O art. 161 do Código Penal contém três crimes distintos: alteração de limites (caput), usurpação de águas (§ 1.º, inciso I) e esbulho possessório (§ 1.º, inciso II). Todos eles se enquadram na definição prevista no art. 61 da Lei 9.099/1995, atinente às infrações penais de menor potencial ofensivo, pois o máximo de pena privativa de liberdade cominada em abstrato é de 6 (seis) meses.
Além disso, os três delitos – alteração de limites, usurpação de águas e esbulho possessório – são, em regra, de ação penal privada. Com efeito, estatui o § 3.º do art. 161 do Código Penal: “Se a propriedade é particular, e não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa”. Conclui-se, portanto, a contrario sensu que, tratando-se de propriedade pública, ou então de crime cometido com emprego de violência, a ação penal será pública incondicionada. Em uma visão esquematizada:
Finalmente, nas três figuras penais, se houver utilização de violência para a execução do delito, opera-se a regra do concurso material obrigatório, de modo que ao sujeito serão imputados dois crimes, o relativo à usurpação e o emanado da violência (lesão corporal, homicídio etc.).
Com estas anotações introdutórias, passemos agora à análise separada de cada um dos delitos.
É o patrimônio, relativamente à propriedade e à posse legítima de bens imóveis.
O objeto material do crime delineado pelo art. 161, caput, do Código Penal pode tanto ser o tapume, o marco ou qualquer outro sinal de linha divisória. Em consonância com a diferenciação apresentada por Nélson Hungria:
Tapume, no sentido estrito que lhe atribui o art. 161, caput, é toda cerca (sebe viva ou seca, cerca de arame, tela metálica etc.) ou muro (de pedra, tijolos, adobes, cimento armado) destinado a assinalar o limite entre dois imóveis. Marco é toda coisa corpórea (pedras, piquetes, postes, árvores, tocos de madeira, padrões etc.) que, artificialmente colocada ou naturalmente existente em pontos da linha divisória de imóveis, serve, também, ao fim de atestá-la permanentemente (ainda que não perpetuamente). Não somente o tapume e o marco servem ao objetivo de indicação de limites, pois outros meios podem ser empregados ou utilizados, como, por exemplo, valas, regos, sulcos, trilhas, cursos d’água etc.230
A conduta criminosa consiste em suprimir ou deslocar tapume, marco ou qualquer outro sinal indicativo de linha divisória, de modo a tornar dúbios os limites do imóvel. Há dois núcleos: “suprimir” e “deslocar”.
Suprimir equivale a eliminar alguma coisa, fazendo-a desaparecer, enquanto deslocar significa mudar o local em que algo se encontrava originariamente. Como destaca Cezar Roberto Bittencourt no tocante ao núcleo “suprimir”:
(...) a ação de suprimir deve ser de apagar, fazer desaparecer por completo a demarcação da linha divisória, inviabilizando que se possa constatar onde esta se localizava. Por isso, não caracteriza supressão o simples ato de arrancar tapumes ou marcos de uma cerca, sem tapar os respectivos buracos existentes no solo, que são denunciadores da linha divisória. Ação como essa poderá, no máximo, caracterizar o crime de dano, ou mesmo de furto, na hipótese de haver subtração do material extraído.231
Com opinião diversa, manifesta-se Rogério Greco no sentido de que:
Não se exige, para a caracterização do delito em tela, que desapareçam, por completo, todos vestígios dos sinais anteriormente existentes. O mais importante, segundo o nosso raciocínio, é o elemento subjetivo com que atua o sujeito ativo. Se a sua finalidade era a de se apropriar de imóvel alheio, tentando “apagar” as linhas divisórias, não poderá ser responsabilizado por crime de dano ou mesmo de furto se sobraram alguns vestígios, pois que estaríamos modificando completamente o seu dolo, considerando um detalhe não exigido pela figura típica.232
Observe-se que os verbos “suprimir” e “deslocar” indicam um comportamento comissivo, um fazer por parte do agente. Nada obsta, contudo, a prática do delito por omissão imprópria (CP, art. 13, § 2.º), quando o sujeito tiver o dever jurídico de proteger o imóvel (exemplo: administrador de fazenda ou caseiro de uma chácara) e dolosamente não impedir sua apropriação total ou parcial por terceiro que suprime ou desloca linha divisória.
A conduta penalmente ilícita há de recair sobre coisa imóvel “alheia”. Por corolário, não há crime quando se tratar de imóvel daquele que suprime ou desloca o sinal divisório.
Trata-se de crime próprio, pois somente pode ser praticado pelo proprietário do imóvel contíguo àquele em que é realizada a alteração de limites.
Há discussão doutrinária acerca da possibilidade de o possuidor do bem limítrofe praticar o delito em apreço. Para os que defendem esta possibilidade, o fundamento jurídico encontra-se nos arts. 1.238 a 1.240 do Código Civil, que permitem a usucapião de bens imóveis.
Magalhães Noronha incluía, ainda, entre os sujeitos ativos do crime, o futuro comprador do imóvel, que poderia suprimir ou deslocar linhas divisórias, visando obter uma vantagem quando da aquisição do imóvel.233
É o proprietário ou possuidor do imóvel em que a conduta típica é realizada.
É o dolo. Reclama-se também um especial fim de agir, pois o agente efetua a supressão ou deslocamento para “apropriar-se, no todo ou em parte, de coisa imóvel alheia”. Na ausência deste elemento subjetivo específico, o fato poderá caracterizar outro delito, como dano (CP, art. 163), furto (CP, art. 155), fraude processual (CP, art. 347) ou exercício arbitrário das próprias razões (CP, art. 345), dependendo das circunstâncias do caso concreto e do móvel do crime.
Não se admite a modalidade culposa.
O crime é formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado. Consuma-se com a efetiva supressão ou deslocamento do tapume, marco ou outro sinal divisório, independentemente da apropriação total ou parcial do imóvel alheio, que funciona como exaurimento do delito.
Além disso, cuida-se de crime não transeunte, pois sua execução deixa vestígios de ordem material. A prova da materialidade do fato depende de exame pericial, na forma exigida pelo art. 158 do Código de Processo Penal.
É possível, tal como na hipótese do sujeito flagrado enquanto tentava deslocar o sinal demarcativo do imóvel vizinho à sua propriedade.
O crime é próprio (somente pode ser cometido pelo proprietário do imóvel vizinho àquele em que se realiza a alteração de limites); formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado (independe da lesão ao patrimônio da vítima); doloso; de forma livre (admite qualquer meio de execução); não transeunte (deixa vestígios materiais); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser praticado por uma só pessoa, mas admite o concurso); em regra plurissubsistente (a conduta criminosa pode ser fracionada em diversos atos); e instantâneo (a consumação ocorre em um momento determinado, sem continuidade no tempo).
É a inviolabilidade patrimonial imobiliária, no que se refere à utilização e gozo das águas por seu titular.
São as águas, consideradas parte do solo, nos termos do art. 79 do Código Civil: “São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente”.
As águas alheias podem ser públicas ou particulares, correntes ou estagnadas, perenes ou temporárias, nascentes ou pluviais, ou até mesmo subterrâneas.
A conduta criminosa consiste em “desviar” ou “represar”, em proveito próprio ou de outrem, águas alheias. Desviar significa mudar o rumo do curso d’água (exemplo: um fazendeiro altera o curso de um riacho, fazendo com que suas águas não mais banhem o imóvel vizinho), ao passo que represar tem o sentido de impedir que as águas corram normalmente (exemplo: um proprietário rural constrói uma grande lagoa para que as águas de um pequeno riacho não mais sirvam um imóvel alheio próximo).
Os núcleos “desviar” e “represar” evidenciam um comportamento positivo do agente. Nada impede, entretanto, a prática do delito por omissão, quando o sujeito ostentar o dever de agir (CP, art. 13, § 2.º) e dolosamente não impedir o resultado criminoso, tal como na hipótese do policial florestal que presencia a conduta criminosa e nada faz para evitar a usurpação de águas.
Evidencia-se pelo termo “alheias”: as águas alheias podem ser públicas ou particulares.
Não há crime quando se tratar de águas incorporadas ao imóvel de propriedade daquele as represa, conforme estabelece o art. 1.292 do Código Civil: “O proprietário tem direito de construir barragens, açudes, ou outras obras para represamento de água em seu prédio”.
O crime pode ser praticado por qualquer pessoa (crime comum).
É o proprietário ou possuidor do imóvel do qual as águas foram usurpadas, podendo se tratar de pessoa física ou jurídica.
É o dolo. Exige-se também um especial fim de agir, consistente na finalidade do agente em desviar ou represar águas alheias “em proveito próprio ou de outrem”. Com efeito, se o sujeito assim age unicamente para prejudicar a vítima, o crime será o de dano (CP, art. 163).
Não se admite a forma culposa.
Opera-se com o desvio ou represamento das águas alheias, independentemente do efetivo proveito próprio ou de terceiro e do prejuízo à vítima. O delito de usurpação de águas classifica-se como formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado.
Anote-se, também, que a figura prevista no art. 161, parágrafo único, inciso I, do Código Penal constitui-se em crime não transeunte, pois da sua prática sobram vestígios de ordem material. Portanto, a prova da materialidade do fato depende de exame pericial, na forma exigida pelo art. 158 do Código de Processo Penal.
É possível.
Cuida-se de crime comum (pode ser cometido por qualquer pessoa); formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado (independe da lesão ao patrimônio da vítima); doloso; de forma livre (admite qualquer meio de execução); não transeunte (deixa vestígios materiais); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser praticado por uma só pessoa, mas admite o concurso); em regra plurissubsistente (a conduta criminosa pode ser fracionada em diversos atos); e instantâneo (a consumação ocorre em um momento determinado, sem continuidade no tempo).
É o patrimônio, no tocante à propriedade e, especialmente, à posse legítima de um imóvel, bem como a integridade física e a liberdade individual da pessoa humana atingida pela conduta criminosa.
No esbulho possessório há dois objetos materiais: o imóvel invadido e a pessoa que suporta a violência ou a grave ameaça.
O imóvel esbulhado pode ser um terreno ou edifício, público234 ou particular. Terreno é a gleba de terra sem construção, enquanto edifício é a construção realizada com alvenaria, madeira ou outro material qualquer, em regra destinada à ocupação pelo ser humano, podendo ser um prédio, uma casa, um barracão ou algo análogo.
Em ambos os casos – terreno e edifício – é imprescindível tratar-se de imóvel alheio, por expressa previsão legal. E, mesmo se tivesse silenciado o legislador nesse sentido, não seria razoável falar em crime praticado contra si próprio pelo titular do bem jurídico penalmente tutelado, pois, como sabido, ninguém pode ser sujeito ativo e passivo de um só crime.
Convém destacar que, nada obstante o esbulho possessório normalmente ocorra em áreas rurais, é perfeitamente possível a prática do delito na zona urbana, tal como se dá na invasão de moradores de ruas e desabrigados em geral no tocante a terrenos, residências e edifícios abandonados, contra a vontade de quem de direito.
O núcleo do tipo penal é “invadir”, ou seja, ingressar à força em algum local, com o propósito de dominá-lo.
Em consonância com o art. 161, § 1.º, inciso II, do Código Penal, esta invasão pode ser executada mediante três meios distintos, a saber:
(a) violência à pessoa;
(b) grave ameaça; e
(c) concurso de mais de duas pessoas.
a) Violência à pessoa: também conhecida como vis absoluta, é o emprego de força física contra alguém, que pode ser o proprietário da área invadida ou pessoa diversa responsável pelo zelo do local (exemplos: caseiro de uma chácara, vigia de uma residência, porteiro de um edifício etc.)
A violência contra a coisa não caracteriza o delito.
Vale recordar que, na hipótese de o crime ser praticado com emprego de violência à pessoa, incide a regra do concurso material obrigatório, ou seja, ao agente serão imputados dois crimes, o relativo ao esbulho possessório e o produzido pela violência (lesão corporal, homicídio etc.). É o que se extrai do § 2.º do art. 161 do Código Penal.
Finalmente, o esbulho possessório cometido com violência à pessoa é crime de ação penal pública incondicionada, nos moldes previstos no art. 161, § 3.º, do Código Penal.
b) Grave ameaça: também denominada de violência moral ou vis compulsiva, é a intimidação (por palavras, escritos, gestos ou meios simbólicos) mediante a demonstração da intenção de causar a alguém um mal relevante, direta ou indiretamente, no momento atual ou em futuro próximo. O dispositivo legal fala em grave ameaça, isto é, promessa de provocação de grave dano, que deve ser idônea a incutir temor na vítima, e possível de realização. Prescinde-se da injustiça do mal prometido, ao contrário do que se dá no crime tipificado pelo art. 147 do Código Penal.
A ameaça não depende da presença do ameaçado: pode ser realizada mediante recado ou por escrito. Divide-se ainda em direta ou indireta, verificando-se esta última quando o mal prometido é endereçado a terceira pessoa, em relação ao qual o coagido encontra-se ligado por laços de parentesco ou de amizade.
Diversamente do que se verifica no roubo próprio (CP, art. 157, caput), a lei não utiliza a expressão “ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência”. A violência imprópria ou meio sub-reptício, portanto, não caracteriza o crime tipificado pelo art. 161, § 1.º, inciso II, do Código Penal.
Não se olvide, por outro lado, que o esbulho possessório perpetrado com grave ameaça, em propriedade privada, é crime de ação penal privada (CP, art. 161, § 3.º).
c) Concurso de mais de duas pessoas: a pluralidade de agentes desempenha o papel de elementar do tipo penal, e não de qualificadora, causa de aumento da pena ou agravante genérica, como ocorre em outros crimes. Não há dúvida nenhuma de que a multiplicidade de pessoas acarreta invasão forçada do imóvel alheio, mesmo se realizada sem violência à pessoa ou grave ameaça, pois torna muito mais difícil, senão impossível, a defesa do terreno ou edifício pelo seu titular. Denota-se, pois, uma presunção de violência.
Logo de início, fica claro que somente duas pessoas não são suficientes para a configuração do esbulho possessório. Exigem-se mais de duas pessoas. Mas quantas? Será que a lei se contenta com três pessoas? Ou serão imprescindíveis ao menos quatro envolvidos na empreitada criminosa? Há duas posições acerca do assunto:
1.ª posição: Bastam 3 (três) pessoas para o aperfeiçoamento do esbulho possessório, pois o tipo penal foi peremptório ao reclamar a presença de “mais de duas pessoas”. É o entendimento de Nélson Hungria.235
2.ª posição: Exigem-se no mínimo 4 (quatro) sujeitos envolvidos na prática do delito. Chega-se a esta conclusão mediante a seguinte interpretação do tipo penal: “invade (...) mediante concurso de mais de duas pessoas”, ou seja, há o sujeito que invade associado a pelo menos mais de duas pessoas, isto é, a pelo menos mais três pessoas. É o raciocínio de Magalhães Noronha:
Para que haja presunção de violência, é mister pratiquem o crime, nele intervenham quatro pessoas, no mínimo: uma (quem) que invade terreno ou edifício alheio, valendo-se do concurso de três outras (mais de duas). Se forem, pois, três pessoas ao todo as participantes do delito, não haverá a presunção de violência.236
Pode ser qualquer pessoa (crime comum), menos o proprietário do imóvel, uma vez que o tipo penal reclama seja a invasão efetuada em terreno ou edifício “alheio”. Como lembra Nélson Hungria:
Prédio alheio (particular ou público, rural ou urbano) é que não pertence, total ou parcialmente, ao agente. Assim, não comete o crime o proprietário-locador que invade o terreno ou edifício locado para excluir a posse do locatário, nem o condômino de prédio indiviso que invade a parte possuída por outro condômino.237
É o proprietário ou possuidor legítimo de um imóvel, bem como qualquer outro indivíduo (exemplo: um empregado ou policial) que seja atacado pela violência ou grave ameaça.
É o dolo, acompanhado de um especial fim de agir (elemento subjetivo específico), consubstanciado na expressão “para o fim de esbulho possessório”. Deveras, a finalidade do agente deve ser a ocupação total ou parcial do terreno ou edifício alheio. A invasão despida deste propósito constituirá mero ilícito civil, salvo no concernente à violência, contra a pessoa ou contra a coisa, que poderá caracterizar outro delito (exemplos: lesão corporal, homicídio, dano etc.).
Se o agente invade propriedade alheia apenas para contrariar seu titular, o delito será o de violação de domicílio (CP, art. 150). Ainda, se a invasão tiver o escopo de satisfazer pretensão, embora legítima, de alguém, restará delineado o crime de exercício arbitrário das próprias razões (CP, art. 345).
Nos últimos anos, as invasões de propriedades, especialmente as situadas em área rural, têm sido muito frequentes. Estas condutas são praticadas por um número elevado de pessoas e, não raramente, com emprego de grave ameaça ou violência à pessoa de fazendeiros, seus empregados e até mesmo de agentes de segurança pública.
Os invasores reúnem-se em grupos e constituem movimentos, reputando-os legítimos e fundados na má divisão de terras, rotuladas como improdutivas. Não raras vezes, seus integrantes são protegidos por governantes e parlamentares, o que colabora para que sejam ultrapassadas as barreiras de legalidade impostas pela ordem jurídica. Mas, repita-se, a questão da justiça social, de conceito extremamente vago e impreciso, é colocada em um patamar superior.
Para nós, cabe uma pergunta: estas invasões de propriedades são legítimas ou caracterizam esbulho possessório? E, se afirmativa a resposta, é possível falar na caracterização do delito de associação criminosa?
Duas posições se formaram sobre o tema:
1.ª posição: Não há crime, por se tratar de movimento social destinado a pressionar as autoridades a dinamizar a reforma agrária, expediente que tangencia a guerra revolucionária, perturba a ordem pública e importa em ilícito civil, mas não configura o delito de esbulho possessório, porque ausente o elemento subjetivo do tipo.238
Há decisão monocrática do Supremo Tribunal Federal neste sentido, lançada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, a qual, afastando os crimes de esbulho possessório e quadrilha ou bando, atualmente com a nomenclatura “associação criminosa”, reconhece a prática de outros crimes praticados por membros de movimentos de invasões de propriedades rurais, tais como furtos e roubos. Vale destacar o seguinte:
A tal conceito, de molde a afastar em tese a tipicidade das condutas, poder-se-ia ligar os esbulhos possessórios que, em si, consistem na expressão de movimento social, decorrente da clamorosa inércia estatal na promoção de um programa aceitável de reforma agrária. Não revelam tais condutas, em uma primeira análise, crimes. Esses, porém, repito, não são os únicos fatos narrados. Não se imputa aos integrantes do movimento o delito de quadrilha, que, de fato, não sucede, porque em sua origem não propende à prática de crimes, no que tem sua base fundada na possibilidade constitucional de associarem-se pessoas com o escopo de protesto e construção de uma sociedade economicamente mais justa. Mas, do relato, veem-se, também, a prática de furtos, roubo, cárcere privado, incêndio e porte ilegal de armas. Tais infrações, já aqui transbordantes dos limites largos com que se têm tratado o MST, justificam os pleitos formulados. Desbordam do que é aceitável na atuação tendente aos objetivos que se buscam por intermédio das invasões de terras.239
2.ª posição: As invasões de propriedades rurais (e também urbanas), ainda que amparadas em uma suposta busca incessante pela reforma agrária e regular distribuição de terras no Brasil, podem caracterizar crime de esbulho possessório. Há decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal nesta linha de raciocínio:
O esbulho possessório – mesmo tratando-se de propriedades alegadamente improdutivas – constitui ato revestido de ilicitude jurídica. – Revela-se contrária ao Direito, porque constitui atividade à margem da lei, sem qualquer vinculação ao sistema jurídico, a conduta daqueles que – particulares, movimentos ou organizações sociais – visam, pelo emprego arbitrário da força e pela ocupação ilícita de prédios públicos e de imóveis rurais, a constranger, de modo autoritário, o Poder Público a promover ações expropriatórias, para efeito de execução do programa de reforma agrária. – O processo de reforma agrária, em uma sociedade estruturada em bases democráticas, não pode ser implementado pelo uso arbitrário da força e pela prática de atos ilícitos de violação possessória, ainda que se cuide de imóveis alegadamente improdutivos, notadamente porque a Constituição da República – ao amparar o proprietário com a cláusula de garantia do direito de propriedade (CF, art. 5.º, XXII) – proclama que “ninguém será privado (...) de seus bens, sem o devido processo legal” (art. 5.º, LIV). – O respeito à lei e à autoridade da Constituição da República representa condição indispensável e necessária ao exercício da liberdade e à prática responsável da cidadania, nada podendo legitimar a ruptura da ordem jurídica, quer por atuação de movimentos sociais (qualquer que seja o perfil ideológico que ostentem), quer por iniciativa do Estado, ainda que se trate da efetivação da reforma agrária, pois, mesmo esta, depende, para viabilizar-se constitucionalmente, da necessária observância dos princípios e diretrizes que estruturam o ordenamento positivo nacional. – O esbulho possessório, além de qualificar-se como ilícito civil, também pode configurar situação revestida de tipicidade penal, caracterizando-se, desse modo, como ato criminoso (CP, art. 161, § 1.º, II; Lei nº 4.947/66, art. 20). (...) O respeito à lei e a possibilidade de acesso à jurisdição do Estado (até mesmo para contestar a validade jurídica da própria lei) constituem valores essenciais e necessários à preservação da ordem democrática. – A necessidade de respeito ao império da lei e a possibilidade de invocação da tutela jurisdicional do Estado – que constituem valores essenciais em uma sociedade democrática, estruturada sob a égide do princípio da liberdade – devem representar o sopro inspirador da harmonia social, além de significar um veto permanente a qualquer tipo de comportamento cuja motivação derive do intuito deliberado de praticar gestos inaceitáveis de violência e de ilicitude, como os atos de invasão da propriedade alheia e de desrespeito à autoridade das leis da República.240
Consequentemente, se há crime de esbulho possessório na invasão de propriedades urbanas e rurais, é perfeitamente possível a caracterização da associação criminosa, na forma traçada pelo art. 288 do Código Penal, quando três ou mais pessoas se associam, de forma estável e permanente, em organizações, movimentos ou qualquer que seja a denominação atribuída a tais grupos, para o fim de cometer crimes específicos, entre eles o tipificado pelo art. 161, § 1.º, III, do Código Penal.
