TRINTA E TRÊS
— Eu me lembro de Felicity. Ela era divertida. Raciocinava rápido. Um pouco assustadora.
Connor e Tess haviam ido para a cama de Connor. Ele tinha um colchão queen size comum, coberto com lençóis brancos lisos de algodão egípcio. (Ela se esquecera disso: o quanto ele adorava lençóis de qualidade, como aqueles que os hotéis usam.) Connor esquentara o que tinha sobrado da massa que fizera na noite anterior e os dois estavam sentados comendo na cama.
— Poderíamos ser civilizados e nos sentar à mesa — oferecera Connor. — Eu poderia preparar uma salada. Usar jogos americanos.
— Vamos continuar aqui — disse Tess. — Se não, posso acabar me lembrando de ficar constrangida com tudo isso.
— Bem pensado — concordou ele.
A massa estava muito boa. Tess comeu com vontade. Tinha aquela mesma voracidade de quando Liam era bebê e ela passava a noite inteira acordada amamentando.
Só que em vez de uma noite inocente alimentando o filho, ela acabara de ter duas relações sexuais animadas e bastante satisfatórias com um homem que não era o seu marido. Deveria ter perdido o apetite e não o recuperado.
— Então ela e seu marido estão tendo um caso — afirmou Connor.
— Não — retrucou Tess. — Apenas se apaixonaram. É tudo muito puro e romântico.
— Isso é horrível.
— Eu sei — disse Tess. — Só descobri na segunda-feira, e aqui estou eu.
Ela gesticulou com o garfo, indicando o quarto, ela mesma e sua nudez quase total. (Não estava usando nada além de uma camiseta de Connor, que ele pegara numa gaveta e lhe entregara, sem fazer comentário algum, antes de ir esquentar a massa. Pelo cheiro parecia estar limpa.)
— Comendo massa — completou Connor.
— Comendo uma massa deliciosa — acrescentou Tess.
— Felicity não era um tanto… — Connor procurou a palavra certa. — Como posso dizer isso sem parecer… Ela não era um tanto cheinha?
— Ela tinha obesidade mórbida — afirmou Tess. — Isso é relevante, porque este ano ela perdeu quarenta quilos e ficou muito bonita.
— Ah — disse Connor. Ele fez uma pausa. — Então o que você acha que vai acontecer?
— Não tenho ideia — respondeu Tess. — Semana passada eu achava que meu casamento era bom. Tão bom quanto um casamento pode ser. E, de repente, eles anunciaram isso. Fiquei em choque. Ainda estou. Mas, de novo, olhe para mim, três dias depois. Na verdade, dois dias. Estou com um ex-namorado… comendo massa.
— Às vezes, as coisas simplesmente acontecem — comentou Connor. — Não se preocupe com isso.
Tess terminou de comer e passou o dedo pela tigela.
— Por que você está solteiro? Sabe cozinhar, sabe fazer outras coisas — ela apontou vagamente para a cama — muito bem.
— Passei todos esses anos esperando por você. — Sua expressão estava séria.
— Não passou nada — disse Tess. Ela franziu a testa. — Quero dizer, não passou, passou?
Connor pegou a tigela vazia da mão dela e encaixou-a dentro da sua. Pôs as duas na mesinha de cabeceira. Depois se recostou em seu travesseiro.
— Na verdade, esperei mesmo você por um tempo — admitiu ele.
A alegria de Tess começou a diminuir.
— Desculpe-me, eu não tinha ideia…
— Tess — interrompeu Connor. — Relaxe. Foi há muitos anos, e nós nem namoramos tanto tempo assim. Foi a diferença de idade. Eu era um contador chato, enquanto você era jovem e estava pronta para se aventurar por aí. Mas, às vezes, eu imaginava como poderia ter sido.
Tess nunca imaginara. Nem uma vez sequer. Mal pensava em Connor.
— Então você nunca se casou? — perguntou ela.
— Morei com uma mulher durante alguns anos. Uma advogada. Nós dois estávamos querendo uma parceria e um casamento, acho. Mas aí minha irmã morreu e tudo mudou. Eu estava cuidando de Ben. Perdi o interesse pela contabilidade mais ou menos na mesma época em que Antonia perdeu o interesse por mim. E foi então que decidi estudar educação física.
— Mas continuo sem entender. Há um pai solteiro na escola de Liam em Melbourne, e as mulheres se amontoam em volta dele. É constrangedor de ver.
— Bem — falou Connor. — Nunca disse que elas não se amontoam.
— Então você apenas ficou galinhando por aí todos esses anos — concluiu Tess.
— Mais ou menos — concordou ele. Ia falar mais alguma coisa, mas se conteve.
— O que foi?
— Não. Nada.
— Diga.
— Só ia confessar uma coisa.
— Uma coisa picante? — arriscou Tess. — Não se preocupe, passei a ter uma mente bastante aberta desde que meu marido sugeriu que eu morasse na mesma casa que ele e sua amante.
