QUARENTA E SEIS
SEXTA-FEIRA SANTA
— Suco! — pediu Jacob.
— O que você quer, querido? — sussurrou Lauren.
Suco, pensou Rachel. Ele quer suco. Você é surda?
Havia acabado de amanhecer, e Rachel, Rob e Lauren estavam reunidos num pequeno círculo sinistro no Wattle Valley Park, esfregando as mãos e batendo os pés, enquanto Jacob ziguezagueava entre as pernas deles. Estava todo encasacado, com uma parca que Rachel suspeitava ser pequena demais para ele, os braços finos aparecendo pela beira da manga como os de um boneco de neve.
Como era de se esperar, Lauren estava usando um trench coat, embora seu rabo de cavalo não estivesse tão perfeito quanto de costume — alguns fios escapavam por baixo do arco — e ela parecia cansada. Carregava uma única rosa vermelha, o que para Rachel era uma escolha idiota. Parecia aquelas rosas envoltas em papel celofane que os rapazes davam às garotas no Dia dos Namorados.
Rachel estava segurando um pequeno ramalhete de ervilhas-de-cheiro que colhera em seu próprio quintal e amarrara com uma fita de veludo verde, como a que Janie usava quando era muito pequena.
— Você deixa as flores onde ela foi encontrada? Ao pé do escorrega? — perguntara Marla certa vez.
— Claro, Marla, eu as deixo ali para serem esmagadas por centenas de pezinhos — respondera Rachel.
— Ah, é, tem razão — dissera Marla, nem um pouco ofendida.
Nem era o mesmo escorrega. Todos os equipamentos velhos e feios de ferro haviam sido substituídos por coisas modernas, de aparência futurista, iguais às do parque perto da casa de Rachel, aonde ela levava Jacob, e o chão tinha uma superfície que parecia de borracha e conferia aos passos um leve saltitar como o dos astronautas.
— Suco! — repetiu Jacob.
— Não estou entendendo, querido. — Lauren afastou o rabo de cavalo de um dos ombros. — Cuco? Você viu um passarinho?
Pelo amor de Deus. Rachel suspirou. Ela nunca sentira de fato a presença de Janie quando estava ali. Não conseguia imaginar a filha naquele lugar, não podia imaginar como havia chegado ali. Nenhum dos amigos de Janie sabia que ela frequentava aquele parque. É óbvio que fora um garoto que a levara para lá. Um garoto chamado Connor Whitby. O mais provável era que ele quisesse sexo e Janie tinha dito não. Ela deveria ter feito sexo com ele. A culpa era de Rachel, por falar tanto sobre isso, como se perder a virgindade fosse uma coisa muito grave. Morrer era infinitamente pior. Deveria ter dito à filha: “Faça sexo com quem quiser, Janie. Mas faça com segurança.”
Ed nunca quisera ir ao parque onde ela fora encontrada. “Que merda de sentido há nisso?”, perguntava ele. “Mas agora é tarde demais para ir lá, não é? Ela não está mais lá, porra!”
Porra, você estava certo, Ed.
Mas Rachel achava que devia a Janie passar lá ano após ano, com seu ramalhete de flores, para pedir desculpas por não ter estado lá na hora, mas estava agora, para imaginar seus últimos momentos, homenagear o último lugar em que ela estivera viva, o último lugar em que ela havia respirado. Se ao menos Rachel pudesse estar lá para vê-la naqueles últimos minutos preciosos, para absorver a visão daquelas pernas e braços ridiculamente compridos e finos, a beleza estranha de seu rosto anguloso. Era uma ideia estúpida, porque, se tivesse estado lá, Rachel teria se ocupado de salvar a vida da filha, mas, ainda assim, desejava ter estado, mesmo que não fosse capaz de mudar o desfecho.
Talvez Ed estivesse certo. Não fazia sentido passar lá todos os anos. Parecia ainda mais sem sentido dessa vez, com Rob, Lauren e Jacob ao seu redor, como se esperassem algo acontecer, que a diversão começasse, que o ônibus chegasse.
— Suco! — disse Jacob.
— Desculpe, querido, mas não estou entendendo — falou Lauren.
— Ele quer suco — explicou Rob, de um jeito tão grosseiro que Rachel quase sentiu pena de Lauren. Rob soara igualzinho a Ed quando ficava de mau humor. Os homens da família Crowley eram tão ranzinzas. — Não temos suco, amigão. Aqui. Trouxemos sua garrafa d’água. Beba um pouco.
— Nós não bebemos suco, Jakey — disse Lauren. — Faz mal para os dentes.
Jacob segurou a garrafa d’água com as mãozinhas gorduchas, jogou a cabeça para trás e bebeu, sedento, lançando a Rachel um olhar que dizia: Não vamos contar a ela sobre todo aquele suco que tomo na sua casa.
Lauren apertou o cinto do seu trench coat e se virou para Rachel.