Dá-se com a invasão do terreno ou edifício alheio, ainda que seu titular não seja privado da posse. O crime é formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado.
Cuida-se de crime instantâneo, mas, se a ocupação prolongar-se no tempo, com a presença do invasor ou de seus asseclas, adquire o rótulo de permanente.
É possível.
A competência para processo e julgamento do crime de esbulho possessório é, em regra, da Justiça Comum Estadual, mesmo na hipótese em que o imóvel foi construído com valores provenientes do Sistema Financeiro da Habitação. Na esteira da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
O esbulho possessório de residência construída mediante financiamento do Sistema Financeiro de Habitação, e de que trata o art. 9.º da Lei 5.741/1971, não atrai a competência da Justiça Federal, uma vez que não praticado em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou da Caixa Econômica Federal.241
Será competente a Justiça Comum Federal, todavia, quando o crime for praticado em detrimento dos interesses da União, suas autarquias ou empresas públicas, na forma prevista no art. 109, inciso IV, da Constituição Federal. Como já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça:
Configurada a prática de delito em detrimento de bem de empresa pública federal, compete à Justiça Federal o processo e julgamento da respectiva ação penal (art. 109, inciso IV, da Constituição da República).242
O esbulho possessório é crime comum (pode ser cometido por qualquer pessoa); formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado (independe da lesão ao patrimônio da vítima); doloso; de forma livre (admite qualquer meio de execução); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser praticado por um só indivíduo, com violência à pessoa ou grave ameaça, mas admite o concurso), e, eventualmente, plurissubjetivo, plurilateral ou de concurso necessário (quando o meio de execução é o concurso de pessoas); em regra plurissubsistente (a conduta criminosa pode ser fracionada em diversos atos); e instantâneo (a consumação ocorre em um momento determinado, sem continuidade no tempo) ou permanente (quando a violação da posse prolongar-se no tempo, por vontade do agente).
É o patrimônio, no tocante à posse ou a propriedade dos semoventes.
É o gado ou o rebanho. As palavras são sinônimas e indicam as reses em geral, mas o legislador as utilizou com finalidades diversas: gado diz respeito aos animais de grande porte (bovinos e equinos), ao passo que rebanho se relaciona aos de médio ou pequeno porte (suínos, caprinos e ovinos).
Só se caracteriza o delito quando a conduta criminosa atingir mais de um animal, pois o objeto material é coletivo. Não se configura o crime em apreço quando a supressão ou alteração alcança um único animal isoladamente considerado. Com efeito, a lei mencionou gado ou rebanho, reclamando a presença de duas ou mais reses.
O tipo penal contém dois núcleos: “suprimir” e “alterar”. Suprimir é eliminar ou fazer desaparecer, enquanto alterar equivale a modificar, transformar ou tornar irreconhecível marca ou sinal indicativo de propriedade de gado ou rebanho alheio.
Tais verbos revelam que o animal deve possuir uma prévia marcação relativa à sua propriedade, a qual vem a ser criminosamente suprimida ou alterada. Portanto, se o gado ou rebanho não está marcado, afasta-se a incidência do crime definido pelo art. 162 do Código Penal.
Não se exige o registro da marca ou sinal. Basta que seja conhecido pelas pessoas como relativo a determinado proprietário de animais.
A palavra “indevidamente” funciona como elemento normativo do tipo, e autoriza a conclusão no sentido de que só há crime quando o comportamento do agente for ilícito, espúrio, ou, como prefere a lei, indevido. Destarte, se houver supressão ou alteração legítima, em gado ou rebanho alheio, de marca ou sinal indicativo de propriedade, o fato será atípico, tal como se dá nas hipóteses em que ocorre a modificação da propriedade dos animais por meio de negócio jurídico válido (exemplos: compra e venda, doação etc.) ou há autorização judicial para este fim.
Pode ser qualquer pessoa (crime comum), salvo o proprietário dos animais, pois a lei se refere a gado ou rebanho “alheio”.
É o dono do gado ou do rebanho que tem sua marca ou sinal indicativo de propriedade suprimido ou alterado.
É o dolo, sem qualquer finalidade específica. O dolo deve englobar a consciência do agente quanto ao caráter indevido da supressão ou alteração de marca ou sinal indicativo da propriedade, com a finalidade de causar dúvida ou acobertar a verdadeira origem do animal.
Não se admite a modalidade culposa.
O crime se consuma com a supressão ou alteração da marca ou do sinal, sendo desnecessário o subsequente furto ou apropriação.243 Não importa se o proprietário dos animais suportou ou não prejuízo econômico. Basta, para fins de consumação do delito, que a supressão ou a alteração ocorra em um só animal para que se caracterize o crime, desde que a vontade do agente fosse atingir mais de uma res. É o que defende a doutrina amplamente dominante.
Roberto Delmanto, com posição contrária, sustenta:
A doutrina inclina-se no sentido de ser suficiente a alteração ou supressão em um só animal, com o que não concordamos, pois a lei emprega os coletivos gado e rebanho, além de a rubrica referir-se a animais. O CP costuma indicar o objetivo material de seus tipos no singular: “alguém” (arts. 121, 122, 130, 138), “coisa” (arts. 155, 156, 157, 163), “correspondência” (arts. 151, 152, 153), “local” (art. 166), “segredo” (art. 154) etc. Portanto, deve-se obedecer ao princípio hermenêutico de que não há palavras desnecessárias na lei. Se o CP, neste art. 162, emprega o plural, repetidamente, ao contrário de outros em que sempre usa o singular, não se pode, sem infração à regra da reserva legal, ampliá-lo de forma a incriminar a conduta quando ela é praticada em um só animal.244
Como o crime deixa vestígios (delito não transeunte), a prova da materialidade há de ser feita por exame de corpo de delito (CPP, art. 158).
É possível, tanto quando o agente, por circunstâncias alheias à sua vontade, inicia a conduta criminosa, mas não consegue suprimir ou alterar a marca ou sinal, bem como quando pratica integralmente o comportamento legalmente previsto, embora não faça com que a marca ou sinal original se torne irreconhecível.
A ação penal é pública incondicionada.
Trata-se de crime de médio potencial ofensivo. A pena máxima (3 anos) não autoriza a inserção do crime tipificado pelo art. 162 do Código Penal entre as infrações penais de menor potencial ofensivo. Mas a pena mínima (6 meses) faz com que o delito seja compatível com a suspensão condicional do processo, desde que presentes os demais requisitos elencados pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.
O crime é comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado (independe da lesão ao patrimônio da vítima); doloso; de forma livre (admite qualquer meio de execução); não transeunte (deixa vestígios materiais); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma só pessoa, mas admite o concurso); em regra plurissubsistente (a conduta criminosa pode ser fracionada em diversos atos); e instantâneo (a consumação ocorre em um momento determinado, sem continuidade no tempo).
O bem jurídico protegido pela lei penal é o patrimônio das pessoas físicas e jurídicas, indistintamente, aí se incluindo a propriedade e a posse legítima.
É a coisa alheia, imóvel ou móvel, sobre a qual incide a conduta criminosa. Frise-se: a coisa deve ser alheia. É atípico o comportamento de destruir, inutilizar ou deteriorar coisa própria, pois a condição de proprietário confere ao agente o direito de dar ao bem de cunho patrimonial o destino que melhor lhe aprouver.
Não há crime quando o dano recai sobre res nullius (coisa de ninguém) e res derelicta (coisa abandona), pois em tais hipóteses inexiste patrimônio a ser penalmente tutelado. Caracteriza-se o crime de dano, contudo, quando se tratar de res desperdita (coisa perdida), uma vez que ingressa no conceito de coisa alheia.
Tratando de animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos, há crime específico, tipificado pelo art. 32 da Lei 9.605/1998 – Lei dos Crimes Ambientais:
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1.º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
§ 2.º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.
No tocante ao dano envolvendo documentos (públicos ou privados), várias situações podem ocorrer:
a) se a conduta for praticada para impedir utilização do documento como prova de algum fato juridicamente relevante, o crime será o de supressão de documento (CP, art. 305);
b) se a conduta for cometida unicamente com o propósito de prejudicar o patrimônio da vítima, o crime será o de dano (CP, art. 163);
c) se o advogado ou procurador inutilizar, total ou parcialmente, documento ou objeto de valor probatório que recebeu em razão da sua qualidade, o crime será o de sonegação de papel ou objeto de valor probatório (CP, art. 356);
d) se o agente rasgar ou, de qualquer forma, inutilizar ou conspurcar edital afixado por ordem de funcionário público, ou então violar ou inutilizar selo ou sinal empregado, por determinação legal ou por ordem de funcionário público, para identificar ou cerrar qualquer objeto, o crime será o de inutilização de edital ou de sinal (CP, art. 336); e
e) se o agente inutilizar, total ou parcialmente, livro oficial, processo ou documento confiado à custódia de funcionário, em razão de ofício, ou de particular em serviço público, o delito será o de inutilização de livro ou documento (CP, art. 337).
O tipo penal contém três núcleos: “destruir”, “inutilizar” ou “deteriorar”. Destruir é eliminar fisicamente a coisa, extinguindo-a. Trata-se do dano físico total. Exemplos: incendiar um automóvel, quebrar uma vidraça etc.
Inutilizar, por sua vez, equivale a tornar uma coisa imprestável aos fins a que se destina. Esse núcleo foi previsto para suprir a lacuna das situações em que um bem não é destruído nem deteriorado fisicamente, mas não pode mais ser utilizado. Exemplos: retirar o motor de uma geladeira, fazer com que um fogão não acenda etc.
Deteriorar, finalmente, é estragar ou corromper parcialmente um bem, diminuindo-lhe a utilidade ou o valor. É imperiosa a ofensa ao patrimônio alheio, uma vez que o dano se insere entre os crimes contra o patrimônio. A conduta diz respeito ao dano físico parcial. Exemplos: riscar a lataria de um automóvel, quebrar a pulseira de um relógio, etc.
Nélson Hungria, com seu brilhantismo ímpar, faz a distinção e apresenta as notas características de cada um dos núcleos do crime de dano:
Na destruição, a coisa cessa de subsistir na sua individualidade anterior, ainda mesmo que não desapareça a matéria de que se compõe (ex.: matar uma rês, reduzir a cacos uma vidraça, cortar uma árvore). Em se tratando de coisas compostas (ex.: uma casa, uma ponte), sua demolição ou derribamento é destruição. Como tal também se entende, por força de compreensão, o fazer desaparecer uma coisa, de modo a tornar inviável a sua recuperação (ex.: atirando-a a um abismo impraticável). A destruição parcial, desde que acarrete a total imprestabilidade da coisa, é equiparada à destruição completa.
Na inutilização (no sentido restrito com que a lei emprega o vocábulo), a coisa não perde inteiramente a sua individualidade, mas é reduzida, ainda que temporariamente, à inadequação ao fim a que se destina (ex.: desarranjar as peças de um maquinismo, dispersar os tipos de uma caixa de composição).
Finalmente, com a deterioração, a coisa sofre um estrago substancial, mas sem desintegrar-se totalmente, ficando apenas diminuída na sua utilidade específica ou desfalcada em seu valor econômico (exemplo: mutilar os olhos de um cavalo, partir um solitário, tirar os ponteiros de um relógio). Com a deterioração não se confunde a simples conspurcação, desde que, bem entendido, não afete a individualidade ou substância da coisa.245
Vimos, portanto, que Hungria equipara à destruição o desaparecimento da coisa, quando sua recuperação for inviável. Há, entretanto, posições em sentido contrário, pois, como a lei limitou-se a falar em destruir, a incriminação da conduta de desaparecer despontaria como analogia in malam partem, de utilização proibida no Direito Penal. Para Guilherme de Souza Nucci:
Aliamo-nos à doutrina majoritária no sentido de que desaparecer não significa destruir, inutilizar ou deteriorar a coisa alheia, tendo havido uma falha na lei penal. Por furto também não há razão para punir o agente, tendo em vista que não houve o ânimo de apropriação. Assim, aquele que faz sumir coisa de seu desafeto, somente para que este fique desesperado à sua procura, responderá civilmente pelo seu ato.246
Trata-se de tipo misto alternativo, crime de ação múltipla ou de conteúdo variado: há um só crime quando o sujeito pratica mais de uma conduta contra o mesmo objeto material (exemplo: “A” risca a pintura de um automóvel alheio e no dia seguinte o incendeia). Mas esta situação, de maior gravidade, deve ser sopesada pelo magistrado na dosimetria da pena-base, em atenção às circunstâncias judiciais elencadas pelo art. 59, caput, do Código Penal.
O dano é crime de forma livre, compatível com qualquer meio de execução, inclusive com a omissão, desde que presente o dever de agir, nos moldes do art. 13, § 2.º, do Código Penal, como no exemplo em que um empregado propositadamente deixa de retirar um objeto eletrônico da chuva, com a intenção de danificá-lo, prejudicando o patrimônio do seu proprietário.
Discute-se se a pichação, com tintas ou produtos similares, configura o crime previsto no art. 163 do Código Penal, especialmente no tocante à conduta de “deteriorar”.
A Lei 9.605/1998 – Lei dos Crimes Ambientais –, com a redação conferida pela Lei 12.408/2011, instituiu, em seu art. 65, um crime específico para as pichações ou conspurcações efetuadas em edificações ou monumentos urbanos:
Art. 65. Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1.º Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de detenção e multa.
§ 2.º Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional.
Como a lei dos crimes ambientais refere-se exclusivamente às edificações e monumentos urbanos, conclui-se que, se a conduta for praticada em imóveis rurais (exemplo: a parede de uma casa de fazenda) ou em bens móveis (exemplo: na porta de um carro), estará caracterizado o crime de dano, de natureza genérica e residual, na forma definida pelo art. 163 do Código Penal, na modalidade deteriorar.
Qualquer pessoa (crime comum), menos o proprietário da coisa, pois o tipo penal contém a elementar “alheia”.
Contudo, se o proprietário danificar coisa própria, que se acha em poder de terceiro por determinação judicial ou convenção, a ele será imputado o subtipo de exercício arbitrário das próprias razões (CP, art. 346).
Além disso, tratando-se de bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, ou ainda de arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, a conduta de destruí-lo, inutilizá-lo ou deteriorá-lo, embora praticada pelo proprietário, subsume-se ao modelo descrito pelo art. 62 da Lei 9.605/1998 – Lei dos Crimes Ambientais. De fato, o tipo penal não reclama seja a coisa alheia.
Quanto à coisa comum, ou seja, pertencente a mais de uma pessoa, o condômino, coerdeiro ou sócio que a danificar responde pelo crime de dano, porque, a rigor, trata-se também de coisa alheia. Se, no entanto, a coisa for fungível e a danificação restringir-se à cota a que tem direito, exclui-se o delito, aplicando-se, por analogia in bonam partem, o disposto no § 2.º do art. 156 do Código Penal.247
Pode ser qualquer pessoa, desde que proprietário ou possuidor legítimo da coisa.
É o dolo. Não se admite a modalidade culposa, ou seja, não existe no Código Penal brasileiro o delito de dano culposo.248
Prescinde-se da intenção de lucro (animus lucrandi). Ao contrário, se esta finalidade estiver presente, afasta-se o crime tipificado pelo art. 163 do Código Penal. O dano deve ser um fim em si mesmo, isto é, a finalidade do agente há de ser unicamente destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia.
Se o dano constituir-se em meio para a prática de outro crime, ou então como qualificadora de outro delito, será por este absorvido. É o que se dá, exemplificativamente, no furto qualificado pela destruição de obstáculo (CP, art. 155, § 4.º, inc. I): o dano (crime-meio) é absorvido pelo furto (crime-fim).
Há polêmica acerca da necessidade de um especial fim de agir, consistente no animus nocendi, isto é, na vontade de causar prejuízo a outrem.
Para Nélson Hungria, “é necessário o concomitante propósito de prejudicar o proprietário. Tanto é inseparável do dolo, na espécie, o animus nocendi que, se o agente procede jocandi animo, contando com a tolerância do dominus, não comete crime de dano”.249
Discordamos desta posição. Com efeito, se há concordância do proprietário ou possuidor do bem destruído, inutilizado ou deteriorado, é óbvio que inexiste crime. Sequer há necessidade de falar em animus nocendi. O patrimônio é bem disponível, e seu titular pode dele abrir mão. Filiamo-nos, destarte, ao entendimento de Magalhães Noronha:
Portanto, não é exigível nenhum dolo específico no crime de dano. Basta o dolo genérico, isto é, a vontade e a consciência de destruir, inutilizar ou deteriorar a coisa alheia. É a conclusão a que chegamos e que nos parece exata, diante dos termos do art. 163.250
A consumação do crime de dano se verifica quando o agente efetivamente destrói, inutiliza ou deteriora a coisa alheia. O crime é material.
O dano é delito que deixa vestígios de ordem material (crime não transeunte). Logo, a materialidade do fato depende de prova pericial, a teor do que se extrai do art. 158 do Código de Processo Penal: “Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”.
É possível. Normalmente a conduta atinente ao delito de dano se desdobra em diversos atos (crime plurissubsistente), compatibilizando-se com o conatus.
Cumpre destacar, no entanto, que muitas vezes, em que pese o sujeito desejar a destruição total do bem, o crime já estará consumado com o resultado parcial. Deveras, na prática a destruição parcial pode acarretar a imprestabilidade da coisa, ou no mínimo, é capaz de representar a inutilização ou a deterioração da coisa alheia. Exemplo: “A” ateia fogo no carro de “B”, para destruí-lo. O Corpo de Bombeiros é chamado e consegue conter o incêndio, mas mesmo assim relevante parte do automóvel é atingida, sendo necessária uma cara reforma para recuperá-lo.
A tentativa somente estará delineada, portanto, quando não se produzir estrago significativo para o bem (exemplo: o fogo é apagado sem causar prejuízo ao automóvel), ou então na tentativa branca, é dizer, quando o objeto material não for atingido (exemplo: “A” atira uma pedra contra a vidraça da residência de “B”, mas não a acerta).
O dano simples é crime de ação penal privada, nos termos do art. 167 do Código Penal.
A pena máxima cominada ao dano simples é de 6 (seis) meses de detenção. Constitui-se em infração penal de menor potencial ofensivo: a competência é do Juizado Especial Criminal, é possível a composição dos danos civis e o delito segue o rito sumaríssimo, em consonância com as disposições aplicáveis da Lei 9.099/1995.
O crime é comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); material (depende da produção do resultado naturalístico, qual seja o efetivo dano à coisa alheia); doloso; de forma livre (admite qualquer meio de execução); não transeunte (deixa vestígios materiais); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma só pessoa, mas admite o concurso); em regra plurissubsistente (a conduta criminosa pode ser fracionada em diversos atos); e instantâneo (a consumação ocorre em um momento determinado, sem continuidade no tempo).
O art. 163, parágrafo único, do Código Penal elenca quatro qualificadoras inerentes ao crime de dano. Os limites da pena são alterados em abstrato. Em todas as hipóteses, a pena é de detenção, de seis meses a três anos, e multa, além da pena correspondente à violência. Esta última parte – “além da pena correspondente à violência” – é aplicável somente à qualificadora prevista no inciso I (“com violência à pessoa ou grave ameaça”), pois é somente nela que se verifica o emprego de violência à pessoa.
O dano qualificado não ingressa no rol das infrações penais de menor potencial ofensivo, pois sua pena máxima extrapola o limite de 2 (dois) anos. Cuida-se, contudo, de crime de médio potencial ofensivo, pois a pena mínima cominada em abstrato revela a compatibilidade do delito com a suspensão condicional do processo, na forma delineada pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.
Passemos à análise individualizada de cada uma das qualificadoras.
Ambas as formas de intimidação, violência e grave ameaça, são endereçadas à pessoa humana. Seria mais técnico, portanto, se a redação legal fosse “violência ou grave ameaça à pessoa”.
O fundamento da elevação da pena em abstrato reside no fato de se tratar, na forma qualificada, de crime pluriofensivo. Atinge dois bens jurídicos: o patrimônio, no tocante ao dano, e a integridade física ou a liberdade individual, relativamente à qualificadora. Por corolário, a vítima da grave ameaça ou violência à pessoa pode ser pessoa diversa da vítima do dano. É o que se dá, exemplificativamente, quando alguém ameaça o motorista particular do seu desafeto e, em seguida, danifica seu automóvel.
