É possível, desde que tenha se iniciado a execução do estelionato, mas o crime não se consume por circunstâncias alheias à vontade do agente. Como já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça:
A consumação do crime de estelionato somente se dá com a efetiva obtenção de vantagem ilícita, em detrimento de outrem, através de sua indução ou manutenção em erro, utilização de artifício, ardil ou fraude. Não há ilegalidade na decisão que reconhece a figura da tentativa de crime de estelionato, se o réu, preso em flagrante delito, logo após o ludíbrio da vítima, não desfrutou, sequer momentaneamente, do produto da fraude.345
A redação do art. 171, caput, do Código Penal autoriza a conclusão no sentido de ser possível a tentativa de estelionato em três situações distintas:
(a) o sujeito emprega o meio fraudulento, mas não consegue enganar a vítima. Leva-se em conta o perfil subjetivo do ofendido, e não a figura do homem médio.
Nessa hipótese, somente estará caracterizado o conatus se a fraude era apta a ludibriar o ofendido, pois em caso contrário deverá ser reconhecido o crime impossível, nos moldes do art. 17 do Código Penal, em face da ineficácia absoluta do meio de execução.
Cezar Roberto Bitencourt, entretanto, tem posição diversa:
No estelionato, crime que requer a cooperação da vítima, o início da sua execução se dá com o engano da vítima. Quando o agente não consegue enganar a vítima, o simples emprego de artifício ou ardil caracteriza apenas a prática de atos preparatórios, não se podendo cogitar de tentativa de estelionato.346
(b) o sujeito utiliza o meio fraudulento, engana a vítima, mas não consegue obter a vantagem ilícita por circunstâncias alheias à sua vontade.
(c) o sujeito utiliza o meio fraudulento, engana a vítima, obtém a vantagem ilícita, mas não causa prejuízo patrimonial ao ofendido. Há tentativa, pois o estelionato se constitui em crime de duplo resultado. Não basta a obtenção da vantagem ilícita, sendo imperiosa a lesão ao patrimônio alheio.
Qualquer que seja o meio de execução (artifício, ardil ou outro meio fraudulento) empregado na prática da conduta, só estará caracterizada a tentativa de estelionato quando ele apresentar idoneidade para ludibriar a vítima.
A constatação desta idoneidade leva em conta as condições pessoais do ofendido, exteriorizadas pela sua maior ou menor experiência de vida e perspicácia para compreensão da fraude, bem como pelas circunstâncias específicas do caso concreto, tais como o local em que o fato foi praticado, os hábitos das pessoas na vivência em sociedade etc.
Se o meio fraudulento revelar-se capaz de enganar a vítima, estará caracterizado o conatus, pouco importando seja a fraude inteligente ou grosseira. Entretanto, se o meio de execução não tiver o condão de iludir o ofendido, restará configurado o crime impossível, nos moldes do art. 17 do Código Penal, em face da sua absoluta ineficácia. Para o Superior Tribunal de Justiça:
Não há falar em crime impossível pela inidoneidade do meio empregado, porquanto, não fosse o fato de vir ao conhecimento da vítima a cédula de identidade original, os documentos apresentados teriam eficácia para induzir e/ou manter a vítima em erro.347
No terreno da falsificação de papel-moeda, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 73: “A utilização de papel-moeda grosseiramente falsificado configura, em tese, o crime de estelionato, de competência da Justiça Estadual”.
A citada súmula, reportando-se ao “papel-moeda grosseiramente falsificado”, diz respeito àquele que, malgrado não possa ser enquadrado como delito de moeda falsa (CP, art. 289), serve para enganar as pessoas, não se podendo falar, relativamente ao estelionato, em crime impossível.
Mas, se a falsificação apresentar-se grosseira a ponto de não enganar nem mesmo a mais ingênua das pessoas, estará caracterizado o crime impossível, em face da impropriedade absoluta do meio de execução (CP, art. 17).348
A ação penal é pública incondicionada em todas as espécies de estelionato, a saber, na modalidade fundamental (CP, art. 171, caput), na forma privilegiada (CP, art. 171, § 1.º), nas figuras equiparadas (CP, art. 171, § 2.º) e também na forma agravada (CP, art. 171, § 3.º).
O estelionato, em qualquer de suas modalidades (caput ou § 2.º), é crime de médio potencial ofensivo, pois o mínimo da sua pena privativa de liberdade (1 ano) autoriza a incidência da suspensão condicional do processo, se presentes os requisitos exigidos pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.
Mas será vedado o benefício quando aplicável a majorante contida no § 3.º do art. 171 do Código Penal, pois nessa hipótese o mínimo da pena privativa de liberdade ultrapassa o limite admitido pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.
O estelionato é crime comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); de forma livre (admite qualquer meio de execução); material e de duplo resultado (consuma-se com a obtenção da vantagem ilícita em prejuízo alheio); instantâneo (consuma-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo) ou, excepcionalmente, instantâneo de efeitos permanentes (a exemplo da fraude praticada contra o INSS); em regra plurissubsistente (a conduta é composta de diversos atos); de dano (a consumação reclama a efetiva lesão ao patrimônio da vítima); e unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (cometido normalmente por uma só pessoa, nada obstante seja possível o concurso de agentes).
O estelionato é crime de competência da Justiça Estadual.349
Entretanto, será competente a Justiça Federal quando o delito for praticado em detrimento de bens, serviços ou interesses da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas (CF, art. 109, inc. IV). Nesse sentido, assim já decidiu o Supremo Tribunal Federal: “Crime de estelionato. Falsificação de guias de recolhimento à Dataprev. Prejuízo à Previdência (Iapas). Competência da Justiça Federal”.350
Frise-se, porém, o enunciado da Súmula 107 do Superior Tribunal de Justiça: “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime de estelionato praticado mediante falsificação das guias de recolhimento das contribuições previdenciárias, quando não ocorre lesão à autarquia federal”. Esta súmula encontra-se em sintonia com o art. 109, inciso IV, da Constituição Federal.
Nos termos do art. 70 do Código de Processo Penal, a competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração. E esta regra também se aplica ao estelionato, de modo que o juízo competente será o do local em que o sujeito obteve a vantagem ilícita em prejuízo alheio (crime de duplo resultado). O mencionado dispositivo legal, a propósito, serviu de fundamento para a edição, pelo Superior Tribunal de Justiça, da Súmula 48: “Compete ao juízo do local da obtenção da vantagem ilícita processar e julgar crime de estelionato cometido mediante falsificação de cheque”.
Anote-se que esta súmula relaciona-se ao crime definido pelo estelionato em sua modalidade fundamental, pois o sujeito falsifica um cheque de terceiro (meio fraudulento) para enganar a vítima, obtendo vantagem ilícita em prejuízo alheio. Não se trata de figura equiparada prevista no art. 171, § 2.º, inciso VI, do Código Penal, na qual o titular da conta corrente emite dolosamente um cheque de sua titularidade, mas sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o pagamento.
Torpeza bilateral ou fraude bilateral é a situação na qual a pessoa lesada em seu patrimônio também atua com má-fé, pois igualmente tem a finalidade de obter para si ou para terceiro uma vantagem ilícita. É o que ocorre, a título ilustrativo, na hipótese em que a cafetina recebe dinheiro de um cliente do seu bordel, prometendo entregar-lhe uma moça virgem, quando em realidade a ele proporciona uma jovem prostituta, ou quando um pretenso falsário compra uma inoperante máquina de fabricar dinheiro (“conto da guitarra”).
Surge uma indagação. Existe crime de estelionato no contexto da torpeza bilateral?
Nélson Hungria defendia a atipicidade do fato, pois o Direito Penal não pode tutelar a má-fé da suposta vítima. Se não bastasse, o sujeito que se comportou fraudulentamente sequer poderia ser acionado na esfera civil, uma vez que a ninguém é dado pleitear a reparação do dano invocando a própria torpeza.351
Mas este raciocínio não encontrou eco na doutrina. A propósito, Heleno Cláudio Fragoso assim sustentava a caracterização do estelionato na torpeza bilateral:
Em primeiro lugar, não existe patrimônio juridicamente não protegido contra o estelionato. Antes de ser instituto de direito privado, o patrimônio é instituto de direito constitucional, sendo, pois, irrelevantes para o direito penal as consequências civis, no que concerne ao ressarcimento do dano. (...)
Em segundo lugar, a imoralidade da vítima jamais poderia ser considerada pela lei penal para tornar lícita a ação normalmente criminosa. Trata-se de argumento puramente moral (...).
Em terceiro lugar, por parte da vítima há apenas a intenção de praticar um crime ou uma ação imoral, intenção que não interessa ao direito penal, pois não é punível. E se a vítima chegasse a tentar, no acordo ilícito, a prática de qualquer crime, a solução seria puni-la também e não deixar impune o estelionatário. Por outro lado, a punição deste não visa a obrigá-lo a cumprir o acordo, mas é disposta a outros fins. O engano a que é submetida a vítima faz com que, no contexto geral da ação, não exista senão uma burla e uma fraude.
Nem se exige a boa-fé do lesado como elemento do crime, de forma a que o prejuízo que sofra seria injusto.352
Em síntese, os argumentos pela existência do crime são os seguintes:
a) não se pode ignorar a má-fé do agente que utilizou a fraude e obteve a vantagem ilícita em prejuízo alheio, nem o fato de a vítima ter sido ludibriada, e, reflexamente, ter suportado prejuízo econômico;
b) a boa-fé da vítima não é elementar do tipo contido no art. 171, caput, do Código Penal; e
c) a reparação civil do dano interessa somente à vítima, enquanto a punição do estelionatário interessa a toda a coletividade.
Esta é a posição do Supremo Tribunal Federal:
Fraude bilateral. Embora reprovável a conduta da vítima que participa da trama de outrem, visando vantagem ilícita, a sua boa-fé não é elemento do tipo previsto no art. 171 do Código Penal. Sanciona-se a conduta de quem arquiteta a fraude, porque o Direito Penal tem em vista, primordialmente, a ofensa derivada do delito.353
O Superior Tribunal de Justiça também já se manifestou neste sentido:
Desde que a ação amolde-se à figura típica do art. 171 do Código Penal, não há como excluir o crime por eventual torpeza bilateral, sendo irrelevante para configuração do delito a participação, maliciosa ou não, da vítima.354
O jogo de azar constitui-se em contravenção penal, em conformidade com o art. 50 do Decreto-lei 3.688/1941 – Lei das Contravenções Penais:
Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele:
Pena – prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis e objetos de decoração do local.
(...)
§ 3.º Consideram-se, jogos de azar:
a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte;
b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas;
c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva.
Se, entretanto, a finalidade do agente for obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos, estará caracterizado crime contra a economia popular, nos termos do art. 2.º, inciso IX, da Lei 1.521/1951.
Finalmente, existirá crime de estelionato na hipótese de o sujeito empregar qualquer meio fraudulento destinado a eliminar totalmente a possibilidade de vitória por parte dos jogadores. É o que se dá, exemplificativamente, quando o dono do bar altera uma máquina caça-níquel para que os apostadores jamais saiam vencedores. Em consonância com uma clássica decisão do Supremo Tribunal Federal:
No estelionato o meio de ataque ao patrimônio é a astúcia, o engodo e a fraude. No jogo de azar a fraude, eliminando o fator sorte, tira ao sujeito passivo toda a possibilidade de ganho. O jogo torna-se, então, simples roupagem, para “mise-en-scène”, destinada a ocultar o expediente de que se serve o criminoso para iludir a vítima. O jogo da chapinha, ou o “jogo do pinguim”, são formas de estelionato e não mera contravenção do art. 50 da Lei das Contravenções Penais.355
Cumpre destacar, por oportuno, que não há estelionato nas apostas ilícitas, nada obstante o sujeito utilize fraude para excluir a chance de vitória pelos jogadores, para aqueles que sustentam a inexistência do delito na hipótese de torpeza bilateral.
A falsa promessa de cura de problemas (físicos, psicológicos, amorosos etc.) pode, dependendo do caso concreto, caracterizar curandeirismo ou estelionato.
O crime de curandeirismo encontra tipificação no art. 284 do Código Penal:
Art. 284. Exercer o curandeirismo:
I – prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância;
II – usando gestos, palavras ou qualquer outro meio;
III – fazendo diagnósticos:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos.
Parágrafo único. Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa.
Percebe-se que o curandeirismo também pode ser praticado em troca de remuneração. Mas qual é, então, a diferença entre este crime e o estelionato? A resposta é simples.
O curandeiro acredita ser capaz, com sua atividade, de resolver os problemas da vítima. Ainda que cobre pelos “serviços” prestados, ele tem a crença de solucionar o mal que acomete o ofendido. Em razão disso, o curandeirismo consta entre os crimes contra a saúde pública.
De outro lado, o estelionatário sabe ser o meio fraudulento por ele utilizado inidôneo a resolver as necessidades da vítima, aproveitando-se da sua vulnerabilidade para obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio. Desta forma, como o estelionato é crime de forma livre, compatível com qualquer meio de execução, o sujeito pode se valer inclusive de atividades inerentes ao curandeirismo para enganar a vítima, mediante falsa promessa de livrá-la dos seus malefícios.
É de destacar, porém, que os trabalhos religiosos e espirituais, a exemplo da cartomancia, dos passes, da macumba e da bruxaria, desde que praticados gratuitamente, não constituem crime, em face da liberdade de credo e de religião assegurada pelo art. 19, inciso I, da Constituição Federal. Não se pode sequer falar na contravenção penal de exploração da credulidade pública, pois o art. 27 do Decreto-lei 3.688/1941 foi revogado pela Lei 9.521/1997.
Discute-se acerca do enquadramento típico da conduta do sujeito que falsifica um documento (público ou particular) e, posteriormente, dele se vale para enganar alguém, obtendo vantagem ilícita em prejuízo alheio. Em tese, há dois crimes: estelionato e falsidade documental (CP, art. 171, caput, e art. 297 – documento público, ou art. 298 – documento particular). Mas na prática qual será a responsabilidade penal do agente?
Há quatro posições sobre o assunto. Passemos à análise de cada uma delas.
1.ª posição: A falsidade documental absorve o estelionato
É a posição de Nélson Hungria. O falso é crime formal, pois se consuma com a falsificação do documento, independentemente de qualquer resultado posterior. Mas, se sobrevier o resultado naturalístico, do qual é exemplo a obtenção da indevida vantagem econômica, não há falar em outro delito, mas sim em exaurimento da falsidade documental. São suas palavras:
Quando a um crime formal se segue o dano efetivo, não surge novo crime: o que acontece é que ele se exaure, mas continuando a ser único e o mesmo (à parte a sua maior punibilidade, quando a lei expressamente o declare. A obtenção de lucro ilícito mediante falsum não é mais que um estelionato qualificado pelo meio (Impalomeni). É um estelionato que, envolvendo uma ofensa à fé pública, adquire o nomen iuris de “falsidade”.356
Esta posição ganha ainda mais força quando se trata de falsificação de documento público, que tem pena mais elevada do que a do estelionato. O crime mais grave (falsificação de documento público: reclusão, de 2 a 6 anos) absorveria o crime menos grave (estelionato: reclusão, de 1 a 5 anos).
2.ª posição: Há concurso material de crimes
Os crimes devem ser impostos cumulativamente, em concurso material (CP, art. 69). Em razão de ofenderem bens jurídicos diversos, afasta-se o fenômeno da absorção. De fato, a falsidade documental tem como objetividade jurídica a fé pública, ao passo que o estelionato é crime contra o patrimônio.
Se não bastasse, o crime de falso estaria consumado em momento anterior ao da prática do estelionato. E, se já estava consumado, não poderia sofrer nenhuma alteração posterior no plano da tipicidade.
Além disso, raciocínio diverso tornaria inútil a regra contida no art. 297, § 2.º, do Código Penal, na parte em que equipara a documento público os títulos ao portador ou transmissíveis por endosso, como é o caso do cheque. Com efeito, não se pode imaginar a falsificação de um cheque esgotando-se em si mesma, ou seja, sem o propósito do agente em utilizá-lo para a obtenção de uma vantagem econômica indevida em prejuízo alheio.
3.ª posição: Há concurso formal de crimes
Acolhem-se os mesmos fundamentos da posição anterior, relativamente à autonomia dos crimes de estelionato e de falsidade documental. Sustenta-se, todavia, que a conduta seria uma só, ainda que desdobrada em diversos atos. Na dosimetria da pena, portanto, o magistrado deve observar a regra contida no art. 70, caput, 1.ª parte, do Código Penal: aplicar qualquer delas, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentando-a de um sexto até metade.
Este sempre foi o entendimento consagrado no Supremo Tribunal Federal: “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que, em se tratando dos crimes de falsidade e de estelionato, este não absorve aquele, caracterizando-se, sim, concurso formal de delitos”.357
4.ª posição: O estelionato absorve a falsidade documental
Esta é a posição atualmente dominante, em razão de ter sido adotada pela Súmula 17 do Superior Tribunal de Justiça: “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido”.
O conflito aparente de leis penais é solucionado pelo princípio da consunção. O crime-fim (estelionato) absorve o crime-meio (falsidade documental), desde que este se esgote naquele, isto é, desde que a fé pública, o patrimônio ou outro bem jurídico qualquer não possam mais ser atacados pelo documento falsificado e utilizado por alguém como meio fraudulento para obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio.
Entendemos que o sujeito responsável pela falsificação de documento, público ou particular, que dele se aproveita para cometer estelionato, deve responder por ambos os crimes, em concurso material.
Discordamos do teor da Súmula 17 do Superior Tribunal de Justiça, pois não reputamos adequado falar na falsidade documental como ato anterior (ante factum) impunível no tocante ao estelionato. Afastamos, nesse caso, a incidência do princípio da consunção, pois ausente o conflito aparente de leis penais.
Como se sabe, atos anteriores, prévios ou preliminares impuníveis são aqueles que, nada obstante definidos como crimes autônomos, revelam-se imprescindíveis para a realização do tipo principal, e, portanto, são absorvidos por este último. Nesse contexto, podemos com segurança afirmar que o crime de estelionato não depende, obrigatoriamente, da prévia falsificação de documento, pois pode ser praticado por outros variados e infinitos meios fraudulentos.
Em conformidade com a definição do princípio da consunção, o fato anterior componente dos atos preparatórios ou de execução apenas será absorvido se apresentar menor ou igual gravidade quando comparado ao principal, para que este goze de força suficiente para consumir os demais, englobando-os em seu raio de atuação.
Destarte, desponta como manifesto o equívoco técnico da citada súmula, cuja redação vale a pena ser repetida: “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido”.
O enunciado jurisprudencial destina-se, precipuamente, às hipóteses em que o sujeito, com o escopo de praticar estelionato, falsifica materialmente uma cártula de cheque, documento particular equiparado a documento público por expressa determinação legal, nos termos do art. 297, § 2.º, do Código Penal. Este foi o problema prático que justificou a criação do verbete sumular.
Ora, o crime de falsificação de documento público é punido com reclusão de dois a seis anos, e multa. Sendo o fato mais amplo e grave, não pode ser consumido pelo estelionato, sancionado de forma mais branda. Mas não para por aí. Os delitos apontados atingem bens jurídicos diversos. Enquanto o estelionato constitui-se em crime contra o patrimônio, o falso agride a fé pública.
Se não bastasse, a falsificação de uma folha de cheque normalmente não se exaure no estelionato. Como o cheque é título ao portador, posteriormente ao estelionato a vítima pode notar o crime contra ele praticado e, não querendo suportar o prejuízo patrimonial, nada a impede de endossar a cártula e transmiti-la a outrem.
Assim sendo, fica nítido que tecnicamente não há falar em conflito aparente de leis, mas em autêntico concurso material de delitos. Portanto, se no rigor científico a súmula merece ser rejeitada, resta acreditar que a sua criação e manutenção se devem, exclusivamente, a motivos de política criminal, tornando a conduta cada vez mais próxima do âmbito civil, à medida que a pena pode ser, inclusive, reduzida pelo arrependimento posterior, benefício vedado ao crime de falso.
Mas devemos ser leais para advertir nosso leitor que em concursos públicos e exames de qualquer natureza é razoável utilizar a posição consagrada pela Súmula 17 do Superior Tribunal de Justiça, especialmente em provas objetivas. Nas provas dissertativas e orais, entretanto, é possível tecer críticas (moderadas e bem fundamentadas) ao entendimento dominante, caso sua posição acerca do assunto seja outra.
O art. 168 da Lei 11.101/2005 – Lei de Falências – contém um crime que, nada obstante apresente pontos comuns com o estelionato, dele se diferencia por conter elementos especializantes. O conflito aparente de leis penais é solucionado pelo princípio da especialidade. Vejamos seu texto:
Art. 168. Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial, ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem.
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
Aumento da pena
§ 1.º A pena aumenta-se de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se o agente:
I – elabora escrituração contábil ou balanço com dados inexatos;
II – omite, na escrituração contábil ou no balanço, lançamento que deles deveria constar, ou altera escrituração ou balanço verdadeiros;
III – destrói, apaga ou corrompe dados contábeis ou negociais armazenados em computador ou sistema informatizado;
IV – simula a composição do capital social;
V – destrói, oculta ou inutiliza, total ou parcialmente, os documentos de escrituração contábil obrigatórios.
Contabilidade paralela
§ 2.º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) até metade se o devedor manteve ou movimentou recursos ou valores paralelamente à contabilidade exigida pela legislação.
Concurso de pessoas
§ 3.º Nas mesmas penas incidem os contadores, técnicos contábeis, auditores e outros profissionais que, de qualquer modo, concorrerem para as condutas criminosas descritas neste artigo, na medida de sua culpabilidade.
Redução ou substituição da pena
§ 4.º Tratando-se de falência de microempresa ou de empresa de pequeno porte, e não se constatando prática habitual de condutas fraudulentas por parte do falido, poderá o juiz reduzir a pena de reclusão de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) ou substituí-la pelas penas restritivas de direitos, pelas de perda de bens e valores ou pelas de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas.