— Você costuma dizer alguma coisa? Ou, humm…
— Não, apenas penso nela — respondeu Rachel num tom seco, como quem diz “cale a boca”. Ela certamente não se permitiria extravasar seus sentimentos na frente de Lauren. — Podemos ir daqui a pouco? Está um frio terrível aqui. Não queremos que Jacob acabe ficando gripado.
Foi ridículo levar Jacob até lá. Naquele dia. Àquele parque. Talvez no futuro ela fizesse alguma outra coisa para marcar a data da morte de Janie. Visitar o túmulo, como faziam no dia do aniversário dela.
Ela apenas teria que superar aquele dia sem fim e então estaria acabado por mais um ano. Vamos com isso. Andem, minutos. Passem logo até a meia-noite.
— Você quer dizer alguma coisa, querido? — perguntou Lauren a Rob.
Rachel quase disse “é claro que ele não quer”, mas se deteve a tempo. Virou-se para Rob e viu que ele olhava para o céu, esticando o pescoço como um peru, trincando os dentes fortes e brancos, as mãos desajeitadas apertadas junto à barriga, como se estivesse tendo uma convulsão.
Ele nunca esteve aqui, percebeu Rachel. Ele nunca veio ao parque desde que a encontraram. Ela deu um passo na direção de Rob, mas Lauren chegou primeiro e pegou a mão dele.
— Tudo bem — murmurou ela. — Você está bem. Apenas respire, querido. Respire.
Rachel observou, impotente, aquela jovem mulher que ela não conhecia de verdade confortar seu filho, a quem ela também não devia conhecer muito bem. Viu como Rob se inclinou na direção da esposa, e pensou quão pouco sabia, porque nunca quisera realmente saber, do sofrimento do filho. Será que ele acordava Lauren com pesadelos terríveis? Conversava baixinho com ela no escuro, contando-lhe histórias sobre a irmã?
Rachel sentiu uma mãozinha em seu joelho e olhou para baixo.
— Vovó — disse Jacob. Ele fez um gesto, chamando-a.
— O que foi? — Ela se abaixou e levou a mão em concha ao ouvido.
— Suco — sussurrou ele. — Por favor?
* * *
A família Fitzpatrick dormiu até tarde. Cecilia foi a primeira a acordar. Esticou a mão para pegar seu iPhone que estava na mesinha de cabeceira e viu que eram nove e meia. A luz cinzenta da manhã entrava pela janela e inundava o quarto.
A Sexta-feira Santa e o Boxing Day, o dia seguinte ao Natal, eram as datas mais importantes do ano, quando nunca marcavam nada. No dia seguinte, ela estaria frenética preparando o almoço de Páscoa, mas hoje não havia convidados, dever de casa, correria nem compras a fazer. O ar estava frio, a cama, quente.
John-Paul matou a filha de Rachel Crowley. O pensamento alojou-se em seu peito, apertando seu coração. Nunca mais ela ficaria na cama na Sexta-feira Santa de manhã, relaxando pela graça de não ter nada a fazer e nenhum lugar para onde ir, porque, pelo resto da vida, sempre, sempre haveria alguma coisa para fazer. Uma confissão guardada. Um segredo horrível.
Ela estava deitada de lado, de costas para John-Paul. Sentia o peso e o calor do braço dele na sua cintura. Seu marido. Seu marido, o assassino. Será que ela deveria saber? Deveria ter adivinhado? Os pesadelos, as enxaquecas, as vezes em que ele se mostrava tão… teimoso e estranho. Não faria diferença alguma, mas de certa forma fazia com que ela se sentisse negligente. “Ele é assim”, dizia a si mesma. Continuava repassando lembranças de seu casamento, à luz do que sabia agora. Lembrou-se, por exemplo, de como ele se recusara a ter um quarto filho. “Vamos tentar um menino”, sugerira Cecilia quando Polly ainda era bebê, ciente de que os dois ficariam bastante felizes se acabassem tendo quatro meninas. John-Paul a assustara ao se recusar terminantemente a pensar no assunto. Aquilo devia ser mais um exemplo de sua autopunição. Na verdade, ele devia ser louco para ter um menino.
Pense em outra coisa. Talvez ela devesse se levantar e começar a preparar o almoço de domingo. Como iria lidar com todos aqueles convidados, toda aquela conversa e toda aquela felicidade? A mãe de John-Paul se sentaria em sua poltrona favorita, sentindo-se muito correta, sendo bajulada, guardando o segredo. “Foi há tanto tempo”, dissera ela. Mas, para Rachel, devia parecer que tinha sido ontem.
De repente, Cecilia lembrou que Rachel comentara que hoje era o aniversário da morte de Janie. Será que John-Paul sabia disso? Provavelmente não. Ele era péssimo com datas. Não se lembrava nem do próprio aniversário de casamento se ela não o avisasse; por que memorizaria a data em que matou uma garota?
— Meu Deus — disse ela baixinho para si mesma, ao sentir todos os sintomas de sua nova doença voltarem: a náusea, a dor de cabeça.
Ela precisava se levantar. De algum modo, precisava escapar daquilo. Mexeu-se para se livrar das cobertas e sentiu John-Paul apertar mais o braço em volta dela.