A grave ameaça ou violência à pessoa deve ser anterior ou concomitante ao dano. Em outras palavras, tais condutas funcionam como meios de execução do crime, isto é, são utilizadas para assegurar a danificação. Na visão do Superior Tribunal de Justiça:
Somente restará configurada a qualificadora prevista no art. 163, parágrafo único, inciso I, do CP, se for empregado violência ou grave ameaça à pessoa para a consecução do delito de dano. Vale dizer, a violência ou grave ameaça deve ser um meio para a prática do delito de dano, hipótese em que este será qualificado pelo modo no qual foi levado a efeito.251
De fato, a violência ou grave ameaça à pessoa posterior ao dano, e, portanto, prescindível para a danificação, não qualifica o crime. Estarão configurados, neste caso, dois crimes: dano simples (CP, art. 163, caput) em concurso material com lesão corporal (CP, art. 129) ou ameaça (CP, art. 147).
O crime de ameaça (CP, art. 147) é absorvido pelo dano qualificado (princípio da consunção). De outro lado, na hipótese de violência à pessoa, a lei determina expressamente o concurso material obrigatório, isto é, o sujeito responde pelo dano qualificado e pelo crime produto da violência (lesão corporal, homicídio, etc.).
A contravenção penal de vias de fato, nada obstante abra ensejo para a figura qualificada, resta absorvida pelo dano qualificado. Com efeito, o art. 21 do Decreto-lei 3.688/1941 – Lei das Contravenções Penais – é peremptório ao estatuir a pena de prisão simples, de 15 dias a 3 meses, “se o fato não constitui crime” (princípio da subsidiariedade expressa).
A violência contra a coisa não qualifica o crime de dano, pois nela já se incluem a destruição, a inutilização ou a deterioração, elementares do dano simples (CP, art. 163, caput).
Anote-se, finalmente, ser o dano qualificado pela violência ou grave ameaça à pessoa crime de ação penal pública incondicionada (CP, art. 167).
Esta qualificadora se legitima no maior perigo provocado pela conduta criminosa e apresenta a nota da subsidiariedade expressa, evidenciada pela expressão “se o fato não constitui crime mais grave”. Em síntese, somente incidirá o dano qualificado quando a lesão ao patrimônio alheio não caracterizar um delito mais grave, nem funcionar como meio de execução de um crime mais grave. Exemplo: “A” explode o barco de “B”, que estava vazio, em alto-mar. A ele será imputado o crime de dano qualificado. Se, entretanto, assim agir para matar “B”, o crime será o de homicídio qualificado (CP, art. 121, § 2.º, inc. III).
A substância inflamável ou explosiva que qualifica o dano há de ser empregada antes ou durante a execução do delito. Se posterior, não se aplica a qualificadora.
O dano qualificado pelo emprego de substância inflamável ou explosiva não se confunde com os crimes de incêndio (CP, art. 250) e de explosão (CP, art. 251). Naquele, o agente se limita a ofender o patrimônio alheio; nestes, há criação de perigo comum, ou seja, a um número indeterminado de pessoas, hipóteses em que se afasta o dano qualificado.
Substância inflamável é a que possibilita a rápida expansão do fogo (exemplos: gasolina, álcool, querosene, etc.). É de consignar que papéis, plásticos, madeiras, folhas secas e capins são combustíveis, mas não se enquadram no conceito de substância inflamável. Substância explosiva, por sua vez, é a capaz de provocar detonação, estrondo, em razão da decomposição química associada ao violento deslocamento de gases (exemplos: pólvora, dinamite, trinitrotolueno – TNT etc.).
No campo desta qualificadora, a ação penal é pública incondicionada (CP, art. 167).
A razão da existência desta qualificadora é o elevado interesse coletivo na preservação da coisa pública e do patrimônio de entidades vinculadas ao Poder Público. A própria natureza de tais bens, pertencentes a todas as pessoas, faz com que sejam sujeitos à utilização livre e genérica por qualquer indivíduo, de modo a torná-los mais vulneráveis à atuação predatória de vândalos e baderneiros em geral.
As lamentáveis e rotineiras depredações de telefones públicos (“orelhões”) e de meios de transporte coletivo (ônibus, trens, metrôs etc.) são exemplos que justificam a necessidade de tratamento penal mais severo em crimes de dano desta natureza, alicerçado nos princípios da indisponibilidade dos bens públicos e da supremacia do interesse público sobre o interesse privado. Afasta-se, consequentemente, a incidência do princípio da insignificância. Para o Supremo Tribunal Federal:
É inaplicável o princípio da insignificância quando a lesão produzida pelo paciente atingir bem de grande relevância para a população. Com base nesse entendimento, a 2.ª Turma denegou habeas corpus em que requerida a incidência do mencionado princípio em favor de acusado pela suposta prática do crime de dano qualificado (CP, art. 163, parágrafo único, III). Na espécie, o paciente danificara protetor de fibra de aparelho telefônico público pertencente à concessionária de serviço público, cujo prejuízo fora avaliado em R$ 137,00. Salientou-se a necessidade de se analisar o caso perante o contexto jurídico, examinados os elementos caracterizadores da insignificância, na medida em que o valor da coisa danificada seria somente um dos pressupostos para escorreita aplicação do postulado. Asseverou-se que, em face da coisa pública atingida, não haveria como reconhecer a mínima ofensividade da conduta, tampouco o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento. Destacou-se que as consequências do ato perpetrado transcenderiam a esfera patrimonial, em face da privação da coletividade, impossibilitada de se valer de um telefone público.252
A qualificadora é aplicável a todos os bens integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas pelo texto legal, ou seja, aos bens de uso comum do povo, aos bens de uso especial e aos bens dominicais.
O dispositivo legal não faz menção ao Distrito Federal, às autarquias, empresas públicas, fundações públicas e empresas permissionárias de serviços públicos. Conclui-se, portanto, que estará caracterizado dano simples na destruição, inutilização ou deterioração de bens integrantes do patrimônio destas entidades, uma vez que o princípio da reserva legal ou da estrita legalidade (CF, art. 5.º, inc. XXXIX e CP, art. 1.º) veda a utilização da analogia in malam partem em Direito Penal. Como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
A conduta de destruir, inutilizar ou deteriorar o patrimônio do Distrito Federal não configura, por si só, o crime de dano qualificado, subsumindo-se, em tese, à modalidade simples do delito. Com efeito, é inadmissível a realização de analogia in malam partem a fim de ampliar o rol contido no art. 163, III, do CP, cujo teor impõe punição mais severa para o dano “cometido contra o patrimônio da União, Estados, Municípios, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista”. Assim, na falta de previsão do Distrito Federal no referido preceito legal, impõe-se a desclassificação da conduta analisada para o crime de dano simples, nada obstante a mens legis do tipo, relativa à necessidade de proteção ao patrimônio público, e a discrepância em considerar o prejuízo aos bens distritais menos gravoso do que o causado aos demais entes elencados no dispositivo criminal.253
O termo “patrimônio” (“contra o patrimônio...”) engloba a propriedade e a posse legítima. Logo, há dano qualificado na conduta praticada contra os imóveis locados ou usados pelos entes descritos pelo art. 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal. É válido frisar: a lei fala em “patrimônio”, e não em “propriedade”.254
Nessa modalidade qualificada, o crime de dano é de ação penal pública incondicionada (CP, art. 167). Vale destacar, contudo, a ação penal privada no dano contra o patrimônio do Distrito Federal, pois não incide esta qualificadora, aplicando-se residualmente a figura definida no caput, com a legitimidade que lhe é inerente.
É frequente a destruição, deterioração ou inutilização das paredes e grades das celas por parte de detentos em busca da fuga dos estabelecimentos prisionais. Surge, então, uma polêmica. O preso que assim age comete o crime de dano qualificado pela lesão ao patrimônio público?
Formaram-se duas posições acerca do assunto. Vejamos.
1.ª posição: Há crime de dano qualificado (CP, art. 163, parágrafo único, inc. III), pois basta a destruição, inutilização ou deterioração de coisa alheia, prescindindo-se do fim de prejudicar o patrimônio alheio (animus nocendi). Pouco importa se o detento busca sua liberdade, pois não tem ele o direito de lesar o patrimônio alheio, especialmente no que diz respeito aos bens públicos. Como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal:
Comete o crime de dano qualificado o preso que, para fugir, danifica a cela do estabelecimento prisional em que está recolhido – Código Penal, art. 163, parág. único, III. O crime de dano exige, para a sua configuração, apenas o dolo genérico.255
2.ª posição: Não há crime de dano, pois o agente não quer danificar o patrimônio público. Falta-lhe o animus nocendi. Sua finalidade limita-se à busca da liberdade. É o entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça:
Conforme entendimento há muito fixado nesta Corte Superior, para a configuração do crime de dano, previsto no art. 163 do CPB, é necessário que a vontade seja voltada para causar prejuízo patrimonial ao dono da coisa (animus nocendi). Dessa forma, o preso que destrói ou inutiliza as grades da cela onde se encontra, com o intuito exclusivo de empreender fuga, não comete crime de dano.256
A qualificadora em apreço fundamenta-se no excessivo individualismo do agente, que se comporta em sociedade pensando somente em si próprio, sem qualquer tipo de solidariedade para com o próximo, e, para alcançar seus objetivos, ainda que escusos, não hesita em ofender o patrimônio alheio (motivo egoístico), bem como no desprezo exagerado aos bens das outras pessoas, causando a elas relevantes contratempos e vultosa diminuição patrimonial (prejuízo considerável para a vítima).
Motivo egoístico é uma especial forma de motivo torpe. O sujeito danifica o patrimônio alheio unicamente para alcançar uma vantagem pessoal, de natureza patrimonial ou extrapatrimonial. Exemplo: “A” destrói o carro de “B”, idêntico ao seu, com o propósito de ser a única pessoa da sua comunidade a possuir um automóvel de tal natureza.
Prejuízo considerável para a vítima é uma situação que deve ser analisada no caso concreto, levando-se em conta o valor do bem danificado e a situação econômico-financeira da vítima. Nesse sentido, o prejuízo inferior a um salário mínimo pode ser considerável para o chefe de família com baixa renda mensal, ao passo que um prejuízo milionário talvez seja desprezível para um afortunado.
Nessa qualificadora, o delito é de ação penal privada (CP, art. 167).
O crime tipificado pelo art. 164 do Código Penal, também denominado de pastoreio ilegítimo ou pastoreio abusivo, é uma modalidade específica de dano. O agente dolosamente introduz ou deixa animais em propriedade alheia, sem o consentimento de quem de direito, daí resultando prejuízo ao titular da área invadida.
É o patrimônio, mais precisamente a propriedade e posse do imóvel perante o dano causado pelos animais.
A finalidade precípua da lei é tutelar a propriedade rural, pois é neste local que o crime é normalmente cometido. Isto, contudo, não impede a proteção da propriedade urbana (exemplo: “A” introduz seu cavalo para pastar no jardim de uma casa na cidade, provocando prejuízo econômico ao seu morador), pois o tipo penal não condicionou o delito à sua prática na zona rural.
É a propriedade alheia em que os animais são introduzidos ou deixados.
Os núcleos do tipo são “introduzir” e “deixar”.
Introduzir equivale a fazer entrar, fazer penetrar, enquanto deixar significa abandonar ou não retirar. Na primeira hipótese, os animais são levados ou lhes é facilitado o ingresso em propriedade alheia. Em síntese, os animais são introduzidos criminosamente. Na segunda hipótese, os animais encontram-se ilegitimamente em propriedade alheia, e ali são deixados intencionalmente pelo dono ou responsável, isto é, o abandono é a nota marcante do delito.
Ambas as condutas devem referir-se a animais. Veja-se: a lei fala em “animais”. Questiona-se: há necessidade do plural, ou um só animal é idôneo à caracterização do crime tipificado pelo art. 164 do Código Penal?
Entendemos que a menção no plural efetuada pelo tipo penal é indicativa do gênero daquilo que não pode ser introduzido ou abandonado em propriedade alheia, sob pena de configuração do delito. Basta que a conduta seja cometida com apenas um animal, de pequeno ou grande porte, desde que resulte prejuízo, a ser avaliado no caso concreto. Exemplificativamente, uma só vaca colocada em um jardim certamente irá destruí-lo, ao passo que vários carneiros revelam-se inofensivos a uma grande fazenda. Como leciona Nélson Hungria:
Com o vocábulo animais (no plural), o texto legal quer apenas designar o genus, e não uma indispensável pluralidade: basta a introdução ou abandono de um só animal que seja. De outro modo, poderia ser iludida a incriminação, cuidando o agente de evitar que nunca estivesse introduzindo ou abandonando, em vezes sucessivas, mais de um animal.257
A expressão “sem consentimento de quem de direito” relaciona-se à esfera normativa do tipo penal.
Não é suficiente a introdução ou abandono de animais em propriedade alheia. É imprescindível que o agente o faça sem consentimento, isto é, sem autorização de quem de direito. Destarte, se presente a anuência, o fato será atípico, ainda que resulte prejuízo ao titular do imóvel.
Ao utilizar os vocábulos “quem de direito” o legislador admitiu a possibilidade de alguém, que não o proprietário do local, permitir a introdução ou abandono de animais no imóvel. É o que se dá, a título ilustrativo, com os administradores de fazendas e caseiros de propriedades rurais, que podem autorizar a pastagem do gado do vizinho por determinado período na gleba do seu patrão.
A superveniência de prejuízo, como decorrência da introdução ou abandono de animais em propriedade alheia, é indispensável à tipicidade do fato. Não basta a introdução ou o abandono, sendo fundamental que daí resulte relevante prejuízo econômico ao titular do imóvel.
O prejuízo deve ser analisado na situação concreta, levando-se em conta as condições do imóvel, sua extensão e produtividade, bem como a qualidade e a quantidade dos animais introduzidos ou abandonados.
Finalmente, é de observar que o prejuízo foi inserido na redação do art. 164 do Código Penal, classificando-se, pois, como elementar do tipo penal. Todavia, há autores, a exemplo de Heleno Cláudio Fragoso e Damásio E. de Jesus, que consideram o prejuízo uma condição objetiva de punibilidade, com o que não concordamos.
Em verdade, toda condição objetiva de punibilidade é exterior ao crime, está fora dele, não se confundindo com o juízo de tipicidade. Assim sendo, deve encontrar-se fora da relação causal com a conduta criminosa. E repita-se, no art. 164 do Código Penal o prejuízo integra a descrição típica, motivo pelo qual é seu elemento. Em consonância com o magistério de Giuseppe Bettiol acerca da distinção de uma previsão legal como condição de punibilidade ou elementar do crime:
Se ela se encontra em relação de pendência causal com a ação, no sentido que possa ser considerada como efeito, ainda que remoto da ação, tal evento não se poderá considerar condição de punibilidade, mas será elemento constitutivo do fato.258
Pode ser qualquer pessoa (crime comum), salvo o proprietário do imóvel, pois a lei reclama seja a propriedade alheia.
Se o proprietário do local introduz ou abandona animais em sua propriedade, prejudicando o locatário ou arrendatário, estará caracterizado crime de dano (CP, art. 163).
De outro lado, se o proprietário danificar coisa própria, que se acha em poder de terceiro por determinação judicial ou convenção, a ele será imputado o crime previsto no art. 346 do Código Penal.
Sujeito passivo é o proprietário do imóvel, bem como seu possuidor legítimo, pois ambos são ofendidos pela conduta criminosa. Como bem observado por Bento de Faria, a palavra “propriedade” não foi empregada pelo tipo penal como sinônima de domínio, mas com o objetivo de indicar o terreno do prédio rústico ou urbano, cultivado ou não, passível de ser danificado por animais.259
É o dolo, que deve se limitar à introdução ou abandono de animais, pelo agente, em propriedade alheia, com a consciência de que da sua conduta pode resultar prejuízo a outrem (dolo de perigo). Com efeito, se estiver presente o dolo de dano, isto é, se o sujeito quiser destruir, inutilizar ou deteriorar a propriedade alheia, valendo-se para tanto da introdução ou abandono de animais, estará configurado o crime de dano (CP, art. 163), com pena mais elevada.
Não se reclama nenhuma finalidade específica, nem se admite a modalidade culposa. Se a penetração ou abandono de animais emanarem de culpa, o dono responderá civilmente pelos prejuízos causados.
O delito se consuma com o prejuízo ao patrimônio de terceiro, ou seja, com a danificação total ou parcial da propriedade alheia (crime material).
A introdução ou abandono de animais é crime que deixa vestígios de ordem material (crime não transeunte), afigurando-se indispensável à prova da materialidade do fato a elaboração de exame de corpo de delito (CPP, art. 158).
É possível quando o agente tenta introduzir ou deixar animais em propriedade alheia, sem consentimento de quem de direito, sabedor que deste fato pode resultar prejuízo a outrem, mas não consegue fazê-lo por circunstâncias alheias à sua vontade.260
Trata-se de crime de ação penal privada (CP, art. 164).
O máximo de pena privativa de liberdade cominada em abstrato ao crime definido pelo art. 164 do Código Penal é 6 (seis) meses de detenção. Ingressa, portanto, no elenco das infrações penais de menor potencial ofensivo, razão pela qual é compatível com a composição dos danos civis e com o rito sumaríssimo, na forma prevista na Lei 9.099/1995.
O crime é comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); material (depende da produção do resultado naturalístico, qual seja a lesão ao patrimônio alheio); doloso; de forma livre (admite qualquer meio de execução); não transeunte (deixa vestígios materiais); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma só pessoa, mas admite o concurso); em regra plurissubsistente (a conduta criminosa pode ser fracionada em diversos atos); e instantâneo (a consumação ocorre em um momento determinado, sem continuidade no tempo).
Este crime foi tacitamente revogado pelo art. 62 da Lei 9.605/1998 – Lei dos Crimes Ambientais, cuja redação é a seguinte:
Art. 62. Destruir, inutilizar ou deteriorar:
I – bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial;
II – arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial:
Pena – reclusão, de um a três anos, e multa.
Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena é de seis meses a um ano de detenção, sem prejuízo da multa.
O art. 166 do Código Penal foi tacitamente revogado pelo art. 63 da Lei 9.605/1998 – Lei dos Crimes Ambientais, com a seguinte redação:
Art. 63. Alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida:
Pena – reclusão, de um a três anos, e multa.
O Código Penal, no capítulo V do Título II da Parte Especial, sob a rubrica “Da apropriação indébita”, elenca cinco crimes, a saber:
(a) apropriação indébita (art. 168, caput);
(b) apropriação indébita previdenciária (art. 168-A, acrescentado pela Lei 9.983/2000);
(c) apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza (art. 169, caput);
(d) apropriação de tesouro (art. 169, parágrafo único, inc. I); e
(e) apropriação de coisa achada (art. 169, parágrafo único, inc. II).
Em conformidade com o contido no art. 170 do Código Penal, a todas as modalidades de apropriação indébita é aplicável a regra traçada pelo seu art. 155, § 2.º: “Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa”.
É possível, portanto, a caracterização da apropriação (gênero) privilegiada, em qualquer das suas espécies. Para evitar a repetição desnecessária e cansativa, remetemos ao leitor ao contido no art. 155, item 2.4.1.16, no qual analisamos detalhadamente a figura do furto privilegiado.
Restam-nos, contudo, duas observações a serem lançadas acerca da apropriação privilegiada, concernentes ao princípio da insignificância e ao tratamento especial da apropriação indébita previdenciária.
Em primeiro lugar, convém destacar que a previsão legal do privilégio aos crimes de apropriação indébita não afasta a incidência, no tocante aos delitos definidos pelos arts. 168 e 169 do Código Penal, do princípio da insignificância.
Com efeito, o instituto do privilégio limita-se a permitir um tratamento penal menos severo ao condenado pela apropriação, mediante as seguintes alternativas colocadas à disposição do magistrado:
(a) substituição da pena de reclusão pela de detenção;
(b) diminuição da pena privativa de liberdade de um a dois terços; ou
(c) aplicação exclusiva da pena pecuniária.
Há punição, embora suavizada por expressa determinação legal.
De outro lado, o princípio da insignificância, compatível com os crimes de apropriação, importa na atipicidade do fato. Não pode ser imposta uma pena, pois opera-se a exclusão do comportamento humano das raias do Direito Penal. Como já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça:
O princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção do fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, consagrando os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima.
Indiscutível a sua relevância, na medida em que exclui da incidência da norma penal aquelas condutas cujo desvalor da ação e/ou do resultado (dependendo do tipo de injusto a ser considerado) impliquem uma ínfima afetação ao bem jurídico.
A apropriação indébita de uma escada, avaliada em R$ 50,00, a qual foi restituída à vítima, embora se amolde à definição jurídica do crime, não ultrapassa o exame da tipicidade material, mostrando-se desproporcional a imposição de pena privativa de liberdade, uma vez que a ofensividade da conduta se mostrou mínima; não houve nenhuma periculosidade social da ação; a reprovabilidade do comportamento foi de grau reduzido e a lesão ao bem jurídico se revelou inexpressiva.261
No crime de apropriação indébita previdenciária, prevê o art. 168-A, § 3.º, inciso II, do Código Penal: “É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que: II – o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais”.