Em conformidade com o art. 171, § 1.º, do Código Penal: “Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor o prejuízo, o juiz pode aplicar a pena conforme o disposto no art. 155, § 2.º”.
Inicialmente, o criminoso deve ser primário, isto é, não pode ser reincidente. Mas não para por aí. Exige-se um segundo requisito, consistente em prejuízo de “pequeno valor”, que tem sido interpretado como o dano igual ou inferior a um salário mínimo vigente à época do fato.358
Veja-se, logo de início, que o legislador refere-se ao pequeno prejuízo da vítima, ao contrário do furto privilegiado (CP, art. 155, § 2.º), no qual se reclama o “pequeno valor da coisa”.
A aferição do pequeno valor do prejuízo leva em conta o momento da prática do crime. Depois de cometido o delito, a reparação do dano não autoriza a incidência do benefício legal, podendo caracterizar arrependimento posterior (CP, art. 16) ou atenuante genérica (CP, art. 65, inc. III, b), conforme o caso. Na linha de raciocínio do Supremo Tribunal Federal:
No estelionato privilegiado, o pequeno valor do prejuízo é circunstância atenuante específica, que integra o tipo, e deve ser aferido no momento da consumação do delito, por se tratar de crime instantâneo, entendendo-se por “pequeno valor” o de um salário mínimo vigente à época do fato. A posterior reparação do prejuízo é arrependimento posterior se feita até o recebimento da denúncia (art. 16 do CP); mesmo feita após o recebimento da denúncia, mas antes do julgamento, ainda assim é circunstância atenuante genérica (art. 65, III, “b”, do CP).359
Tratando-se de tentativa de estelionato, deve considerar-se o prejuízo que o sujeito desejava causar à vítima, somente não conseguindo fazê-lo por circunstâncias alheias à sua vontade.
Finalmente, nada obstante o § 1.º do art. 171 do Código Penal contenha a expressão “o juiz pode aplicar a pena”, entende-se ser a figura privilegiada do estelionato um direito subjetivo do réu. O magistrado tem liberdade para avaliar a presença ou não dos requisitos legalmente exigidos. Todavia, se reputá-los presentes, o julgador deverá reconhecer o benefício legal, sem nenhuma margem de discricionariedade.
O § 2.º do art. 171 do Código Penal prevê seis crimes especiais, equiparados ao estelionato. A pena é a mesma cominada no caput: reclusão, de um a cinco anos, e multa.
Estas subespécies de estelionato devem ser interpretadas com base no caput do art. 171 do Código Penal, salvo no que apresentarem disposição expressa em sentido contrário.
Desta forma, o bem jurídico penalmente tutelado é o patrimônio. Além disso, a fraude é o meio de execução utilizado pelo agente para enganar alguém e, consequentemente, obter vantagem ilícita em prejuízo alheio. Finalmente, o dolo é o elemento subjetivo de todos os delitos disciplinados pelo § 2.º do art. 171 do Código Penal, que se revelam incompatíveis com a culpa.
Analisemos separadamente cada um dos delitos.
Estabelece o art. 171, § 2.º, inciso I, do Código Penal que nas mesmas penas incorre quem: “vende, permuta, dá em pagamento, em locação ou em garantia coisa alheia como própria”.
Os núcleos do tipo penal são:
a) “vender”: é a transferência do domínio de uma coisa mediante o pagamento do preço (CC, art. 481). O tipo penal alcança a alienação de coisa adquirida com reserva de domínio, pois também se trata de venda.
A análise da Lei 4.728/1965 autoriza a conclusão no sentido de que a venda de bem na alienação fiduciária caracteriza o crime em apreço, desde que o comprador desconheça esta situação.
Como o verbo “vender” diz respeito unicamente à relação de compra e venda, o delito não se configura com o simples compromisso de compra e venda. A hipótese, entretanto, poderá ser enquadrada como estelionato em sua modalidade fundamental (CP, art. 171, caput).
O Superior Tribunal de Justiça, entretanto, já decidiu em sentido diverso:
O paciente, mediante procuração que não lhe conferia poderes para alienar imóvel, firmou promessa de compra e venda com a vítima, que lhe pagou a importância avençada no contrato sem, contudo, ser investida na posse. Mesmo diante da discussão a respeito de o contrato de promessa de compra e venda poder configurar o tipo do art. 171, § 2.º, I, do CP, o acórdão impugnado mostrou-se claro em afirmar que o paciente efetivamente alienou o imóvel que não era de sua propriedade mediante essa venda mascarada, da qual obteve lucro sem efetuar sua contraprestação por absoluta impossibilidade de fazê-la, visto que não era o proprietário do lote que, de fato, vendeu. Daí ser, no caso, inequívoca a tipicidade da conduta, mesmo que perpetrado o crime mediante a feitura de promessa, não se podendo falar, assim, em trancamento da ação penal.360
b) “permutar”: é a troca (CC, art. 533) As partes se obrigam a trocar uma coisa por outra.
c) “dar em pagamento”: se presente o consentimento do credor, este pode receber coisa que não seja dinheiro, em substituição da prestação originariamente devida (CC, art. 356).
d) “dar em locação”: o sujeito transfere a outra pessoa, por tempo determinado ou indeterminado, o uso e gozo da coisa, mediante contraprestação (CC, arts. 565 e seguintes e Lei 8.245/1991 – Lei de Locação de Imóveis). Como já decidiu o Supremo Tribunal Federal:
Ao assumir o locatário de imóvel postura relativa ao status de proprietário, anunciando-o a locação e, em um mesmo dia, locando-o a diversas pessoas, das quais haja recebido valores, a alcançar, também, a venda de móveis que guarneciam o imóvel, retirados adredemente, pratica o crime de estelionato.361
O art. 1.507 do Código Civil contém situações nas quais quem não é proprietário do bem pode locá-lo, afastando, assim, o crime definido pelo art. 171, § 2.º, inciso I, do Código Penal.
e) “dar em garantia”: direitos reais de garantia são o penhor (CC, arts. 1.431 e seguintes), a hipoteca (CC, arts. 1.473 e seguintes) e a anticrese (CC, arts. 1.506 e seguintes). É sabido que apenas o proprietário do bem pode gravá-lo com ônus real.
A constituição de outros direitos reais sobre coisa alheia, como o usufruto, caracteriza o delito de estelionato em sua modalidade fundamental (CP, art. 171, caput).
Em síntese, o sujeito finge ser proprietário de um determinado bem (móvel ou imóvel) e realiza uma das condutas típicas com terceiro de boa-fé, sem possuir autorização para tanto, vindo a causar prejuízo patrimonial a esta pessoa.
Cuida-se de crime de forma vinculada, pois o tipo penal indica expressamente seus modos de execução. A enumeração legal é taxativa e, repita-se, não engloba o simples compromisso de compra e venda.
Qualquer pessoa (crime comum).
Normalmente existem dois sujeitos passivos: o titular do objeto material que o sujeito se passa como proprietário e a pessoa ludibriada pela conduta criminosa.
Por este motivo, existe o crime mesmo quando o sujeito entrega o bem ao terceiro de boa-fé, pois quem suporta o prejuízo patrimonial, nessa hipótese, é o proprietário da coisa.
O momento consumativo depende do núcleo do tipo penal:
(a) “vender”: ocorre com o recebimento do preço da coisa pelo agente, ainda que não tenha se operado a tradição (bens móveis) ou a transcrição (bens imóveis);
(b) “permutar”: quando o sujeito recebe o bem permutado;
(c) “dar em pagamento”: quando o agente obtém a quitação da dívida;
(d) “dar em locação”: quando o sujeito recebe o valor correspondente ao primeiro aluguel; e
(e) “dar em garantia”: no instante em que o agente consegue o empréstimo.
São imprescindíveis a obtenção de vantagem ilícita e o prejuízo alheio (crime de duplo resultado). Para o Superior Tribunal de Justiça:
Para que se tipifique o estelionato, na modalidade disposição de coisa alheia como própria (art. 171, § 2.º, I, do CPB), exige-se a demonstração da obtenção, para si ou para outrem, da vantagem ilícita, do prejuízo alheio, do artifício, do ardil ou do meio fraudulento empregado com a venda, a permuta, a dação em pagamento, a locação ou a entrega, em garantia, da coisa de que não se tem a propriedade. No caso, conquanto comprovado que os imóveis apresentados para acordo em Ação Civil Pública movida contra a empresa loteadora e o Município, com a anuência do Prefeito, foram objeto de anterior Ação de Desapropriação, não se logrou demonstrar o ardil ou o meio fraudulento empregado, bem como a vantagem ilícita obtida por qualquer das partes ou o prejuízo alheio.362
É possível, qualquer que seja o núcleo do tipo penal.
Em conformidade com o art. 171, § 2.º, inciso II, do Código Penal, incorre nas mesmas penas o sujeito que “vende, permuta, dá em pagamento ou em garantia coisa própria inalienável, gravada de ônus ou litigiosa, ou imóvel que prometeu vender a terceiro, mediante pagamento em prestações, silenciando sobre qualquer dessas circunstâncias”.
O tipo penal encerra os mesmos núcleos previstos no art. 171, § 2.º, inciso I, do Código Penal, com exceção do “dar em locação”. Destarte, ficam mantidas as observações lançadas no art. 171, item 2.9.1.21.1.2.
A distinção entre esta subespécie de estelionato e a contida no inciso anterior repousa no objeto material. Naquela, a conduta criminosa incide sobre coisa alheia, móvel ou imóvel; nesta, por sua vez, o comportamento do agente recai em coisa de sua propriedade. O dispositivo legal indica os seguintes objetos materiais:
a) Coisa própria inalienável: é aquela que não pode ser vendida em razão de disposição legal (bens públicos: CC, art. 100) ou por convenção (cláusula de inalienabilidade temporária ou vitalícia, imposta aos bens pelos testadores ou doadores: CC, art. 1.911, caput e parágrafo único);
b) Coisa própria gravada de ônus: a lei não se limita aos direitos reais de garantia (penhor, anticrese e hipoteca), alcançando também outros direitos reais, como o usufruto (CC, art. 1.390 e seguintes), o uso (CC, art. 1.412 e seguintes), a servidão (CC, art. 1.378 e seguintes) e a habitação (CC, art. 1.414 e seguintes);
c) Coisa própria litigiosa: é a objeto de controvérsia submetida à apreciação do Poder Judiciário, tal como a ação de reivindicação; e
d) Imóvel que prometeu vender a terceiro, mediante pagamento em prestações: nessa hipótese, o objeto material há de ser coisa imóvel, ao contrário do que ocorre nas condutas anteriores, nas quais o bem pode ser móvel ou imóvel.
A análise do tipo penal revela que a alienação ou oneração de bens, por si sós, não constituem crime. O delito consiste em silenciar acerca do ônus ou encargo suportado pela coisa. Este é o meio fraudulento empregado pelo agente.
Ainda que as circunstâncias impeditivas da aquisição do bem móvel ou imóvel constem do Registro Público, gerando a presunção de seu conhecimento, isto não obsta a caracterização do delito.
Uma questão interessante deve ser observada. Discute-se se o sujeito que realiza qualquer das condutas típicas em relação a imóvel de sua propriedade penhorado em execução, em decorrência do inadimplemento de uma dívida, responde pelo crime em foco.
A resposta é didaticamente apresentada por Julio Fabbrini Mirabete:
(...) a penhora é instituto processual e não o ônus a que se refere o dispositivo, ou seja, o direito real sobre coisa alheia. Por essa razão, tem-se entendido ora pela atipicidade do fato e responsabilidade meramente civil do agente como depositário infiel, ora pelo delito de fraude à execução, e ora pelo delito de estelionato na forma básica.363
Qualquer pessoa (crime comum).
É a pessoa que suporta a lesão patrimonial.
Dá-se com a obtenção da vantagem ilícita em prejuízo alheio (crime de duplo resultado).
É possível.
Nos termos do art. 171, § 2.º, inciso III, do Código Penal, incorre nas penas aquele que “defrauda, mediante alienação não consentida pelo credor ou por outro modo, a garantia pignoratícia, quando tem a posse do objeto empenhado”.
“Defraudar” tem o significado de lesar, privar ou tomar um bem pertencente a outrem. O tipo penal deixa claro que a defraudação pode se concretizar por alienação do bem (exemplos: venda e doação) ou por qualquer outro modo, desde que seja idôneo para privar o credor no tocante à sua garantia pignoratícia (exemplos: abandono, destruição e ocultação).
A defraudação de penhor pode ser parcial. Nesse sentido, o devedor que aliena parte do bem empenhado pratica o crime em análise. Entretanto, poderá fazê-lo com o consentimento do credor (CC, art. 1.445), e nesse caso não cometerá crime nenhum. De fato, o próprio dispositivo legal indica expressamente o dissenso do credor como elementar do tipo penal.
Nos termos do art. 1.431 do Código Civil, “Constitui-se o penhor pela transferência efetiva da posse que, em garantia do débito ao credor ou a quem o represente, faz o devedor, ou alguém por ele, de uma coisa móvel, suscetível de alienação. Parágrafo único. No penhor rural, industrial, mercantil e de veículos, as coisas empenhadas continuam em poder do devedor, que as deve guardar e conservar”.
Na modalidade de penhor prevista no caput do art. 1.431 do Código Civil, a coisa móvel dada em garantia pelo devedor é transferida para a posse do credor ou quem ou represente, ou seja, há tradição da coisa. Não há falar, nessa hipótese, no crime definido pelo art. 171, § 2.º, inciso III, do Código Penal, em razão da transferência da posse do bem.
Para o crime em estudo interessa o penhor disciplinado pelo art. 1.431, parágrafo único, do Código Civil. A coisa móvel permanece em poder do devedor, e somente nesse caso é possível a defraudação do penhor, pois o tipo penal possui a expressão “quando tem a posse do objeto empenhado”. Em razão disso, assim já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:
A existência ou não de tradição real é irrelevante no delineamento do crime de defraudação de penhor, cujo tipo objetivo versa sobre a hipótese em que há tradição ficta da coisa oferecida como garantia, permanecendo a posse com o devedor.364
É a coisa móvel, porque somente esta é suscetível de penhor.
É o devedor que estava na posse da coisa móvel, nada obstante o contrato de penhor, e a alienou em prejuízo do credor. Como já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal:
O delito de defraudação de penhor tem como sujeito ativo o devedor, mas, sendo este uma pessoa jurídica, será autora do crime a pessoa física que agir em representação, por conta ou em benefício, da pessoa jurídica – no caso, o recorrente e o sócio-gerente da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, e alienou o bem fungível dado em penhor mercantil em benefício da empresa, respondendo, por isso, em tese pelo ato praticado.365
É o credor que, com a alienação ou outro meio qualquer de defraudação do penhor, fica sem a garantia da dívida, suportando prejuízo patrimonial.
O crime se consuma com a defraudação do penhor, ou seja, com a efetiva alienação, destruição, inutilização ou ocultação da coisa móvel. O sujeito obtém vantagem indevida em prejuízo alheio. Em sintonia com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
O crime de defraudação de penhor se configura com a obtenção de vantagem indevida, oriunda da alienação, de qualquer modo, de bem dado em penhor, seja ele fungível ou infungível. Caso o bem alienado seja fungível, é possível a reparação do dano, através da reposição do produto empenhado, bem como quitação da dívida em tempo, de modo a não causar prejuízo ao credor.366
É possível.
Como determina o art. 171, § 2.º, inciso IV, do Código Penal, incorre nas mesmas penas aquele que “defrauda substância, qualidade ou quantidade de coisa que deve entregar a alguém”.
O núcleo do tipo, mais uma vez, é “defraudar”, ou seja, lesar, privar ou tomar um bem pertencente a outrem.
Este crime pressupõe a existência de um negócio jurídico envolvendo duas pessoas, no qual o sujeito responsável pela entrega do objeto material fraudulentamente o modifica, entregando-o em seguida à vítima. É imprescindível a utilização da fraude, pois o mero inadimplemento de obrigação contratual não caracteriza o delito.367
Esta modificação da coisa pode recair sobre sua própria substância (exemplo: entregar bronze em lugar do ouro), sobre sua qualidade (exemplo: entregar um pneu recauchutado, e não um pneu novo) ou ainda sobre sua quantidade (exemplo: entregar 900 gramas de ouro em vez de um quilo do material).
Nada obstante o crime seja normalmente cometido em relação aos bens móveis, a coisa imóvel também pode ser defraudada. É o que se dá quando uma pessoa compra uma fazenda para dela extrair pedras, mas o alienante, depois de convencionado o negócio, retira parte do material rochoso para vender a uma empresa.
Vale destacar, porém, que, se a defraudação envolver substância ou produto alimentício destinado a consumo, tornando-a nociva à saúde ou reduzindo-lhe o valor nutritivo, estará configurado o crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de substância ou produtos alimentícios, na forma definida pelo art. 272 do Código Penal.
Finalmente, se a defraudação relacionar-se a produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, será imputado ao agente o crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, previsto no art. 273 do Código Penal. Este crime, aliás, tem natureza hedionda, como se extrai do art. 1.º, inciso VII-B, da Lei 8.072/1990.
Exige o tipo penal que haja uma obrigação vinculando o agente à vítima, de forma que aquele tenha o dever de entregar algo a esta última. Tal obrigação pode decorrer de lei, contrato ou ordem judicial. A entrega de coisa defraudada a título gratuito não configura o crime em tela, por ausência de dano patrimonial àquele que a recebe.368
O crime somente pode ser cometido pela pessoa que está obrigada a entregar o bem (crime próprio).
Tratando-se, porém, de comerciante que engana o adquirente ou consumidor no exercício de atividade comercial, estará caracterizado o crime de fraude no comércio, tipificado pelo art. 175 do Código Penal.
É o credor da obrigação, pois ele é quem recebe a coisa defraudada.
Dá-se com a efetiva entrega do bem, ou seja, não basta a simples defraudação da substância, qualidade ou quantidade da coisa. Exige-se a tradição (coisa móvel) ou transcrição (coisa imóvel) do bem defraudado à vítima
É possível, tal como na situação em que a vítima identifica a fraude e recusa-se a receber o bem.
Também incorre nas penas previstas para o crime delineado pelo art. 171, caput, do Código Penal aquele que “destrói, total ou parcialmente, ou oculta coisa própria, ou lesa o próprio corpo ou a saúde, ou agrava as consequências da lesão ou doença, com o intuito de haver indenização ou valor de seguro”.
Um dos princípios vetores do Direito Penal é o da alteridade. De acordo com este postulado, não há crime na conduta lesiva somente a quem a praticou. Destarte, a autolesão e a destruição ou danificação de coisa própria são penalmente irrelevantes, salvo quando prejudicam bens jurídicos pertencentes a terceiros.
No crime tipificado pelo art. 171, § 2.º, inciso V, do Código Penal, a lei não se importa com os estragos produzidos pela pessoa contra seu próprio corpo ou contra seu próprio patrimônio, que figuram como meros instrumentos do crime. O que se tutela é o patrimônio da seguradora, punindo-se o comportamento do segurado que dolosamente produz o dano descrito no contrato, com o fim de obter indevidamente a indenização.
É fácil concluir, portanto, que o pressuposto fundamental do delito é a prévia existência de um contrato de seguro em vigor. É indiferente tratar-se de seguro voluntário ou obrigatório. Na sua ausência, estará caracterizado crime impossível, em face da impropriedade absoluta do objeto material (CP, art. 17).
O tipo penal prevê quatro condutas motivadas pela fraude. Trata-se de tipo misto alternativo, crime de ação múltipla ou de conteúdo variado: se o agente praticar mais de uma conduta, em relação ao mesmo objeto material (prêmio do seguro), estará caracterizado crime único. Mas, se as várias condutas dirigirem-se contra mais de uma seguradora, haverá concurso de crimes. Vejamos cada uma das condutas legalmente previstas:
a) destruir, total ou parcialmente, coisa própria: é a ação de danificar a coisa (exemplo: lançar o próprio automóvel em um penhasco);
b) ocultar coisa própria: significa esconder a coisa em local no qual não possa ser encontrada por terceiros, ou então de dissimulá-la de forma a torná-la irreconhecível ou confundível com outra. A coisa, entretanto, continua existindo em perfeitas condições (exemplo: declarar o furto do automóvel que, na verdade, está escondido em local distante);
c) lesar o próprio corpo ou a saúde: a lei se refere à autolesão voltada ao recebimento fraudulento da indenização. O tipo penal engloba a lesão à integridade anatômica (exemplo: jogador de futebol em final de carreira que amputa a própria perna) e qualquer forma de perturbação à saúde (exemplo: contrair dolosamente uma doença); e
d) agravar as consequências da lesão ou doença: nessa hipótese, a lesão ou doença não foram provocadas pelo agente, mas ele, com a finalidade de haver indenização ou preço do seguro, agrava seus efeitos.
Além disso, para que exista crime é necessário que o agente tenha atuado com intenção de receber o valor do seguro.
É a indenização do seguro.
É o proprietário da coisa que a destrói, total ou parcialmente, ou a oculta, ou lesa o próprio corpo ou a saúde, ou agrava as consequências da lesão ou da doença anteriormente existente, com o intuito de haver indenização ou valor de seguro. Cuida-se de crime próprio, compatível com a coautoria e a participação.
