QUARENTA E TRÊS
Tess apertou os braços em volta da cintura de Connor enquanto a moto dele deslizava e se inclinava nas curvas. Os postes e as fachadas das lojas eram traços borrados de luz colorida em sua visão periférica. O vento rugia em seus ouvidos. A cada vez que eles arrancavam após parar no sinal, surgia um frio arrepiante na barriga, o mesmo que sentia quando estava num avião prestes a decolar.
— Não se preocupe, sou um motoqueiro de meia-idade, cauteloso e entediante — dissera-lhe Connor, ao ajustar o capacete para ela. — Fico abaixo do limite de velocidade. Ainda mais quando tenho uma carga valiosa.
Então ele baixou a cabeça e gentilmente bateu seu capacete no dela. Tess sentiu-se emocionada, querida e também idiota. Sem dúvida estava velha demais para batidinhas de capacete e outros flertes desse tipo. Era casada demais.
Ou talvez não.
Tentou se lembrar do que estava fazendo na noite da última quinta-feira, em Melbourne, quando ainda era a esposa de Will e a prima de Felicity. Tinha preparado muffins de maçã, recordou. Liam gostava de levá-los para comer de merenda de manhã na escola. E depois ela e Will haviam assistido à TV, com seus laptops no colo. Ela atualizara algumas ordens de serviço. Ele estivera trabalhando na campanha do xarope. Leram um pouco e foram para a cama. Espere. Não. Sim. Sim, definitivamente, sim. Fizeram sexo. Rápido, reconfortante e muito bom, como um muffin; nada parecido com sexo no corredor do apartamento de Connor, claro. Mas casamento era assim mesmo. O casamento era um muffin de maçã quentinho.
E durante toda aquela noite comum de quinta-feira, Will ficara pensando: Estou apaixonado por Felicity. Não quero Tess. Quero Felicity. Não quero esta mulher na minha cama. Quero outra.
Na mesma hora a dor se espalhou por todo o seu corpo, como uma rachadura no gelo. Ela apertou mais as pernas em volta de Connor e se inclinou para a frente, como se pudesse gravar seu corpo no dele. Quando pararam no sinal seguinte, Connor passou a mão para trás e acariciou a coxa dela, provocando-lhe uma súbita onda de prazer. Ocorreu a Tess que a dor que ela sentia por causa de Will e Felicity estava intensificando todas as sensações, por isso, o que era bom, como a inclinação da moto e a mão de Connor em sua coxa, ficava ainda melhor. Na última quinta-feira à noite, ela levava uma vidinha agradável, sem graça e sem sofrimento. Esta quinta-feira à noite lembrava a adolescência: estranhamente dolorosa e muito bonita.
Mas não importava o quanto doesse, ela não queria estar em casa em Melbourne, fazendo muffins, assistindo à TV e cuidando da área financeira da empresa. Era ali mesmo que queria estar, deslizando naquela moto, o coração disparado, para que ela soubesse que estava viva.
* * *
Já passava das nove da noite, e Cecilia e John-Paul estavam no quintal, sentados no gazebo próximo à piscina. Era o único lugar onde não corriam o risco de que os escutassem. Suas filhas tinham uma habilidade extraordinária de ouvir o que não deviam. De onde estava, Cecilia podia vê-las pela porta da varanda, seus rostos iluminados pela luz bruxuleante da TV. Era uma tradição que elas pudessem ficar acordadas até a hora que quisessem na primeira noite de um feriado, comendo pipoca e assistindo a filmes.
Cecilia desviou os olhos das meninas e fitou o azul cintilante de sua piscina que tinha o formato de um rim, com a forte iluminação submersa: o símbolo perfeito da glória suburbana. Exceto por aquele barulho estranho e intermitente, que parecia um bebê engasgando, vindo do filtro. Ela podia ouvi-lo bem naquele momento. Cecilia pedira a John-Paul que desse uma olhada nisso semanas antes de ele viajar para Chicago e, embora não o tivesse feito, ele ficaria furioso se ela chamasse algum técnico para consertar o filtro. Indicaria falta de confiança nas habilidades dele. É claro que quando ele finalmente desse uma olhada, veria que não era capaz de consertar, e ela teria que chamar o técnico de qualquer jeito. Era frustrante. Por que isso não tinha feito parte do ridículo programa de redenção dele? Fazer imediatamente o que minha mulher pedir, para que ela não se sinta uma chata.
Ela gostaria de estar ali fora tendo uma discussão comum com John-Paul sobre o maldito filtro da piscina. Mesmo uma discussão comum muito séria, na qual eles acabavam magoados, seria muito melhor do que aquela permanente sensação de terror. Ela podia sentir isso em toda parte: na barriga, no peito, até sua boca tinha um gosto terrível. O que aquilo estava fazendo com a sua saúde?
Ela limpou a garganta.
— Preciso lhe dizer uma coisa.
Ela ia contar o que Rachel Crowley lhe disse hoje sobre ter encontrado uma nova evidência. Como ele reagiria? Ficaria assustado? Fugiria? Se tornaria um foragido?
Rachel não tivera a oportunidade de lhe explicar qual era exatamente a natureza daquela evidência porque se distraíra com Cecilia derramando o chá, e Cecilia entrara em tamanho estado de pânico que não lhe ocorrera perguntar. Deveria ter perguntado, percebia agora. Poderia ser útil saber. Ela não estava se saindo muito bem em seu novo papel de esposa de um criminoso.