Destarte, os requisitos exigidos pelo art. 170 do Código Penal para configuração do privilégio nos crimes de apropriação em geral, quais sejam primariedade do agente e pequeno valor da coisa, são aptos a autorizar, na apropriação indébita previdenciária, a concessão do perdão judicial.
Entretanto, é de anotar que para o perdão judicial na apropriação indébita previdenciária a lei reclama mais um requisito: o agente, além de primário, deve ostentar bons antecedentes.
Para o Superior Tribunal de Justiça, esta opção legislativa encontra fundamento em um dos mais relevantes princípios vetores do Direito Penal moderno:
O legislador, em respeito ao princípio da intervenção mínima, criou no § 3.º do art. 168-A do Código Penal, uma espécie de perdão judicial, ao permitir que o juiz deixe de aplicar a reprimenda, nos casos em que o valor do débito (contribuições e acessórios) não seja superior ao mínimo exigido pela própria previdência social para o ajuizamento de execução fiscal.262
Fica claro, pois, que, enquanto na apropriação em geral a primariedade do criminoso e o pequeno valor da coisa apropriada resultam em um tratamento penal mais brando, na apropriação indébita previdenciária tais fatores, somados aos bons antecedentes, levam à extinção da punibilidade do agente, nos termos do art. 107, inciso IX, do Código Penal.
A nota característica do crime de apropriação indébita é a existência de uma situação de quebra de confiança, pois a vítima voluntariamente entrega uma coisa móvel ao agente, e este, após encontrar-se na sua posse ou detenção, inverte seu ânimo no tocante ao bem, passando a comportar-se como seu proprietário.
É o patrimônio, relativamente à propriedade e à posse legítima de bens móveis.
É a coisa alheia móvel263 sobre a qual recai a conduta criminosa. Não há crime na apropriação de coisa alheia imóvel, em face da descrição legal.
A mão de obra contratada e intencionalmente inadimplida não pode ser objeto material da apropriação indébita, uma vez que a prestação de serviços de qualquer natureza não pode ser classificada como “coisa”. O fato caracterizará mero ilícito civil ou crime de estelionato (CP, art. 171, caput), se o sujeito empregou meio fraudulento para a contratação e antes dela já tinha o propósito de não honrar sua responsabilidade contratual.
Coisas fungíveis, em sintonia com o art. 85 do Código Civil, são os “móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade”. O dinheiro é o grande exemplo de coisa fungível.
Discute-se se as coisas fungíveis podem funcionar como objeto material do crime de apropriação indébita.
Para Damásio E. de Jesus, as coisas fungíveis dadas em depósito ou em empréstimo, com obrigação de restituição da mesma espécie, qualidade e quantidade, não podem ser objeto material, pois nesses casos há transferência de domínio, de acordo com os arts. 586 e 645 do Código Civil, que tratam, respectivamente, do mútuo e do depósito irregular. São suas palavras:
Nos termos do art. 586, “o mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade”. E o art. 587 determina: “Este empréstimo transfere o domínio da coisa emprestada ao mutuário, por cuja conta correm todos os riscos dela desde a tradição”. O art. 645 reza: “O depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regula-se pelo disposto acerca do mútuo”. Assim, no depósito de coisas fungíveis, existe transferência de domínio. É por isso que não existe crime de apropriação indébita, uma vez que o tipo exige que a coisa seja alheia.
Em seguida, o ilustre penalista estabelece uma importante distinção:
Excepcionalmente, entretanto, a coisa fungível pode ser objeto material. É a hipótese de o sujeito entregar ao autor coisa fungível para fim de que a transmita a terceiro ou a ostente na vitrine de uma loja.264
Para o Superior Tribunal de Justiça, entretanto, é perfeitamente possível a apropriação indébita de coisas fungíveis:
Hipótese em que o recorrente sustenta a atipicidade da conduta, pois os acontecimentos ocorridos não comportariam adequação ao tipo penal de apropriação indébita, dada a fungibilidade dos bens supostamente retidos, sendo que tais operações refugiram ao campo de incidência do direito penal.
Tendo o depositário a obrigação de devolver o mesmo produto entregue pelos depositantes, e não produto de igual espécie, torna-se possível a configuração do crime de apropriação indébita.265
O núcleo do tipo é “apropriar-se”, que significa tomar como própria uma coisa pertencente a outrem. Em verdade, é imprescindível a apropriação, ou seja, o sujeito legitimamente exerce a posse ou a detenção de um bem e, após determinado momento, passa a se comportar como se fosse seu verdadeiro dono.
O conceito de posse pode ser extraído do art. 1.196 do Código Civil: “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Posse, portanto, é o exercício total ou parcial, em nome próprio, de um ou mais poderes atinentes à propriedade. É o que se dá com o mandatário, o locatário, o usufrutuário etc.
A posse pode ser direta ou indireta. Nos termos do art. 1.197 do Código Civil: “A posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto”. É o que ocorre, a título ilustrativo, em um contrato de locação: o locador fica com a posse indireta, enquanto o locatário ou inquilino tem a posse direta do bem.
A posse direta, sempre desvigiada, pode ser interessada ou não interessada. Naquela, há interesse do próprio sujeito ativo (exemplo: contrato de locação); nesta, existe interesse unicamente de terceiro (exemplo: mandato).
Por sua vez, o conceito de detenção é retirado do art. 1.198, caput, do Código Civil: “Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas”. A detenção é exercida pelo fâmulo da posse (escravo ou empregado da posse), pois o detentor exerce a posse em nome alheio. Exemplo: O frentista de um posto de combustíveis utiliza o macacão de trabalho em nome do empregador, e não em nome próprio. Se ficar com o bem para si, a ele será imputado o crime de apropriação indébita.
A posse ou a detenção do bem devem ser legítimas e, além disso, desvigiadas. Com efeito, o crime tipificado pelo art. 168 do Código Penal depende dos seguintes requisitos:
1.º requisito: Entrega voluntária do bem pela vítima
A vítima deve entregar ao agente a posse ou detenção da sua coisa móvel de forma voluntária e consciente, isto é, o sujeito recebe legitimamente a posse ou detenção do bem. Não há fraude, pois caso contrário o crime será de estelionato (CP, art. 171, caput), nem grave ameaça ou violência à pessoa, pois em tais hipóteses o delito será de roubo (CP, art. 157) ou de extorsão (CP, art. 158).
2.º requisito: Posse ou detenção desvigiada
A posse ou a detenção da coisa alheia móvel há de ser desvigiada, ou seja, livre da fiscalização e do controle por parte do seu titular. De fato, tratando-se de posse ou detenção vigiada, e retirada do bem da esfera de vigilância da vítima, sem sua autorização, o crime será de furto (CP, art. 155).266
Exemplificativamente, o vendedor de uma loja que permanece sob contínua vigilância do proprietário do estabelecimento comercial e que se apodera de seus bens comete furto; de outro lado, o representante do mesmo estabelecimento que, em viagem de negócios, se apossa de bens que lhe foram entregues em confiança pratica apropriação indébita.
É de adotar redobrada cautela, porém com uma hipótese excepcional explicada com brilhantismo por Nélson Hungria, inerente à distinção entre posse ou detenção do continente e do conteúdo e seus efeitos quanto à tipicidade do fato praticado (furto ou apropriação indébita):
(...) alguém é incumbido de transportar um cofre forte fechado contendo valores e, no caminho, arromba o cofre, apropriando-se dos valores. O crime a reconhecer é o de furto (qualificado pelo arrombamento), porque, se o agente tinha a livre disponibilidade de fato do cofre, não a tinha em relação aos valores, cuja apprehensio teve de conquistar mediante violência contra o cofre. A posse ou detenção do continente, entregue cerrado, não importa posse ou detenção do conteúdo. Para que se apresentasse a apropriação indébita, seria preciso que o cofre tivesse sido entregue aberto, isto é, que o dominus tivesse ensejado, voluntária e conscientemente, a disponibilidade física dos valores por parte do transportador.267
3.º requisito: Boa-fé do agente ao tempo do recebimento do bem
É fundamental que o sujeito esteja de boa-fé ao ingressar na posse ou na detenção da coisa alheia móvel, ou seja, é preciso que tenha a intenção de devolvê-la à vítima no momento oportuno ou de dar a ela a sua correta destinação. Destarte, se o agente, ao receber o bem, já tinha a intenção de apropriar-se dele, o crime será de estelionato (CP, art. 171).
Também comete estelionato o indivíduo que recebe algum bem por equívoco da vítima, e, ao constatá-lo, fica em silêncio, aceitando-o.
Mas, na dúvida acerca da existência da boa-fé ao tempo do recebimento da coisa, o intérprete deve reputá-la presente, por duas razões fundadas em princípios gerais do Direito:
(a) a boa-fé se presume; e
(b) in dubio pro reo, já que a pena do crime de apropriação indébita é inferior à pena cominada ao estelionato.
4.º requisito: Modificação posterior no comportamento do agente
O agente, após entrar licitamente (de boa-fé) na posse ou detenção da coisa, passa a se comportar como se fosse seu proprietário.268 Revela o ânimo de assenhoreamento definitivo (animus rem sibi habendi), razão pela qual a “apropriação indébita de uso” é penalmente irrelevante.
Esta alteração no comportamento do agente pode verificar-se por duas formas:
a) Prática de algum ato de disposição
O agente realiza algum ato de disposição da coisa (exemplos: venda, doação, locação, permuta, consumo, alteração etc.), tarefa legalmente reservada unicamente ao proprietário, nos termos do art. 1.228, caput, do Código Civil.
Esta modalidade do crime é conhecida como “apropriação indébita propriamente dita” ou “apropriação indébita própria”. Embora semelhante, não se pode confundi-la com o delito de disposição de coisa alheia como própria, espécie de estelionato tipificada pelo art. 171, § 2.º, inciso I, do Código Penal, que pune com reclusão de um a cinco anos, e multa, quem “vende, permuta, dá em pagamento, em locação ou em garantia coisa alheia como própria”.
As diferenças entre tais crimes são simples:
(1) o objeto material da apropriação indébita obrigatoriamente é coisa alheia móvel, ao passo que o da disposição de coisa alheia como própria pode ser bem móvel ou imóvel; e
(2) na apropriação indébita (sempre de coisa móvel) o agente deve ter a posse ou detenção legítimas do bem, enquanto na disposição de coisa alheia como própria (quando se tratar de coisa móvel) não é imprescindível tal espécie de posse ou detenção.
b) Recusa na restituição
É o que se verifica quando o sujeito decide ficar com a coisa para si. Se a vítima solicitar sua devolução, ele expressamente se recusa a efetuá-la, ou então oculta o bem. Esta modalidade de apropriação indébita é denominada “negativa de restituição”. Nessa hipótese, a interpelação judicial não constitui formalidade essencial para o ajuizamento da ação penal.
Não há crime quando ao sujeito é assegurado o direito de retenção do bem, como se dá em determinadas hipóteses dos contratos de depósito e de mandato, nos moldes dos arts. 644, caput,269 e 681,270 ambos do Código Civil. Exemplo: O depositário retém o bem depositado, recusando-se a devolvê-lo ao seu titular, até ser ressarcido pelos valores gastos com o depósito. Nesses casos, o sujeito realiza um fato típico, porém lícito, acobertado pelo exercício regular de direito (CP, art. 23, inc. III, in fine).
O art. 1.219 do Código Civil fornece uma nítida situação de direito de retenção: “O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis”.
Finalmente, também não se caracteriza o delito de apropriação indébita quando o sujeito tem o direito de compensação, delineado pelos arts. 368 a 380 do Código Civil.
Pode ser qualquer pessoa – com exceção do proprietário, pois a lei fala em coisa “alheia” móvel – desde que tenha a posse ou a detenção lícita do bem. Cuida-se de crime comum,271 uma vez que o pressuposto da posse legítima ou detenção da coisa móvel não pode ser considerado condição especial apta a classificar o crime como próprio.
O condômino, sócio ou coerdeiro que faz exclusivamente sua a coisa móvel comum e infungível, da qual tem a posse lícita ou detenção, pratica apropriação indébita. Todavia, tratando-se de coisa fungível, somente estará caracterizado o delito quando a apropriação ultrapassar a cota a ele cabível, pois em caso contrário não haverá lesão ao patrimônio alheio.
De outro lado, se o agente é funcionário público e apropria-se de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular (sob a guarda ou custódia da Administração Pública), de que tem a posse em razão do cargo, o crime será de peculato-apropriação (CP, art. 312, caput, 1.ª parte). Entretanto, se o bem particular não se encontrar sob a guarda ou custódia da Administração Pública, e o funcionário público dele se apropriar, a ele será imputado o crime de apropriação indébita.
É a pessoa física ou jurídica que suporta o prejuízo causado pela conduta criminosa. Em regra é o proprietário do bem, mas nada impede seja seu possuidor, usufrutuário etc.
É possível que a vítima não seja a pessoa responsável pela entrega do bem ao agente. Exemplificativamente, se “A”, vendedor de uma loja, entrega em confiança uma peça de roupa para que “B” a prove em sua residência, a qual não vem a ser paga ou restituída, a vítima não será “A”, mas o estabelecimento comercial lesado em seu patrimônio.
É o dolo. Não se admite a modalidade culposa.
A doutrina e a jurisprudência majoritárias sustentam a necessidade de um especial fim de agir, consistente no ânimo de assenhoreamento definitivo (animus rem sibi habendi). Entendemos, contudo, que, nada obstante a necessidade de tal ânimo, não pode ser ele enquadrado como elemento subjetivo específico, pois a vontade de apossar-se de coisa pertencente a outrem está ínsita no verbo “apropriar-se”. Portanto, recaindo o dolo sobre o núcleo do tipo, é isto suficiente para o aperfeiçoamento da apropriação indébita.272 Em compasso com as lúcidas ponderações de Nélson Hungria:
A ausência do animus rem sibi habendi exclui, subjetivamente, a apropriação indébita. Não há falar-se, aqui, em dolo específico (pois é indiferente qualquer fim ulterior à apropriação), mas em dolo genérico, isto é, a vontade ou a consciência da ação típica do crime, que, no caso, é a apropriação sine jure da coisa alheia. A apropriação é elemento de fato do crime, e não um fim ulterior do agente.273
Na apropriação indébita, sob a modalidade “negativa de restituição”, a configuração do delito depende da atuação dolosa do agente no sentido de não restituir o bem ao seu proprietário. Destarte, o fato é atípico para aquele que simplesmente se esquece de devolver o bem na data previamente combinada. Em consonância com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que também reclama um elemento subjetivo específico para a configuração da apropriação indébita:
Constatado que o recorrente não revelou a intenção de apoderar-se de bem alheio, que temporariamente permaneceu na sua posse, a simples mora na sua entrega ao proprietário, consoante orientação consignada pela teoria finalista da ação e adotada pela sistemática penal pátria, não configura o crime de apropriação indébita, descrito no art. 168 do CP, em razão da ausência do dolo – animus rem sibi habendi –, elemento subjetivo do tipo e essencial ao prosseguimento da imputação criminal.274
O núcleo do tipo penal é “apropriar-se”. Exige, portanto, a intenção do agente em fazer sua a coisa alheia móvel (animus rem sibi habendi).
Portanto, não há crime de apropriação indébita na hipótese em que o sujeito usa momentaneamente a coisa alheia para em seguida restituí-la integralmente ao seu titular. Não se pune a apropriação indébita “de uso”.275
É de tomar cautela, todavia, para que este raciocínio não abra ensejo para a impunidade de pessoas que se utilizam por relevante espaço de tempo de bens alheios, alegando que deles não se apropriaram, pois iriam restituí-los a quem de direito após o simples uso. A razoabilidade, em tais casos, é o melhor vetor para o aplicador do Direito diferenciar com exatidão o uso (lícito) do abuso (ilícito) de coisas alheias móveis.
Apropriação indébita e estelionato são crimes contra o patrimônio punidos unicamente a título de dolo. Mas um importante ponto de distinção entre estes delitos repousa no momento em que desponta o dolo de locupletar-se perante o patrimônio alheio.
Na apropriação indébita o dolo é subsequente ou sucessivo.276 O sujeito recebe de boa-fé a posse ou a detenção desvigiada da coisa alheia móvel, e só posteriormente inverte seu ânimo em relação ao bem, decidindo dele se apropriar. Exemplo: “A”, cliente antigo e leal de uma locadora de automóveis, aluga um carro para usá-lo durante uma viagem. Nesta viagem, perde muito dinheiro em jogos de azar, e então resolve vender as peças do automóvel locado para quitar suas dívidas, evadindo-se em seguida para outro país.
Por seu turno, no estelionato o dolo é antecedente ou ab initio. Em outras palavras, o fim de apropriação da coisa alheia móvel já estava presente antes de o agente alcançar sua posse ou detenção. Exemplo: “A”, valendo-se de documentos falsos, realiza seu cadastramento em uma locadora de automóveis. Em seguida, aluga um automóvel e o conduz a um desmanche, vendendo diversas das suas peças.
O crime de apropriação indébita se consuma no momento em que o sujeito inverte seu ânimo em relação à coisa alheia móvel, isto é, de mero detentor ou possuidor (posse ou detenção de natureza precária), passa a se comportar como proprietário, daí resultando a lesão ao patrimônio alheio (crime material). Na linha de raciocínio do Superior Tribunal de Justiça:
O momento consumativo do crime de apropriação indébita e, pois, do aperfeiçoamento do tipo, coincide com aquele em que o agente, por ato voluntário e querido, inverte o título da posse exercida sobre a coisa, passando dela a dispor como se sua fosse. Uma vez operada a inversão verifica-se estar o crime perfeito e acabado.277
Na apropriação indébita própria ou propriamente dita, o crime se consuma com a prática de algum ato de disposição do bem, incompatível com a condição de possuidor ou detentor. Exemplo: “A” vende o bem de que legitimamente tinha a posse ou detenção.
Já na apropriação indébita negativa de restituição, o delito se aperfeiçoa no instante em que o agente se recusa a devolver o objeto material a quem de direito.
A reparação do dano ou restituição da coisa, após a consumação da apropriação indébita, não afasta a tipicidade do fato. É a posição dominante no Superior Tribunal de Justiça: “Consumado o delito de apropriação indébita, o ressarcimento posterior servirá, se o caso, de causa de diminuição da pena. Precedentes do STJ”.278
Em suma, subsiste o crime com a reparação do dano ou restituição da coisa efetuada posteriormente à consumação da apropriação indébita. Será possível, contudo, a diminuição da pena em face da incidência do instituto do arrependimento posterior, desde que presentes os demais requisitos exigidos pelo art. 16 do Código Penal: “Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços”.
Contudo, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, por motivos de política criminal, pela extinção da punibilidade quando há devolução da coisa apropriada antes do recebimento da denúncia.279
É perfeitamente possível na apropriação indébita própria ou propriamente dita. Exemplo: “A” é preso em flagrante no momento em que vendia para “B” um bem pertencente a “C”, do qual tinha a posse legítima e desvigiada.
Não se admite o conatus, porém, na apropriação indébita negativa de restituição. Deveras, nesse caso o crime é unissubsistente: ou o sujeito se recusa a devolver o objeto material, e o delito estará consumado, ou então o devolve a quem de direito, e o fato será atípico.
A ação penal é pública incondicionada, em todas as modalidades de apropriação indébita, previstas no art. 168 do Código Penal.
A apropriação indébita, na forma simples, tem a pena mínima de 1 (um) ano. Constitui-se, portanto, em crime de médio potencial ofensivo, compatível com a suspensão condicional do processo, se presentes os requisitos elencados pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.
A interpelação judicial, nos casos de não restituição ou recusa na devolução da coisa, não constitui formalidade essencial para o ajuizamento da ação penal pelo Ministério Público.
Prescinde-se também da prestação de contas para o oferecimento de denúncia. A matéria pode (e deve) ser resolvida no bojo da ação penal, salvo em hipóteses excepcionais, tais como ocorrem no contrato de mandato.280
Como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal: “A jurisprudência desta Corte é no sentido de que, em se tratando de apropriação indébita, não é necessária a prévia prestação de contas, a não ser em casos excepcionais, o que não ocorre na hipótese”.281
No tocante ao advogado que, em decorrência de procuração outorgada pelo seu cliente, detém poderes gerais para receber e quitar, retém importância em nome de seu constituinte, este deverá entrar com uma prévia prestação de contas contra aquele, em que o advogado será obrigado a especificar as receitas e aplicação das despesas, bem como o respectivo saldo (CPC, art. 917), pois é a partir desses cálculos contábeis que se poderá constatar a efetiva retenção de valores pelo mandatário. A ação de prestação de contas deverá ser proposta no juízo cível, de acordo com o procedimento previsto nos arts. 914 a 919 do Código de Processo Civil. Trata-se de questão prejudicial heterogênea.282
A competência para o processo e julgamento do crime de apropriação indébita é do local em que o sujeito se apropria da coisa alheia móvel, dela dispondo ou negando-se a restituí-la ao seu titular. Atende-se, desta forma, à regra estatuída pelo art. 70, caput, do Código de Processo Penal: “A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração”.