Em relação ao terceiro que concorre para o crime, várias situações podem surgir:
a) na hipótese de destruição total ou parcial da coisa, se o terceiro pratica a conduta criminosa em nome do proprietário do bem, ou conjuntamente com ele, ambos respondem pelo crime tipificado no art. 171, § 2.º, inciso V, do Código Penal;
b) no caso em que o terceiro ofende o corpo ou a saúde do segurado, ou agrava sua lesão ou doença, a pedido deste, consciente do seu intuito de haver indenização ou valor do seguro, ambos terão contra si imputados o crime de fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro (CP, art. 171, § 2.º, inc. V). Para o terceiro também incidirá o crime de lesão corporal, especialmente se de natureza grave ou gravíssima, pois a integridade física e a saúde são bens jurídicos indisponíveis;
c) se a lesão corporal ou o dano ao patrimônio forem cometidos contra a vontade do segurado, não ocorrerá o crime definido pelo art. 171, § 2.º, inciso V, do Código Penal, mas o de lesão corporal (CP, art. 129) ou de dano (CP, art. 163), e, se o ato proporcionar vantagem econômica indevida a alguém, em prejuízo alheio, incidirá também o crime de estelionato, em sua modalidade fundamental (CP, art. 171, caput), em concurso formal. Como destaca Rogério Sanches Cunha:
“Note-se que se o agente destrói a coisa ou pratica a lesão sem o conhecimento do segurado, com o intuito de se beneficiar da indenização a ser recebida, responderá pelo estelionato, porém na forma do caput, em concurso com o dano ou com a lesão corporal.”369
É a seguradora, ou seja, a pessoa física ou jurídica responsável pelo pagamento da indenização.
É o dolo, acrescido de um especial fim de agir (elemento subjetivo específico) consistente na expressão “com o intuito de haver indenização ou valor de seguro”.
Diversamente das demais modalidades de estelionato, o crime de fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro é formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado. Consuma-se com a prática da conduta típica (destruir, ocultar, autolesionar e agravar), ainda que o sujeito não consiga alcançar a indevida vantagem econômica pretendida. Este raciocínio é facilmente constatado pela análise da expressão “com o intuito de”. Não se exige a vantagem patrimonial, sendo suficiente a intenção de auferi-la.
É possível. Exemplo: “A” é preso em flagrante pela Polícia no instante em que havia lançado gasolina em seu automóvel e estava prestes a incendiá-lo, com o propósito de haver indenização ou valor de seguro.
Incorre nas mesmas penas cominadas ao estelionato aquele que “emite cheque, sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o pagamento”.
O crime definido pelo art. 171, § 2.º, inciso VI, do Código Penal, assim como todas as demais modalidades de estelionato, tem como nota característica a fraude, aqui compreendida como o meio voltado a enganar o tomador de um cheque, fazendo-o acreditar que o título de crédito correspondente à conta-corrente do emitente será honrado pelo banco sacado.370
Somente existe este crime quando o titular da conta-corrente emite cheque sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o pagamento. Destarte, pratica estelionato em sua modalidade fundamental (CP, art. 171, caput) o sujeito que, portando folha de cheque em nome de outrem, se passa pelo titular da conta-corrente, obtendo vantagem ilícita em prejuízo alheio. Igual raciocínio se aplica ao emitente de cheque de conta-corrente que, embora em seu nome, encontra-se encerrada, ou então àquele que cria uma conta bancária com documentos falsos para, posteriormente, emitir cheques sem suficiente provisão de fundos.
O bem jurídico penalmente tutelado é o patrimônio. Subsidiariamente, tutela-se a fé pública, pois o cheque constitui-se em documento, razão pela qual a conduta criminosa também ofende a crença da sociedade nos documentos em geral. Mas nesse caso não há discussão: como o cheque é da titularidade do responsável pelo delito, a ele deve ser imputado somente o estelionato, figurando a falsidade ideológica (CP, art. 299 – a pessoa tem legitimidade para preencher o cheque, mas nele lança conteúdo falso) como ante factum impunível.
O tipo penal contém dois núcleos (“emitir” e “frustrar”), atinentes a duas condutas criminosas autônomas. Analisemos cada uma delas.
a) emitir cheque sem suficiente provisão de fundos: nessa modalidade, o correntista preenche e assina o cheque, colocando-o posteriormente em circulação, sem possuir em sua conta bancária a quantia suficiente para honrar seu pagamento.
É imprescindível que no momento da emissão do cheque a conta do sujeito já não tenha fundos suficientes para cobrir seu pagamento. Se existia provisão de fundos, mas a conta bancária foi dolosamente modificada depois da emissão do título de crédito, e previamente à sua apresentação, entra em cena a segunda conduta típica (“frustrar o pagamento”).
b) frustrar o pagamento do cheque: nesse caso, a conta bancária possui suficiente provisão de fundos ao tempo da emissão do cheque. Entretanto, o correntista adota providências para impedir o desconto do cheque em favor do tomador (exemplos: saca os valores, susta o cheque, encerra sua conta etc.)
Logicamente, não haverá crime se existir razão legítima para a frustração do pagamento do cheque, como no exemplo em que o sujeito foi constrangido, com emprego de violência ou grave ameaça, a preencher o cheque em favor de terceira pessoa. Nesse caso, sequer há dolo na conduta, excluindo-se o crime definido pelo art. 171, § 2.º, inciso VI, do Código Penal.
Se o agente pratica algum ato impeditivo do pagamento do cheque (exemplos: sustação fundada em falsa notícia de roubo da cártula ou encerramento da conta bancária), e após tal meio fraudulento vem a emitir o fólio, obtendo vantagem ilícita em prejuízo alheio, estará configurada a modalidade fundamental do estelionato (CP, art. 171, caput), pois a fraude foi utilizada antes da emissão do título de crédito.
Discute-se se o sujeito que endossa um cheque pagável a pessoa nomeada (“cheque nominal”),371 que sabe não possuir suficiente provisão de fundos, comete o crime tipificado pelo art. 171, § 2.º, inciso VI, do Código Penal. Há duas posições sobre o assunto.
Para uma primeira posição, o agente que assim se comporta deve ser responsabilizado pelo crime de fraude no pagamento por meio de cheque. Nélson Hungria, que empunhava esta bandeira, sustentava que o “endosso nada mais é do que uma nova emissão”.372 Destarte, há de imputar o delito ao tomador responsável pelo endosso do cheque ao terceiro, na modalidade “emitir”.
De outro lado, a posição contrária defende a atipicidade da conduta de endossar cheque sem suficiente provisão de fundos. Damásio E. de Jesus, partidário desta linha de pensamento, assim se manifesta: “Sem recurso à analogia, proibida na espécie, não se pode afirmar que a conduta de endossar ingressa no núcleo emitir, considerando-se o endosso como segunda emissão”.373
Filiamo-nos à segunda corrente, pois não há identidade jurídica entre emissão e endosso, sendo inadmissível sua equiparação, para efeitos penais, sob pena de consagração da analogia in malam partem e consequente ofensa ao princípio da reserva legal.374
Mas a conduta do tomador que dolosamente endossa um cheque sem suficiente provisão de fundos não fica imune à atuação do Direito Penal. Será ele responsabilizado pela modalidade fundamental de estelionato, nos termos do art. 171, caput, do Código Penal.
É o cheque, classificado como título de crédito representativo de ordem de pagamento à vista. Sua disciplina jurídica encontra-se na Lei 7.357/1985 – Lei do Cheque.
É o titular da conta bancária correspondente ao cheque emitido sem suficiente provisão de fundos ou que teve frustrado o pagamento. Trata-se de crime próprio ou especial. O delito é compatível com a coautoria (exemplo: existência de conta bancária conjunta e cheque emitido pelos dois correntistas) e também com a participação (exemplo: o marido induz a esposa a frustrar o pagamento de um cheque já emitido).
Na condição de partícipe, o endossante pode responder pelo delito tipificado pelo art. 171, § 2.º, inciso VI, do Código Penal, desde que concorra de qualquer modo à conduta do emitente voltada ao recebimento, pelo terceiro de boa-fé, de cheque sem suficiente provisão de fundos.
Igual raciocínio se aplica ao avalista, que pode ser partícipe do crime em estudo, pois sua conduta confere credibilidade ao cheque transmitido pelo emitente a terceiro de boa-fé. Como determina o art. 29 da Lei 7.357/1985 – Lei do Cheque: “O pagamento do cheque pode ser garantido, no todo ou em parte, por aval prestado por terceiro, exceto o sacado, ou mesmo por signatário do título”. E estabelece o art. 31, caput, do citado diploma legal: “O avalista se obriga da mesma maneira que o avaliado. Subsiste sua obrigação, ainda que nula a por ele garantida, salvo se a nulidade resultar de vício de forma”.
Conclui-se, portanto, que o aval não afasta o crime de fraude no pagamento por meio de cheque. E mais. O avalista poderá ser responsabilizado como partícipe do delito, desde que tenha aderido à conduta do autor quando presente seu conhecimento acerca da ausência ou insuficiência de provisão de fundos, pois seu comportamento contribui de qualquer modo para a prática do crime definido pelo art. 171, § 2.º, inciso VI, do Código Penal.
Por outro lado, se uma pessoa de qualquer forma (furto, roubo, apropriação de coisa achada etc.) se apodera de folha de cheque alheia e a preenche indevidamente, utilizando-a como meio fraudulento para induzir ou manter alguém em erro, e, por corolário, obter vantagem ilícita em prejuízo alheio, estará caracterizado o estelionato em sua modalidade fundamental (CP, art. 171, caput), ainda que o banco sacado não constate a fraude e devolva o cheque por insuficiência de fundos.
É o tomador do cheque, ou seja, a pessoa física ou jurídica que suporta prejuízo patrimonial em razão da recusa do pagamento do cheque pelo sacado.
É o dolo, consistente no conhecimento da ausência de fundos na conta bancária (na modalidade “emitir”) ou na vontade de impedir o regular pagamento do cheque (na conduta “frustrar o pagamento”). Somente existe o crime quando provada ab initio a má-fé do correntista, ou seja, desde o momento em que colocou o cheque em circulação ele não tinha intenção de honrar seu pagamento, seja pela ausência de suficiente provisão de fundos, seja pela frustração do seu pagamento.
Não se admite a modalidade culposa. Exemplificativamente, não se caracteriza o delito quando o agente, por imprudência, emitiu cheques em valor superior ao existente em sua conta bancária. De igual modo, também não existe o delito quando, por negligência, o correntista se esquece de depositar em sua conta o valor correspondente ao cheque emitido. Em tais hipóteses, a questão deve ser solucionada no âmbito civil, sem a ingerência do Direito Penal.
Exige-se, ainda, um especial fim de agir (elemento subjetivo específico), que não está previsto expressamente no tipo penal, mas pode ser extraído do nomen iuris do delito. Se o crime é legalmente chamado de “fraude no pagamento por meio de cheque”, esta finalidade específica é a intenção de fraudar o tomador do título de crédito, também conhecida como animus lucri faciendi ou “intenção de fraudar”. É o que se extrai da Súmula 246 do Supremo Tribunal Federal: “Comprovado não ter havido fraude, não se configura o crime de emissão de cheque sem fundos”.
Não há crime, consequentemente, na conduta de quem emite cheque que, embora sem fundos, acredita ser capaz de honrar antes da compensação pelo banco sacado. Ainda que venha o título de crédito a ser devolvido, por insuficiência de fundos, o fato será atípico, em face da ausência da vontade de fraudar o tomador.
O crime se consuma no momento em que o sacado (banco) se nega a efetuar o pagamento do cheque, seja pela ausência de fundos na conta-corrente, seja pelo recebimento de contraordem expedida pelo correntista, daí resultando prejuízo patrimonial ao ofendido. Cuida-se de crime material. Em consonância com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
Por se tratar, o delito previsto no art. 171, § 2.º, inciso VI, do Código Penal, de crime material, exige-se, para a sua configuração, a produção de um resultado, qual seja, a obtenção de vantagem ilícita pelo agente que emite o cheque e, por outro lado, a caracterização de prejuízo patrimonial à vítima. Precedentes.375
Esta conclusão é reforçada pela Súmula 521 do Supremo Tribunal Federal: “O foro competente para o processo e julgamento dos crimes de estelionato, sob a modalidade da emissão dolosa de cheque sem provisão de fundos, é o do local onde se deu a recusa do pagamento pelo sacado”.
Com igual raciocínio, foi editada a Súmula 244 do Superior Tribunal de Justiça: “Compete ao foro do local da recusa processar e julgar o crime de estelionato mediante cheque sem provisão de fundos”.
Sabe-se que a competência é firmada, em regra, pelo local da consumação do delito. É o que consta do art. 70, caput, 1.ª parte, do Código de Processo Penal. Logo, competente é o juízo da recusa do pagamento do cheque pelo sacado, porque foi aí que se operou a consumação do crime definido pelo art. 171, § 2.º, inciso VI, do Código Penal. Exemplificativamente, se um cheque foi dolosamente emitido na cidade de Salvador, sem suficiente provisão de fundos, para fraudar o pagamento de dívida contraída em solo baiano, mas a recusa do pagamento se deu em Belo Horizonte, local em que o sujeito mantinha sua conta-corrente, o crime estará consumado na cidade mineira.
Basta uma única apresentação do cheque para a consumação do delito.
Deve-se recordar que o estelionato na modalidade fundamental (CP, art. 171, caput), praticado com o emprego de cheque falsificado, consuma-se com a obtenção da vantagem ilícita em prejuízo alheio, independentemente da recusa da instituição financeira em pagá-lo. Destarte, o foro competente para apuração do fato corresponde ao local da obtenção da vantagem ilícita em prejuízo alheio, não se aplicando as Súmulas 521 do STF e 244 do STJ. Exemplo: “A” se faz passar por “B”, titular da conta-corrente, e emite cheque em nome deste, adquirindo diversas peças de vestuário em um estabelecimento comercial.
Em consonância com a Súmula 554 do Supremo Tribunal Federal: “O pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal”.
Sua interpretação autoriza a conclusão, a contrario sensu, no sentido de que o pagamento de cheque sem provisão de fundos, até o recebimento da denúncia, impede o prosseguimento da ação penal.
Em termos técnicos, esta súmula, criada quando ainda estava em vigor a redação original da Parte Geral do Código Penal, para o crime de fraude no pagamento por meio de cheque (CP, art. 171, § 2.º, VI), perdeu eficácia com a redação conferida ao art. 16 do Código Penal pela Lei 7.209/1984. Com efeito, antes da Reforma da Parte Geral o Código Penal não contemplava o instituto do arrependimento posterior, que agora figura como causa obrigatória de diminuição da pena, e não como motivo legítimo a retirar a justa causa para o trâmite da ação penal.
Entretanto, a jurisprudência atual considera como válida a súmula em apreço, com a justificativa de que ela não se refere ao arrependimento posterior, mas sim à falta de justa causa para a denúncia, por ausência de fraude. É o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal, que limita a sua aplicação exclusivamente ao crime de estelionato na modalidade emissão de cheque sem fundos (CP, art. 171, § 2.º, VI), vedando seu reconhecimento ao estelionato em sua descrição fundamental (CP, art. 171, caput):
A Súmula n.º 554 do Supremo Tribunal Federal não se aplica ao crime de estelionato na sua forma fundamental: “Tratando-se de crime de estelionato, previsto no art. 171, caput, não tem aplicação a Súmula 554-STF” (HC 72.944/SP, Relator o Ministro Carlos Velloso, DJ 08.03.1996). A orientação contida na Súmula n.º 554 é restrita ao estelionato na modalidade de emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos, prevista no art. 171, § 2.º, inc. VI, do Código Penal.376
Em nossa opinião, o Supremo Tribunal Federal, com o argumento da aplicação da lei penal voltada à política criminal, confunde um crime de natureza pública e de ação penal pública incondicionada com questões civilistas de cunho privado, conferindo ao Direito Penal função de cobrança que não lhe pertence. É também a posição sustentada por Dirceu de Mello mesmo antes da Reforma da Parte Geral do Código Penal pela Lei 7.209/1984:
É verdade que, no plano inclinado das liberalidades, entre nós pelo menos, se acabou indo muito longe. De franquia em franquia, uma mais avançada que a outra, terminou advindo o quadro, afora antijurídico, injusto por excelência, que presentemente emoldura as situações de emissão sem fundos: o resgate do cheque, antes de iniciada a ação penal, extingue a punibilidade do agente.
A solução é injurídica porque estabelecida à margem da lei, para não se dizer em oposição a ela.377
Por outro lado, se o sujeito realizar a reparação do dano após o recebimento da denúncia ou queixa, e antes do julgamento, incidirá tão somente a atenuante genérica disciplinada pelo art. 65, inciso III, b, do Código Penal. E, se a reparação do dano for subsequente ao julgamento, não surtirá efeito nenhum.
Vale destacar, porém, já ter decidido o Superior Tribunal de Justiça, em oposição à Súmula 554 do Supremo Tribunal Federal e aos arts. 16 e 65, inciso III, b, do Código Penal, que o pagamento da dívida resultante da emissão dolosa de cheque sem fundos, ainda que posteriormente ao recebimento da denúncia ou da queixa, importa na extinção da punibilidade.378
O conatus é possível em ambas as modalidades do crime tipificado pelo art. 171, § 2.º, inciso VI, do Código Penal. Vejamos dois exemplos:
1) O correntista dolosamente emite um cheque sem suficiente provisão de fundos, mas sua esposa, agindo sem o seu conhecimento, deposita montante superior em sua conta-corrente antes da apresentação do fólio; e
2) Depois da emissão de um cheque, com suficiente provisão de fundos, o correntista envia uma correspondência ao gerente da instituição financeira solicitando fraudulentamente a frustração do seu pagamento. Entretanto, em razão da greve nos Correios a missiva demora a chegar ao seu destinatário, e o tomador consegue sacar o valor indicado na cártula.
Cumpre destacar que nos exemplos mencionados, nada obstante reconhecida a tentativa do delito, dificilmente será inaugurada a persecução penal, pois a vítima não terá conhecimento da conduta criminosa direcionada ao não pagamento do cheque.
De outra banda, se o sujeito emite cheque sem suficiente provisão de fundos, mas deposita o valor correspondente antes da recusa do pagamento pelo sacado, estará caracterizado o arrependimento eficaz (CP, art. 15). Nesse caso, não se pode falar em tentativa, pois a consumação não se verificou única e exclusivamente pela vontade do agente, e não por circunstâncias alheias à sua esfera de controle.
Na hipótese de cheque especial, no qual o sacado assegura seu pagamento até um determinado valor preestabelecido, somente quando ultrapassado este limite estará caracterizado o delito, ainda que disto resulte saldo negativo para o correntista. Não há crime de fraude no pagamento por meio de cheque, seja pela ausência de elementares típicas, seja pela inexistência do dolo.
Além disso, se a instituição financeira paga o cheque especial e, posteriormente, o correntista não lhe restitui o montante devido, não há crime, mas ilícito civil resultante de descumprimento de obrigação contratual, já que o título de crédito foi emitido em prol do tomador, e não do banco.
Por outro lado, se o emitente contava com seu cheque especial, razão pela qual pôs em circulação uma ou mais cártulas não excedentes de tal limite, as quais o banco se recusou a pagar por motivos de gestão institucional, não há falar em crime, notadamente pela falta de dolo voltado à fraude em prejuízo do tomador.
Como preceitua o art. 32, caput, da Lei 7.357/1985 – Lei do Cheque: “O cheque é pagável à vista. Considera-se não estrita qualquer menção em contrário”. Portanto, o cheque constitui-se em ordem de pagamento à vista. Esta é a sua natureza jurídica.
Assim sendo, se a pessoa aceita o cheque para ser descontado futuramente, em data posterior à da emissão, está recebendo o título como simples promessa de pagamento, desvirtuando a proteção a ele reservada pelo Direito Penal. Na esteira da orientação do Superior Tribunal de Justiça:
A emissão de cheques como garantia de dívida (pré-datados), e não como ordem de pagamento à vista, não constitui crime de estelionato, na modalidade prevista no art. 171, § 2.º, inciso VI, do Código Penal. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça.379
Ademais, não há fraude: o tomador sabe que o cheque é emitido com ausência ou insuficiência de provisão de fundos, tanto que o seu pagamento foi convencionado para uma data posterior.
Idêntico raciocínio se aplica para a hipótese de cheque apresentado para pagamento depois do prazo legal. Nos termos do art. 33, caput, da Lei 7.357/1985 – Lei do Cheque: “O cheque deve ser apresentado para pagamento, a contar do dia da emissão, no prazo de 30 (trinta) dias, quando emitido no lugar onde houver de ser pago; e de 60 (sessenta) dias, quando emitido em outro lugar do País ou no exterior”. O fundamento é o mesmo, ou seja, se apresentado depois do prazo legalmente previsto o cheque deixa de ser ordem de pagamento à vista, perdendo a proteção que lhe é conferida pelo Direito Penal.
Entretanto, é possível a responsabilização do agente pelo estelionato na modalidade fundamental (CP, art. 171, caput), se demonstrado seu dolo em obter vantagem ilícita em prejuízo alheio no momento da emissão fraudulenta do cheque.
Somente se configura o crime tipificado pelo art. 171, § 2.º, inciso VI, do Código Penal quando a emissão do cheque sem suficiente provisão de fundos foi a razão do convencimento da vítima, ensejando-lhe prejuízo patrimonial e vantagem ilícita ao agente.
Consequentemente, não há crime na emissão de cheque sem suficiente provisão de fundos para pagamento de dívida anteriormente existente, pois nessa hipótese a razão do prejuízo da vítima é diversa da fraude no pagamento por meio do cheque. Exemplo: “A” celebra um contrato de permuta com “B”, entregando seu automóvel para, dois meses depois, receber toda a plantação de café deste último. Entretanto, realizada a colheita, “B” não cumpre com sua obrigação contratual. Em razão disso, celebram um acordo para pagamento da dívida em dinheiro, ocasião em que “B” emite, em prejuízo de “A”, um cheque sem fundos.