— Vou me levantar — disse ela, sem se virar para ele.
— Como você acha que ficaríamos, em termos financeiros? — perguntou ele, próximo do pescoço dela. Sua voz saiu rouca, como se ele estivesse muito gripado. — Se eu for mesmo… sem o meu salário? Teríamos que vender a casa, certo?
— Nós sobreviveríamos — respondeu Cecilia, direta.
Ela cuidava das finanças. Sempre cuidara. John-Paul ficava feliz em ignorar as contas e as prestações da hipoteca.
— É mesmo? Sobreviveríamos? — Ele parecia duvidar.
Os Fitzpatrick eram relativamente ricos, e John-Paul crescera com a expectativa de se tornar melhor do que a maioria das pessoas que conhecia. Se havia dinheiro envolvido, era natural que ele presumisse que provinha dele. Cecilia não o tinha enganado de propósito a respeito de quanto dinheiro vinha ganhando nos últimos anos; apenas não tivera a oportunidade de abordar o assunto.
— Estava pensando que, se eu não estiver por aqui, poderíamos contratar um dos filhos de Pete para prestar alguns serviços para você. Como limpar as calhas. Isso é muito importante. Não pode deixar para lá, Cecilia. Ainda mais na época dos incêndios florestais. Vou ter que fazer uma lista. Não paro de me lembrar de coisas.
Ela ficou deitada, imóvel. Seu coração batia acelerado. Como era possível? Era um absurdo. Não podia ser. Eles estavam mesmo na cama, conversando sobre a possibilidade de John-Paul ser preso?
— Queria muito que fosse eu a ensinar as meninas a dirigir — disse ele. Sua voz falhou. — Elas têm que aprender como se virar em pistas molhadas. Você não sabe frear direito quando o chão está molhado.
— Sei, sim — protestou Cecilia.
Ela se virou para encará-lo e viu que ele soluçava, o rosto contorcido de um jeito horrível. Ele virou a cabeça para enterrar o rosto no travesseiro, como se quisesse esconder as lágrimas.
— Sei que não tenho direito. Nenhum direito de chorar. Só não consigo me imaginar sem vê-las todos os dias de manhã.
Rachel Crowley nunca mais vai ver a filha dela.
Mas ela não conseguia endurecer seu coração o suficiente. A parte dele de que mais gostava era justo a do pai que amava as filhas. As crianças haviam unido os dois de uma forma que ela sabia que nem sempre acontecia com outros casais. Dividir histórias sobre elas — rindo e imaginando seu futuro — era um dos maiores prazeres de seu casamento. Ela se casara com John-Paul porque sabia o tipo de pai que ele se tornaria um dia.
— O que elas vão pensar de mim? — Ele pressionou o rosto com as mãos. — Vão me odiar.
— Está tudo bem — disse Cecilia. Aquilo era insuportável. — Tudo vai ficar bem. Não vai acontecer nada. Nada vai mudar.
— Não sei, mas agora que falei isso em voz alta, agora que você sabe, depois de todos esses anos, parece tão real, mais do que nunca. É hoje, você sabe. — Ele passou as costas da mão no nariz e olhou para ela. — Hoje é o dia. O dia em que fiz aquilo. Lembro todo ano. Odeio o outono. Mas este ano parece ainda mais chocante. Não consigo acreditar que era eu. Não acredito que fiz aquilo com a filha de alguém. E agora as minhas filhas, minhas filhas… elas têm que pagar.
O remorso assolou todo o seu corpo, como a pior dor do mundo. O instinto de Cecilia era aliviar isso, resgatá-lo, dar um jeito de acabar com a dor. Ela o acolheu junto de seu corpo como se fosse uma criança e sussurrou palavras tranquilizadoras:
— Shhh. Está tudo bem. Vai dar tudo certo. Não é possível que haja uma nova evidência depois de todos esses anos. Rachel deve ter se enganado. Vamos, vamos. Respire fundo.
Ele enterrou o rosto no ombro dela e Cecilia sentiu as lágrimas do marido ensoparem sua camisola.
— Vai ficar tudo bem — disse a ele.
Ela sabia que isso não podia ser verdade, mas, ao acariciar o pescoço de John-Paul, sentindo a linha reta de seu cabelo grisalho cortado com precisão militar, finalmente entendeu algo sobre si mesma.
Jamais pediria a ele para confessar.
Parecia que toda aquela coisa de vomitar na sarjeta e chorar na despensa tinha sido uma encenação, porque, desde que ninguém mais fosse acusado, ela guardaria o segredo dele. Cecilia Fitzpatrick, que era sempre a primeira a se apresentar como voluntária, que nunca se acomodava quando algo precisava ser feito, que sempre levava panelas de comida e abria mão de seu tempo, que sabia a diferença entre o certo e errado, estava pronta para virar a cara e olhar para o outro lado. Ela podia e iria permitir que outra mãe sofresse.
Sua bondade tinha limites. Poderia muito bem ter passado a vida inteira sem conhecê-los, mas agora sabia exatamente quais eram.