Quando o crime é praticado por algum representante (comercial ou não) da vítima, a competência é do local em que o sujeito deveria ter prestado contas dos valores levantados. Em consonância com o posicionamento do Supremo Tribunal Federal:
Processo por crime de apropriação indébita: competência: determinação pelo local da consumação do delito (CPP, art. 70, caput), no caso, Comarca de Ribeirão Preto/SP. O paciente, na qualidade de advogado, detinha poderes para, em nome da empresa e de acordo com decisão judicial, levantar os valores na agência bancária de Belo Horizonte. A posse era, portanto, legítima e, sem dúvida, se iniciou em Belo Horizonte, mas a apropriação somente ocorreu quando o paciente, já em Ribeirão Preto – onde devia prestar contas –, deixa de repassar integralmente os valores devidos ao cliente.283
Em regra, a competência é da Justiça Estadual. Contudo, será competente a Justiça Federal quando a conduta criminosa for praticada em detrimento de bens, serviços ou interesses da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas (CF, art. 109, inc. IV).
Anote-se, porém, que, se os valores apropriados consistem em verbas federais, empregadas em convênio celebrado entre a União e uma pessoa jurídica de direito privado, o qual fora integralmente cumprido, inexistindo assim verba a ser fiscalizada pelo Tribunal de Contas da União, a competência será da Justiça Estadual, pois já houve sua incorporação pela pessoa jurídica de direito privado.284
O crime é comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); material (depende da produção do resultado naturalístico, qual seja a lesão ao patrimônio alheio); doloso; de forma livre (admite qualquer meio de execução); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma só pessoa, mas admite o concurso); em regra plurissubsistente (na apropriação indébita propriamente dita), ou unissubsistente (na apropriação indébita negativa de restituição); e instantâneo (a consumação ocorre em um momento determinado, sem continuidade no tempo).
O legislador, no crime de apropriação indébita, incidiu em grave equívoco na estruturação do tipo penal. Com efeito, previu como § 1.º um dispositivo que se constitui em um autêntico parágrafo único, pois não há um § 2.º ou outro qualquer.
Em três incisos, são previstas causas de aumento da pena, e não qualificadoras. Não se trata, portanto, de apropriação indébita qualificada, mas de apropriação indébita agravada ou circunstanciada.
Em todas as hipóteses, a reprimenda é majorada de 1/3 (um terço), razão pela qual não se aplica a este crime o benefício da suspensão condicional do processo. De fato, a pena mínima da apropriação indébita, acrescida pela causa de aumento da pena, ultrapassa o patamar previsto no art. 89 da Lei 9.099/1995.
Passemos ao estudo de cada uma das majorantes.
O depósito necessário é disciplinado pelos arts. 647 e 649 do Código Civil. Pode ser de três espécies: legal, miserável e por equiparação.
Depósito necessário legal, nos termos do art. 647, inciso I, do Código Civil, é o que se faz em desempenho de obrigação legal.
Por sua vez, depósito necessário miserável, a teor do art. 647, inciso II, do Código Civil, é o que se efetua por ocasião de alguma calamidade, como o incêndio, a inundação, o naufrágio ou o saque.
Finalmente, depósito necessário por equiparação, como se extrai do art. 649, caput, do Código Civil, é o relativo às bagagens dos viajantes ou hóspedes nas hospedarias onde estiverem. Nesse caso, os hospedeiros responderão como depositários (Código Civil, art. 649, parágrafo único).
Nada obstante o art. 168, § 1.º, inciso I, do Código Penal fale apenas em “depósito necessário” e a lei civil arrole três espécies distintas para tal depósito, prevalece em doutrina o entendimento de que somente se aplica a causa de aumento de pena em análise para o depósito necessário miserável, disciplinado pelo art. 647, inciso II, do Código Civil.
Com efeito, no depósito necessário legal (CC, art. 647, inc. I) o depositário é equiparado a funcionário público, na forma prevista no art. 327, caput, do Código Penal, razão pela qual a apropriação por ele praticada configura um crime mais grave, qual seja peculato-apropriação (CP, art. 312, caput, 1.ª parte). Esta posição teve origem nos ensinamentos de Nélson Hungria, para quem “a infidelidade do depositário legal (strictu sensu), que é sempre um funcionário público, recebendo a coisa ‘em razão do cargo’, constitui o crime de peculato (art. 312)”.285
Já no depósito necessário por equiparação (CC, art. 649, caput) incide a causa de aumento de pena contida no art. 168, § 1.º, inciso III, do Código Penal, pois o depositário se apropria de coisa que recebeu em razão de ofício, emprego ou profissão.
Em síntese, portanto, a causa de aumento de pena delineada pelo art. 168, § 1.º, inciso I, do Código Penal incide unicamente no tocante ao depósito necessário miserável. O fundamento do tratamento penal mais rigoroso é simples: a vítima, atingida por alguma calamidade, não tinha outra opção a não ser confiar a guarda da coisa ao depositário, que se aproveitou da sua fragilidade e do momento de dificuldade para trair sua confiança e apropriar-se do bem.
Inicialmente, é de observar que a palavra “síndico” deve ser substituída por “administrador judicial”, em face da alteração promovida pelos arts. 21 e seguintes da Lei 11.101/2005, diploma legislativo atinente à recuperação judicial ou extrajudicial e à falência do empresário e da sociedade empresária.
As pessoas indicadas pelo dispositivo legal – em rol taxativo e, consequentemente, insuscetível de ser ampliado pelo emprego da analogia – desempenham um munus público. Entretanto, respondem por apropriação indébita circunstanciada, e não por peculato, em face da regra específica prevista no art. 168, § 1.º, inciso II, do Código Penal.
A razão de existir da causa de aumento de pena repousa na relevância das funções exercidas pelas pessoas indicadas pelo texto legal, que recebem coisas alheias para guardar consigo, necessariamente, até o momento adequado para devolução.
A pena mais grave se justifica pela maior reprovabilidade do fato praticado por pessoas que, em decorrência de suas atividades profissionais, ingressam na posse ou detenção de coisas alheias, para restituí-las futuramente, mas não o fazem. Prescinde-se da relação de confiança entre o agente e o ofendido, pois o tipo penal não a exige, ao contrário do que se dá no furto qualificado pelo abuso de confiança (CP, art. 155, § 4.º, inc. II).
Emprego é a prestação de serviço com subordinação e dependência, características que podem ou não existir no ofício ou profissão. Exemplo: relação entre o dono de um restaurante e seus funcionários.
Ofício, por seu turno, é a ocupação manual ou mecânica, útil ou necessária às pessoas em geral, e que reclama um determinado grau de habilidade. Exemplos: sapateiro, mecânico de automóveis, alfaiate etc.
Profissão, por sua vez, é a atividade que se caracteriza pela ausência de hierarquia e pelo exercício predominantemente técnico e intelectual de conhecimentos específicos. Exemplos: médico, advogado, dentista, arquiteto etc.
Quando o delito é cometido por advogado, que se apropria de valores judicialmente cabíveis ao seu constituinte, sob a alegação de ser ressarcido a título de honorários advocatícios, assim já se manifestou o Supremo Tribunal Federal:
Advogado que levantou quantia resultante de êxito em demanda judicial, depositada para o pagamento de sua constituinte, sob a alegação de que o valor, correspondente a 10% (dez) por cento do total da condenação, equivale aos honorários advocatícios. O paciente tinha em mãos um título executivo privilegiado na falência – a sentença condenatória – que lhe assegurava honorários advocatícios de 10% (dez por cento) do valor apurado em liquidação. Incumbia-lhe habilitar-se no Juízo Universal da Falência, nos termos do disposto no art. 24 do Estatuto da Advocacia, e não levantar, por conta própria, o montante correspondente à primeira parcela depositada para o pagamento da empresa. Conduta que poderá vir a ser enquadrada, em tese, tanto no tipo penal correspondente à apropriação indébita (art. 168 do CP), quanto no atinente ao exercício arbitrário das próprias razões (art. 345 do CP).286
Anote-se também que a circunstância de o alvará de levantamento de depósito judicial, pertencente ao cliente, ter sido expedido em nome de certo integrante de escritório de advocacia não exclui a possibilidade de configuração do delito se o titular do escritório apropriou-se do valor correspondente.287
Além das espécies reguladas pelo Código Penal, existem outras hipóteses de apropriação indébita disciplinadas em leis especiais, tais como:
a) Estatuto do Idoso
O art. 102 da Lei 10.741/2003 institui uma modalidade especial de apropriação indébita, quando praticada contra idoso:
Art. 102. Apropriar-se de ou desviar bens, proventos, pensão ou qualquer outro rendimento do idoso, dando-lhes aplicação diversa da de sua finalidade:
Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa.
Veja-se, lamentavelmente, que a Lei 10.741/2003 não previu causas de aumento de pena similares àquelas estabelecidas pelo art. 168, § 1.º, do Código Penal, razão pela qual, na prática, muitas vezes o crime praticado contra idoso recebe uma sanção penal inferior ao delito cometido contra uma pessoa com idade inferior a 60 (sessenta) anos de idade, contrariando o espírito do Estatuto do Idoso.
b) Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional
O art. 5.º, caput, da Lei 7.492/1986 contém uma forma específica de apropriação indébita cometida no âmbito do sistema financeiro nacional:
Art. 5.º Apropriar-se, quaisquer das pessoas mencionadas no art. 25 desta lei, de dinheiro, título, valor ou qualquer outro bem móvel de que tem a posse, ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio:
Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
Trata-se de crime próprio, pois somente pode ser praticado pelo controlador e pelos administradores de instituição financeira, assim considerados os diretores e gerentes, nos moldes do art. 25 da Lei 7.492/1986.288
A Lei 9.983/2000, com o objetivo de suprir a deficiência do art. 95 da Lei 8.212/1991, inseriu o art. 168-A no Código Penal, entre os crimes contra o patrimônio, com o nomem iuris “apropriação indébita previdenciária”. Equivocou-se o legislador em sua escolha, por dois motivos.
Em primeiro lugar, não há razão para o delito estar previsto no Título II da Parte Especial do Código Penal, pois não se trata de crime contra o patrimônio.
Trata-se, na verdade, de crime contra a Previdência Social, razão pela qual seria mais correta sua alocação na Lei 8.212/1991, que dispõe sobre a organização da Seguridade Social, ou então na Lei 8.137/1990, responsável pela definição dos crimes contra a ordem tributária, já que a contribuição previdenciária é, na verdade, uma espécie de tributo.289
De fato, as contribuições da seguridade social submetem-se ao regime jurídico tributário. Nas lições de Leandro Paulsen, discorrendo sobre o tratamento constitucional das contribuições previdenciárias:
Além de serem previstas no Capítulo do Sistema Tributário Nacional, tais prestações enquadram-se na noção de tributo pressuposta pelo texto constitucional. Isso porque são obrigações pecuniárias que não constituem sanção de ato ilícito, instituídas compulsoriamente pelos entes políticos para auferirem receita destinada ao cumprimento dos seus misteres.
Diga-se, ainda, que, para evitar quaisquer riscos de entendimento diverso, o Constituinte tornou expressa e inequívoca a submissão das contribuições ao regime jurídico tributário, ao dizer da necessidade de observância, relativamente às contribuições, da legalidade estrita (art. 150, I), da irretroatividade e da anterioridade (art. 150, III), da anterioridade nonagesimal em se tratando de contribuições de seguridade (art. 195, § 6.º), bem como das normas gerais de direito tributário.290
Mas, ainda que fosse desejo inafastável do legislador a colocação do delito no Código Penal, deveria tê-lo feito em seu Título XI, uma vez que a conduta praticada contra a Seguridade Social possui maior afinidade com os crimes contra a Administração Pública. A propósito, o delito de sonegação de contribuição previdenciária, que também ofende a Seguridade Social, foi tipificado no art. 337-A do Código Penal, integrando o extenso rol dos crimes contra a Administração Pública.291
Se não fosse suficiente o erro quanto ao posicionamento do delito, a Lei 9.983/2000 também pecou no tocante à sua denominação. Não há fundamento técnico para a utilização da rubrica marginal “apropriação indébita previdenciária”, porque a conduta criminosa é completamente diversa da genuína apropriação indébita prevista no art. 168 do Código Penal.
Inicialmente, o núcleo do tipo de toda modalidade de apropriação, incluindo-se a indébita, é “apropriar-se”. É o que se extrai da leitura dos arts. 168 e 169 do Código Penal. Em verdade, o Capítulo V do Título II da Parte Especial do Código Penal cuida da apropriação indébita, como gênero, disciplinando em seus artigos as espécies deste delito. Por sua vez, na chamada apropriação indébita previdenciária o núcleo do tipo é diverso, e consiste em “deixar de repassar”. Esta diferença, por si só, revela que o art. 168-A não deveria ter empregado a nomenclatura “apropriação indébita previdenciária”. Mas não é só.
A apropriação indébita previdenciária nada tem a ver com a apropriação indébita do art. 168 do Código Penal. Nesta, exige-se a precedente posse ou detenção do objeto material e ato posterior de dominus, consistente na disposição da coisa alheia ou na negativa de sua restituição; naquela, de outro lado, é prescindível o locupletamento do agente com os valores das contribuições previdenciárias, bastando que, depois de recolhidas, não sejam repassadas aos cofres públicos.292
Alguns autores sustentam a inconstitucionalidade do crime de apropriação indébita previdenciária, sob o argumento de que o delito seria fruto de dívida junto à União, resultante do não pagamento de contribuição previdenciária. E, como o art. 168-A do Código Penal possibilita a privação da liberdade do seu responsável, seria violado o art. 5.º, inciso LXVII, da Constituição Federal, que proíbe a prisão civil por dívida, com exceção das hipóteses de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e ao depositário infiel.293
Com o merecido respeito, esta tese não pode prosperar, por uma razão muito simples. Não se trata de prisão civil por dívida, mas de imposição de pena privativa de liberdade pela prática de crime. O art. 168-A do Código Penal descreve um modelo sintético de conduta criminosa, cominando a quem se envolve em sua prática uma sanção penal. Como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal:
Apropriação indébita previdenciária. Conduta prevista como crime. Inconstitucionalidade inexistente. (...) A norma penal incriminadora da omissão no recolhimento de contribuição previdenciária – art. 168-A do Código Penal – é perfeitamente válida. Aquele que o pratica não é submetido à prisão civil por dívida, mas sim responde pela prática do delito em questão. Precedentes.294
É também o entendimento do Superior Tribunal de Justiça: “A sanção penal pelo cometimento do crime de apropriação indébita previdenciária não tem a mesma finalidade da prisão por dívida civil, não se afigurando, portanto aplicável o Pacto de São José da Costa Rica”.295
Vale ressaltar que o valor correspondente à contribuição previdenciária integra o salário do trabalhador. Nesse contexto, o art. 7.º, inciso X, da Constituição Federal assegura como direito do trabalhador, urbano ou rural, a “proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa”. Eis o fundamento constitucional da apropriação indébita previdenciária, punida exclusivamente na forma dolosa, em perfeita sintonia com a Lei Suprema.
A lei penal tutela a seguridade social, constitucionalmente definida como “o conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (art. 194).
Além disso, classificando-se a contribuição previdenciária como uma espécie de tributo, protege-se mediatamente a ordem tributária.296
Como se sabe, a Seguridade Social é constitucionalmente composta pela saúde, pela previdência social e pela assistência social.
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (CF, art. 196).
A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:
I – cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada;
II – proteção à maternidade, especialmente à gestante;
III – proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário;
IV – salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; e
V – pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes. (CF, art. 201)
A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II – o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III – a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; e
V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. (CF, art. 203)
Fica nítido, portanto, que pela sua própria essência a seguridade social depende de recursos para realização de suas finalidades constitucionais, os quais são auferidos mediante a arrecadação de tributos.
Finalmente, pode-se ainda dizer que o crime de apropriação indébita previdenciária também tem como objetividade jurídica a ordem econômica (CF, arts. 170 e seguintes) como decorrência da preservação da livre concorrência em face das empresas que cumprem regularmente suas obrigações tributárias, e desta forma são prejudicadas em um mercado de livre concorrência perante aquelas que não honram seu papel junto ao Fisco.
É a contribuição previdenciária arrecadada e não recolhida.
Contribuições previdenciárias, destinadas ao custeio da previdência social, são espécies do gênero contribuições sociais, que, por sua vez, encontram-se incluídas no bojo das chamadas contribuições especiais.297 Têm origem no art. 195, inciso I, a, e inciso II, da Constituição Federal, regulamentado pelo art. 11, parágrafo único, a, b e c da Lei 8.212/1991.
Com efeito, são contribuições previdenciárias as previstas no art. 195, inciso I, a, e inciso II, da Constituição Federal, porque é vedada a utilização dos recursos provenientes de sua arrecadação para outra finalidade que não o pagamento dos benefícios do regime geral de previdência social, nos termos do art. 167, inciso XI, da Constituição Federal.
As demais contribuições contidas no art. 195 da Constituição Federal objetivam o custeio também do sistema de saúde e assistência social, não havendo nenhuma vinculação constitucional ao destino de sua arrecadação, de modo que não podem ser qualificadas como “previdenciárias”.
Tanto é assim que, anteriormente à Lei 11.457/2007 – “Lei da Super Receita”, a cobrança das contribuições previdenciárias era conferida à Secretaria da Receita Previdenciária, enquanto as demais contribuições do art. 195 da Constituição Federal eram de atribuição da Secretaria da Receita Federal, que, atualmente, é encarregada da cobrança de todas as contribuições sociais.
O núcleo do tipo é “deixar de repassar”, no sentido de “deixar de recolher”. Nos ensinamentos de Paulo José da Costa Júnior, “recolher é depositar a quantia recebida (descontada ou cobrada). Não recolher é a forma negativa da conduta, vale dizer, é a ausência de depósito, é a retenção indevida da quantia descontada ou cobrada do contribuinte”.298
A apropriação indébita previdenciária, no que diz respeito à forma de conduta, classifica-se como crime omissivo próprio ou puro. O modelo legal descreve um comportamento negativo, pois a omissão está contida no próprio tipo penal.
Cuida-se de lei penal em branco homogênea, a qual deve ser complementada pela legislação previdenciária, no que diz respeito ao prazo de recolhimento das contribuições descontadas. Com efeito, para a caracterização do delito não basta que deixe o sujeito ativo de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes. É preciso que ele deixe de efetuar o repasse “no prazo e forma legal ou convencional”.
Na época em que estava tipificado pelo revogado art. 95, § 3.º, da Lei 8.212/1991, o crime era considerado próprio, pois somente podia ser praticado pelo “administrador da empresa”.
Mas atualmente o art. 168-A do Código Penal não reclama uma especial situação fática ou jurídica em relação ao sujeito ativo. Em outras palavras, o delito pode ser cometido por qualquer pessoa (crime comum). Para o Superior Tribunal de Justiça: “O delito de apropriação indébita de contribuições previdenciárias, em que o Prefeito foi denunciado não exige qualidade especial do sujeito ativo, podendo ser cometido por qualquer pessoa, seja ela agente público ou não”.299
Anote-se, porém, a existência de entendimentos, posteriores à entrada em vigor da Lei 9.983/2000, no sentido de tratar-se de crime próprio, porque somente poderia ser realizado por quem tem o dever legal de repassar à Previdência Social as contribuições recolhidas dos contribuintes.300
O delito é compatível com a coautoria e com a participação, sendo exemplo desta última a conduta do contador de uma empresa que induz, instiga ou auxilia seu administrador a não repassar ao Poder Público as contribuições descontadas dos empregados.
Em relação aos municípios que não possuem regime próprio de previdência, seus servidores são segurados obrigatórios do regime geral, devendo o Município reter as contribuições respectivas e promover o recolhimento (Lei 8.212/1991, art. 13).
Também aos servidores ocupantes, exclusivamente, de cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração e aos ocupantes de cargos temporários ou de emprego público aplica-se o regime geral de previdência social (CF, art. 40, § 13, e Lei 8.212/1991, art. 12, I, g), devendo o ente respectivo repassar as contribuições à Receita Federal do Brasil.
Note-se que, por expressa determinação legal, o ente público é considerado empresa para efeitos previdenciários (Lei 8.212/1991, art. 15, inc. I). O Chefe do Poder Executivo, como administrador, responde pela ausência de recolhimento das contribuições descontadas dos servidores. Deve ser também responsabilizado o Secretário da Fazenda ou outro servidor com atribuição para efetuar os recolhimentos legalmente previstos. Como lembra José Paulo Baltazar Júnior:
Na vigência da lei anterior, predominava, no entanto, o entendimento de que o agente político não podia responder pelo crime em questão, uma vez que o ente público não poderia ser considerado empresa, nem o gestor público, o seu administrador, como exigia o § 3.º do art. 95 da Lei 8.212/1991. Na lei atual, inexiste dispositivo não apenas em relação às contribuições devidas ao RGPS, mas igualmente em relação às contribuições para o regime próprio dos servidores, que podem também ser objeto do crime, no atual quadro legal. Além disso: “a circunstância de o Prefeito não ter obrigação de elaborar a folha de pagamento não o exime de responsabilidade, por ter o dever legal de controlar e fiscalizar os seus subordinados” (STJ, REsp 299.830/PE, José Arnaldo da Fonseca, 6.3.03).301
À pessoa jurídica não pode ser imputado o crime de apropriação indébita previdenciária, por ausência de previsão constitucional nesse sentido.