No exemplo mencionado, não se aperfeiçoa o crime de fraude no pagamento por meio de cheque. A causa direta do prejuízo de “A” foi o descumprimento da obrigação contratual, e não a emissão do cheque sem suficiente provisão de fundos. Na verdade, “B” não obteve nova vantagem ilícita, e “A” não suportou outro prejuízo patrimonial. Ao contrário, “A” encontra-se agora em uma posição mais confortável, pois o cheque pode ser executado judicialmente. Na visão do Superior Tribunal de Justiça:
É da jurisprudência do Superior Tribunal o entendimento segundo o qual a emissão de cheque como garantia de dívida não configura o crime do art. 171, caput, do Código Penal (estelionato). No caso, além de não haver certeza sobre cuidar-se de ordem de pagamento à vista, a própria vítima admitiu tratar-se de “garantia de pagamento de um empréstimo”. Descaracterizado, pois, está o crime de estelionato na modalidade fraude no pagamento por meio de cheque.380
Também não se verifica o delito na emissão de cheque sem suficiente provisão de fundos em substituição de outro título de crédito não honrado. Cuida-se uma vez mais de prejuízo anterior à emissão do cheque. O cheque, originariamente uma ordem de pagamento à vista, transmuda-se para simples promessa de pagamento, pois a vítima já havia suportado prejuízo patrimonial, que não se renova, e o agente obteve previamente a vantagem ilícita, independentemente da emissão do cheque sem fundos. Este sempre foi o entendimento consagrado no âmbito do Supremo Tribunal Federal: “Cheque sem fundos. Substituição de nota promissória. Promessa de pagamento, não ordem de pagamento. Descaracterização do crime previsto no art. 171, § 2.º, VI, do Código Penal”.381
A emissão de cheque sem fundos para pagamento de obrigações naturais, como é o caso das dívidas provenientes de jogos ilícitos, não configura o crime delineado pelo art. 171, § 2.º, inciso VI, do Código Penal.
O fundamento para este raciocínio encontra-se no art. 814, caput, 1.ª parte, do Código Civil: “As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento”.
Nesse contexto, o cheque emitido sem suficiente provisão de fundos para pagamento de dívida não exigível no juízo civil, será penalmente atípico ainda que não compensado pelo banco sacado, em face da ausência da intenção de fraudar. Com efeito, não se pode ofender o patrimônio de quem não tem possibilidade jurídica de exigir o pagamento de dívida não amparada pelo Direito.382
O mesmo tratamento, pela identidade de motivos, deve ser dispensado às dívidas resultantes de atividades sexuais mantidas com prostitutas ou garotos de programa. Tais comportamentos, embora penalmente atípicos, despontam como reconhecidamente imorais e contrários ao Direito, tanto que normalmente são cometidos na clandestinidade. Não podem, destarte, ser juridicamente tutelados.
De fato, se a prostituta ou o garoto de programa não possuem meios válidos para cobrança judicial dos serviços ilicitamente prestados, de igual modo não se pode reputar como criminosa a emissão de cheque sem fundos para suposto pagamento dos favores sexuais, uma vez não ser cabível falar em “fraude” em pagamento que não se tem como exigir com amparo no ordenamento jurídico.
O estelionato circunstanciado ou estelionato agravado está descrito no art. 171, § 3.º, do Código Penal: “A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência”.
Incide a causa de aumento, aplicável na terceira fase da dosimetria da pena privativa de liberdade, quando o estelionato ofende o patrimônio da União, dos Estados, Municípios e Distrito Federal, de suas autarquias e entidades paraestatais, bem como de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência. Nas lições de Nélson Hungria:
Instituto de economia popular é todo aquele que serve a direto interesse do povo ou indeterminado número de pessoas (bancos populares, cooperativas, caixas Raiffeisen, sociedades de mutualismo etc.). Instituto de assistência social ou beneficência é o que atende a fins de filantropia, de solidariedade humana, de caridade, de altruístico socorro aos necessitados em geral, de desinteressado melhoramento moral ou educacional.383
A majorante é aplicável tanto à modalidade fundamental de estelionato (CP, art. 171, caput) como também às figuras qualificadas (CP, art. 171, § 2.º), e fundamenta-se na extensão difusa dos danos produzidos, pois com a lesão ao patrimônio público e ao interesse social toda a coletividade é prejudicada.384
A causa de aumento da pena baseia-se na qualidade especial do sujeito passivo do estelionato. Mas, nada obstante a vítima seja determinada, os indivíduos ofendidos pela conduta criminosa são inúmeros e indeterminados. Os reflexos do delito atingem a generalidade das pessoas.
Vale recordar o conteúdo da Súmula 24 do Superior Tribunal de Justiça: “Aplica-se ao crime de estelionato, em que figure como vítima entidade autárquica da Previdência Social, a qualificadora do § 3.º do art. 171 do Código Penal”.
O bem jurídico protegido pela lei penal é o patrimônio.
É a fatura, duplicata ou nota de venda, sem a devida correspondência com a mercadoria vendida, em quantidade ou qualidade, ou com o serviço prestado.
Fatura é o documento de emissão obrigatória pelo vendedor, na relação de compra e venda mercantil. Dela deve constar a descrição das mercadorias vendidas, especificando sua natureza (qualidade) e quantidade, bem como seu respectivo preço.
Duplicata, por sua vez, é o título de crédito resultante da fatura (constitui-se, como seu próprio nome induz, em uma duplicação da fatura), emitido pelo vendedor, nas relações de compra e venda mercantil em território nacional, para fins de circulação como efeito comercial, nos termos do art. 2.º da Lei 5.474/1968.
Nota de venda, finalmente, consiste no documento emitido pelo comerciante, em cujo conteúdo é possível encontrar a especificação da quantidade, qualidade, procedência e preço das mercadorias objetos de transação mercantil, cuja finalidade precípua é atender aos interesses do fisco. Assemelha-se à fatura.
O núcleo do tipo é “emitir”, ou seja, expedir, colocar em circulação. Dessa maneira, é imprescindível que o sujeito ativo ponha a fatura, duplicata ou nota de venda em circulação, sem correspondência com a mercadoria vendida ou com o serviço prestado, e, após, remeta-a ao aceitante ou a endosse antes de eventual aceitação do sacado.
Vale destacar que o simples preenchimento da duplicata não configura o delito tipificado pelo art. 172 do Código Penal, sendo necessária a assinatura do vendedor. Como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal:
Duplicata simulada: inexistência, à falta de assinatura do sacador. A existência de duplicata – cujo similar não é a nota promissória, mas a letra de câmbio – pode existir sem o aceite, mas não sem o saque, que só a assinatura do vendedor-emitente materializa: logo, não realiza o crime do art. 172 do Código Penal a remessa ao sacado de duplicata não assinada pelo sacador.385
Trata-se de crime próprio ou especial, pois somente pode ser praticado pelo comerciante que coloca em circulação a fatura, duplicata ou nota de venda, sem correspondência com a mercadoria vendida ou com o serviço prestado. Admite coautoria e participação.386
É o recebedor, ou seja, quem desconta a duplicata, aquele que aceita a duplicata como caução, e também o sacado de boa-fé, que corre o risco de ser protestado. Não é indispensável, registre-se, a participação na figura delituosa da pessoa contra quem a duplicata foi emitida. Se houver coautoria entre emitente e aceitante, sujeito passivo será quem fez o desconto, e não o sacado.387
Prevalece em seara doutrinária o entendimento no sentido de que o avalista e o endossatário não se incluem como vítimas do crime de duplicata simulada.
É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. Não se admite a modalidade culposa.
O agente emite a fatura, duplicata ou nota de venda com a consciência de que ela não guarda correspondência com a mercadoria vendida, em quantidade ou qualidade, ou com o serviço prestado. Para o Supremo Tribunal Federal:
Diretores de grande empresa, denunciados pela prática do crime do art. 172 do Código Penal. Atos que teriam sido praticados por representantes vendedores, consistentes na emissão de duas duplicatas no valor irrisório de R$ 170,00. Títulos que, segundo se apurou, resultaram de operação conhecida como “venda cruzada”, realizada por vendedor autorizado, já falecido, os quais não chegaram a ser negociados em banco, havendo sido apurado, ademais, que a mercadoria chegou a ser expedida em nome da empresa sacada, gerando a convicção de que se tratava de venda regular. Ausência do elemento subjetivo consistente na vontade conscientemente dirigida à expedição de duplicata simulada, que caracterizaria a justa causa para a ação penal.388
Cuida-se de crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado. Consuma-se com a simples emissão, ou seja, com a colocação da fatura, da duplicata ou da nota de venda em circulação, dispensando a causação de prejuízo patrimonial à vítima. Em conformidade com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
O crime de emissão de fatura, que tem como núcleo o ato de emitir títulos que não guardam correspondência com a venda mercantil efetivamente realizada, consuma-se no momento em que os documentos são colocados em circulação, não se exigindo a efetividade do proveito econômico pela oposição do aceite do sacado. Perfaz-se o tipo com o envio do título feito diretamente pelo sacador ou por instituição financeira, suficiente para ensejar a omissão da vítima em aceitar o título em detrimento de seu patrimônio.389
Não é possível, por se tratar de crime unissubsistente.390
A ação penal é pública incondicionada.
O crime é próprio (somente quem tem o poder de emitir a fatura, duplicata ou nota de venda pode cometê-lo); formal (independe da produção do resultado naturalístico, qual seja o efetivo prejuízo patrimonial à vítima); doloso; de forma livre (admite qualquer meio de execução); unissubsistente (o único fato de colocar a nota, duplicata ou nota de venda em circulação já é capaz de, por si só, alcançar a consumação); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma só pessoa, mas admite o concurso); e instantâneo (a consumação se verifica em um momento determinado, sem continuidade no tempo).
A chamada triplicata, de acordo com o art. 23 da Lei 5.474/1968, apenas pode ser extraída em caso de perda ou extravio da duplicata, devendo, para produzir iguais efeitos, possuir idênticos requisitos e obedecer às mesmas formalidades desta. Como leciona Fábio Ulhoa Coelho, “trata-se não de novo título, mas apenas da segunda via da duplicata, extraída a partir dos dados escriturados no livro próprio”.391
Destarte, cuidando-se de uma segunda via da duplicata, a sua emissão sem correspondência à mercadoria vendida, em quantidade ou qualidade, ou ao serviço prestado, caracteriza o crime tipificado no art. 172 do Código Penal. Extrai-se esta conclusão mediante a interpretação extensiva da lei penal. Há, todavia, quem sustente tratar-se de analogia in malam partem, razão pela qual a triplicata não se subsume ao delito em análise.
Equipara-se ao crime de duplicata simulada a conduta de falsificar ou adulterar a escrituração do Livro de Registro de Duplicatas, obrigatório para o comerciante.
Os núcleos desta figura típica são “falsificar” e “adulterar”. Tais verbos têm significado bastante semelhante: aquele equivale a imitar ou alterar com fraude, contrafazer; este, deturpar, mudar, alterar.
De acordo com o art. 19, caput e § 1.º, da Lei 5.474/1968, o vendedor é obrigado a ter e a escriturar, cronologicamente, no Livro de Registro de Duplicatas, todas as duplicatas emitidas, com o número de ordem, data e valor das faturas originárias e data de sua expedição; nome e domicílio do comprador; anotações das reformas; prorrogações e outras circunstâncias necessárias.
Destarte, estará delineado o crime definido pelo art. 172, parágrafo único, do Código Penal na hipótese em que o sujeito contrafaz ou altera a escrituração do Livro de Registro de Duplicatas.
O bem jurídico legalmente tutelado é o patrimônio.
É o incapaz, em decorrência da sua menoridade ou por ser portador de alienação ou debilidade mental, que suporta a conduta criminosa.
Os núcleos do tipo são “abusar” e “induzir”.
Abusar significa aproveitar-se ou prevalecer-se de determinada condição, ou, em outras palavras, tirar proveito ou vantagem de alguém. De outro lado, induzir tem o sentido de fazer nascer a ideia na mente de outrem.
Destarte, pratica o crime tipificado pelo art. 173 do Código Penal quem, em proveito próprio ou alheio, aproveitando-se de pessoa cuja capacidade para se autodeterminar e expressar sua vontade seja nula ou reduzida, faz nascer em sua mente a ideia de realizar ato jurídico, causando, em virtude disso, prejuízo a si próprio ou a terceiros.
Como bem destaca Ney Moura Teles: “Atos nulos como a venda de imóvel por pessoa absolutamente incapaz, segundo a lei civil, por não produzirem qualquer efeito, não configuram o crime, mas os atos anuláveis, sim”.392
Pode ser qualquer pessoa (crime comum).
Somente pode figurar como vítima o menor de idade, bem como o alienado ou o débil mental. Observe-se que o menor emancipado não poderá figurar como sujeito passivo do delito em estudo, haja vista que, com a sua emancipação, deixa de gozar do status de incapaz, nos termos do art. 5.º do Código Civil.393
É o dolo, acrescido do especial fim de agir representado pela expressão “em proveito próprio ou alheio”.
Saliente-se que o desconhecimento do agente no tocante às condições da vítima pode levar à caracterização do crime de estelionato, se houver o emprego de meio fraudulento, ou tornar o fato atípico.394
Não se admite a modalidade culposa.
Dá-se no momento em que o menor de idade, alienado ou débil mental, pratica ato idôneo de lesar seu patrimônio ou de terceiro, em decorrência de ter sido ludibriado pelo agente. O crime é formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado, dispensando o efetivo prejuízo ao incapaz ou a terceiro. O texto legal é claro nesse sentido: “ato suscetível de produzir...”.
A superveniência do dano implica mero exaurimento, que deve ser levado em consideração pelo magistrado na dosimetria da pena-base, nos moldes do art. 59, caput, do Código Penal.
O conatus é possível quando o sujeito ativo efetua a conduta, mas, por circunstâncias alheias à sua vontade, a vítima (incapaz) não realiza o ato suscetível de produzir efeito jurídico em proveito próprio ou de terceiro.
A ação penal é pública incondicionada.
Cuida-se de crime comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); formal (independe da produção do resultado naturalístico, qual seja, o efetivo prejuízo patrimonial à vítima ou a terceiros); doloso; de forma livre (admite qualquer meio de execução); em regra plurissubsistente (a conduta criminosa pode ser fracionada em diversos atos); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma só pessoa, mas admite o concurso); e instantâneo (a consumação se verifica em um momento determinado, sem continuidade no tempo).
O bem jurídico protegido é o patrimônio.
É a pessoa inexperiente, simples ou de capacidade mental reduzida, contra quem a conduta criminosa é cometida.
Os núcleos do tipo penal são idênticos aos do delito de abuso de incapazes: “abusar” e “induzir”.395
Destarte, para caracterizar o crime de induzimento à especulação é preciso que o sujeito ativo, com o escopo de obter, para si ou para outrem, vantagem econômica, aproveite-se de pessoa inexperiente, simples ou de capacidade mental reduzida, induzindo-a à prática de jogo ou aposta, ou à especulação com títulos ou mercadorias.
Em síntese, o agente, em proveito próprio ou alheio, convence a vítima de que não possui a capacidade de discernimento necessária acerca dos riscos do jogo ou aposta, ou da operação pela qual é induzida a realizar, sabendo ou devendo saber que se trata de atividade ruinosa.
Como a lei descreve as formas pelas quais a conduta pode ser executada, a doutrina classifica a figura típica delineada pelo art. 174 do Código Penal como crime de forma vinculada.
Importante destacar não ser necessário que o jogo ou a aposta sejam ilícitos, pois o bem jurídico tutelado pelo art. 174 do Código Penal é tão somente o patrimônio da pessoa inexperiente, simples ou de menor capacidade mental.
Pode ser qualquer pessoa (crime comum).
Somente pode figurar como vítima do crime de induzimento à especulação a pessoa inexperiente (a principiante, ou seja, a que não tem vivência prática exigida para as situações previstas na lei penal), simples (ingênua, sem malícia, que facilmente acredita nas pessoas, deixando-se enganar) ou com capacidade mental inferior (aquela que possui qualquer tipo de distúrbio ou desenvolvimento mental incompleto, cuja capacidade de discernimento se apresenta abaixo da normalidade).
É o dolo, acompanhado de uma entre duas finalidades específicas (elemento subjetivo específico), dependendo da conduta criminosa, contempladas pelas expressões “em proveito próprio ou alheio” e “sabendo ou devendo saber que a operação é ruinosa”.
Com efeito, para a primeira modalidade de conduta prevista pela lei penal – “induzindo-o à prática de jogo ou aposta” – é necessário que o agente abuse da vítima em proveito próprio ou alheio.
Por outro lado, na segunda modalidade do delito – “induzindo-o à especulação com títulos ou mercadorias”, é fundamental que o agente realize a conduta “sabendo ou devendo saber que a operação é ruinosa”. Nessa hipótese, portanto, admitem-se tanto o dolo direto (“sabe”) como o dolo eventual (“deve saber”). Nos ensinamentos de Damásio E. de Jesus:
A expressão “sabendo” indica plena consciência do sujeito de que a operação é ruinosa; a expressão “devendo saber” indica dúvida sobre o proveito da operação. Assim, o tipo, na última figura, admite o dolo direto e o eventual. Direto quando o agente sabe que a operação é ruinosa; eventual quando, em face de determinados fatos, devia saber da possibilidade de prejuízo.396
Não se admite a modalidade culposa.
Dá-se com a prática, pelo sujeito passivo, do jogo, aposta ou especulação com títulos ou mercadorias. Cuida-se de crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado: a consumação ocorre com a prática da conduta, dispensando a produção do resultado naturalístico, é dizer, não se reclama a lesão ao patrimônio da vítima.
Tratando-se de crime formal, o resultado naturalístico é desnecessário para fins de consumação, nada obstante sua ocorrência prática seja possível. E, se o ofendido suportar efetivo prejuízo patrimonial, o exaurimento do delito deverá ser levado em conta pelo julgador na dosimetria da pena-base, na forma definida pelo art. 59, caput, do Código Penal.
É possível, nos casos em que o sujeito ativo realiza a conduta descrita no tipo penal, mas, por circunstâncias alheias à sua vontade, a pessoa inexperiente, simples ou mentalmente inferior não concretiza o jogo, aposta ou especulação com títulos ou mercadorias.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
A pena em abstrato varia entre 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão, e multa. Não se trata de infração penal de menor potencial ofensivo. Constitui-se, porém, em crime de médio potencial ofensivo (pena mínima igual ou inferior a um ano): é cabível a suspensão condicional do processo, se presentes os demais requisitos exigidos pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.
O induzimento à especulação é crime comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); formal (independe da produção do resultado naturalístico, qual seja o efetivo prejuízo patrimonial à vítima); doloso; de forma vinculada (o meio de execução é específico, isto é, o abuso consiste apenas no induzimento à prática de jogo ou aposta, ou à especulação com títulos ou mercadorias); em regra plurissubsistente (a conduta criminosa pode ser fracionada em diversos atos); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma só pessoa, mas admite o concurso); e instantâneo (a consumação se verifica em um momento determinado, sem continuidade no tempo).
A lei penal resguarda o patrimônio.
É a mercadoria falsificada, deteriorada ou substituída, ou, ainda, a obra alterada, substituída ou vendida.
A figura típica prevista no caput do art. 175 do Código Penal possui o verbo “enganar” como núcleo, significando induzir alguém em erro. Enganar, portanto, é o ato de alguém, voluntariamente, ludibriar terceira pessoa, fazendo com que esta acredite naquilo que não condiz com a realidade.
São duas as condutas que o sujeito ativo pode praticar para caracterizar o crime delineado pelo tipo penal em comento, a saber: enganar o adquirente ou consumidor:
(a) vendendo, como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou deteriorada; e
(b) entregando uma mercadoria por outra.
Desta forma, em conformidade com o art. 175, inciso I, do Código Penal, comete o crime de fraude no comércio quem, no exercício da atividade comercial e sabendo que a mercadoria é falsa ou que está deteriorada, vende-a ao adquirente ou consumidor como se fosse verdadeira ou se estivesse em perfeitas condições, enganando a vítima.
Há entendimentos, por nós recusados, no sentido de que tal modalidade de fraude no comércio foi revogada pelo art. 7.º, inciso III, da Lei 8.137/1990, com a seguinte redação: “Constitui crime contra as relações de consumo: (...) III – misturar gêneros e mercadorias de espécies diferentes, para vendê-los ou expô-los à venda como puros; misturar gêneros e mercadorias de qualidades desiguais para vendê-los ou expô-los à venda por preço estabelecido para os de mais alto custo”.
O inciso I do art. 175 do Código Penal diz respeito ao comportamento de substituir uma coisa por outra, vendendo a falsificada como se fosse verdadeira, ou a deteriorada como se fosse perfeita (exemplo: o vendedor de uma loja de bebidas enche uma garrafa de uísque importado com uísque nacional). Está previsto no Código Penal entre os crimes contra o patrimônio, e é praticado contra o adquirente ou consumidor, ou seja, pessoa certa e determinada, que deve ser efetivamente prejudicado (crime material).
De outro lado, o inciso III do art. 7.º da Lei 8.137/1990 contempla um crime contra as relações de consumo. Não reclama a prática da conduta contra pessoa certa e determinada, mas em face dos consumidores em geral, que não precisam ser efetivamente lesados no âmbito patrimonial (crime formal). Além disso, tem como conduta a atividade de misturar gêneros e mercadorias de espécies diversas, para vendê-los ou expô-los à venda como puros ou pelo preço estabelecido para os de mais alto custo (exemplo: um fornecedor mistura uísque estrangeiro com uísque nacional, baixando o valor do seu investimento, e expõe à venda o produto final pelo valor do uísque importado).
De igual modo, na hipótese do art. 175, inciso II, do Código Penal, restará configurado o delito de fraude no comércio para aquele que, no exercício da atividade comercial, com a intenção de enganar a vítima, entrega uma mercadoria no lugar de outra. O agente, conscientemente, substitui a mercadoria. Exemplo: “A”, comerciante, entrega a “B”, seu cliente, um taça de vidro no lugar de uma taça de cristal.
Somente pode ser o comerciante o comerciário que se encontre no exercício de atividade comercial (crime próprio). Como informa Julio Fabbrini Mirabete: “A fraude no comércio é crime próprio. Só o comerciante, ou comerciário, aquele que se dedica à atividade comercial, incluindo a industrial, com habitualidade e profissionalidade, pode cometê-lo. Se o comportamento for praticado por outra pessoa, ocorre crime diverso.397
É o adquirente ou consumidor, pessoa certa e determinada, independentemente de qualquer outra condição especial.
É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. Não se admite a modalidade culposa.