Connor abriu um sorriso solidário para ela.
— Não tão picante assim. Só ia dizer que já faz um ano que tenho feito terapia. Tenho… como as pessoas dizem?… “trabalhado” algumas questões.
— Ah — murmurou Tess, preocupada.
— Você está parecendo meio assustada — disse Connor. — Não sou louco. Só tinha algumas questões que precisava… resolver.
— Questões importantes? — perguntou Tess, sem ter certeza se realmente queria saber.
Aquilo era para ser um descanso de todas as coisas sérias, uma escapadinha louca. A cabeça dela estava começando a soltar fumaça. (Tess tinha consciência de que já tentava definir aquilo, classificar a situação para torná-la aceitável. Talvez estivesse se aproximando da autodepreciação.)
— Quando nós namorávamos — começou Connor —, alguma vez lhe contei que fui a última pessoa a ver Janie Crowley com vida? A filha de Rachel Crowley.
— Sei quem ela era — disse Tess. — Tenho quase certeza de que você nunca me contou isso.
— Na verdade, sei que não — confessou Connor. — Porque nunca falei sobre isso. Quase ninguém sabia. Só a polícia. E a mãe de Janie. Às vezes, acho que Rachel Crowley acredita que fui eu. Ela me olha de um jeito intenso.
Tess sentiu um arrepio. Ele matou Janie Crowley e agora estava prestes a matar Tess e então todo mundo ficaria sabendo que ela havia usado a complicada situação romântica de seu marido para se jogar na cama de um ex-namorado.
— E foi você? — perguntou ela.
Connor ergueu os olhos, perplexo.
— Tess! Não! Claro que não!
— Desculpe-me. — Ela voltou a relaxar no travesseiro. É claro que não tinha sido ele.
— Meu Deus, não consigo acreditar que você poderia pensar…
— Perdão, perdão. Então quer dizer que Janie era sua amiga? Namorada?
— Eu queria que ela fosse minha namorada — contou Connor. — Estava muito a fim dela. Ela tinha ido à minha casa depois da escola e nós demos uns amassos na minha cama, então fiquei todo sério e disse: “Muito bem, isso quer dizer que você é minha namorada, certo?” Eu estava desesperado por um compromisso. Queria tudo assinado e selado. Minha primeira namorada. Só que ela ficou toda hesitante e falou: “Bem, não sei, ainda estou me decidindo.” Aquilo estava me enlouquecendo, mas aí, na manhã do dia em que ela morreu, Janie me contou que tinha se decidido. Eu ficara com a vaga, por assim dizer. Estava eufórico. Era como se tivesse ganhado na loteria.
— Connor. Sinto muito.
— Ela foi lá em casa naquela tarde, comemos peixe e batatas fritas no meu quarto e nos beijamos por umas trinta horas, mais ou menos. Depois eu a levei até a estação de trem e, na manhã seguinte, ouvi no rádio que tinham encontrado uma garota estrangulada no Wattle Valley Park.
— Meu Deus — exclamou Tess, em vão.
Ela se sentiu meio deslocada, do mesmo modo como ficara no outro dia, ao sentar-se com a mãe em frente à mesa de Rachel Crowley, para preencher o formulário de matrícula de Liam, enquanto pensava: A filha dela foi assassinada. Ela não conseguia relacionar a experiência de Connor com nada nem remotamente parecido em sua própria vida, e por isso não se sentia capaz de conversar com ele de um jeito normal.
Por fim, Tess disse:
— Não acredito que você nunca me contou nada disso quando estávamos juntos.
Mas, na verdade, por que ele deveria? Só namoraram por seis meses. Nem mesmo marido e mulher dividiam tudo. Ela nunca contara a Will sobre seu autodiagnóstico de ansiedade social. Ela encolhia os dedos dos pés, constrangida, só de pensar em contar a ele.
— Morei anos com Antonia antes de finalmente contar a ela — disse Connor. — Ela ficou ofendida. Parecíamos conversar mais sobre como ela ficou ofendida do que sobre o que de fato havia acontecido. Acho que deve ter sido por isso que ela terminou comigo. Minha incapacidade de compartilhar.
— Acho que as mulheres gostam de saber das coisas — justificou Tess.
— Há uma parte da história que nunca contei a Antonia — confessou ele. — Nunca contei a ninguém, até falar com a terapeuta. Minha “psicóloga”.
Ele fez uma pausa.
— Não precisa me contar — disse Tess, de um jeito nobre.
— Tudo bem, vamos falar sobre outra coisa — brincou Connor.
Tess deu um tapinha nele.
— Minha mãe mentiu por mim — admitiu ele.
— O que você quer dizer?
— Você nunca teve o prazer de encontrar minha mãe, não é? Ela morreu antes de nos conhecermos.