O crime também pode ser cometido pelo administrador judicial da massa falida, se houver empregados em atividade.
Igualmente, o empregador doméstico pode ser sujeito ativo do delito.
É a União Federal, que por meio da Receita Federal do Brasil arrecada e fiscaliza as contribuições previdenciárias (Lei 8.212/1991, art. 33).
Era comum apontar, como sujeito passivo, o Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS, pois a União delegava a esta autarquia federal a atribuição de arrecadar e fiscalizar o recolhimento das contribuições previdenciárias.
Tal posicionamento não mais se sustenta, em face do previsto no art. 33 da Lei 8.212/1991, com a redação que lhe foi conferida pela Lei 11.941/2009, a qual adaptou a Lei de Custeio da Seguridade Social aos termos da Lei da Super Receita (Lei 11.457/2007), que em seu art. 2.º determinou o retorno à União da atribuição para arrecadar as contribuições previdenciárias.
É o dolo. Contrariamente ao que ocorre no art. 168 do Código Penal, na apropriação indébita previdenciária é pacífico tanto no Supremo Tribunal Federal como no Superior Tribunal de Justiça o entendimento no sentido de ser prescindível o animus rem sibi habendi, pelo fato de o núcleo do tipo ser “deixar de repassar”, e não “apropriar-se”.302 Não se admite a forma culposa.
Prevalece em seara doutrinária a posição pela qual o crime de apropriação indébita previdenciária é formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado. Consuma-se, portanto, com a realização da conduta de “deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional”. O resultado naturalístico (lesão à União) é possível, embora desnecessário para o aperfeiçoamento do delito.
Entretanto, o Plenário do Supremo Tribunal Federal já decidiu tratar-se de crime material, dependente, portanto, da lesão aos cofres da União.303
Este posicionamento se revela como acertado, pois é óbvio que a previdência social suporta prejuízo econômico imediato no momento em que alguém deixa de repassar as contribuições já recolhidas dos contribuintes.
Note-se, no campo das empresas, que, nos termos do art. 33, § 5.º, da Lei 8.212/1991, presume-se o desconto da contribuição nos pagamentos já efetuados.304
O tipo penal não elenca a fraude como elementar do delito. Consequentemente, a figura típica prevista no art. 168-A do Código Penal se consuma independentemente da utilização de subterfúgios para dificultar a apuração do fato pela fiscalização previdenciária. A propósito, se presente o emprego de meio fraudulento, responderá o agente pelo crime de sonegação de contribuição previdenciária, definido pelo art. 337-A do Código Penal, e não por apropriação indébita previdenciária.
A apropriação do dinheiro pelo sujeito ativo ou a utilização do numerário para fim diverso do previsto pela legislação também não se constituem em elementares típicas do delito contido no art. 168-A do Código Penal.
Não é possível, pelo motivo de tratar-se de crime omissivo próprio, e, por corolário, unissubsistente, pois a conduta se exterioriza em único ato, suficiente para a consumação. Destarte, ou o sujeito deixa de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, e o delito capitulado pelo art. 168-A do Código Penal estará consumado, ou então ele efetua regularmente o repasse, e não há falar em delito de apropriação indébita previdenciária.
A ação penal é pública incondicionada, em todas as modalidades de apropriação indébita previdenciária.
A competência para processar e julgar o delito tipificado pelo art. 168-A do Código Penal é, em regra, da Justiça Federal, com fulcro no art. 109, inciso IV, da Constituição Federal, por se tratar de crime praticado em detrimento dos interesses da União, órgão federativo responsável pela instituição das contribuições previdenciárias.
Ressalte-se, contudo, que o § 1.º do art. 149 da Lei Suprema estabelece regra de exceção, ao atribuir competência aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios relativamente à instituição de contribuição de seus servidores para custeio do regime previdenciário próprio. Portanto, se na hipótese concreta o tributo suprimido ou reduzido mediante quaisquer das condutas previstas no tipo penal for a contribuição estabelecida no art. 149, § 1.º, a competência para processo e julgamento do crime definido no art. 168-A do Código Penal será da Justiça Estadual.
Na hipótese em que alguém, pessoa física ou jurídica, deixa de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional, em razão de dificuldades financeiras, firmou-se tese no sentido de não ser legítima a atuação do Direito Penal, pois seria injusta a incidência prática do crime definido pelo art. 168-A do Código Penal.
Prevalece o entendimento de que se afasta a culpabilidade, em face da ausência de um dos seus elementos constitutivos, que é a exigibilidade de conduta diversa. Especialmente em períodos de instabilidade econômica, obstáculos instransponíveis se põem no caminho dos empregadores, o que justifica a inexigibilidade de conduta diversa (causa supralegal de exclusão da culpabilidade), pois não se poderia respeitar integralmente a legislação tributária se isso ferisse de morte o empregador. Observe-se, porém, que a situação de penúria econômica deve ser cabalmente provada durante a instrução criminal.305 Na linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
Refutou-se, também, o argumento de não ocorrência do crime de sonegação previdenciária (CP, art. 337-A), por inexigibilidade de conduta diversa, em função das dificuldades financeiras da empresa. Verificou-se que a supressão ou redução da contribuição social e de quaisquer acessórios são implementados por meio de condutas fraudulentas instrumentais à evasão, incompatíveis com a boa-fé necessária para tal reconhecimento. Além disso, o conjunto probatório não revelaria a precária condição financeira da empresa.306
Veja-se também que o não recolhimento das contribuições previdenciárias por período demasiadamente longo é um forte indício de que as dificuldades econômicas do empregador, especialmente das empresas, eram superáveis, pois não seria viável sua sobrevivência por tanto tempo submetendo-se a uma insuportável crise financeira.
O crime é comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); material, na visão do STF (depende da produção do resultado naturalístico, qual seja a lesão ao patrimônio alheio), ou formal, para a doutrina dominante; doloso; de forma livre (admite qualquer meio de execução); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma só pessoa, mas admite o concurso); unissubsistente (a conduta criminosa exterioriza-se em um único ato); e instantâneo (consuma-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo).
Em seu § 1.º, o art. 168-A do Código Penal traz três figuras equiparadas ao crime de apropriação indébita previdenciária. A pena, em todas as hipóteses previstas nos incisos I a III, é de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Além disso, consumam-se com a ausência de recolhimento à Previdência Social ou a ausência de pagamento ao empregado do benefício previdenciário, no prazo determinado pela legislação respectiva.
O art. 168-A, § 1.º, inciso I, do Código Penal define a conduta de “deixar de recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público”.
Diverge do caput porque, além das contribuições, abrange também outras importâncias destinadas à previdência social. Como exemplo, pode-se mencionar as importâncias descritas pelo art. 91 da Lei 8.212/1991: “Mediante requisição da Seguridade Social, a empresa é obrigada a descontar, da remuneração paga aos segurados a seu serviço, a importância proveniente de dívida ou responsabilidade por eles contraída junto à Seguridade Social, relativa a benefícios pagos indevidamente”.
De igual modo, as contribuições ou importâncias não repassadas à União são descontadas dos segurados, terceiros ou ainda arrecadadas do público. Este tipo penal visa incriminar a conduta do denominado “substituto tributário” ou “contribuinte de direito”, que recebe por lei a atribuição de arrecadar e recolher o tributo devido pelo contribuinte de fato.
Segurados são os empregados que prestam serviços de natureza urbana ou rural à empresa. Terceiros são aqueles que estão a serviço do responsável tributário, exercendo atividade econômica sujeita à dedução da contribuição social ou outra importância destinada à previdência, como as empresas cedentes de mão de obra e as cooperativas. Finalmente, “arrecadadas do público” é uma expressão que se refere às importâncias oriundas dos concursos de prognósticos e dos espetáculos desportivos.
O art. 168-A, § 1.º, inciso II, do Código Penal apresenta a conduta de “deixar de recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços”.
Este tipo penal revela uma diferença substancial com os demais anteriormente estudados. Não há ausência de repasse de importâncias descontadas do pagamento de terceiros, mas daquelas contabilizadas como embutidas nos custos de produtos ou serviços.
Portanto, se no preço final do produto ou serviço há valor embutido a título de contribuição devida, mas não repassada à previdência social, restará caracterizado o delito em estudo.
O art. 168-A, § 1.º, inciso III, do Código Penal contém a seguinte descrição: “deixar de pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social”.
A conduta consiste no fato de o agente deixar de pagar ao segurado o benefício, nada obstante já tenha recebido recursos para tanto da Previdência Social.
Até o advento da Lei 9.876/1999, a empresa efetuava diretamente o pagamento de dois benefícios previdenciários: o salário-família e o salário-maternidade. Com a alteração legislativa efetuada pelo art. 71 da Lei 8.213/1991, somente o salário-família é pago mensalmente pela empresa juntamente com o salário, que por seu turno efetua a compensação com a Secretaria da Receita Federal do Brasil por ocasião do recolhimento da sua contribuição social.
Nos termos do art. 168-A, § 2.º, do Código Penal: “É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal”.
Anteriormente, a Lei 9.249/1995, em seu art. 34, previa a extinção da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária quando o agente promovesse o pagamento do tributo e acessórios antes do recebimento da denúncia. O dispositivo era aplicável aos delitos previdenciários.
O termo final para o pagamento, agora, passou a ser o início da ação fiscal, e não mais o recebimento da denúncia. Para Hugo de Brito Machado, a ação fiscal tem início com a lavratura do Termo de Início da Ação Fiscal – TIAF.307
Portanto, a extinção da punibilidade, nos exatos termos do art. 168-A, § 2.º, do Código Penal estaria a depender:
(a) de declaração e confissão da dívida;
(b) de prestação de informações à Seguridade Social; e
(c) do pagamento integral da dívida antes do início da ação fiscal.
Se o agente for beneficiado pela concessão do parcelamento dos valores devidos a título de contribuição social previdenciária, ou qualquer acessório, o pagamento integral do débito importará na extinção da punibilidade, com fulcro no art. 83, § 4.º, da Lei 9.430/1996, com a redação conferida pela Lei 12.382/2011.
É de se observar que, na hipótese de concessão de parcelamento do crédito tributário, a representação fiscal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento (Lei 9.430/1996, art. 83, § 1.º).
Além disso, fica suspensa a pretensão punitiva do Estado durante o período em que a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal (Lei 9.430/1996, art. 83, § 2.º).
A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva (Lei 9.430/1996, art. 83, § 3.º).
Finalmente, vale destacar o entendimento do Supremo Tribunal Federal, amparado no art. 69 da Lei 11.941/2009, no sentido da extinção da punibilidade do agente em razão do pagamento integral do débito tributário, ainda que realizado após o julgamento, desde que antes do trânsito em julgado da condenação:
No tocante à assertiva de extinção da punibilidade pelo pagamento do débito tributário, realizado após o julgamento, mas antes da publicação do acórdão condenatório, reportou-se ao art. 69 da Lei 11.941/2009 (“Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no art. 68 quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento”). Sublinhou que eventual inconstitucionalidade do preceito estaria pendente de exame pela Corte, nos autos da ADI 4.273/DF. Entretanto, haja vista que a eficácia do dispositivo não estaria suspensa, entendeu que o pagamento do tributo, a qualquer tempo, extinguiria a punibilidade do crime tributário, a teor do que já decidido pelo STF (HC 81.929/RJ, DJU de 27.2.2004). Asseverou que, na aludida disposição legal, não haveria qualquer restrição quanto ao momento ideal para realização do pagamento. Não caberia ao intérprete, por isso, impor restrições ao exercício do direito postulado. Incidiria, dessa maneira, o art. 61, caput, do CPP (“Em qualquer fase do processo, o juiz, se reconhecer extinta a punibilidade, deverá declará-lo de ofício”).308
Em conformidade com o art. 168, § 3.º, do Código Penal: “É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que: I – tenha promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária, inclusive acessórios; ou II – o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais”.
A hipótese disciplinada pelo inciso I não mais se aplica, em decorrência da regra contida no art. 9.º, § 2.º, da Lei 10.684/2003 (ver art. 168-A, item 2.8.4.17), permissiva do pagamento do débito previdenciário a qualquer tempo, até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, para fins de extinção da punibilidade. Destarte, o pagamento da contribuição previdenciária, atualmente, é idôneo a acarretar a eliminação do direito de punir em um prazo mais dilatado, de modo mais interessante ao réu.
Em relação ao inciso II, poderá haver perdão judicial ou aplicação exclusiva da pena de multa desde que o valor das contribuições devidas, incluindo acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais.
Este inciso II também é de raríssima utilidade prática, pois os requisitos autorizadores do perdão judicial ou da pena de multa abrem ensejo para o princípio da insignificância (ver art. 168-A, item 2.8.4.20), causa supralegal de exclusão da tipicidade, e, portanto, indiscutivelmente mais favorável ao réu. Com efeito, ao agente é melhor o reconhecimento da atipicidade do fato (ele não cometeu crime algum) do que a declaração da extinção da punibilidade, que depende do reconhecimento da prática de um crime, ou ainda mais da aplicação da pena de multa, que pressupõe uma condenação pela prática do crime definido no art. 168-A do Código Penal.
Firmou-se o entendimento no sentido de que o Ministério Público não pode oferecer denúncia pelo crime previsto no art. 168-A do Código Penal enquanto não encerrado o processo administrativo relativo à discussão acerca da existência, valor ou exigibilidade da contribuição previdenciária.
Em síntese, a conclusão do processo administrativo figura como condição de procedibilidade para o exercício da ação penal. Logo, se oferecida a denúncia, o Poder Judiciário deve rejeitá-la, em face da ausência de justa causa para a instauração do processo penal. E, mais do que isso, sequer pode ser instaurado inquérito policial para investigação do delito. Para o Supremo Tribunal Federal:
Apropriação indébita previdenciária – Crime – (...) – Processo administrativo. Estando em curso processo administrativo mediante o qual questionada a exigibilidade do tributo, ficam afastadas a persecução criminal e – ante o princípio da não contradição, o princípio da razão suficiente – a manutenção de inquérito, ainda que sobrestado.309
É também a posição consolidada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça:
A Turma concedeu a ordem para suspender o inquérito policial até o julgamento definitivo do processo administrativo, por entender que, enquanto houver processo administrativo questionando a existência, o valor ou a exigibilidade de contribuição social, é atípica a conduta prevista no art. 168-A do CP, que tem como elemento normativo do tipo a existência da contribuição devida a ser repassada. Não importa violação da independência das esferas administrativa e judiciária o aguardo da decisão administrativa, a quem cabe efetuar o lançamento definitivo.310
O fundamento desta linha de pensamento encontra-se no art. 142, caput, do Código Tributário Nacional: “Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível”.
Fica nítido, portanto, que a competência para lançamento é da autoridade administrativa, motivo pelo qual a decisão por ela proferida vincula até mesmo o Poder Judiciário, que não pode lançar um tributo, tampouco corrigir ou modificar o lançamento efetuado pela autoridade administrativa. De fato, se o juiz reconhecer algum vício no lançamento realizado, ele deve declarar sua nulidade, cabendo à autoridade administrativa competente, se for o caso, constituir novamente o crédito tributário.
É por isso que o STF e o STJ pacificaram a jurisprudência na direção de ser vedada a propositura da ação penal por crimes tributários (lato sensu) antes da conclusão do procedimento administrativo de lançamento, pois o magistrado não tem competência para decidir sobre a existência ou não do crédito tributário, em relação ao qual repousa a discussão sobre a prática do delito.
Para afastar qualquer interpretação jurídica em sentido contrário, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante 24, com a seguinte redação: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1.º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo”. Essa súmula vinculante, embora mencione unicamente os delitos tipificados no art. 1.º, I a IV, da Lei 8.137/1990, inevitavelmente produzirá reflexos em todos os crimes materiais de natureza tributária, pois os fundamentos que justificaram sua criação aplicam-se igualmente a todos os delitos tributários desta índole.
É possível a incidência do princípio da insignificância, como causa supralegal de exclusão da tipicidade, no crime de apropriação indébita previdenciária, nas hipóteses em que, nada obstante realizada a conduta legalmente descrita (tipicidade formal), não houver risco de lesão ao bem jurídico penalmente tutelado (ausência de tipicidade material).
Para o Supremo Tribunal Federal, os crimes contra a ordem tributária são compatíveis com o princípio da insignificância quando a quantia objeto da falta de recolhimento aos cofres públicos não ultrapassar R$ 10.000,00 (dez mil reais), uma vez que o art. 20 da Lei 10.522/2002 determina o arquivamento das execuções fiscais, sem cancelamento da distribuição, quando os débitos inscritos como dívida ativa da União não excedam tal patamar. Destarte, não há justa causa para oferecimento da ação penal quando o valor do tributo não supere o montante de R$ 10.000,00 (dez mil reais).311
Com a edição, pelo Ministério da Fazenda, das Portarias 75/2012 e 130/2012 – atinentes à inscrição de débitos na Dívida Ativa da União e ao ajuizamento de execuções fiscais pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional –, este limite foi alterado para R$ 20.000,00: “Art. 2.º O Procurador da Fazenda Nacional requererá o arquivamento, sem baixa na distribuição, das execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais), desde que não conste dos autos garantia, integral ou parcial, útil à satisfação do crédito” (art. 2.º da Portaria MF 75/2012, com a redação alterada pela Portaria MF 130/2012).312
Em que pese ser emanada do mais alto Tribunal nacional, esta posição não pode ser admitida. É absolutamente despropositado falar em insignificância da conduta nos casos em que a lesão ao Erário não ultrapassa tão elevado valor, mormente se recordamos que no tocante ao patrimônio privado o limite para incidência da criminalidade de bagatela é deveras inferior.
O Supremo Tribunal Federal criou uma incompreensível contradição jurídica. Com efeito, nos crimes contra o patrimônio, em que se ofende o interesse de uma ou de algumas poucas pessoas, o princípio da insignificância é aceito como excludente da tipicidade quando o valor da coisa é ínfimo, ou seja, muito inferior a um salário mínimo. De outro lado, nos crimes tributários que têm a União e, reflexamente, toda a coletividade como sujeito passivo, admite-se a criminalidade de bagatela nas lesões que não extrapolem uma quantia absurdamente superior.
Qual é a coerência nesse raciocínio? Não sabemos. Esta forma de pensar se revela ainda mais inaceitável se lembrarmos de um fato que o STF parece olvidar. Vivemos em um país de miseráveis, no qual pouquíssimas pessoas têm acesso ao elevado importe, considerado insignificante para fins de crimes tributários e previdenciários!
Por relevante período, o Superior Tribunal de Justiça pensou de modo contrário, sustentando o entendimento no sentido de que o parâmetro contido no art. 20 da Lei 10.522/2002 dizia respeito ao arquivamento, sem baixa na distribuição, da ação de execução fiscal (suspensão da execução), o que denotava sua inaptidão para caracterizar o que deveria ser penalmente irrelevante. Melhor padrão para esse fim seria o contido no art. 18, § 1.º, do citado diploma legal, que cuida da extinção do débito fiscal igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais).313
Infelizmente, porém, o Superior Tribunal de Justiça curvou-se à posição consagrada no âmbito do Supremo Tribunal Federal, acolhendo o raciocínio favorável à incidência do princípio da insignificância, na apropriação indébita previdenciária e nos delitos tributários em geral, quando o valor do tributo não ultrapassar a cifra de R$ 10.000,00.314
Mas parece surgir uma luz no final do túnel. Em decisão inovadora, o Supremo Tribunal Federal afastou o princípio da insignificância no crime de apropriação indébita previdenciária, levando em conta o valor supraindividual do bem jurídico tutelado. Vale a pena conferir:
A Turma, tendo em conta o valor supraindividual do bem jurídico tutelado, indeferiu habeas corpus em que condenados pelo delito de apropriação indébita previdenciária (CP, art. 168-A) pleiteavam a aplicação do princípio da insignificância. Consignou-se que, não obstante o pequeno valor das contribuições sonegadas à Previdência Social, seria incabível a incidência do almejado princípio.315
O crime tipificado pelo art. 169 do Código Penal é uma modalidade específica de apropriação indébita. O núcleo do tipo, mais uma vez, é “apropriar-se” e, ainda que implicitamente, o objeto material também é a “coisa alheia”, e móvel, pois somente ela pode chegar ao poder do agente por erro, caso fortuito ou força da natureza.
Constitui-se, na verdade, em uma forma de apropriação indébita privilegiada, na qual o tipo penal contém novas elementares que importam em uma pena sensivelmente inferior àquela prevista no art. 168 do Código Penal, tanto no que diz respeito à sua natureza (detenção) como no que toca à sua quantidade (1 mês a 1 ano, ou multa).
É o patrimônio, relativamente à propriedade e à posse de coisas móveis.
Esta figura penal guarda íntima relação com os arts. 876 e 884 do Código Civil, os quais, com o propósito de impedirem o enriquecimento ilícito de qualquer pessoa, impõem ao sujeito que recebeu o que não lhe era devido a obrigação de restituir o bem a quem de direito.
É a coisa móvel vinda ao poder do agente por erro, caso fortuito ou força da natureza.
O núcleo do tipo é “apropriar-se”, ou seja, entrar na posse de algo, comportando-se em relação à coisa como se fosse seu dono.316 Mas esta apropriação resulta do fato de a coisa ter entrado na posse do agente por erro alheio, ou então por caso fortuito ou força da natureza. Passemos à análise destas hipóteses.