A fraude no comércio é crime material. Consuma-se com a tradição, ou seja, com a entrega pelo comerciante da mercadoria ao consumidor ou adquirente, que a aceita, recebendo-a e, consequentemente, suporta prejuízo patrimonial.
É possível. É o que se dá, exemplificativamente, quando a vítima constata a fraude e, por tal motivo, recusa-se a receber a mercadoria.
A ação penal é pública incondicionada.
A pena em abstrato da figura típica prevista no caput do artigo varia entre 6 (seis) meses a 2 (dois) anos de detenção, ou multa. É classificada, assim, como infração penal de menor potencial ofensivo, de competência do Juizado Especial Criminal e compatível com a transação penal, em consonância com as regras estatuídas pela Lei 9.099/1995.
O crime é próprio (só pode ser cometido pelo comerciante ou comerciário, no exercício da atividade comercial); material (depende da produção do resultado naturalístico, isto é, que a vítima sofra prejuízo econômico); doloso; de forma livre (admite qualquer meio de execução); em regra plurissubsistente (a conduta criminosa pode ser fracionada em diversos atos); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma só pessoa, mas admite o concurso); e instantâneo (a consumação se verifica em um momento determinado, sem continuidade no tempo).
O § 1.º do art. 175 do Código Penal contém uma figura qualificada de fraude no comércio: “Alterar em obra que lhe é encomendada a qualidade ou o peso de metal ou substituir, no mesmo caso, pedra verdadeira por falsa ou por outra de menor valor; vender pedra falsa por verdadeira; vender, como precioso, metal de outra qualidade”.
Nada obstante tenham o mesmo propósito dos previstos no caput (enganar o consumidor ou adquirente), os núcleos da qualificadora são outros: “alterar” (mudar, modificar ou transformar), “substituir” (trocar um produto por outro, tomar o lugar de outra coisa) e “vender” (alienar onerosamente).
O crime é reservado aos joalheiros, nas condutas de “alterar” e “substituir”, e ao comerciante de joias, na espécie “vender”. Com efeito, o sujeito ativo:
a) altera, em obra encomendada, a qualidade ou peso do metal. O agente modifica a qualidade do metal, substituindo a parte valiosa por outra de menor qualidade (exemplo: o joalheiro mistura um pouco de bronze em uma peça que deveria ser unicamente de ouro), ou retira parte do seu peso, prejudicando a vítima em seu patrimônio (exemplo: ao criar um anel, o joalheiro o faz com menos ouro do que convencionado com o consumidor);
b) substitui, em obra encomendada, pedra verdadeira por falsa ou outra de menor valor. O joalheiro, ao criar uma peça acompanhada de pedra preciosa, retira a verdadeira e coloca em seu lugar uma réplica ou outra menos valiosa;
c) vende pedra falsa por verdadeira. O comerciante engana o consumidor ou adquirente no tocante à idoneidade de uma pedra preciosa. Exemplo: vende vidro lapidado e brilhante como se fosse diamante; ou
d) vende como precioso metal de outra qualidade. O comerciante, no exercício da atividade comercial, aliena onerosamente um metal em vez do anunciado, de qualidade superior. Exemplo: vende um anel dourado, dizendo tratar-se de peça em ouro.
A qualificadora ingressa no rol dos crimes de médio potencial ofensivo. Sua pena mínima é de 1 (um) ano, tornando-o compatível com a suspensão condicional do processo, em conformidade com o art. 89 da Lei 9.099/1995.
Aplica-se ao crime de fraude no comércio, tanto na forma simples como na modalidade qualificada, o instituto do privilégio, previsto no art. 155, § 2.º, do Código Penal em relação ao furto. O benefício depende de dois requisitos legais: primariedade do agente e pequeno valor da coisa, os quais, se estiverem presentes, autorizam ao magistrado substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um dois terços ou aplicar somente a pena de multa.398
O crime de fraude no comércio é, em regra, de competência da Justiça Estadual. Se, entretanto, o delito for praticado em detrimento de interesses da União, suas autarquias ou empresas públicas, ou contra o sistema financeiro nacional, será competente a Justiça Federal, com fulcro no art. 109, incisos IV e VI, da Constituição Federal.
Mas, como já decidiu o Superior de Tribunal de Justiça, “acusação por prática de fraude no comércio de veículos pelo sistema de venda programada não tem repercussão no sistema financeiro nacional, não atraindo a competência da Justiça Federal”.399
Fraude no comércio (CP, art. 175) e estelionato (CP, art. 171) são crimes contra o patrimônio que têm a fraude como meio de execução. Não por outro motivo, possuem penas idênticas, quais sejam reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa. Em que pesem tais pontos em comum, os delitos não se confundem.
A fraude no comércio é crime próprio, pois só pode ser cometido pelo comerciante ou comerciário, no exercício de sua atividade comercial. Dessa maneira, caso a conduta seja realizada por pessoa diversa, tratar-se-á de crime de estelionato (crime comum). É a qualidade do sujeito ativo, portanto, que distingue tais delitos. Em conformidade com a clássica orientação do Supremo Tribunal Federal:
No caso, caracteriza-se malicioso engano, no exercício de atividade comercial, a venda, como bom, de piano em péssimo estado e mesmo inutilizado. Esse comportamento do paciente, indiscutivelmente fraudulento, não se ajusta, contudo, ao crime de estelionato descrito no art. 171 do Código Penal, encontrando exata definição no art. 175, inciso I, do mesmo estatuto primitivo.400
E, dependendo da mercadoria comercializada, poderá restar configurado o crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, previsto no art. 273, § 1.º, do Código Penal, que atenta contra a saúde pública, não se encaixando entre os crimes contra o patrimônio.401
Com a rubrica “outras fraudes”, o art. 176 do Código Penal contempla, para especial atenuação da pena (facultando até mesmo, em face das circunstâncias, o perdão judicial), certas modalidades de crimes patrimoniais cometidos com o emprego de fraude que apresentam reduzida gravidade. São, na verdade, figuras privilegiadas de estelionato, assim tratadas pelo legislador em razão do menor desvalor da conduta e do resultado.
De fato, se não tivesse sido criada esta forma especial de crime contra o patrimônio, a conduta de “tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento” encontraria adequação típica no art. 171, caput, do Código Penal.
Caracterizam-se, pois, como modalidades especiais de estelionato de escassa gravidade. Dizem respeito à conduta abusiva de quem, em situação de insolvabilidade, toma refeição em restaurante, obtém pousada em hotel ou se utiliza de meio de transporte. São formas do calote preordenado que a gíria denomina carona.402
A lei penal protege o patrimônio.
É a pessoa física ou jurídica que presta o serviço de alimentação, hospedagem ou transporte e não recebe o pagamento devido.
Os núcleos do tipo são “tomar”, “alojar-se” e “utilizar-se”.
Tomar tem o sentido de comer, beber, enfim, ingerir alguma substância alimentícia. Diz respeito às refeições em restaurantes. A palavra “restaurante” há de ser interpretada extensivamente, para incluir também os bares e padarias, entre outros estabelecimentos semelhantes. Esta interpretação extensiva é favorável ao réu. Vejamos um exemplo: “A” toma refeição em uma padaria, sem possuir recursos para efetuar o pagamento. Se a palavra restaurante não for interpretada extensivamente, “A” responderia pelo crime de estelionato (CP, art. 171, caput), que possui pena em abstrato sensivelmente superior ao do crime tipificado pelo art. 176 do Código Penal.
Alojar-se, por sua vez, refere-se ao ato de pousar, de hospedar-se em algum local. O tipo penal refere-se unicamente ao “hotel”, mas aqui também a lei deve ser interpretada extensivamente, alcançando os motéis, albergues, pensões etc.
Finalmente, utilizar-se significa fazer uso de alguma coisa, isto é, tirar proveito dela, tornando-a útil para determinado fim. Relaciona-se a algum “meio de transporte”, que é todo aquele normalmente utilizado para conduzir pessoas de um local para outro, mediante remuneração. É o caso dos táxis, motoboys, lotações, ônibus etc.
Destarte, comete o crime definido pelo art. 176 do Código Penal o sujeito que toma refeição em restaurante, aloja-se em hotel ou utiliza-se de meio de transporte sem dispor de recursos suficientes para efetuar o pagamento.
Fica nítido, pois, que a ausência de recursos para efetuar o pagamento é elementar do tipo penal. Logo, se a pessoa dispõe de tais recursos, mas recusa-se a efetuar o pagamento por outro motivo qualquer (exemplo: por não considerar justo o preço cobrado pela alimentação de má qualidade), o fato é penalmente atípico, nada obstante possa ser discutido no juízo civil.
Cabe, ainda, uma última ponderação.
A descrição do tipo penal vale-se de uma fórmula alternativa (“tomar refeição, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte”), sugerindo tratar-se de um tipo misto alternativo, crime de ação múltipla ou de conteúdo variado. Por corolário, se o agente, no mesmo contexto fático, praticasse mais de uma das condutas legalmente previstas, a ele seria imputado um só crime definido pelo art. 176 do Código Penal. Este raciocínio não pode prevalecer, pois a realização de várias condutas implica a lesão a diversos patrimônios, todos igualmente tutelados pela lei penal. Devem ser imputados ao sujeito, portanto, todos os crimes a que der causa em concurso material (CP, art. 69).
A finalidade do legislador, ao instituir esta forma privilegiada de estelionato, foi tratar de modo mais suave a fraude de pequena monta, e não proporcionar um tratamento extremamente brando àquele que usa e abusa da malícia para satisfazer seu ânimo de lucro. Como adverte Guilherme de Souza Nucci:
Se o agente alojar-se em um hotel de determinada cidade, tomar refeição em um restaurante estranho ao hotel e valer-se de um táxi para o seu deslocamento, sem recurso para efetuar o pagamento, estará prejudicando três vítimas diferentes, portanto, três patrimônios diversos terão sido ofendidos. Assim, cremos configurados três delitos, em concurso material.403
Evidentemente, não há crime, por ausência de ilicitude, se o fato típico é realizado em estado de necessidade, nos moldes do art. 24 do Código Penal. Exemplos:
(a) uma pessoa faminta (estado famélico) toma refeição em um restaurante, sem ter condições de pagar pelos serviços prestados;
(b) um morador de rua, paupérrimo, aloja-se em um hotel durante uma noite extremamente fria, para salvar sua vida; e
(c) uma mulher que fugia de um estuprador toma um táxi, sem possuir dinheiro para custear seu transporte.
Somente estará configurado o crime tipificado pelo art. 176 do Código Penal nas hipóteses em que não se exige o prévio pagamento do serviço de alimentação, hospedagem ou transporte a ser prestado. É o que normalmente se verifica nos restaurantes (e estabelecimentos análogos), nos hotéis (e estabelecimentos análogos) e nos veículos de transporte urbano. Esta circunstância revela a menor reprovabilidade da fraude empregada pelo agente.
Entretanto, se o sujeito frustra o prévio pagamento (exemplo: usa fraude para pagar o entregador de pizza, e posteriormente a consome) ou utiliza bilhete falso para valer-se de um serviço (exemplo: falsificação de um bilhete de avião), a ele será imputado o crime de estelionato em sua modalidade fundamental (CP, art. 171, caput).
Pode ser qualquer pessoa (crime comum).
É a pessoa física ou jurídica prestadora do serviço de alimentação, hospedagem ou transporte.
É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. Não se admite a modalidade culposa.
Estará caracterizado o erro de tipo na hipótese em que sujeito toma refeição, aloja-se em hotel ou utiliza-se de meio de transporte acreditando dispor de recursos suficientes para efetuar o pagamento, quando em verdade não os possui. Nessa hipótese, o fato será atípico, por ausência de dolo. É o que se dá, exemplificativamente, quando o agente esquece sua carteira em casa, ou a teve furtada durante o trajeto ao estabelecimento comercial em que iria alimentar-se ou hospedar-se, ou ainda quando seu cartão de crédito é equivocadamente bloqueado pela instituição financeira.
A consumação ocorre no momento em que o agente realiza uma das três condutas previstas no art. 176 do CP, ainda que parcialmente, sendo imprescindível que ele não disponha de recursos para efetuar o pagamento dos serviços de que se utilizou.
O crime é material (ou causal). Seu aperfeiçoamento reclama, ao menos, a tomada parcial da refeição no restaurante, a ocupação do quarto de hotel por um espaço relevante de tempo, ou a utilização do meio de transporte, por menor que tenha sido o percurso.404
É possível, como no exemplo em que, tendo sido trazida ao agente a refeição, ou depois de ingressar no quarto do hotel ou no meio de transporte, vem a ser descoberto o seu plano fraudulento, que assim se frustra.
Estatui o art. 176, parágrafo único, in fine, do Código Penal que “o juiz pode, conforme as circunstâncias, deixar de aplicar a pena”.
A lei admite para o crime em análise o instituto do perdão judicial. Trata-se de causa extintiva da punibilidade que somente pode ser reconhecida pelo magistrado nas hipóteses expressamente previstas em lei (CP, art. 107, inc. IX). A natureza jurídica da sentença concessiva do perdão judicial, nos termos da Súmula 18 do Superior Tribunal de Justiça, não é condenatória nem absolutória, mas declaratória da extinção da punibilidade.
O Código Penal não estabeleceu os requisitos necessários para a concessão do perdão judicial no crime definido em seu art. 176. Limitou-se a dizer que a causa extintiva da punibilidade pode ser reconhecida “conforme as circunstâncias” do caso concreto.
Esta fórmula legal (“conforme as circunstâncias”) é interpretada pela doutrina como condicionada aos seguintes requisitos:
(a) pequeno prejuízo suportado pela vítima;
(b) condições favoráveis do agente, que deve ser primário e não ostentar maus antecedentes criminais, além de apresentar personalidade socialmente ajustada; e
(c) o agente, ao tempo do crime, encontrar-se em situação de pobreza, o que não se confunde com o estado de necessidade, excludente da ilicitude, e, por corolário, do crime.
A ação penal é pública condicionada à representação do ofendido.
A pena máxima cominada em abstrato (detenção, de 15 dias a 2 meses, ou multa) classifica o crime tipificado pelo art. 176 do Código Penal como infração penal de menor potencial ofensivo, de competência do Juizado Especial Criminal e compatível com a composição civil dos danos, com a transação penal e com o rito sumaríssimo, na forma disciplinada pela Lei 9.099/1995.
Cuida-se de crime comum (pode ser cometido por qualquer pessoa); material (depende da produção do resultado naturalístico, isto é, exige-se o prejuízo patrimonial da vítima); doloso; de forma livre (admite qualquer meio de execução); em regra plurissubsistente (a conduta criminosa pode ser fracionada em diversos atos); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma só pessoa, mas admite o concurso); e instantâneo (consuma-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo).
A famosa “pendura” consiste em uma tradição instituída pelos estudantes dos cursos de Direito, como forma de comemorar o dia de criação dos cursos jurídicos no Brasil. No dia 11 de agosto, os universitários dirigem-se a restaurantes, munidos de uma “carta de pendura”, também chamada de “comenda”, e consomem comidas e bebidas sem efetuar o pagamento devido.
Firmou-se o entendimento no sentido de que a pendura não caracteriza o crime tipificado pelo art. 176 do Código Penal, mas mero ilícito civil. Não há fraude penal, pois as pessoas que realizam tal conduta assim agem para preservação de uma antiga crença estudantil, uma vez que em sua ampla maioria possuem condições financeiras para efetuar o pagamento dos serviços prestados. Falta, portanto, a elementar típica “sem dispor de recursos para efetuar o pagamento”.
Mas é necessário interpretar o art. 176 do Código Penal não com base na década de 1940, data em que foi criado, mas com esteio na realidade atual. Àquela época, poucas eram as faculdades de Direito, e logicamente existiam muito menos universitários.
Nos tempos modernos, em pleno século 21, o número dos estudantes de Direito aumentou consideravelmente, e os restaurantes, notadamente os mais procurados, não têm meios para suportar os prejuízos causados por milhares de pessoas ávidas pela pendura. Se não bastasse, em diversas penduras falta diplomacia (o evento não é previamente ajustado entre os estudantes e o representante do restaurante), e o ato usualmente envereda pelos excessos.
Se não bastasse, é preciso ficar atento a outro dado alarmante. Muitos estudantes de Direito desvirtuaram a pendura como tradição jurídica, dela se valendo como instrumento de impunidade para o cometimento de abusos inaceitáveis, os quais colocam em risco a saúde econômica de diversos estabelecimentos comerciais. É frequente a notícia de acadêmicos de cursos jurídicos que realizaram falsos casamentos ou se uniram para ingressarem em grandes grupos (até mesmo centenas de pessoas) em um mesmo restaurante. Nessas hipóteses, é visível a fraude, bem como o propósito de lesar o patrimônio alheio, caracterizado o delito em apreço, ou até mesmo o estelionato (CP, art. 171, caput), dependendo do grau do meio fraudulento utilizado e do prejuízo patrimonial proporcionado ao ofendido.
O bem jurídico penalmente protegido é o patrimônio.
É o prospecto ou a comunicação ao público ou à assembleia, cujo conteúdo compreende a afirmação falsa sobre a constituição da sociedade, ou a ocultação fraudulenta de fato a ela relativo.
O núcleo do tipo é “promover”, cujo significado consiste em dar impulso, fomentar, causar, gerar, originar. Nesse sentido, pratica a conduta descrita no tipo o fundador de uma sociedade por ações que, em prospecto (pequeno impresso no qual se faz propaganda ou divulgação de algo) ou em comunicação (qualquer maneira de transmitir uma mensagem, mediante linguagem falada ou escrita) ao público ou à assembleia, faz afirmação falsa sobre sua constituição, ou ainda, de modo fraudulento, oculta fato a ela relacionado.
Importante destacar que o delito tipificado no caput do art. 177 do Código Penal somente pode ocorrer no momento da formação da sociedade anônima ou da sociedade em comandita por ações, eis que são elas as espécies de sociedades por ações.
Sociedade anônima, também chamada de companhia, é a pessoa jurídica de direito privado, empresária por força de lei, regida por um estatuto e identificada por uma denominação, criada com o objetivo de auferir lucro mediante o exercício da empresa, cujo capital é dividido em frações transmissíveis, composta por sócios de responsabilidade limitada ao pagamento das ações subscritas.
Por sua vez, sociedade em comandita por ações é aquela em que o capital é dividido em ações, respondendo os acionistas apenas pelo valor das ações subscritas ou adquiridas, mas tendo os diretores ou gerentes responsabilidade subsidiária, ilimitada e solidária pelas obrigações sociais. É uma simbiose de sociedade em comandita e sociedade anônima, regendo-se no que couber pela normação da companhia.406
Cuida-se de crime próprio. Pode ser praticado unicamente pela pessoa que promove a fundação da sociedade por ações.
É qualquer pessoa que subscreva ou adquira o capital da sociedade por ações.
É o dolo. Alguns autores sustentam a necessidade de um especial fim de agir (elemento subjetivo específico), consistente na intenção de constituir a sociedade por ações. Com o devido respeito, este propósito nada mais é do que o dolo, pois o núcleo do tipo é “promover”. Não se pode, portanto, falar em elemento subjetivo específico que, na verdade, nada mais é do que dolo para a realização do tipo penal.
Não se admite a modalidade culposa.
O crime é formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado: consuma-se no momento em que o sujeito ativo faz a afirmação falsa ou pratica a ocultação de fatos relacionados à sociedade por ações.
É preciso que a afirmação falsa ou ocultação recaia sobre fatos relevantes, apresentando potencialidade lesiva, nada obstante o prejuízo patrimonial seja dispensável à consumação do delito.
É possível, embora “de difícil ocorrência, pois ou é feita a publicação ou comunicação contendo a afirmação falsa ou a ocultação de fatos, e o crime se consuma; ou ela não é realizada, e o crime não se configura”.407
Trata-se de crime expressamente subsidiário. Como se extrai do preceito secundário do art. 177, caput, do Código Penal, somente se pode falar em fraudes e abusos na fundação ou administração de sociedade por ações “se o fato não constitui crime contra a economia popular”.
Os crimes contra a economia popular estão previstos na Lei 1.521/1951.
A ação penal é pública incondicionada.
A pena em abstrato varia entre 1 (um) a 4 (quatro) anos de reclusão, e multa. Não se trata de infração penal de menor potencial ofensivo. Constitui-se, porém, em crime de médio potencial ofensivo (pena mínima igual ou inferior a um ano), compatível com a suspensão condicional do processo, desde que presentes os requisitos exigidos pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.
O art. 177, caput, do Código Penal contempla um crime próprio (somente pode ser praticado pelo fundador da sociedade por ações); formal (independe do efetivo prejuízo patrimonial à vítima); doloso; de forma livre (admite qualquer meio de execução); em regra plurissubsistente (a conduta criminosa pode ser fracionada em diversos atos); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma só pessoa, mas admite o concurso); e instantâneo (consuma-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo).
Os nove incisos do § 1.º do art. 177 referem-se às fraudes e abusos na administração de sociedades por ações, e não na sua fundação, ao contrário do que se verifica no caput do mesmo dispositivo legal.
Classificam-se também como crimes próprios, pois somente podem ser cometidos pelo diretor, gerente ou diretor de sociedade por ações, ou ainda pelo liquidante ou pelo representante da sociedade anônima estrangeira, autorizada a funcionar no Brasil.
Além disso, os crimes definidos pelo art. 177, § 1.º, incisos I a IX, do Código Penal, são, assim como no caput, expressamente subsidiários. Tais delitos somente serão imputados a quem os pratica quando não constituem crimes contra a economia popular, na forma estatuída pela Lei 1.521/1951.
Passemos à análise de cada uma das figuras equiparadas.
“Incorrem na mesma pena, se o fato não constitui crime contra a economia popular: I – o diretor, o gerente ou o fiscal de sociedade por ações, que, em prospecto, relatório, parecer, balanço ou comunicação ao público ou à assembleia, faz afirmação falsa sobre as condições econômicas da sociedade, ou oculta fraudulentamente, no todo ou em parte, fato a elas relativo”.