Rachel não teria como saber para quem a evidência apontava, ou não teria contado a Cecilia. Não é? Era tão difícil pensar com clareza.
— O que foi? — perguntou John-Paul.
Ele estava sentado no banco de madeira em frente ao dela, usando calça jeans e um suéter de lã listrado que as meninas haviam dado de presente para ele no último Dia dos Pais. Ele se inclinou para a frente, as mãos pendendo soltas entre os joelhos. Havia algo estranho em seu tom de voz. Era daquele jeito suave, porém muito tenso, que ele respondia a uma das meninas quando estava começando a ter uma daquelas suas enxaquecas e ainda tinha esperança de que ela não o dominasse.
— Está começando a ter uma enxaqueca? — perguntou Cecilia.
Ele balançou a cabeça.
— Estou bem.
— Que bom. Escute, hoje, durante o Desfile de Chapéus de Páscoa, vi…
— Você está bem?
— Estou — disse ela, impaciente.
— Não parece. Está péssima. É como se eu a tivesse deixado doente. — A voz dele tremeu. — A única coisa que sempre importou para mim era fazer você e as meninas felizes, e agora a coloquei nessa situação insuportável.
— É — concordou Cecilia. Ela fechou os dedos em volta das ripas do banco e olhou para as filhas quando o rosto delas se dissolveram juntos numa gargalhada por causa de algo que viam na TV. — “Insuportável” é uma boa palavra para descrever isso.
— Passei o dia inteiro no trabalho pensando em como poderia consertar isso. Como poderia tornar as coisas melhores para você. — Ele se aproximou e se sentou ao lado dela. Cecilia sentiu o agradável calor do corpo dele junto ao seu. — É óbvio que não posso melhorar nada. Não mesmo. Mas queria lhe dizer uma coisa: se você quiser que eu me entregue, farei isso. Não vou lhe pedir que carregue esse peso também, se não puder carregá-lo.
Ele pegou a mão da esposa e a apertou.
— Farei o que você quiser que eu faça, Cecilia. Se quiser que eu vá direto à polícia ou até Rachel Crowley, então farei isso. Se quiser que eu vá embora, se não puder suportar morar na mesma casa que eu, então irei. Direi às meninas que estamos nos separando porque… Não sei o que vou dizer a elas, mas vou assumir a culpa, é claro.
Cecilia sentia que todo o corpo de John-Paul tremia. A palma da mão dele suava em cima da dela.
— Quer dizer que você está disposto a ir para a cadeia. E a sua claustrofobia? — perguntou ela.
— Vou ter que lidar com isso — disse ele. A palma da sua mão ficou ainda mais suada. — É só coisa da minha cabeça, de qualquer jeito. Não é real.
Com uma súbita repulsa, ela empurrou a mão dele para longe e se levantou.
— Então por que não lidou com isso antes? Por que não se entregou antes mesmo que eu o conhecesse?
Ele ergueu as mãos e a encarou com uma expressão contorcida, implorante.
— Não consigo responder isso, Cecilia. Já tentei explicar. Sinto muito…
— E agora está dizendo que sou eu que tenho que decidir. Não tem mais nada a ver com você. Agora é minha responsabilidade se Rachel terá ou não um desfecho para o caso da filha! — Ela pensou na migalha azul no lábio de Rachel e estremeceu.
— Não se você não quiser assim! — John-Paul estava quase chorando. — Eu estava tentando facilitar as coisas para você.
— Não percebe que está fazendo com que isso passe a ser problema meu? — gritou Cecilia, mas a raiva já estava se dissipando, sendo substituída por uma grande onda de desespero.
A oferta de John-Paul de confessar não fazia diferença. Não mesmo. Ela já era cúmplice. No momento em que abriu aquela carta, tornou-se cúmplice.
Cecilia deixou-se afundar no banco do outro lado do gazebo.
— Estive com Rachel Crowley hoje — contou ela. — Fui lhe entregar uma encomenda de Tupperware. Ela disse que encontrou uma nova evidência que indicava quem era o assassino de Janie.
John-Paul levantou a cabeça em um movimento brusco.
— Não é possível. Não há nada. Não há evidência alguma.
— Só estou lhe contando o que ela me falou.
— Muito bem então. — John-Paul oscilou um pouco, como se estivesse se sentindo tonto, e fechou os olhos depressa. Tornou a abri-los. — Talvez a decisão seja tomada por nós. Por mim.
Cecilia tentou lembrar-se das palavras exatas de Rachel. Algo como “encontrei uma coisa que prova quem matou Janie”.
— Essa evidência que ela encontrou — disse Cecilia, de repente — pode incriminar outra pessoa.
— Nesse caso, terei que me entregar — falou John-Paul simplesmente. — É óbvio que faria isso.
— É óbvio — repetiu Cecilia.
— Só parece improvável — comentou ele, soando exausto. — Não é? Depois de todos esses anos?
— Parece — concordou Cecilia.
Ela o observou levantar a cabeça e se virar para os fundos da casa, para ver as meninas. No silêncio, o barulho do filtro da piscina ficou mais alto. Não parecia mais um bebê engasgando. Parecia a respiração ofegante de algo monstruoso, como um ogro dos pesadelos das crianças, rastejando-se pela casa.
— Vou dar uma olhada nesse filtro amanhã — disse John-Paul, com os olhos fixos nas filhas.
Cecilia não falou nada. Sentou-se e respirou no ritmo do ogro.