Erro é a falsa percepção da realidade, capaz de fazer alguém, que pode ser a vítima do crime patrimonial ou um terceiro em seu nome (exemplo: sua secretária), entregar ao agente um bem pertencente a outrem.317 Este erro pode dizer respeito:
a) à pessoa a quem o bem deve ser entregue. Exemplo: “A” compra flores para serem entregues pelo florista na casa de “B”, sua namorada. Entretanto, o comerciante faz a entrega na casa de “C”, que posteriormente percebe o engano, mas fica com as flores para si;
b) à coisa objeto da entrega. Exemplo: “A” compra um relógio simples para ser deixado em sua casa pela loja. Entretanto, o vendedor se equivoca e remete um relógio mais valioso. “A” recebe o bem e depois nota o erro, mas fica para si com o relógio de maior valor;
c) à existência da obrigação ou de parte dela. Exemplo: “A” vai a uma loja e paga um conta que já havia sido quitada pelo seu pai. O dono da loja recebe os valores de “A”, e no final do expediente percebe o engano, mas fica com o dinheiro, locupletando-se indevidamente;
d) à qualidade ou quantidade da coisa. Exemplo: “A” deposita na conta bancária de “B”, por equívoco, valor maior do que o devido em razão de um empréstimo entre eles ajustado. Nada obstante, “B” constata o equívoco e efetua o saque de todo o numerário.
Vê-se, pois, que neste crime, assim como na apropriação indébita (CP, art. 168), é a vítima ou alguém em seu nome que espontaneamente entrega o bem ao agente. Mas a diferença entre os delitos é clara: enquanto na apropriação indébita a vítima (ou alguém em seu nome) entrega a coisa sem estar em erro, na apropriação de coisa havida por erro (CP, art. 169, caput) é imprescindível que a vítima (ou quem a representa) tenha uma falsa percepção da realidade, a qual, no caso concreto, funciona como motivo determinante para a entrega do bem.
Cumpre destacar que no crime de apropriação de coisa havida por erro é fundamental que o agente somente perceba o engano da vítima (ou de terceiro em seu nome) após já ter entrado na posse do bem, e que somente a partir de então decida dele se apropriar, não o restituindo a quem de direito.
De fato, se a vítima incide em erro, embora não provocado pelo agente, mas este, constatando o equívoco, utiliza alguma fraude (artifício ou ardil, aí se incluindo até mesmo o silêncio) para que se concretize a entrega do bem, o crime será o de estelionato, na forma prevista no art. 171, caput, do Código Penal. Obviamente, também estará caracterizado o estelionato quando o erro da vítima (ou de quem a representa) não for espontâneo, mas provocado pelo agente. Na linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
Apropriação de coisa alheia e havida por erro e estelionato. Revelando os fatos constantes da denúncia a feitura espontânea de depósito, fora dos parâmetros da relação jurídica, seguindo-se a retenção do valor, tem-se a configuração do crime do art. 169 – apropriação de coisa alheia havida por erro – e não o do art. 171 – estelionato –, ambos do Código Penal, pouco importando a recusa na devolução da quantia ao argumento de que efetuado corretamente o depósito.318
Conclui-se, portanto, que o crime de apropriação de coisa havida por erro depende dos seguintes requisitos:
1) A vítima (ou alguém em seu nome) deve encontrar-se em situação de erro, não provocado pelo agente. Se ausente o erro, o crime será o de apropriação indébita (CP, art. 168). Por sua vez, se o erro tiver sido provocado pelo agente, estará caracterizado o delito de estelionato (CP, art. 171);
2) A vítima há de entregar, espontaneamente, o bem ao agente;
3) O agente, ao entrar na posse do bem, deve estar de boa-fé, ou seja, sem perceber o equívoco da vítima (ou de terceira pessoa), pois se percebê-lo o crime será de estelionato; e
4) O agente posteriormente percebe o erro da vítima (ou de alguém em seu nome), mas decide apoderar-se da coisa.
Finalmente, convém ressaltar que, ao contrário do que ocorre no crime de apropriação de coisa achada (CP, art. 169, parágrafo único, inc. II), no qual a vítima desconhece o local em que o bem foi perdido, na apropriação de coisa havida por erro não há, por parte de quem recebeu o bem, a obrigação de procurar a autoridade pública competente para devolvê-lo, porque aquele que incidiu em erro é quem possui condições de dirigir-se à pessoa a quem fez a entrega da coisa.
Caso fortuito e força da natureza, também denominada de força maior, são acontecimentos acidentais e imprevisíveis relativamente às pessoas envolvidas em algum ato. É comum distingui-los levando-se em conta a origem de cada um deles. Enquanto o caso fortuito tem origem humana (exemplos: greve de motoristas de ônibus, briga generalizada entre torcedores de times de futebol etc.), a força maior provém de fenômenos naturais (exemplos: terremotos, enchentes, vendavais etc.).
No contexto do crime em apreço, a coisa alheia ingressa na posse de alguém em razão de caso fortuito (exemplo: dois caminhões se chocam e a televisão que estava na carroceria de um deles é lançada ao interior de uma casa) ou de força da natureza (exemplo: um vendaval faz com que roupas de uma pessoa sejam levadas ao quintal da residência vizinha). Todavia, o sujeito percebe o ocorrido, e, ciente de se tratar de bens que não lhe pertencem, não os restitui ao seu titular.
Há quem sustente, porém, a inutilidade da distinção entre caso fortuito e força da natureza. Nélson Hungria, com toda a força da sua autoridade, critica a redação utilizada pelo legislador:
O dispositivo legal menciona o caso fortuito e a força da natureza, fazendo, a exemplo, aliás, do Código suíço, uma distinção que se pode dizer desnecessária, pois o caso fortuito abrange todo e qualquer acontecimento estranho, na espécie, à vontade do agente e do dominus. Tanto é caso fortuito se a coisa alheia vem ao meu poder em consequência da queda de um avião em meu terreno, quanto se foi trazida pela correnteza de uma enchente. Se bois alheios, por mero instinto de vagueação ou acossados pelo fogo de uma queimada, entram nas minhas terras, ou se peças de roupas no coradouro do meu vizinho são impelidas por um tufão até o meu quintal, tudo é caso fortuito.319
Destaque-se, porém, que o crime somente se configura quando o agente tem conhecimento de que se trata de coisa alheia, a qual veio ao seu poder por caso fortuito ou força da natureza.
Pode ser qualquer pessoa (crime comum).
É o titular da coisa desviada ou perdida por erro, caso fortuito ou força da natureza.
É o dolo de apropriar-se da coisa alheia, isto é, a intenção de assenhorear-se definitivamente do bem, não o restituindo ao seu titular (animus rem sibi habendi). Não se trata de elemento subjetivo específico, pois a vontade relaciona-se diretamente ao núcleo do tipo penal.320 Com efeito, a elementar “apropriar-se” exige, indiscutivelmente, o ânimo de assenhoreamento definitivo, ao contrário do que se dá no crime de furto, no qual o núcleo é subtrair, mas a lei acrescenta a expressão “para si ou para outrem”.
O elemento subjetivo precisa abranger o conhecimento acerca da origem do bem em decorrência de erro, caso fortuito ou força da natureza. Não se admite a forma culposa.
Anote-se que na apropriação havida por erro não há crime na hipótese em que o sujeito acredita ter recebido uma doação. O fato é atípico, em razão da ausência de dolo. De igual modo, também inexiste o delito quando o agente constata o equívoco posteriormente à tradição do bem, mas não reúne condições para restituí-lo ao seu titular, seja por não conhecê-lo, seja por não possuir meios suficientes para identificá-lo.
O crime se consuma no momento em que o sujeito se apropria da coisa alheia móvel, transformando a posse em propriedade, mediante a prática de um ato incompatível com a intenção de restituir o bem ao seu titular (exemplos: venda, doação, empréstimo a terceiro etc.). Cuida-se de crime material.
Em doutrina, prevalece o entendimento de tratar-se de crime instantâneo. Mas, para o Superior Tribunal de Justiça, a apropriação de coisa havida por erro é crime permanente. A consumação, uma vez caracterizada com a prática de ato indicativo da vontade de não devolver o bem ao seu proprietário ou legítimo possuidor, se arrasta no tempo, subsistindo durante o período em que o agente não restitui a coisa móvel ao seu titular.321 O raciocínio, por identidade de fundamentos, deve ser também aplicado à apropriação de coisa havida por caso fortuito ou força da natureza.
É possível.
A ação penal é pública incondicionada.
O art. 169, caput, do Código Penal contempla uma infração penal de menor potencial ofensivo, pois o máximo de pena privativa de liberdade cominada em abstrato é de 1 (um) ano. O crime é compatível com a transação penal e com o rito sumaríssimo, nos moldes definidos pela Lei 9.099/1995.
O crime é comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); material (depende da produção do resultado naturalístico, qual seja a lesão ao patrimônio alheio); doloso; de forma livre (admite qualquer meio de execução); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma só pessoa, mas admite o concurso); em regra plurissubsistente (a conduta criminosa pode ser fracionada em diversos atos); e instantâneo (na visão doutrinária) ou permanente (na jurisprudência do STJ).
O art. 169, parágrafo único, inciso I, do Código Penal elenca duas figuras equiparadas à apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza, a saber: apropriação de tesouro (inciso I) e apropriação de coisa achada (inciso II).
Passemos à análise destas figuras típicas, enfrentando os pontos que as diferenciam do crime definido pelo caput do art. 169 do Código Penal.
Este crime é disciplinado por uma lei penal em branco homogênea, pois é o Código Civil, em seus arts. 1.264 a 1.266, que apresenta o conceito de tesouro e as regras para sua divisão entre o proprietário do local em que foi encontrado e o responsável por sua descoberta:
Art. 1.264. O depósito antigo de coisas preciosas, oculto e de cujo dono não haja memória, será dividido por igual entre o proprietário do prédio e o que achar o tesouro casualmente.
Art. 1.265. O tesouro pertencerá por inteiro ao proprietário do prédio, se for achado por ele, ou em pesquisa que ordenou, ou por terceiro não autorizado.
Art. 1.266. Achando-se em terreno aforado, o tesouro será dividido por igual entre o descobridor e o enfiteuta, ou será deste por inteiro quando ele mesmo seja o descobridor.
É a quota-parte do tesouro pertencente ao dono do prédio em que ele foi encontrado.
O núcleo do tipo novamente é “apropriar-se”. E, cotejando o art. 169, parágrafo único, inciso I, do Código Penal com os arts. 1.264 (é o que nos interessa), 1.265 e 1.266 do Código Civil, extrai-se que o crime de apropriação de tesouro somente tem incidência à pessoa que acidentalmente o encontra no terreno alheio, e, sendo legalmente obrigado a dividi-lo pela metade com o proprietário do imóvel, se apropria, no todo ou em parte, do quinhão a ele assegurado.
É a coisa alheia perdida, ou seja, aquela que se extraviou de seu proprietário ou possuidor em local público ou de uso público. De fato, não se pode falar em coisa perdida quando ela não é encontrada pelo seu titular, mas se acha em local privado.
Logo, pratica furto (CP, art. 155) o agente que se apodera de bem que estava em um local particular e era procurado por seu dono. De igual modo, também responde por furto, qualificado pela fraude, aquele que dolosamente provoca a perda do bem. Finalmente, como a lei fala em coisa perdida, também será imputado ao sujeito o crime de furto quando se apoderar de coisa esquecida pelo seu titular.
O fato é atípico quando o sujeito se apropria de coisa abandonada (res derelicta), pois não há patrimônio merecedor de proteção pelo Direito Penal. Também será atípico o fato, por ausência de dolo, como consequência do erro de tipo, na hipótese em que o agente se apoderou de coisa perdida que reputava abandonada, em face do seu péssimo estado de conservação. Em síntese, só estará caracterizado o crime delineado pelo art. 169, parágrafo único, inciso II, do Código Penal quando o sujeito souber que se trata de coisa perdida.
Frise-se, porém, ser irrelevante para fins de tipicidade da apropriação de coisa achada se o bem foi encontrado casualmente ou então se sua perda foi presenciada pelo agente quando a vítima se afastava do local, desde que tal perda não tenha sido por ele provocada.
O núcleo do tipo é “apropriar-se”, revelando a indispensabilidade da intenção do agente de ter a coisa para si com o fim de assenhoreamento definitivo (animus rem sibi habendi). Destarte, quem encontra uma coisa perdida em local público ou de uso público, e conhece seu dono, tem o dever legal de restituí-la integral e imediatamente.
Se, entretanto, a restituição da coisa alheia móvel não for possível (exemplo: o titular do bem reside em local perigoso e de difícil acesso) ou não se souber quem é o seu proprietário, aquele que a encontrou tem o prazo de 15 (quinze) dias para efetuar sua entrega à autoridade competente, que pode ser policial ou judicial, nos termos do art. 1.170, caput, do Código de Processo Civil.322
Nessa última hipótese, em que o sujeito não conhece o titular do bem ou não tem condições de restituí-lo imediatamente, trata-se de crime de conduta mista, pois se visualizam duas etapas distintas, uma comissiva e outra omissiva, a saber:
(1) comissiva: o agente se apodera de coisa perdida que encontrou em local público ou de uso público, em relação à qual não conhece seu titular ou não possui condições para restituí-la; e
(2) omissiva: decorrido o prazo de 15 dias, não a entrega à autoridade pública (policial ou judicial).
Além disso, constitui-se em crime a prazo, pois somente se consuma depois de transcorrido o prazo de 15 dias legalmente previsto. Por corolário, se a coisa for apreendida em seu poder antes do transcurso deste prazo, o fato será atípico.
Em síntese, o crime somente se consuma depois de superado o prazo de 15 dias, ou se, antes disso, restar comprovado ter o sujeito praticado algum ato de disposição da coisa, incompatível com a intenção de restituí-la a quem de direito (exemplos: venda ou permuta).
Na hipótese em que alguém se apropria de coisa perdida que se encontrava no interior de embalagem da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (empresa pública federal), a competência é, em regra, da Justiça Estadual. Com efeito, a Empresa de Correios, ao efetuar o transporte de produtos submetidos à sua confiança, funciona como mera detentora dos bens, mantendo-se a posse com o seu titular.
Se, entretanto, o bem pertencer à própria Empresa de Correios, ou então à União, suas autarquias ou empresas públicas, a competência para processar e julgar o delito tipificado pelo art. 169, parágrafo único, inciso II, do Código Penal será da Justiça Federal, nos moldes do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal. Como já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça:
Criminal. Conflito de competência. Apropriação de coisa achada. Envelope com o emblema da Empresa Nacional de Correios e Telégrafos contendo quatro talões de cheques. Proprietário da coisa. Instituição bancária. Competência da Justiça Estadual. Hipótese em que um dos denunciados apropriou-se de coisa achada – envelope com o emblema da Empresa Nacional de Correios e Telégrafos –, cujo conteúdo consistia em quatro talões de cheques provenientes do Banco Itaú, de titularidade de uma correntista. Os referidos talões teriam sido distribuídos aos demais denunciados, que, juntamente com o primeiro, fizeram uso fraudulento dos mesmos. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, ao transportar os talonários, através do serviço de Sedex, agiu na qualidade de simples detentora da coisa. Assim, o verdadeiro possuidor da coisa perdida era a instituição bancária de onde provinham os talões, até porque os cheques ainda não haviam entrado na esfera de disponibilidade da correntista. Não se evidencia lesão a serviços, bens ou interesses da União ou Entidades Federais.323
O estelionato é crime patrimonial praticado mediante fraude: no lugar da clandestinidade, da violência física ou da ameaça intimidatória, o agente utiliza o engano ou se serve deste para que a vítima, inadvertidamente, se deixe espoliar na esfera do seu patrimônio. A fraude consiste, portanto, na lesão patrimonial por meio de engano.
O vocábulo estelionato deriva do latim stellio, que significa camaleão. Como destaca Nélson Hungria:
Como expressão, entre muitas, do instinto do menor esforço na luta pela existência, pode dizer-se que a fraude é de todos os tempos. Até mesmo entre os seres inferiores, são identificáveis processos caracteristicamente fraudulentos. (...) Fraude é o mimetismo dissimulador do camaleão (de cujo nome latino stellio derivou, precisamente, o vocábulo estelionato), a ardilosa mise-en-scène da aranha na caça aos insetos, o comodismo solerte do cuco, que deposita os ovos, para a incubação, nos ninhos de outros pássaros.324
Destarte, o crime de estelionato é, em essência, uma fraude. Nesse contexto, o Capítulo VI do Título II da Parte Especial é assim denominado: “Do estelionato e outras fraudes”. Há diversas fraudes reconhecidas pelo legislador, e o estelionato, tanto na sua modalidade fundamental (art. 171, caput) como nas figuras equiparadas (art. 171, § 2.º) é uma delas.
A lei penal tutela a inviolabilidade do patrimônio.
É a pessoa física ludibriada pela fraude, bem como a coisa ilicitamente obtida pelo agente.
O núcleo do tipo é “obter”. Trata-se de conduta composta, pois a descrição legal contém a expressão “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro”.
Destarte, obter equivale a alcançar um lucro indevido em decorrência do engano provocado na vítima, que contribui para a finalidade do criminoso sem notar que está sendo lesada em seu patrimônio.
Induzir significa persuadir, no sentido de criar para a vítima uma situação falsa. Manter, por sua vez, é indicativo de fazer permanecer ou conservar o ofendido na posição de equívoco em que já se encontrava. Destarte, a obtenção da vantagem ilícita dá-se pelo fato de o sujeito conduzir a vítima ao engano ou então deixá-la no erro em que sozinha se envolveu.
É possível, pois, que o responsável pelo estelionato crie a situação enganosa ou dela simplesmente se aproveite. Em qualquer das hipóteses estará configurado o crime tipificado pelo art. 171 do Código Penal.
Erro é a falsa percepção da realidade, apta a produzir uma manifestação de vontade viciada. Como prefere Galdino Siqueira, “o erro é o estado de consciência em que não há conformidade entre a representação e a realidade, determinando a disposição patrimonial que de outro modo não se efetuaria”.325
A lei fala apenas em “erro”, mas esta elementar deve ser interpretada extensivamente, a fim de englobar também a ignorância, isto é, o completo desconhecimento da realidade.
Para induzir ou manter a vítima em erro, o sujeito se vale de algum dos seguintes meios de execução:
(a) artifício;
(b) ardil; ou
(c) qualquer outro meio fraudulento.
O legislador mais uma vez recorreu à interpretação analógica, empregando uma fórmula casuística (“artifício” e “ardil”), acompanhada de uma fórmula genérica (“qualquer outro meio fraudulento”). O raciocínio é este: artifício e ardil são meios capazes de enganar, mas não são os únicos, pois na prática pode se apresentar um meio fraudulento diverso.
Artifício é a fraude material. O agente utiliza algum instrumento ou objeto para enganar a vítima. Exemplo: “A” veste-se com o uniforme de uma oficina mecânica para que “B” voluntariamente lhe entregue seu automóvel.
Ardil, por seu turno, é a fraude moral, representada pela conversa enganosa. Exemplo: “A”, alegando ser especialista em relógios automáticos, convence “B” a entregar-lhe seu relógio para limpeza de rotina.
Fica claro, portanto, que “artifício” é sinônimo de meio adequado à encenação externa, criador de uma aparência material. É toda simulação ou dissimulação idônea para induzir ou manter uma pessoa em erro, de modo que esta não tenha uma imediata percepção de falsa aparência material, positiva ou negativa, que lhe cause o erro. Essa errônea percepção da realidade decorre de um aparato material que dá a ilusão de uma veracidade ou de uma realidade.
O ardil, diversamente, atua diretamente sobre o espírito da vítima e consiste, essencialmente, em uma mentira provida de argumentos e discursos tais que apresentam uma aparência de realidade. No vernáculo, “artifício” é sinônimo de astúcia, manha, artimanha, sutileza. O ardil, portanto, não possui aspecto material, mas sim intelectual e se dirige à psique do indivíduo. Melhor dizendo, atua sobre a sua inteligência ou seu sentimento, criando uma percepção errônea da realidade.
A diferenciação entre artifício e ardil assume um valor relativo em face da nossa lei, pois, depois de se referir a eles, a lei penal se vale de uma fórmula genérica, a mais ampla possível: “qualquer outro meio fraudulento”. Com essa expressão, nossa lei se refere a qualquer atitude ou comportamento que provoque ou mantenha alguém em erro, do qual advirão a vantagem ilícita e o dano patrimonial. Tem-se como exemplo o silêncio, como na hipótese em que um comerciante entrega ao cliente troco além do devido, mas este nada fala e nada faz, ficando com o dinheiro para si.
Como lembra José Henrique Pierangeli, “com o emprego de meio fraudulento, na oração, podia até a lei deixar de reportar-se ao artifício e ao ardil, pois estes, sem dúvida, estão nele incluídos, tal o sentido compreensivo que tem”.326
Obviamente, a fraude deve ser anterior e diretamente responsável pela lesão patrimonial. Na linha de raciocínio do Supremo Tribunal Federal:
Estelionato: para a configuração do estelionato, a fraude empregada pelo agente há de ser antecedente e causal do erro ou persistência no erro do lesado e da consequente disposição patrimonial em favor do sujeito ativo ou de terceiro.327
O sujeito emprega o meio fraudulento para induzir ou manter alguém em erro, obtendo assim vantagem ilícita, em prejuízo alheio.