Nesse caso, diferentemente da figura típica descrita no caput, a fraude se dá durante a administração da sociedade, ou seja, quando ela já está formada e em funcionamento. Ademais, como é possível perceber, o objeto material é mais amplo do que no caput, pois a afirmação falsa pode ser feita tanto em prospecto ou comunicação ao público ou à assembleia quanto em relatório, parecer ou balanço.
Cuida-se de crime próprio, uma vez que somente o diretor, gerente ou fiscal da sociedade pode cometê-lo.
“Incorrem na mesma pena, se o fato não constitui crime contra a economia popular: II – o diretor, o gerente ou o fiscal que promove, por qualquer artifício, falsa cotação das ações ou de outros títulos da sociedade”.
Caracteriza-se o crime quando o sujeito ativo (diretor, gerente ou fiscal), ardilosamente, altera o verdadeiro valor das ações ou de outros títulos da sociedade, ou seja, consuma-se no instante em que promove a sua falsa cotação. É possível concluir, dessa maneira, que se trata de crime próprio, formal (pois independe do efetivo prejuízo patrimonial à vítima), e o objeto material consiste nas ações ou outros títulos da sociedade.
“Incorrem na mesma pena, se o fato não constitui crime contra a economia popular: III – o diretor ou o gerente que toma empréstimo à sociedade ou usa, em proveito próprio ou de terceiro, dos bens ou haveres sociais, sem prévia autorização da assembleia geral.”
O principal fundamento para que a lei puna a conduta do diretor ou gerente (crime próprio) que, em proveito próprio ou de terceiro, toma empréstimo à sociedade ou usa dos bens ou haveres sociais, sem prévia autorização da assembleia geral, consiste no fato de a sociedade empresária possuir patrimônio distinto do de seus sócios. Portanto, para que o crime se consume é imprescindível a ausência da aludida autorização.
Ademais, para sua consumação, além do dolo (vontade livre e consciente de emprestar ou usar os bens ou haveres sociais, em prévia autorização da assembleia geral) exige-se a finalidade específica de agir representada pela expressão “em proveito próprio ou de terceiro”.
“Incorrem na mesma pena, se o fato não constitui crime contra a economia popular: IV – o diretor ou o gerente que compra ou vende, por conta da sociedade, ações por ela emitidas, salvo quando a lei o permite.”
Com essa norma, a lei busca evitar que haja manipulação do mercado e a atividade altamente especulativa, pois seria cômodo ao diretor ou gerente da companhia emitir boatos de que a empresa se encontra em péssima situação financeira, prestes a fechar as portas, e, assim, comprar da própria empresa diversas ações para, posteriormente, por exemplo, depois da divulgação de balanços favoráveis, vendê-las por valor muito superior, enriquecendo-se ilicitamente.
Essa norma criminaliza a conduta já proibida na Lei 6.404/1976. Destarte, o art. 30, caput, do referido diploma legal preconiza que “a companhia não poderá negociar com as próprias ações”. Entretanto, em seu § 1.º, traz algumas ressalvas, em que se permite a transação.
“Incorrem na mesma pena, se o fato não constitui crime contra a economia popular: V – o diretor ou o gerente que, como garantia de crédito social, aceita em penhor ou em caução ações da própria sociedade.”
Pune-se a conduta do diretor ou gerente da sociedade por ações (crime próprio) que, como garantia de crédito social, aceita em penhor ou em caução ações da própria sociedade.
É um desdobramento do art. 30, § 3.º, da Lei 6.404/1976, cujo texto assim dispõe: “A companhia não poderá receber em garantia as próprias ações, salvo para assegurar a gestão dos seus administradores”.
Nas palavras de Fernando Capez, trata-se de hipótese em que a sociedade tem um crédito em que figura como devedor o seu acionista ou terceiro, e estes oferecem ações da própria sociedade credora como garantia; destarte, veda-se a situação em que a sociedade figure, simultaneamente, como credora e fiadora.408
“Incorrem na mesma pena, se o fato não constitui crime contra a economia popular: VI – o diretor ou o gerente que, na falta de balanço, em desacordo com este, ou mediante balanço falso, distribui lucros ou dividendos fictícios.”
Conforme estabelece o art. 202, caput, da Lei 6.404/1976, “os acionistas têm direito de receber como dividendo obrigatório, em cada exercício, a parcela dos lucros estabelecida no estatuto ou, se este for omisso, a importância determinada de acordo com as seguintes normas (...)”.
E para que se efetue a distribuição dos dividendos aos sócios acionistas é preciso que a sociedade realize um balanço patrimonial, com o intuito de verificar a existência de lucro, de superávit, mediante a análise do ativo e do passivo.
É nesse contexto que a norma penal em questão se insere, a fim de evitar que o diretor ou gerente da sociedade (crime próprio) distribua lucros ou dividendos fictícios, ilusórios, isto é, que não condizem com a realidade dos lucros obtidos pela sociedade. Pode ocorrer em três hipóteses:
(a) quando em desacordo com o balanço realizado;
(b) mediante a falsificação do balanço; ou
(c) pela não realização de balanço.
Importante tecer uma última observação no que toca ao balanço falso, pois é possível que haja concurso material com o crime de falsidade material ou ideológica na hipótese de o diretor ou gerente, intencionalmente, falsificar o balanço social. No entanto, não haverá crime quando o balanço não corresponder com a realidade por erro de avaliação ou de contabilidade.
“Incorrem na mesma pena, se o fato não constitui crime contra a economia popular: VII – o diretor, o gerente ou o fiscal que, por interposta pessoa, ou conluiado com acionista, consegue a aprovação de conta ou parecer.”
Ensina Ney Moura Teles que a conduta consiste “na obtenção de aprovação de conta ou parecer. As contas dos administradores, os pareceres do Conselho Fiscal e outros, de auditores independentes, são submetidos à aprovação da assembleia da companhia, não tendo os agentes o direito a voto, razão por que a norma refere-se a conluio com acionista ou interposta pessoa, que atua em concurso com o administrador”.409
“Incorrem na mesma pena, se o fato não constitui crime contra a economia popular: VIII – o liquidante, nos casos dos ns. I, II, III, IV, V e VII.”
Com a dissolução da sociedade, surge a figura do liquidante, cujo dever, entre outros, consiste em “ultimar os negócios da companhia, realizar o ativo, pagar o passivo, e partilhar o remanescente entre os acionistas”, consoante dispõe o inciso IV do art. 210 da Lei 6.404/1976. Em razão de tal responsabilidade, punem-se, igualmente, as condutas delituosas do liquidante, no concernente aos incisos I, II, III, IV, V e VII do § 1.º do artigo em estudo.
Conforme leciona Rogério Greco, “cuida-se, in casu, do chamado tipo penal primariamente remetido, no qual o intérprete, para que possa compreender e aplicar o tipo penal em questão, deverá, obrigatoriamente, deslocar-se para as demais figuras típicas por ele indicadas”.410
“Incorrem na mesma pena, se o fato não constitui crime contra a economia popular: IX – o representante da sociedade anônima estrangeira, autorizada a funcionar no País, que pratica os atos mencionados nos ns. I e II, ou dá falsa informação ao Governo.”
O referido dispositivo legal pune a conduta do representante da companhia estrangeira, autorizada a funcionar no País, que faz afirmação falsa sobre as condições econômicas da sociedade, ou oculta fraudulentamente fato a elas relativo (inciso I); ou, ainda, que, por qualquer artifício, promove falsa cotação das ações ou de outros títulos da sociedade (inciso II); ou que, por fim, dá falsa informação ao Governo.
A negociação ilícita de voto é infração penal de menor potencial ofensivo, pois a pena máxima prevista em abstrato é de 2 (dois) anos. O crime é de competência do Juizado Especial Criminal, compatível com a transação penal e com o rito sumaríssimo, na forma determinada pela Lei 9.099/1995.
Este delito não foi revogado pela Lei 6.404/1976 – Lei das Sociedades por Ações. Nada obstante seu art. 115, § 3.º, discipline o abuso do direito de votar, e seu art. 118 admita expressamente o “acordo de acionistas”, tais medidas possuem conotação civil, e são, por tal razão, insuscetíveis de revogar uma lei penal. De fato, a responsabilidade civil do acionista não exclui sua responsabilidade penal, nos termos do art. 177, § 2.º, do Código Penal. Entretanto, Julio Fabbrini Mirabete acertadamente adverte:
Visa a lei evitar que o acionista, para auferir benefício pessoal, negocie com seu voto na assembleia geral das sociedades por ações. O alcance do dispositivo restou diminuído com a Lei 6.404, que permite o acordo de acionistas, inclusive quanto ao exercício do direito de voto (art. 118). Restará a incriminação quando a negociação não estiver revestida das formalidades legais ou contrariar dispositivo expresso de lei.411
A extinção da punibilidade dos crimes previstos no art. 177 do Código Penal, em todas as suas modalidades, no tocante às questões contábeis, fiscais e cambiais, é disciplinada pelo Decreto-lei 697/1969, cujo art. 3.º possui a seguinte redação:
Art. 3.º Extinguem-se a punibilidade dos crimes previstos no artigo 177 do Código Penal para as emissões contábeis relativas a títulos registrados na forma do Decreto-lei n.º 286, de 28-2-67, ficando também assegurada a isenção das penalidades fiscais e cambiais decorrentes.
Parágrafo único. Os benefícios previstos neste artigo não se aplicam aos diretores das empresas que não cumprirem, dentro do prazo fixado, as determinações do artigo anterior.
A lei penal protege o patrimônio.
O objeto material é o conhecimento de depósito ou o warrant emitido em desacordo com disposição legal. Conhecimento de depósito e warrant são títulos de crédito emitidos por armazeneiros representativos tanto das mercadorias depositadas em um armazém-geral como das obrigações assumidas por este em razão do contrato de depósito.412
Nesse contexto, conhecimento de depósito é o título de crédito que representa as mercadorias depositadas no armazém-geral, servindo como prova de sua guarda e conservação. Confere ao seu portador o poder de disponibilidade no tocante às mercadorias. De seu turno, warrant é o título de crédito emitido em conjunto com o conhecimento de depósito, e tem por objetivo eventuais operações de crédito cuja garantia seja o penhor sobre as mercadorias depositadas no armazém-geral.
O crime de emissão irregular de conhecimento de depósito ou warrant está concretizado em uma lei penal em branco. O preceito primário da lei penal é incompleto, pois do art. 178 do Código Penal consta a expressão “em desacordo com disposição legal”. Há necessidade, portanto, de utilização de um complemento para a integralização da conduta criminosa.
Este complemento está contido no Decreto 1.102/1903, cuja missão é a de instituir regras para o estabelecimento de empresas de armazéns gerais, determinando seus direitos e obrigações. A análise do seu art. 15 permite saber se referidos títulos armazeneiros foram regularmente emitidos, pois, em caso contrário, poderá caracterizar-se o crime definido pelo art. 178 do Código Penal:
Art. 15. Os armazéns gerais emitirão, quando lhes for pedido pelo depositante, dois títulos unidos, mas separáveis à vontade, denominados conhecimento de deposito e warrant.
§ 1.º Cada um destes títulos deve ter a ordem e conter, além da sua designação particular:
1.º a denominação da empresa do armazém geral e sua sede;
2.º o nome, profissão e domicílio do depositante ou do terceiro por este indicado;
3.º o lugar e prazo do depósito;
4.º a natureza e quantidade das mercadorias em depósito, designadas pelos nomes mais usados no comércio, seu peso, o estado dos envoltórios e todas as marcas e indicações próprias para estabelecerem a sua identidade;
5.º a qualidade da mercadoria, tratando-se daquelas a que se refere o art. 12;
6.º a indicação do segurador da mercadoria e o valor do seguro (art. 16);
7.º a declaração dos impostos e direitos fiscais, dos encargos e despesas a que a mercadoria está sujeita, e do dia em que começaram a correr as armazenagens (art. 26, § 2.º);
8.º a data da emissão dos títulos e a assinatura do empresário ou pessoa devidamente habilitada por este.
§ 2.º Os referidos títulos serão extraídos de um livro de talão, o qual conterá todas as declarações acima mencionadas e do número de ordem correspondente.
No verso do respectivo talão o depositante, ou terceiro por este autorizado, passará recibo dos títulos. Se a empresa, a pedido do depositante, os expedir pelos Correios, mencionará esta circunstância e o número e data do certificado do registro postal.
Anotar-se-ão também no verso do talão as ocorrências que se derem com os títulos dele extraídos, como substituição, restituição, perda, roubo, etc.
§ 3.º Os armazéns gerais são responsáveis para com terceiros pelas irregularidades e inexatidões encontradas nos títulos que emitirem, relativamente à quantidade, natureza e peso da mercadoria.
O núcleo do tipo é “emitir”, que significa expedir, colocar em circulação. Assim sendo, configura-se o crime em apreço quando o conhecimento de depósito ou o warrant é colocado em circulação em desacordo com disposição legal, leia-se, quando violar as regras delineadas pelo Decreto 1.102/1903 (especialmente seu art. 15), o qual institui regras para o estabelecimento de armazéns-gerais, determinando os direitos e obrigações dessas empresas.
Trata-se de crime próprio, pois somente pode ser cometido por quem tem legitimidade para emitir o conhecimento de depósito ou o warrant, e o faz em desacordo com disposição legal. Na maioria dos casos, o responsável pelo delito é o próprio depositário da mercadoria.
É o portador ou endossatário do conhecimento de depósito ou warrant, que desconhece a irregularidade na emissão do título, e por este motivo fica vulnerável à lesão patrimonial.
É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. Basta a emissão do título armazeneiro, voluntária e consciente, em desacordo com disposição legal.
Não se admite a modalidade culposa.
O crime é formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado: consuma-se com a simples emissão do conhecimento de depósito ou warrant, em desconformidade com disposição legal. Prescinde-se do prejuízo patrimonial à vítima, que pode, porém, ocorrer, situação em que o delito atingirá o exaurimento, o qual deverá ser levado em consideração pelo julgador na dosimetria da pena-base, nos moldes do art. 59, caput, do Código Penal.
Não é possível, “pois ou o título foi endossado, entrando em circulação e o delito está consumado, ou não houve a transferência, ocorrendo apenas atos preparatórios”.413 Trata-se de crime unissubsistente.
A ação penal é pública incondicionada.
A pena em abstrato varia entre 1 (um) a 4 (quatro) anos de reclusão, e multa. Em face da sua pena mínima, a emissão irregular de conhecimento de depósito ou warrant constitui-se em crime de médio potencial ofensivo, compatível com a suspensão condicional do processo, desde que presentes os requisitos exigidos pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.
Cuida-se de crime próprio (só pode ser cometido pelo emitente do conhecimento de depósito ou do warrant); formal (independe do prejuízo patrimonial à vítima); doloso; de forma livre (admite qualquer meio de execução); unissubsistente (o fato de colocar em circulação o conhecimento de depósito ou o warrant em circulação já é capaz de, por si só, levar à sua consumação); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser praticado por uma só pessoa, mas admite o concurso); e instantâneo (consuma-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo).
O bem jurídico tutelado pela lei penal é o patrimônio.
O art. 179 do Código Penal contempla dois objetos materiais:
(a) o bem (ou bens) alienado, desviado, destruído ou danificado, com a finalidade de fraudar a execução; e
(b) a própria ação de execução.
O núcleo do tipo é “fraudar”, ou seja, enganar ou iludir, com o objetivo de lesar o patrimônio alheio. O que interessa para o art. 179 do Código Penal não é uma fraude qualquer, mas somente a fraude à execução, que ocorre quando o agente aliena, desvia, destrói ou danifica bens, ou simula dívidas. Em síntese, o executado (devedor) realiza uma das condutas mencionadas, com a finalidade de esvaziar seu patrimônio em prejuízo do exequente (credor).
Executar é satisfazer uma pretensão devida. A execução pode ser espontânea, quando o devedor cumpre voluntariamente com a prestação a ele cabível, ou forçada, quando o cumprimento da prestação é obtido por meio da prática de atos executivos pelo Estado.414 Esta última (execução forçada) é a que interessa ao crime patrimonial em estudo.
A razão de existir do crime de fraude à execução é de fácil compreensão. Ao credor assiste um direito, consubstanciado em um título executivo. O devedor, que já descumpriu sua obrigação, age no sentido de burlar a satisfação do crédito alheio, fugindo do seu débito, mesmo depois de instado a fazê-lo pelo Poder Judiciário, revelando seu destemor e sua incredulidade perante a força do Estado. Desta forma, o responsável pelo delito, além de afrontar a atuação jurisdicional, fulmina a utilidade da execução, pois sua missão é proporcionar algo de útil ao credor.415
Exige-se, destarte, o prévio ajuizamento de um processo de execução, que esteja em trâmite, pois o executado, depois de validamente citado – com a citação aperfeiçoa-se a relação jurídica processual – fraudulentamente desfaz-se de seus bens, com o propósito de frustrar o pagamento de dívida representada em um título executivo.416
Cumpre ressaltar a imprescindibilidade de a manobra fraudulenta colocar o executado no estado de insolvência, é dizer, sem possuir patrimônio suficiente para honrar suas dívidas. Na linha de raciocínio do Superior Tribunal de Justiça:
Revela-se como atípica e, portanto, imune à sanção penal, a conduta do devedor que aliena parte de seu patrimônio, após citado para pagamento, em ação de execução, ou oferecimento de bens à penhora, se resta comprovado não haver seu patrimônio sofrido qualquer abalo em decorrência do ato, sendo – ainda – sintomática a aquisição com o valor recebido de imóvel de preço superior. Delito do art. 179 do Código Penal não configurado.417
Cuida-se de crime próprio ou especial, pois somente pode ser cometido pelo executado (devedor).
É o exequente (credor).
É o dolo, sem qualquer finalidade específica, pois o verbo principal do tipo é fraudar, que, abrangido pelo dolo, configura naturalmente a vontade de enganar o credor. Exigir o elemento subjetivo do tipo específico é o mesmo que demandar a existência concomitante de duas vontades sobre o mesmo objeto, algo ilógico. Fraudar já é a intenção de iludir alguém, de modo que prescinde de elemento subjetivo específico.418
Não se admite a modalidade culposa.
O crime é material, consumando-se quando o executado, com o intuito de frustrar o êxito da ação executiva, aliena, desvia, destrói ou danifica bens, ou simula dívidas, tornando-se insolvente.
É de recordar que o Superior Tribunal de Justiça, com a nítida intenção de proteger o devedor, lamentavelmente editou a Súmula 375, com o seguinte teor: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”. Esta súmula, criada no campo do Direito Civil, evidentemente produz efeitos no terreno da consumação do crime de fraude à execução.
É possível.
A ação penal é privada, como se extrai do art. 179, parágrafo único, do Código Penal. Todavia, a ação penal será pública incondicionada na hipótese de delito praticado em detrimento do patrimônio ou interesse da União, Estado ou Município (CPP, art. 24, § 2.º).419 Esta é, aliás, uma regra aplicável aos delitos em geral, em face do interesse público atacado pela conduta criminosa.
A pena máxima cominada ao crime de fraude à execução é de 2 (dois) anos. Cuida-se, portanto, de infração penal de menor potencial ofensivo, de competência do Juizado Especial Criminal e compatível com a composição dos danos civis e com o rito sumaríssimo, na forma prevista na Lei 9.099/1995.
Trata-se de crime próprio (somente pode ser praticado pelo executado); material (depende da produção do resultado naturalístico, qual seja o efetivo prejuízo patrimonial ao exequente); doloso; de forma livre (compatível com qualquer meio de execução); em regra plurissubsistente (a conduta criminosa pode ser fracionada em diversos atos); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma só pessoa, mas admite o concurso); e instantâneo (a consumação se verifica em um momento determinado, sem continuidade no tempo).
A receptação está prevista no art. 180 do Código Penal. Pode ser dolosa ou culposa.
A receptação dolosa apresenta as seguintes modalidades:
(a) simples (caput),420 que pode ser própria (1.ª parte) ou imprópria (parte final);
(b) qualificada pelo exercício de atividade comercial ou industrial (§ 1.º);
(c) privilegiada (§ 5.º, parte final); e
(d) qualificada pela natureza do objeto material (§ 6.º).
Em relação à receptação qualificada pelo exercício de atividade comercial ou industrial, o § 2.º do art. 180 contempla uma norma penal explicativa ou complementar.
A receptação culposa, por sua vez, encontra-se delineada no art. 180, § 3.º, do Código Penal. Com ela guarda afinidade a regra contida no § 5.º, 1.ª parte, inerente ao perdão judicial, admissível somente nesta modalidade do delito.
Finalmente, o § 4.º do art. 180 do Código Penal contém uma norma penal explicativa ou complementar atinente à autonomia do crime de receptação (dolosa ou culposa).
O esquema abaixo traduz graficamente o que foi dito:
O bem jurídico penalmente protegido é o patrimônio.
A ação penal, tanto na receptação dolosa (nas suas diversas modalidades) como na receptação culposa, é pública incondicionada.
Por questões estritamente didáticas, iniciaremos a análise do crime de receptação em sua modalidade dolosa, simples e própria, definida pelo art. 180, caput, 1.ª parte, do Código Penal, pois nela encontram-se as regras gerais aplicáveis ao delito. Em seguida, estudaremos as peculiaridades de cada uma das demais espécies de receptação.
Este crime possui a seguinte descrição típica: “Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime”. Sua redação é obra da Lei 9.426/1996, responsável pelo acréscimo dos núcleos “transportar” e “conduzir”. A pena é de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
A receptação é um crime acessório, de fusão ou parasitário,421 pois não tem existência autônoma, reclamando a prática de um delito anterior. O tipo penal é claro nesse sentido: a coisa deve ser “produto de crime”. Em síntese, não é qualquer coisa de natureza ilícita que enseja a receptação, mas apenas aquela de origem criminosa.
A palavra “crime” deve ser interpretada restritivamente. Logo, se a coisa é produto de contravenção penal, não se caracteriza o crime tipificado pelo art. 180 do Código Penal.
