Janie. A caminho de casa. — Ela parou, respirando fundo para se acalmar. Virginia tinha deixado o bolo de coco de lado e procurava alguma coisa em sua bolsa. — Você se lembra de muita coisa sobre… quando aconteceu?
— Lembro-me muito bem — respondeu Virginia. Puxou um lenço da bolsa e assoou o nariz. — Os jornais adoraram a história. Publicaram páginas e páginas de fotos. Mostraram até uma foto do… — Ela apertou o lenço na mão e pigarreou. — Do rosário de contas. O crucifixo era de madrepérola.
O rosário de contas. John-Paul dissera que a mãe havia lhe emprestado o rosário dela porque ele tinha uma prova naquele dia. Ela devia tê-lo reconhecido, mas nunca dissera uma palavra sequer, nunca perguntara nada, assim não teria que ouvir a resposta, mas sabia. Com certeza sabia. Cecilia sentiu um calafrio subindo pelas suas pernas, como se estivesse ficando gripada.
— Mas tudo isso foi há muito tempo — disse Virginia.
— Foi. Embora deva ser muito doloroso para Rachel — comentou Cecilia. — Não saber. Não saber o que aconteceu.
Os olhos delas se encontraram em lados opostos da mesa. Dessa vez, Virginia não desviou o olhar. Cecilia conseguia ver minúsculas partículas de base em pó laranja grudadas nas linhas das rugas ao redor da boca da sogra. Do lado de fora da casa, ouvia os barulhos baixos que a vizinhança fazia no meio da semana: a tagarelice das cacatuas, o pio dos pardais, o zumbido distante de um soprador de folhas, uma porta de carro batendo.
— Embora isso não fosse mudar nada, não é? Não traria Janie de volta. — Virginia deu um tapinha no braço de Cecilia. — Você já tem coisas demais na cabeça para se preocupar com isso. Sua família vem em primeiro lugar. Seu marido e suas filhas. Eles vêm em primeiro lugar.
— Sim, claro — começou Cecilia, e parou abruptamente.
A mensagem fora alta e clara. A mancha do mal estava espalhada por toda a sua casa. E cheirava a óleo de gergelim.
Virginia deu um sorriso doce e tornou a segurar a fatia do bolo de coco entre os dedos.
— Não preciso lhe dizer isso, não é? Você é mãe. Faria qualquer coisa pelas suas filhas, assim como eu faria qualquer coisa pelos meus.