Ocorreu-lhe outra lembrança de seu namoro com Connor. Tess perguntara a ele sobre seus pais e ele explicara: “Meu pai nos abandonou quando eu era bebê. Minha mãe morreu quando eu tinha vinte e um anos. Era alcoólatra. É tudo o que tenho a dizer sobre ela.” “Problemas com a mãe”, dissera Felicity, quando Tess repetiu essa conversa para ela. “Saia correndo.”
— Minha mãe e o namorado falaram para a polícia que eu estava com eles em casa desde as cinco da tarde e durante toda a noite. Mas não era verdade. Eu estava em casa sozinho. Eles haviam saído para se embebedar em algum lugar. Foi uma surpresa, porque nunca pedi que mentissem por mim. Minha mãe simplesmente decidiu fazer isso. Foi automático. E ela adorou. Mentir para a polícia. Ela piscou para mim ao segurar a porta aberta para os policiais saírem. Piscou! Como se nós dois fôssemos cúmplices. Aquilo me fez sentir culpado. Mas o que eu poderia fazer? Não podia dizer a eles que minha mãe acabara de mentir por mim, porque isso daria a impressão de que ela achava que eu tinha algo a esconder.
— Mas isso não quer dizer que ela achou mesmo que tivesse sido você — reconheceu Tess.
— Depois que os policiais foram embora, ela ergueu um dedo e disse: “Connor, querido, não quero saber.” Como se estivéssemos num filme. Então falei: “Mãe, não fui eu.” E ela apenas pediu: “Sirva uma taça de vinho para mim, querido.” Depois disso, toda vez que ela enchia a cara, dizia: “Você me deve uma, seu bastardo ingrato.” Isso me deixou com uma eterna sensação de culpa. Quase como se tivesse sido eu. — Ele deu de ombros. — Enfim. Cresci. Minha mãe morreu. Nunca falei sobre Janie. Tentei ao máximo evitar pensar nela. Em seguida, minha irmã morreu, fiquei com Ben, e logo depois de me formar professor, vi que tinha uma vaga para trabalhar na St. Angela. Só no meu segundo dia fiquei sabendo que a mãe de Janie trabalhava lá.
— Deve ter sido estranho.
— Não nos encontramos com muita frequência. Tentei conversar com ela sobre Janie logo no começo, mas ela deixou claro que não queria papo. Bem. Comecei a lhe contar tudo isso porque você perguntou a razão para eu ainda estar solteiro. Minha terapeuta caríssima acha que estive sabotando inconscientemente as minhas relações porque não acredito que eu mereça ser feliz, por causa da culpa que sinto pelo que, na verdade, não fiz com Janie. — Ele abriu um sorriso envergonhado para Tess. — Então, aí está. Sou um homem bastante traumatizado. E não seu contador comum que se tornou professor de educação física.
Tess pegou a mão dele e entrelaçou os dedos dela nos de Connor. Olhou para suas mãos unidas, impressionada com o fato de estar segurando a mão de outro homem, embora apenas alguns momentos antes tivesse feito coisas que a maioria das pessoas teria considerado muito mais íntimas.
— Sinto muito — disse ela.
— Pelo quê?
— Sinto muito por Janie. E por sua irmã ter morrido. — Ela fez uma pausa. — E sinto muito mesmo por ter terminado com você daquele jeito.
Connor fez o sinal da cruz na cabeça dela.
— Eu a absolvo de seus pecados. Minha filha. Ou seja lá o que for que eles dizem. Já faz um tempo desde que me confessei pela última vez.
— Eu também — disse Tess. — Acho que você deveria me dar a penitência antes de me absolver.
— Aah, consigo pensar numa penitência, meu bem.
Tess riu. Soltou a mão dele.
— Eu tenho que ir.
— Assustei você com minhas “questões” — percebeu Connor.
— Não, não assustou. Só não quero que minha mãe fique preocupada. Ela vai ficar acordada me esperando e não sabe que vou chegar tarde. — De repente, ela se lembrou do motivo para eles terem se encontrado. — Ei, não conversamos sobre seu sobrinho. Você queria alguns conselhos profissionais, ou algo assim, não era?
Connor sorriu.
— Ben já arrumou emprego. Eu só queria uma desculpa para me encontrar com você.
— Sério? — Tess sentiu uma onda de felicidade. Havia algo melhor do que ser desejada? Isso não era tudo de que alguém precisava?
— É.
Eles se olharam.
— Connor… — começou ela.
— Não se preocupe — disse ele. — Não tenho nenhuma expectativa. Sei exatamente o que é isso.
— O que é isso? — perguntou Tess, interessada.
Ele fez uma pausa.
— Não tenho certeza. Vou ver com minha terapeuta e depois conto para você.
Tess bufou.
— Tenho mesmo que ir — repetiu.
Mas isso foi meia hora antes de ela enfim tornar a se vestir.