Como a lei indica como objeto material da receptação a coisa “produto de crime”, é imprescindível, para demonstração da sua materialidade, a comprovação da natureza criminosa do bem. Esta é, portanto, a diligência primordial a ser realizada pela autoridade policial no bojo do inquérito policial (CPP, art. 6.º, inc. III). Sem ela, o procedimento investigatório estará incompleto, e não será suficiente a embasar a atividade do Ministério Público quanto ao oferecimento da denúncia.
Exemplificativamente, se o inquérito policial foi instaurado para apurar a receptação de um automóvel furtado, o Delegado de Polícia deverá juntar aos autos um documento capaz de provar por qualquer modo o crime antecedente. Não há necessidade de prévio ajuizamento de ação penal, nem muito menos de condenação pela prática do crime anterior. Com efeito, a lei se contenta com a coisa “produto de crime”, não exigindo a condenação pela prática do crime anterior.
Basta, assim, um boletim de ocorrência, ou mesmo a anotação no prontuário do veículo acerca da ocorrência do furto, pouco importando se é conhecido ou se foi punido o seu autor. É o que se convencionou chamar de “autonomia” da receptação, na forma do art. 180, § 4.º, do Código Penal.
O art. 180, § 4.º, do Código Penal contém uma norma explicativa ou complementar aplicável a todas as modalidades de receptação, ou seja, tanto à receptação dolosa, simples (caput), que pode ser própria (1.ª parte) ou imprópria (parte final), qualificada pelo exercício de atividade comercial ou industrial (§ 1.º), privilegiada (§ 5.º, parte final), qualificada pela natureza do objeto material (§ 6.º), bem como à receptação culposa (§ 3.º). Em conformidade com seu texto, “a receptação é punível, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa”.
Consagrou-se a autonomia da receptação. Em outras palavras, a receptação, embora classificada como crime acessório, pois pressupõe a prática de um crime anterior, não reclama o conhecimento do autor deste último, nem a possibilidade de ser ele efetivamente punido. Há, portanto, independência entre a receptação e o crime anterior.
Mas esta independência é relativa, pois, nada obstante seja irrelevante a identidade ou a responsabilidade penal do autor do fato criminoso anterior, é indispensável que se comprove a existência material do crime de que proveio a coisa que se diz receptada.422
Em outras palavras, o Código Penal deixa nítido que, para a punibilidade da receptação, basta a existência de prova do crime anterior, pouco importando se desconhecido ou impunível seu autor. Esta é uma das principais características da receptação. Aliás, trata-se de característica inerente aos crimes acessórios em geral.423
A autonomia da receptação divide-se em dois diferentes aspectos:
1.º aspecto: A receptação é punível ainda que desconhecido o autor do crime antecedente
Mas, se forem identificados tanto o receptador como o autor do crime anterior, os crimes por eles praticados serão tidos como conexos, na forma do art. 76, inciso III, do Código de Processo Penal (conexão probatória ou instrumental), e, sempre que possível, importarão em unidade de processo e julgamento.
Na hipótese de o autor do crime antecedente ter sido identificado e processado, há de ser feita uma indagação: E se ele for absolvido, o receptador poderá ser condenado?
A resposta é “depende”. Depende do quê? A absolvição ou condenação do receptador depende do fundamento utilizado pelo magistrado para absolver o responsável pelo crime anterior. Em verdade, se tal fundamento for incompatível com a receptação, o receptador deverá ser absolvido; em caso contrário, o receptador poderá ser condenado.
Os motivos que ensejam a absolvição no juízo criminal encontram-se no art. 386 do Código de Processo Penal. Extrai-se da sua análise que o receptador poderá, ao menos em tese, ser condenado quando a absolvição do autor do crime anterior embasar-se nos seguintes fundamentos:
(a) estar provado que o réu não concorreu para o crime (inciso IV);
(b) não existir prova de ter o réu concorrido para o crime (inciso V);
(c) existirem circunstâncias que isentem o réu de pena: são as causas excludentes da culpabilidade, também conhecidas como dirimentes, e as escusas absolutórias, denominadas ainda de causas pessoais de isenção da pena, imunidades penais absolutas, materiais ou substanciais, ou, finalmente, causas de impunibilidade absoluta (inciso VI); e
(d) não existir prova suficiente para a condenação (inciso VII).
Em todas estas hipóteses, o crime existe, e isso é o bastante para a receptação, sendo irrelevante se o indivíduo acusado pela sua prática não era seu autor, ou se, mesmo o sendo, era ele impunível ou não existiam provas suficientes para sua segura condenação.
De outro lado, o receptador não poderá ser condenado quando a absolvição do réu na ação penal atinente ao crime anterior se basear em algum dos seguintes fundamentos:
(a) estar provada a inexistência do fato (inciso I);
(b) não haver prova da existência do fato (inciso II);
(c) não constituir o fato infração penal (inciso III); e
(d) existirem circunstâncias que excluam o crime, ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência: o legislador refere-se às causas excludentes da ilicitude, também chamadas de eximentes, justificativas, tipos penais permissivos ou descriminantes (inciso V).
Nesses casos, o crime anterior não existiu (incisos I, III e IV, em sua primeira parte), ou pode até ter ocorrido, mas não há certeza disso (incisos II e IV, parte final). Ambas as situações são incompatíveis com a receptação, que exige prova, e não dúvida, quanto à existência do crime antecedente.
2.º aspecto – O receptador pode ser punido ainda que isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa
É o que se dá nas causas de exclusão da culpabilidade, também conhecidas como dirimentes,424 e nas escusas absolutórias (exemplo: CP, art. 181).
Em resumo, e para que nosso leitor jamais se esqueça, seremos repetitivos: a possibilidade de punição da receptação vincula-se única e exclusivamente à prova do crime anterior, independentemente do fato de ser seu autor desconhecido ou isento de pena. Esta é a regra contida no art. 180, § 4.º, do Código Penal, conhecida como autonomia da receptação.
A declaração da extinção da punibilidade do crime anterior, qualquer que seja a sua causa, não impede a caracterização do crime tipificado pelo art. 180 do Código Penal e a punição do seu responsável. Cuida-se, uma vez mais, de manifestação da autonomia da receptação. Exemplificativamente, se “A” praticou o furto de uma televisão, posteriormente adquirida por “B”, com ciência da sua origem criminosa, a superveniente morte de “A”, extinguindo em relação a ele a punibilidade do furto, não afasta a receptação cometida por “B”.
O crime antecedente existiu, e isso, por si só, enseja a possibilidade de reconhecimento do crime acessório e a imposição de pena a quem nele se envolveu. É o que consta do art. 108, 1.ª parte, do Código Penal: “A extinção da punibilidade de crime que é pressuposto, elemento constitutivo ou circunstância agravante de outro não se estende a este”. Mas esta regra guarda duas exceções.
Com efeito, a declaração da extinção da punibilidade do crime antecedente impede a configuração da receptação e, consequentemente, a punição do seu responsável, quando fundada na anistia (CP, art. 107, inc. II, 1.ª figura) e na abolitio criminis (CP, art. 107, inc. III).
Anistia e abolitio criminis são causas extintivas da punibilidade veiculadas por lei. Naquela, uma lei ordinária com efeitos retroativos exclui um ou mais fatos criminosos do campo de incidência do Direito Penal (exemplo: deixam de ser punidos os furtos cometidos em determinado ano); nesta, a nova lei exclui do âmbito do Direito Penal um fato até então considerado criminoso (exemplo: o furto deixa de ser crime).
Logo, o raciocínio é muito simples e de fácil compreensão. Se o crime é instituído por uma lei, outra lei de igual natureza faz com que ele desapareça, nada obstante o Código Penal, em seu art. 107, fale em extinção da punibilidade. E, se o crime anterior deixa de existir, não subsiste a receptação, uma vez que a partir de então a coisa não pode mais ser considerada produto de crime.
A receptação integra a relação dos crimes contra o patrimônio, pois se insere no Título II da Parte Especial do Código Penal. Mas o crime anterior, nada obstante normalmente também seja patrimonial, não precisa ser de igual natureza, já que a lei fala em coisa “produto de crime”, o que é diverso de coisa “produto de crime contra o patrimônio”.
Destarte, qualquer crime compatível com a posterior receptação pode funcionar como seu pressuposto. O art. 180 do Código Penal não faz exigência alguma. Basta ser crime, de ação pública (incondicionada ou condicionada) ou de ação privada, punido com reclusão ou com detenção, doloso ou culposo (embora esta hipótese seja de rara ocorrência prática). Tanto faz. É o caso do peculato (exemplo: o sujeito, ciente da origem ilícita do bem, adquire um computador subtraído por um funcionário público da repartição em que trabalha) e também do descaminho,425 como ocorre nas frequentes aquisições de produtos que ingressaram no Brasil sem o pagamento dos tributos respectivos.
Anote-se que existe receptação mesmo que o crime anterior seja de ação penal exclusivamente privada e não tenha sido ajuizada queixa-crime, ou de ação penal pública condicionada e a vítima não tenha oferecido representação. Contudo, nesses casos o Ministério Público, na ação penal inerente à receptação, terá que provar, incidentalmente, a existência do crime anterior. Em qualquer hipótese, porém, é óbvio que nesse processo somente poderá haver condenação pela receptação, e nunca pelo delito anterior.
A pena da receptação dolosa simples própria (e também na imprópria) é de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Nota-se, portanto, que a pena cominada à receptação independe da pena atribuída ao crime anterior, que pode ser maior (exemplo: roubo, extorsão etc.) ou menor (exemplo: furto privilegiado, apropriação de coisa achada etc.). A maioria das legislações estrangeiras também segue este critério.
Baseou-se o legislador na ideia de que o receptador é uma pessoa que ainda não se rebaixou à extrema depravação moral de um ladrão, de um extorsionário ou de outro vil criminoso qualquer. Cuida-se, ao contrário, de indivíduo que, para auferir lucro fácil, abre mão dos escrúpulos que servem de vetores aos negócios honestos. Ele seria incapaz de cometer um roubo, uma extorsão, um latrocínio, até mesmo porque, não raro, convive com gente honesta, pois fora da mercancia ilícita mantém uma linha inquestionável de conduta civil. Até aí tudo bem.
Mas o legislador andou mal ao estabelecer para a receptação a mesma pena, sempre, independentemente de qual seja o crime anterior. Com efeito, a pena da receptação deveria ser proporcional à gravidade do crime antecedente. Não há motivos legítimos para o receptador ser igualmente punido quando, exemplificativamente, adquire um bem resultante da prática de um furto, e quando pratica igual conduta relativamente a um bem proveniente de um latrocínio.
A receptação, indiscutivelmente, estimula a prática de diversos delitos, notadamente no campo patrimonial, alimentando a indústria criminosa e seus “funcionários”, a saber, ladrões, extorsionários, latrocidas, traficantes, falsários etc. Os crimes contra o patrimônio, em especial, são praticados porque o seu responsável sabe que há um destinatário ávido no recebimento do seu produto. Em termos ilustrativos, soa evidente que não seriam cometidos tantos roubos de automóveis se não existissem pessoas interessadas na aquisição ilícita de suas peças por valor substancialmente inferior ao praticado no mercado formal.
Para nós, seria mais adequado se o legislador tivesse utilizado no preceito secundário do art. 180 do Código Penal a seguinte fórmula: “Pena – a cominada ao crime antecedente”. Este critério, longe de figurar como invenção, é do conhecimento do Código Penal, que o empregou em seu art. 304 (uso de documento falso).
Não se pode olvidar, ainda, que a receptação também atinge de forma secundária a própria Administração da Justiça, revelando sua elevada gravidade, pois prejudica a ação da autoridade estatal na apuração do crime antecedente. Por essa razão, em alguns países, como Argentina e Uruguai, a receptação foi incluída entre os crimes contra a Administração da Justiça.
Acreditamos não ser necessário ir tão longe, pois a receptação é, acima de tudo, crime contra o patrimônio. Mas a pena, como se encontra atualmente prevista, muitas vezes leva ao tratamento excessivamente brando de criminosos merecedores de rígida punição no campo penal.
É comum a formulação da seguinte pergunta: É possível a receptação de receptação?
A resposta é positiva. Para a caracterização do delito tipificado pelo art. 180 do Código Penal, exige-se seja a coisa “produto de crime”, qualquer que seja ele, inclusive a própria receptação. Exemplo: “A” adquire de um desconhecido uma bicicleta, sabendo que se tratava de produto de crime. Depois de utilizar o bem por alguns dias, ele efetua sua venda a “B”, advertindo-o da origem espúria da coisa.
No exemplo mencionado, fica nítido que “A” praticou receptação, ao passo que “B” cometeu a chamada receptação de receptação, também chamada de receptação em cadeia. Daí se conclui que respondem pelo crime acessório todos os sujeitos que, nas sucessivas negociações envolvendo o mesmo objeto material, tenham conhecimento da sua origem criminosa. Em outras palavras, é responsável pela receptação todo aquele que, ciente da procedência ilícita do bem, pratica uma das condutas típicas indicadas no art. 180, caput, do Código Penal, ainda que a pessoa que lhe transferiu a coisa ignorasse tal circunstância.
Nélson Hungria, de forma polêmica, sustentava que, se a coisa vem a ser adquirida ou recebida por terceiro de boa-fé, que, por sua vez, efetua sua transferência a outrem, não comete esta receptação, ainda que tenha conhecimento de que a coisa provém de crime. Houve, em tal caso, uma interrupção ou solução de continuidade da situação patrimonial anormal criada pelo crime originário e mantida, ao acaso, por intercorrente receptação de má-fé.426
Não podemos concordar com o brilhante penalista. De fato, aquele que, ciente da origem criminosa do bem, dolosamente o adquire, ainda que de terceiro de boa-fé, comete receptação, uma vez que realiza todos os elementos exigidos pelo art. 180, caput, 1.ª parte, do Código Penal.
Parece-nos equivocado confundir o afastamento da receptação em cadeia (não há receptação de receptação) com a caracterização do delito pelo sujeito que adquiriu ou recebeu uma coisa sabendo tratar-se de produto de crime. São duas coisas distintas, e, por este motivo, a elas não se pode dispensar igual tratamento jurídico.
É a “coisa produto de crime”.
Em relação à coisa, permanecem válidas as ponderações efetuadas em relação ao objeto material do crime de furto (art. 155, item 2.4.1.4). Perceba-se, porém, que o legislador, ao contrário do que fez no art. 155, caput, do Código Penal, não utilizou outras duas palavras “alheia” e “móvel”. Surgem então duas dúvidas: (1) É possível a receptação de coisa própria? e (2) É possível a receptação de coisa imóvel? Vejamos.
No tocante à palavra “alheia”, nada obstante não indicada expressamente pelo tipo penal, é claro que tal condição funciona como elementar implícita do crime de receptação. Trata-se de crime contra o patrimônio, e não há como imaginar uma pessoa que seja simultaneamente sujeito ativo e passivo de um delito contra o seu próprio patrimônio. Exemplificativamente, se, porventura, o proprietário adquirir do ladrão a coisa que lhe fora furtada, não cometerá delito algum, pois ele é o próprio titular do bem jurídico ofendido.427
Damásio E. de Jesus possui raciocínio diverso. Para ele, enquanto na descrição típica de outros crimes contra o patrimônio (furto, roubo, dano e apropriação indébita) o Código Penal emprega a expressão “coisa alheia”, no tipo da receptação fala apenas em “coisa”, sem mencionar o título de propriedade. E ilustra:
Suponha-se o caso de o sujeito realizar contrato de penhor com terceiro, entregando-lhe como garantia um relógio, que venha a ser furtado. Imagine que o ladrão ofereça o relógio ao credor, que imediatamente percebe ser de sua propriedade. Com a finalidade de frustrar a garantia pignoratícia, o proprietário compra, por baixo preço, o objeto material. Para nós, responde por delito de receptação, tendo em vista que está adquirindo, em proveito próprio, coisa que sabe ser produto de furto (art. 180, caput, 1.ª parte).428
Discordamos do admirado mestre. No exemplo por ele narrado, não se pode dizer que o bem empenhado integrava o patrimônio do credor. E, ausente a lesão a tal bem jurídico, afasta-se a receptação, capitulada entre os crimes contra o patrimônio.
Quanto à possibilidade de o bem imóvel figurar como objeto material da receptação, o tema não é pacífico.
Para Heleno Cláudio Fragoso, a coisa imóvel pode ser objeto material de receptação, sob o argumento de que a palavra “coisa” empregada pela lei tanto pode ser aplicada aos móveis como aos imóveis, pois na receptação a lei não distingue, como faz no furto e no roubo, sobre a natureza da coisa. São suas palavras:
Não se percebe porque a receptação pressuponha “deslocamento” do objeto. O significado léxico da palavra é secundário, quando se trata de conceitos normativos. Por outro lado, é perfeitamente claro que um imóvel pode ser produto de crime (falsidade, estelionato etc.). Não só a posse provém de crime, neste caso, contra a própria coisa, isto é, o próprio imóvel, na sua materialidade. E pode haver receptação desde que venha a ser tal imóvel adquirido por terceiro, com conhecimento de causa.429
Vale destacar, porém, que para esta teoria a receptação de coisas imóveis, logicamente, só é possível em relação aos núcleos “adquirir” e “receber”, pois não há como imaginar a prática das condutas de “ocultar”, “conduzir” e “transportar” em relação a tais bens. Recorde-se, a propósito, que no Direito Penal todo bem suscetível de apreensão e transporte é classificado como móvel, pouco importando se o Código Civil, por ficção ou equiparação, considera-o imóvel.
De outro lado, Nélson Hungria posicionava-se pela impossibilidade de a coisa imóvel servir de objeto material do crime em estudo. Para ele, um imóvel não pode ser receptado, pois a receptação pressupõe o deslocamento da coisa, do poder de quem ilegitimamente a detém para o do receptador, de modo a tornar mais difícil a sua recuperação por quem de direito.430 Embora não se manifeste sobre o tema há considerável tempo, são nesse sentido as últimas decisões do Supremo Tribunal Federal:
Em face da legislação penal brasileira, só as coisas móveis ou mobilizadas podem ser objeto de receptação. Interpretação do art. 180 do Código Penal. Assim, não é crime, no direito pátrio, o adquirir imóvel que esteja registrado em nome de terceiro, que não o verdadeiro proprietário, em virtude de falsificação de procuração.431
Mas não para por aí. A coisa precisa ser “produto de crime”, assim compreendida aquela obtida imediata ou mediatamente pelo responsável pelo delito anterior em razão da sua conduta criminosa. Como já explicado, se a coisa é produto de contravenção penal, não há falar em receptação, pois esta conclusão importaria no uso da analogia in malam partem, inaceitável no Direito Penal.
O fato de o produto do crime anterior ter sido alterado em sua individualidade (exemplo: o anel roubado é transformado em um par de brincos) ou então substituído por coisa de natureza diversa (dinheiro, por exemplo), não afasta a receptação, pois o tipo penal fala indistintamente em “produto de crime”.
Não ingressam no conceito de produto do crime o “preço do crime” (exemplo: o valor cobrado pelo matador de aluguel para assassinar alguém) nem o instrumento do crime (exemplo: a arma de fogo utilizada na execução de um roubo), motivo pelo qual não podem ser considerados objetos materiais da receptação. Consequentemente, não cabe a imputação do crime tipificado pelo art. 180 do Código Penal à pessoa que oculta o instrumento ou o preço do crime para auxiliar seu autor a subtrair-se da ação de autoridade pública. Nessa hipótese, o crime configurado será o de favorecimento pessoal (CP, art. 348).
Por último, é importante destacar que há uma hipótese na qual, embora a coisa seja produto de crime, quem a adquire, recebe ou oculta não pratica receptação, mas outro crime. É o que se dá em relação ao objeto material específico “moeda falsa”, que caracteriza o crime especial previsto no art. 289, § 1.º, do Código Penal: “Nas mesmas penas incorre quem, por conta própria ou alheia, importa ou exporta, adquire, vende, troca, cede, empresta, guarda ou introduz na circulação moeda falsa”.
O § 6.º do art. 180 do Código Penal também foi acrescentado pela Lei 9.426/1996, e tem a seguinte redação: “Tratando-se de bens e instalações do patrimônio da União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista, a pena prevista no caput deste artigo aplica-se em dobro”.
Como não há nomem iuris, ou rubrica marginal, a doutrina diverge acerca da natureza jurídica deste dispositivo. Há duas posições sobre o assunto:
(a) cuida-se de causa de aumento da pena, pois há previsão de majoração da reprimenda em quantidade fixa;432e
(b) trata-se de qualificadora.433 A lei é clara: a pena é aplicada em dobro. Não se fala no aumento da pena até o dobro, mas na sua obrigatória duplicação. Portanto, a pena da receptação simples – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa – é alterada. Continua a ser de reclusão, mas seus limites mínimo e máximo passam a ser, respectivamente, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, sem prejuízo da multa.
Para os adeptos da segunda corrente, é preciso reconhecer, entretanto, que o legislador afastou-se da boa técnica. Teria sido mais adequada, e correta, a previsão de novos limites da pena privativa de liberdade, como sói acontecer nas qualificadoras em geral.
É importante destacar que a elevação da pena alcança somente a receptação simples, própria ou imprópria. Na dicção legal: “a pena prevista no caput deste artigo aplica-se em dobro”. Excluem-se, portanto, a receptação qualificada pelo exercício de atividade comercial ou industrial (§ 1.º) e a receptação culposa (§ 3.º).
Além disso, não basta ao agente o dolo sobre a origem criminosa do bem receptado. É imprescindível, também, o conhecimento (dolo) acerca da lesão provocada ao patrimônio da União,434 Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista, pois em sua ausência estará caracterizado o erro de tipo (CP, art. 20, caput), com o consequente afastamento da qualificadora, sob pena de configuração da responsabilidade penal objetiva.