A vantagem ilícita precisa possuir natureza econômica, uma vez que o estelionato é crime contra o patrimônio. É ilícita porque não corresponde a nenhum direito. De fato, se a vantagem for lícita o estelionato cede espaço para o delito de exercício arbitrário das próprias razões (CP, art. 345).
Finalmente, prejuízo alheio é o dano patrimonial. Não basta, portanto, a obtenção de vantagem ilícita ao agente. Exige-se também o prejuízo ao ofendido. Visualizam-se assim quatro momentos diversos no estelionato:
(1) emprego de fraude;
(2) situação de erro na qual a vítima é colocada ou mantida;
(3) obtenção de vantagem ilícita; e
(4) prejuízo suportado pela vítima.
A busca desordenada da prestação jurisdicional para satisfazer algum interesse pessoal, ainda que fundada em argumentos absurdos e completamente inadequados, não pode ser considerada meio fraudulento. Como decidido pelo Superior Tribunal de Justiça:
“A Min. Relatora asseverou que admitir tal conduta como ilícita violaria o direito de acesso à justiça, constitucionalmente assegurado a todos os indivíduos nos termos do disposto no art. 5.º, XXXV, da CF. Sustentou-se não se poder punir aquele que, a despeito de formular pedido descabido ou estapafúrdio, obtém a tutela pleiteada. Destacou-se, ademais, a natureza dialética do processo, possibilitando o controle pela parte contrária, por meio do exercício de defesa e do contraditório, bem como a interposição dos recursos previstos no ordenamento jurídico. Observou-se, inclusive, que o magistrado não estaria obrigado a atender os pleitos formulados na inicial. Dessa forma, diante de tais circunstâncias, seria incompatível a ideia de ardil ou indução em erro do julgador, uma das elementares para a caracterização do delito de estelionato. (...) Por sua vez, concluiu-se que o Direito Penal, como ultima ratio, não deve ocupar-se de questões que encontram resposta no âmbito extrapenal. A deslealdade processual pode ser combatida com as regras dispostas no CPC, por meio da imposição de multa ao litigante de má-fé, além da possibilidade de punição disciplinar no âmbito do Estatuto da Advocacia.”328
Em síntese, não há crime naquilo que se convencionou chamar de “estelionato judiciário”. A propósito, merece destaque um elucidativo julgado do Superior Tribunal de Justiça:
O paciente, juntamente com outras pessoas, teria levado o juízo cível a erro e, assim, obtido vantagem supostamente indevida, em ação judicial que culminou na condenação da União ao pagamento de valores, o que, no entendimento da acusação, caracterizaria estelionato. (...) Discutiu-se a possibilidade de se praticar o tipo do crime previsto no art. 171 do CP na seara judicial, denominado pela jurisprudência e doutrina de “estelionato judiciário”. Nesta instância, entendeu-se que as supostas manobras e inverdades no processo podem configurar deslealdade processual e infração disciplinar, mas não crime de falso e estelionato. O caso carece de tipicidade penal; estranho, portanto, à figura do estelionato, mais ainda à do denominado estelionato judiciário.329
Na visão do Supremo Tribunal Federal, o procedimento denominado de “cola eletrônica”, no qual os candidatos burlam as provas de vestibulares, exames ou concursos públicos mediante a comunicação por meios eletrônicos (transmissores e receptores) com pessoas especialistas nas matérias exigidas nas avaliações, não constitui estelionato nem falsidade ideológica (CP, art. 299).330
No julgamento do Inquérito Policial 1.145/PB, o Plenário do Supremo Tribunal Federal inaugurou, por maioria de votos, o citado entendimento. Os Ministros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio defendiam o enquadramento típico da “cola eletrônica” no art. 171, caput, do Código Penal, em face da incidência de todos os elementos conceituais do crime de estelionato:
(a) obtenção de vantagem ilícita;
(b) infligência de prejuízo alheio, que há de ser de índole patrimonial ou por qualquer forma redutível a pecúnia, pois o crime de estelionato insere-se no Título do Código Penal destinado à proteção do patrimônio;
(c) a “cola eletrônica” é meio idôneo para acarretar prejuízo patrimonial de dupla face: (1) à instituição que coloca as vagas em disputa, relativamente às pessoas despreparadas que se habilitariam de modo desonesto, além da necessidade de anular o certame e realizar novo e custoso processo seletivo; e (2) aos candidatos que, no número exato dos fraudadores, deixariam injustamente de ser aprovados;
(d) utilização de meio fraudulento; e
(e) induzimento ou manutenção de alguém em erro.
Mas prevaleceu a tese contrária, capitaneada pelo Ministro Gilmar Mendes e adotada pelos integrantes remanescentes do Excelso Pretório, excluindo o estelionato e a falsidade ideológica e alicerçada nos seguintes fundamentos:
(a) impossibilidade de enquadramento da conduta no delito de falsidade ideológica, mesmo sob a modalidade de “inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”;
(b) embora seja evidente que a declaração fora obtida por meio reprovável, não há como classificar o ato declaratório como falso; e
(c) o tipo penal constitui importante mecanismo de garantia do acusado. Não é possível abranger como criminosas condutas que não tenham pertinência em relação à conformação estrita do enunciado penal. Não se pode pretender a aplicação da analogia para abarcar hipótese não mencionada no dispositivo legal (analogia in malam partem). Deve-se adotar o fundamento constitucional do princípio da reserva legal na esfera penal. Por mais reprovável que seja a lamentável prática da “cola eletrônica”, a persecução penal não pode ser legitimamente instaurada sem o atendimento mínimo dos direitos e garantias constitucionais vigentes em nosso Estado Democrático de Direito.331
Para nós, a “cola eletrônica” sempre caracterizou o crime de estelionato. Com efeito, a conduta de quem a comete ou concorre para a sua prática se subsume no art. 171, caput, do Código Penal.
O sujeito obtém para si vantagem ilícita de índole econômica (ingresso em Universidade ou aprovação em processo seletivo, concurso ou exame público), em prejuízo alheio (da Universidade, do Poder Público e de outro candidato, preterido em razão do procedimento ilegal), induzindo alguém em erro (comissão examinadora) mediante o emprego de meio fraudulento (resolução das questões com auxílio de terceiros).
Entretanto, este panorama sofreu profundas alterações com a entrada em vigor da Lei 12.550/2011, a qual criou um crime especial – fraudes em certames de interesse público – no qual se subsume a conduta daquele que pratica ou concorre para a prática da “cola eletrônica”. A redação do tipo penal é a seguinte:
Art. 311-A. Utilizar ou divulgar, indevidamente, com o fim de beneficiar a si ou a outrem, ou de comprometer a credibilidade do certame, conteúdo sigiloso de:
I – concurso público;
II – avaliação ou exame públicos;
III – processo seletivo para ingresso no ensino superior; ou
IV – exame ou processo seletivo previstos em lei:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
§ 1.º Nas mesmas penas incorre quem permite ou facilita, por qualquer meio, o acesso de pessoas não autorizadas às informações mencionadas no caput.
§ 2.º Se da ação ou omissão resulta dano à administração pública:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
§ 3.º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se o fato é cometido por funcionário público.
Destarte, atualmente existe crime específico envolvendo a fraude em certames de interesse público. O comportamento inerente à cola eletrônica se enquadra na descrição do art. 311-A do Código Penal. O conflito aparente com o art. 171, caput, do Código Penal é solucionado pelo princípio da especialidade.332
Para o Supremo Tribunal Federal, não há estelionato na conduta do advogado que cobra honorários advocatícios do assistido beneficiado pela assistência judiciária gratuita. Vale a pena conferir:
Em conclusão, a 1.ª Turma, por maioria, concedeu habeas corpus para trancar ação penal ao fundamento de atipicidade de conduta (CP, art. 171, caput). Na espécie, o paciente supostamente teria auferido vantagem para si, em prejuízo alheio, ao cobrar honorários advocatícios de cliente beneficiado pela assistência judiciária gratuita, bem como forjado celebração de acordo em ação de reparação de danos para levantamento de valores referentes a seguro de vida. Aduzia a impetração que, depois de ofertada e recebida a denúncia, o juízo cível homologara, por sentença, o citado acordo, reputando-o válido, isento de qualquer ilegalidade; que os autores não teriam sofrido prejuízo algum; e que os honorários advocatícios seriam efetivamente devidos. Consignou-se não haver qualquer ilegalidade ou crime no fato de advogado pactuar com seu cliente – em contrato de risco – a cobrança de honorários, no caso de êxito em ação judicial proposta, mesmo quando gozasse do benefício da gratuidade de justiça. Frisou-se que esse entendimento estaria pacificado no Enunciado 450 da Súmula do STF: “São devidos honorários de advogado sempre que vencedor o beneficiário da justiça gratuita”.333
Pode ser qualquer pessoa (crime comum), tanto a responsável pelo emprego da fraude como aquela beneficiada pela vantagem ilícita. Vale frisar que normalmente tais condições reúnem-se na mesma pessoa.
Além disso, o estelionato é compatível com a coautoria e com a participação. As situações doravante expostas bem explicam o concurso de agentes no delito em análise:
1.ª) Coautoria: “A”, mediante fraude, induz ou mantém alguém em erro. “B”, previamente ajustado com “A”, recebe o bem em decorrência do engano do ofendido, alcançando a vantagem ilícita em prejuízo alheio. Ambos respondem como coautores do estelionato; e
2.ª) Participação: “A”, induzido, instigado ou auxiliado por “B”, vale-se de meio fraudulento para colocar ou manter alguém em erro, visando obter em proveito próprio ou alheio uma vantagem ilícita, em prejuízo da vítima. “A” é autor do estelionato, e “B” figura na condição de partícipe.
Mas uma hipótese curiosa pode ocorrer. Como para a caracterização do estelionato é imprescindível a obtenção da vantagem ilícita “para si ou para outrem”, qual delito será imputado ao terceiro, destinatário desta vantagem, que não participa da execução do crime nem induz, instiga ou auxilia o autor em sua prática?
Sem dúvida alguma, ele não será partícipe do estelionato, uma vez que não concorreu para o delito. Desta forma, três soluções podem ser apresentadas:
(a) se o terceiro receber o bem ciente da sua origem criminosa, responderá por receptação dolosa própria (CP, art. 180, caput, 1.ª parte);
(b) se ele receber o bem devendo presumir sua origem criminosa, responderá por receptação culposa (CP, art. 180, § 3.º); e
(c) se o terceiro não tiver conhecimento da origem criminosa do bem, nem suspeitas fundadas desta, não responderá por nenhum delito, pois o fato será atípico em razão da ausência de dolo ou culpa.
Pode ser qualquer pessoa, física ou jurídica (de direito público ou de direito privado), seja quem é enganado pela fraude, seja quem suporta o prejuízo patrimonial. Em regra, tais condições estão presentes em uma só pessoa. Como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal:
Estelionato. Tipicidade. Caracterização. Sujeito passivo. Delito que teria sido cometido em dano patrimonial de pessoa jurídica. Indução a erro de outras pessoas. Irrelevância. Inteligência do art. 171 do CP. O sujeito passivo do delito de estelionato pode ser qualquer pessoa, física ou jurídica. Mas a pessoa que é iludida ou mantida em erro ou enganada pode ser diversa da que sofre a lesão patrimonial.334
A vítima deve ser pessoa certa e determinada, pois o tipo penal fala em “prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro”.
Consequentemente, as condutas voltadas a pessoas incertas e indeterminadas (exemplo: adulteração de bomba de posto de combustíveis ou de balança de supermercado), ainda que sirvam de fraude para obter vantagem ilícita em prejuízo alheio, configuram crime contra a economia popular, nos termos do art. 2.º, inciso XI, da Lei 1.521/1951.335 Se, contudo, alguém vier a ser efetivamente lesado, haverá concurso formal entre o crime contra a economia popular (contra as vítimas incertas e indeterminadas) e o estelionato (contra a vítima certa e determinada).
Além disso, as condutas fraudulentas dirigidas contra máquinas e aparelhos eletrônicos não caracterizam estelionato, pois, repita-se, a vítima há de ser “alguém”. Nesse sentido, não há estelionato, mas furto, na clonagem de cartão bancário para efetuar saque indevido perante terminal eletrônico de instituição financeira.
Se o sujeito abusa, em proveito próprio ou alheio, de necessidade, paixão ou inexperiência de menor, ou da alienação ou debilidade mental de outrem, induzindo qualquer deles à prática de ato suscetível de produzir efeito jurídico, em prejuízo próprio ou de terceiro, o crime será o de abuso de incapazes, tipificado pelo art. 173 do Código Penal.
É o dolo, acrescido de um especial fim de agir (elemento subjetivo específico) representado pela expressão “para si ou para outrem”. Exige-se a finalidade de obtenção de lucro indevido, em proveito próprio ou alheio, razão pela qual não há estelionato na ausência de conhecimento acerca da ilicitude da locupletação em prejuízo alheio.
Não se admite a modalidade culposa.
Como diferenciar a fraude penal da fraude civil? Como identificar a existência do crime de estelionato ou de um mero ilícito civil?
Sem dúvida alguma, existe identidade perfeita entre a fraude elementar do estelionato e a fraude que vicia os contratos civis com fundo econômico. Ambas apresentam a nota da malícia no tocante a uma locupletação injusta. Mas, então, por que há diversos atos ilícitos revestidos de fraude que se sujeitam exclusivamente à sanção civil, tais como o inadimplemento voluntário de disposição contratual, a demanda por dívida não vencida, o abuso de direito, o ato emulativo e tantos outros?
Nélson Hungria, com sua incomparável maestria, nos brinda com a seguinte explicação:
Na diversidade de tratamento de fatos antijurídicos, a lei não obedece a um critério de rigor científico ou fundado numa distinção ontológica entre tais fatos, mas simplesmente a um ponto de vista de conveniência política, variável no tempo e no espaço. Em princípio, ou sob o prisma da lógica pura, a voluntária transgressão da norma jurídica deveria importar sempre a pena (stricto sensu). Praticamente, porém, seria isso uma demasia. O legislador é um oportunista, cabendo-lhe apenas, inspirado pelas exigências do meio social, assegurar, numa dada época, a ordem jurídica mediante sanções adequadas. Se o fato contra jus não é de molde a provocar um intenso ou difuso alarme coletivo, contenta-se ele com o aplicar a mera sanção civil (ressarcimento do dano, execução forçada, nulidade do ato). O Estado só deve recorrer à pena quando a conservação da ordem não se possa obter por outros meios de reação, isto é, com os meios próprios do direito civil (ou de outro ramo do direito que não o penal). A pena é um mal, não somente para o réu e sua família, senão também, sob o ponto de vista econômico, para o próprio Estado. Assim, dentro de um critério prático, é explicável que este se abstenha de aplicá-la fora dos casos em que tal abstenção represente um mal maior.336
Invoca-se o princípio da subsidiariedade. O Direito Penal é modernamente compreendido como ultima ratio (medida extrema ou última razão), pois se constitui em disciplina jurídica excessivamente gravosa e invasiva da esfera de liberdade do cidadão. Assim sendo, se a fraude não ingressar na seara penal, podendo ser solucionada por outros ramos do Direito, menos drásticos, melhor. Reserva-se a atuação penal única e exclusivamente para as hipóteses estritamente necessárias. No resto, busca-se a resolução do litígio por uma via menos lesiva aos envolvidos, e, por corolário, também ao Estado.
E prossegue o incomparável Hungria:
A ilicitude jurídica é uma só, do mesmo modo que um só, na sua essência, é o dever jurídico. Dizia Bentham que as leis são divididas apenas por comodidade de distribuição: todas leis podiam ser, por sua identidade substancial, dispostas “sobre um mesmo plano, sobre um só mapa mundi”. No que têm de fundamental, coincidem o delito civil e o delito penal. Um e outro são uma rebeldia contra a ordem jurídica. Consistem ambos num fato exterior do homem, antijurídico, imputável a título de dolo ou de culpa. A única diferença entre eles está na maior gravidade do delito penal, que, por isso mesmo, provoca mais extensa e intensa perturbação social. Diferença puramente de grau ou quantidade.337
Conclui-se, portanto, que todo estelionato também enseja o surgimento da fraude civil. Mas a recíproca não é verdadeira. Nem todo ilícito civil configura estelionato, reservando-se a figura penal para os casos extremos, isto é, aqueles que extrapolem as barreiras do Direito Civil, e por este motivo não puderam ser por ele solucionados. O Direito Penal atua como um soldado de reserva, legitimando-se sua atuação apenas quando demonstrada a impotência do ramo civil para enfrentamento da fraude.
O estelionato é crime de duplo resultado. Sua consumação depende de dois requisitos cumulativos:
(a) obtenção de vantagem ilícita; e
(b) prejuízo alheio.
Este é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça: “A doutrina penal ensina que o resultado, no estelionato, é duplo: benefício para o agente e lesão ao patrimônio da vítima”.338
Cuida-se de crime material e instantâneo. A consumação depende da lesão patrimonial e do prejuízo ao ofendido (duplo resultado naturalístico) e ocorre em momento determinado, sem continuidade no tempo.
Como mencionado, o estelionato em regra é crime instantâneo. Em alguns casos, porém, é possível classificá-lo quanto ao tempo da consumação como crime instantâneo de efeitos permanentes, ou seja, a consumação ocorre em um momento determinado, mas seus efeitos prolongam-se no tempo. É o que se dá, exemplificativamente, quando alguém apresenta documentos falsos para fraudar o Instituto Nacional da Seguridade Social – INSS, causando o recebimento indevido de benefícios previdenciários ao longo de vários meses, quiçá anos.
Cumpre destacar que nessa hipótese o crime se consuma com a obtenção da vantagem ilícita em prejuízo alheio, isto é, no momento em que o sujeito recebe a primeira parcela do benefício previdenciário, nada obstante seus efeitos subsistam ao longo do tempo. Em razão disso, a prescrição da pretensão punitiva tem como termo inicial o recebimento da primeira prestação, em conformidade com a regra delineada pelo art. 111, inciso I, do Código Penal. Assim já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal:
É crime instantâneo de efeitos permanentes o chamado estelionato contra a Previdência Social (art. 171, § 3.º, do Código Penal) e, como tal, consuma-se com o recebimento da primeira prestação do benefício indevido, contando-se daí o prazo de prescrição da pretensão punitiva.339
Mas é importante fazer uma ressalva. Há duas situações diversas no estelionato previdenciário: a do terceiro que implementa fraude para que uma pessoa diferente possa lograr o benefício — na qual resta configurado crime instantâneo de efeitos permanentes — e a do beneficiário acusado pela fraude, que comete crime permanente enquanto mantiver em erro o INSS.340
É de se observar a compatibilidade do estelionato previdenciário com o instituto do crime continuado, previsto no art. 71 do Código Penal. Na visão do Superior Tribunal de Justiça:
A regra da continuidade delitiva é aplicável ao estelionato previdenciário (art. 171, § 3.º, do CP) praticado por aquele que, após a morte do beneficiário, passa a receber mensalmente o benefício em seu lugar, mediante a utilização do cartão magnético do falecido. Nessa situação, não se verifica a ocorrência de crime único, pois a fraude é praticada reiteradamente, todos os meses, a cada utilização do cartão magnético do beneficiário já falecido. Assim, configurada a reiteração criminosa nas mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução, tem incidência a regra da continuidade delitiva prevista no art. 71 do CP. A hipótese, ressalte-se, difere dos casos em que o estelionato é praticado pelo próprio beneficiário e daqueles em que o não beneficiário insere dados falsos no sistema do INSS visando beneficiar outrem; pois, segundo a jurisprudência do STJ e do STF, nessas situações o crime deve ser considerado único, de modo a impedir o reconhecimento da continuidade delitiva.341
A reparação do dano não apaga o crime de estelionato.342 Em sintonia com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
O delito de estelionato consuma-se com a obtenção da vantagem ilícita em prejuízo alheio. Desde que o sujeito ativo desfrute, durante algum tempo, da vantagem indevida, em prejuízo alheio, consuma-se o crime, que não desaparece pelo ressarcimento do dano.343
Mas, dependendo do momento em que a vítima for indenizada, algumas situações podem ocorrer:
(a) se anterior ao recebimento da denúncia ou queixa, será possível o reconhecimento do arrependimento posterior, diminuindo-se a pena de um a dois terços, nos termos do art. 16 do Código Penal. Na ótica do Superior Tribunal de Justiça:
O arrependimento posterior do agente, que é causa obrigatória de redução de pena – hipótese dos autos –, não se confunde com a figura do arrependimento eficaz, que impede a consumação do crime. A consumação do delito de estelionato operou-se com a compra de relógio com cartão de crédito pertencente a outrem. A reparação do dano anteriormente ao recebimento da denúncia não extingue a punibilidade, podendo, apenas, minorar a pena aplicada ao agente do delito.344
(b) se antes da sentença, poderá ser aplicada a atenuante genérica prevista no art. 65, inciso III, b, parte final, do Código Penal; e
(c) se posterior à sentença, não surtirá efeito algum.