Incide o tratamento penal mais severo na hipótese de bens da ECT – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Na linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
No delito de receptação, os bens de empresa pública recebem o mesmo tratamento que os da União e, por isso, cabível a majoração da pena ao crime contra ela praticado. Com base nesse entendimento, a 1.ª Turma indeferiu habeas corpus impetrado em favor de denunciado pela suposta prática do crime de receptação dolosa de bem de propriedade da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT. Asseverou-se que, nos termos da jurisprudência do STF, a mencionada empresa pública – prestadora de serviços públicos – equiparar-se-ia à fazenda pública e seus bens sujeitar-se-iam às mesmas regras estabelecidas aos da União.435
O tipo penal da receptação própria apresenta 5 (cinco) núcleos: adquirir, receber, transportar, conduzir e ocultar.
Adquirir é a obtenção da propriedade, a título oneroso (exemplos: compra, permuta etc.) ou gratuito (exemplo: doação). Há receptação quando a coisa é transmitida em razão de sucessão causa mortis, desde que o herdeiro saiba que se trata de produto de crime.
Não importa, na aquisição onerosa, que o preço pago seja irrisório ou justo. Com efeito, pode ocorrer a receptação quando a aquisição se deu pelo valor normal da coisa, desde que o agente conheça sua origem criminosa. De fato, o justo preço pago por uma coisa, visando tão somente o ganho inerente ao negócio, não afasta a ideia de proveito.
Receber significa ingressar na posse do bem. Exemplo: “A” recebe um relógio roubado para usá-lo em uma festa.
Transportar consiste em levar um objeto de um local para outro. Exemplo: “A” coloca um automóvel roubado na carroceria do seu caminhão, levando-o em seguida para uma pessoa que reside em outra cidade.
Conduzir, por sua vez, diz respeito à situação em que alguém dirige um veículo, automotor ou não, para levá-lo a algum outro local. Exemplo: “A”, em sua direção, guia um carro furtado rumo à outra cidade.
Ocultar, por fim, equivale a esconder o objeto material, colocando-o em local no qual não possa ser encontrado por terceiros.
Não se deve confundir a receptação nesta última modalidade – “ocultar coisa que sabe ser produto de crime” – com o crime de favorecimento real, previsto no art. 349 do Código Penal entre os crimes contra a Administração da Justiça, assim descrito: “Prestar a criminoso, fora dos casos de coautoria ou receptação, auxílio destinado a tornar seguro o proveito do crime”.
Vê-se que o Código Penal foi peremptório ao estatuir, na própria redação do seu art. 349, que a receptação e o favorecimento real se verificam em hipóteses diversas.
De fato, na receptação própria (CP, art. 180, caput, 1.ª parte), o beneficiado economicamente pela conduta criminosa é o receptador, ou então uma terceira pessoa, sempre distinta da responsável pelo crime antecedente. Exemplo: “A” esconde em sua casa um carro roubado que encontrou abandonado em via pública, para no futuro alienar suas peças. Por sua vez, no favorecimento real (CP, art. 349) o sujeito atua em prol do autor do crime antecedente, e o proveito almejado pode ser econômico ou não. Exemplo: “A” esconde uma bicicleta furtada por “B”, seu amigo, para ajudá-lo, e depois de algum tempo, com o esquecimento do crime, devolve-a ao criminoso.
A receptação própria está prevista em um tipo misto alternativo (crime de ação múltipla ou de conteúdo variado). Assim sendo, o sujeito responderá por apenas um crime se realizar dois ou mais núcleos do tipo, no mesmo contexto fático, envolvendo um só objeto material. Exemplificativamente, pratica um único crime de receptação aquele que adquire um carro roubado, em seguida o oculta em sua residência e, posteriormente, conduz tal veículo em via púbica.
Nesse caso, é importante adotar redobrada cautela em provas práticas que mencionam a prisão em flagrante do receptador, notadamente na elaboração de portarias de inquéritos policiais e de denúncias. O candidato deve fazer a tipificação levando em conta o núcleo que legitimou a prisão em flagrante, sob pena de relaxamento da prisão provisória ou inépcia da denúncia. Imagine que, no exemplo indicado, o criminoso foi surpreendido em flagrante na condução do veículo automotor: o núcleo que deverá ser utilizado é “conduzir”, nada obstante ele também tenha adquirido e ocultado coisa que sabia ser produto de crime, até porque não se conhecem, com precisão, as datas e os locais em que estas últimas condutas foram perpetradas.
Além disso, a receptação de várias coisas, provenientes de um só ou de vários crimes, realizada em um só contexto de ação, é crime naturalmente único.436 Exemplo: O sujeito vai a um desmanche clandestino de veículos automotores e lá adquire diversas peças, correspondentes a carros distintos e originárias de vários furtos.
Mas, se vários os bens, malgrado provenientes de um mesmo crime, são receptados mediante ações separadas no tempo, o sujeito responderá por várias receptações, em concurso material (CP, art. 69) ou em continuidade delitiva, se presentes os requisitos legalmente exigidos (CP, art. 71).
Pode ser qualquer pessoa (crime comum), com exceção do autor, coautor ou partícipe do crime antecedente, que somente respondem por tal delito, e não pela receptação.
A Lei 8.906/1994 – Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil – não criou (nem poderia fazê-lo) nenhuma imunidade para os advogados em relação ao crime de receptação. Destarte, comete o delito o patrono que recebe dinheiro ou qualquer outro bem proveniente da prática de um crime, ciente desta origem, como pagamento de honorários por serviços prestados a alguém. Em decisão histórica, assim já se manifestou o Supremo Tribunal Federal:
Advogado que, no exercício da profissão, é denunciado por receptação dolosa e favorecimento pessoal e real (arts. 180, 348 e 349 do C. Penal), em virtude de haver recebido, a título de honorários advocatícios, parte do produto do roubo, propiciando ainda aos autores da infração fuga para outro Estado. Improcedência da alegada atipicidade penal dos fatos, que constituem, em tese, os crimes capitulados na denúncia.437
A receptação tem como sujeito passivo a mesma vítima do crime antecedente, que é mais uma vez prejudicada em seu patrimônio. Com efeito, com a transferência da coisa a outrem, ela fica cada vez mais distante da sua esfera de vigilância e livre disponibilidade.
Note-se, portanto, que não surge um novo ofendido em razão da prática do crime tipificado pelo art. 180 do Código Penal. Exemplificativamente, a receptação de um relógio roubado tem como vítima a pessoa que foi lesada em sua propriedade ou posse pelo roubo anterior.
A receptação própria exige o dolo direto. Não há espaço para o dolo eventual, pois, como consta do art. 180, caput, 1.ª parte, do Código Penal, o agente realiza a conduta no tocante à coisa que sabe ser produto de crime. Logo, é imprescindível a certeza do agente em relação à origem criminosa do bem.
Consequentemente, se o sujeito limita-se a desconfiar da origem criminosa da coisa, sem ter certeza sobre tal circunstância, e mesmo na dúvida a adquire, recebe, transporta, conduz ou oculta, a ele deverá ser imputado o delito de receptação culposa (CP, art. 180, § 3.º), pois a receptação própria é incompatível com o dolo eventual.
Além do dolo direto, a receptação própria também reclama um especial fim de agir (elemento subjetivo específico), consubstanciado na expressão “em proveito próprio ou alheio”. O receptador busca uma vantagem patrimonial, para si ou para terceiro.
A ampla maioria da doutrina não admite a caracterização da receptação com dolo subsequente, isto é, aquele que surge após a prática da conduta penalmente descrita.
Sustenta-se a necessidade de presença do dolo quanto à origem criminosa da coisa desde o momento em que ela é adquirida, recebida, transportada, conduzida ou ocultada, embora, nessa última hipótese, seja mais difícil falar na ausência de má-fé, pois normalmente quem oculta um bem o faz sabendo que há algo errado a ser escondido de terceiros. O dolo deve ser antecedente (anterior à realização da conduta) ou concomitante (simultâneo à realização da conduta).
Por exemplo, se o agente obtém a coisa de boa-fé e só depois toma conhecimento de sua origem criminosa, não a restituindo ao seu proprietário ou legítimo possuidor, somente responderá pelo delito de receptação, na forma dolosa, caso pratique uma nova conduta típica, tal como quando procede à sua ocultação.438
Em sentido contrário, isoladamente, encontra-se a autoridade de Nélson Hungria, defendendo a concretização da receptação em qualquer caso (dolo antecedente, concomitante ou subsequente), pois não há distinguir – porque a lei não permite – entre ciência contemporânea e ciência posterior acerca da origem criminosa da coisa.439
O crime de favorecimento real encontra-se tipificado no art. 349 do Código Penal: “Art. 349 – Prestar a criminoso, fora dos casos de coautoria ou de receptação, auxílio destinado a tornar seguro o proveito do crime: Pena – detenção, de um a seis meses, e multa”.
Vê-se que o próprio tipo penal esclareceu que só existe favorecimento real quando o fato não configura crime de receptação. Mas quais são as diferenças entre tais crimes? São duas.
Inicialmente, a receptação é crime contra o patrimônio, ao passo que o favorecimento real é crime contra a Administração da Justiça.
Em segundo lugar, como derivação da capitulação formulada pelo Código Penal, na receptação está presente o fim de lucro (animus lucrandi), representado pelo especial fim de agir “em proveito próprio ou alheio”, isto é, o sujeito atua em benefício próprio ou de terceira pessoa, diversa da responsável pelo crime anterior. No favorecimento real, por seu turno, a conduta é realizada pelo agente sem finalidade lucrativa para si ou para terceiro, pois ele busca unicamente auxiliar o autor do crime anterior a tornar seguro o proveito do crime.
A receptação própria é crime material. Consuma-se no instante em que o sujeito adquire, recebe, transporta, conduz ou oculta a coisa produto de crime.440
Nas três últimas modalidades o crime é permanente. A consumação prolonga-se no tempo, por vontade do agente, enquanto a coisa é transportada, conduzida ou ocultada.441 Por sua vez, nas formas “adquirir” e “receber” a receptação própria é crime instantâneo, aperfeiçoando-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo.
É possível, em qualquer das formas da receptação própria.
A pena mínima cominada à receptação própria é de 1 (um) ano de reclusão. Trata-se, portanto, de crime de médio potencial ofensivo, compatível com a suspensão condicional do processo, desde que presentes todos os requisitos exigidos pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.
Entretanto, o benefício processual não poderá ser aplicado à receptação qualificada (CP, art. 180, § 1.º), na qual a pena mínima é de 3 (três) anos, nem quando incidente a qualificadora contida no art. 180, § 6.º, do Código Penal, hipótese em que a pena deve ser aplicada em dobro.442
A receptação própria é crime comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); de forma livre (admite qualquer meio de execução); material (consuma-se com a produção do resultado naturalístico, isto é, com a diminuição do patrimônio da vítima); instantâneo (nas condutas “adquirir” e “receber”) ou permanente (nos núcleos “transportar”, “conduzir” e “ocultar”); em regra plurissubsistente (a conduta é composta de diversos atos); de dano (a consumação reclama a efetiva lesão ao patrimônio da vítima); e unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (cometido normalmente por uma só pessoa, nada obstante seja possível o concurso de agentes).
A receptação imprópria é espécie da receptação simples, pois a lei também comina pena de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Este crime possui a seguinte descrição típica: “influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte”. A conduta diz respeito, obviamente, à coisa produto de crime.
Analisaremos, na receptação imprópria, somente os pontos que a diferenciam da receptação própria.
A receptação imprópria é constituída pela simbiose da conduta consistente em influir (influenciar, convencer alguém a fazer algo) alguém, de boa-fé, a adquirir, receber ou ocultar coisa produto de crime.
Percebe-se, logo de início, a atipicidade da conduta de influir um terceiro, de boa-fé, a transportar ou conduzir coisa produto de crime. A Lei 9.426/1996, responsável pelo acréscimo de tais comportamentos na receptação própria, não agiu de igual modo no campo da receptação imprópria.
Incrimina-se a conduta daquele que atua como intermediário no negócio espúrio, pois, consciente da origem criminosa do bem e mediante atos idôneos, incentiva uma pessoa de boa-fé a adquiri-lo, recebê-lo ou ocultá-lo. É necessário destacar, nesse caso, dois pontos importantes deste delito.
Em primeiro lugar, o autor da receptação imprópria não pode ter envolvimento algum com o crime antecedente, isto é, não pode ter sido seu autor, coautor ou partícipe. Como se sabe, o responsável pelo crime antecedente somente pode ser por este punido, e nunca pela receptação.
Se não bastasse, é fundamental que o terceiro, pessoa que adquire, recebe ou oculta a coisa, esteja de boa-fé, pois esta situação desponta como elementar do tipo penal. Se ele agir de má-fé, responde também como receptador, na forma do art. 180, caput, 1.ª parte, do Código Penal (receptação própria), e quem o influenciou será partícipe deste delito.
Por último, é válido salientar que há crime único quando o sujeito influencia terceiro de boa-fé a adquirir, receber e ocultar coisa que sabe tratar-se de produto de crime. Mas, se o agente realizar, separadamente, condutas distintas, inerentes à receptação própria (exemplo: adquire um carro roubado) e à receptação imprópria (exemplo: influi para que um terceiro de boa-fé também adquira um carro roubado), responderá pelos dois crimes.
A receptação imprópria é crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado. Consuma-se com a prática de atos idôneos de mediação para o terceiro de boa-fé adquirir, receber ou ocultar coisa produto de crime.
Em síntese, basta a atividade de “influir” na vontade da pessoa honesta, pouco importando se o agente obtém ou não êxito em sua conduta. A possível e eventual aquisição, recebimento ou ocultação pelo terceiro de boa-fé constitui-se em mero exaurimento, a ser levado em consideração unicamente na dosimetria da pena-base, nos moldes do art. 59, caput, do Código Penal.
Consequentemente, a receptação imprópria, classificada como crime unissubsistente, não comporta tentativa, pois ou o ato de mediação é idôneo, e o crime se consuma, ou não o é, acarretando a atipicidade do fato. Este é o entendimento dominante em sede doutrinária.
Rogério Greco, em posição isolada, visualiza a receptação imprópria como crime material. Para ele, “quando a lei penal usa o verbo influir, quer significar ter influência decisiva, fazendo com que o sujeito, efetivamente, pratique um dos comportamentos previstos pelo tipo penal (...). Influir, portanto, quer dizer determinar que o sujeito faça alguma coisa”.443
E, por sua vez, Guilherme de Souza Nucci sustenta a admissibilidade do conatus na receptação imprópria, que, em sua ótica, é crime plurissubsistente. Logo, seria possível o que chama de “tentativa de influenciação”.444
Para nós, a receptação imprópria é crime formal, mas compatível com a tentativa. Cuida-se, em regra, de crime unissubsistente, mas que na prática pode revelar-se plurissubsistente, razão pela qual a possibilidade da tentativa depende de avaliação no caso concreto.
Há tentativa de receptação imprópria, exemplificativamente, quando o sujeito, fugitivo de um estabelecimento prisional, depois de uma conversa preliminar com o terceiro de boa-fé, na qual quase o convenceu, avista uma viatura da Polícia Militar e desaparece para não ser preso. Nessa hipótese, ele iniciou a conduta de influir, somente não a consumando por circunstâncias alheias à sua vontade.
Também podemos pensar na tentativa de receptação imprópria quando o agente, por exemplo, encaminha uma mensagem eletrônica para a vítima, com o propósito de influí-la a adquirir coisa produto de crime, mas parte do texto chega ilegível, impedindo a consumação do delito. Este raciocínio é admissível, uma vez que o delito é de forma livre, aceitando qualquer meio de execução. O Código Penal fala somente em “influir”, não especificando nenhuma maneira a ser realizada a conduta criminosa.
A receptação qualificada pelo exercício de atividade comercial ou industrial foi introduzida no Código Penal, no § 1.º do seu art. 180, pela Lei 9.426/1996. Pune-se, com reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, a conduta de “adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer outra forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime”.
O fundamento da elevação da pena repousa no fato de o sujeito praticar o crime no exercício de atividade comercial ou industrial, acentuando o desvalor da conduta, pois ele se vale do seu trabalho para cometer a receptação. Em razão disso, o comerciante ou industrial encontra grande facilidade para repassar os produtos de origem criminosa a terceiros de boa-fé, que acreditam na legitimidade dos bens que circulam no mercado. Além disso, prestando-se a tal atividade espúria, o sujeito acaba incentivando ainda mais outras pessoas a cometerem delitos, pois elas lucrarão em consequência da aceitação dos seus produtos por destinatário certo, sedento a dar vazão à circulação das mercadorias.
Vê-se pela análise do tipo penal que a finalidade precípua do legislador foi combater com maior rigor o comércio ilegal de veículos automotores e de suas peças. Chega-se a esta conclusão por duas razões:
(1) os novos núcleos (exemplos: “montar”, “desmontar”, “remontar”) dizem respeito notadamente aos famosos “desmanches” clandestinos de automóveis; e
(2) o principal objetivo da Lei 9.429/1996 foi enfrentar os crimes envolvendo veículos automotores, como se observa dos arts. 155, § 5.º, 157, § 2.º, inciso IV e 311, entre outros, todos do Código Penal e incluídos pelo citado diploma legal.
Na rubrica marginal do § 1.º do art. 180 do Código Penal consta o nomem iuris “receptação qualificada”. Em que pese a opção legislativa, esta terminologia é alvo de críticas doutrinárias.
Na tradição do Direito Penal brasileiro, as qualificadoras estão previstas em tipos derivados. Formam-se com base no tipo básico ou fundamental, mediante o acréscimo de circunstâncias que elevam a pena. Exemplificativamente, no homicídio o tipo fundamental ou básico é “matar alguém” (homicídio simples), mas há também formas qualificadas no § 2.º do art. 121 do Código Penal, tal como “matar alguém (...) por motivo torpe” (tipo derivado).
Na chamada “receptação qualificada” pelo exercício de atividade comercial ou industrial, contudo, não é isso o que acontece. O legislador não se limitou a acrescentar circunstâncias de maior gravidade ao tipo fundamental. Muito pelo contrário. Foram descritos 7 (sete) novos núcleos, além dos outros 5 (cinco) contidos no caput do art. 180 do Código Penal. Se não bastasse, varia também o sujeito ativo, pois, enquanto no caput o crime é comum, no § 1.º visualiza-se uma hipótese de crime próprio.
Daí falar que o § 1.º do art. 180 do Código Penal retrata um crime autônomo de receptação, e não apenas uma simples qualificadora (tipo derivado). Como destaca Alberto Silva Franco, com o que concordamos, “antes de mais nada, não se compreende que se denomine ‘receptação qualificada’, não uma figura criminosa derivada de um tipo básico mas, sim, um tipo com plena autonomia conceitual”.445
Esta posição já foi acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que “o Legislador previu no § 1.º do art. 180 do CP um tipo autônomo, descrevendo condutas não referidas no caput do dispositivo, para o qual fixou sanção mais gravosa”.446
Mas há autores que concordam com o caminho pelo qual enveredou a Lei 9.426/1996. É o caso de Guilherme de Souza Nucci, que assim se manifesta:
Na essência, a figura do § 1.º é, sem dúvida, uma receptação – dar abrigo a produto de crime –, embora com algumas modificações estruturais. Portanto, a simples introdução de condutas novas, aliás, típicas do comércio clandestino de automóveis, não tem o condão de romper o objetivo do legislador de qualificar a receptação, alterando as penas mínima e máxima que saltaram da faixa de 1 a 4 anos para 3 a 8 anos.447
Em que pese nossa opinião, que fica aqui consignada, utilizaremos, como quis o legislador, a expressão “receptação qualificada”.
Além dos verbos também indicados no caput (“adquirir”, “receber”, “transportar”, “conduzir” e “ocultar”), o § 1.º do art. 180 do Código Penal apresenta outros sete núcleos. São eles:
(a) montar: equivale a reunir e compor convenientemente as peças de uma máquina, engenho ou dispositivo, de modo que fique em condições de funcionar;
(b) desmontar: significa desfazer o que estava montado;
(c) remontar: dá a ideia de reparar, consertar, remendar;
(d) vender: é transferir a propriedade, a outrem, a título oneroso;
(e) expor à venda: significa exibir alguma coisa, com o propósito de transferir onerosamente sua propriedade; e
(f) utilizar de qualquer forma: indica a atividade de fazer uso da coisa.
A Lei 9.426/1996 incriminou 12 condutas com o escopo de alcançar, na prática, o maior número de situações criminosas que possa ocorrer. E, como se pode facilmente observar, a maioria dos novos núcleos (exemplos: “montar”, “desmontar”, “remontar” etc.) revela a intenção de agravar e facilitar a punição de receptadores de veículos automotores e de suas peças, circunstância reforçada pelas demais alterações promovidas no Código Penal pelo citado diploma legal, que em diversas ocasiões refere-se às palavras veículo automotor (exemplos: arts. 155, § 5.º, e 157, § 2.º, inc. IV) e “chassi” (exemplo: art. 311), entre outras.
Cuida-se, assim como no caput, de tipo misto alternativo, crime de ação múltipla ou de conteúdo variado, razão pela qual a realização de dois ou mais núcleos em face do mesmo objeto material caracteriza um só crime. Exemplificativamente, há um único crime de receptação qualificada pelo exercício de atividade comercial ou industrial na hipótese em que um lojista adquire um motor de automóvel roubado, e, após, expõe à venda e efetivamente vende tal bem de origem criminosa.
Vimos que a receptação dolosa simples (própria ou imprópria) é crime comum, pois pode ser praticado por qualquer pessoa, com exceção do autor, coautor ou partícipe do delito de que proveio a coisa.
A receptação qualificada do § 1.º do art. 180 do Código Penal, por seu turno, é crime próprio, ou especial, pois o tipo penal reclama uma situação diferenciada em relação ao sujeito ativo. Com efeito, o delito somente pode ser cometido pela pessoa que se encontra no exercício de atividade comercial ou industrial.
Em suma, o sujeito ativo há de ser comerciante ou industriário. Mas não se exige regularidade no desempenho da atividade comercial ou industrial. Acertadamente, o legislador instituiu uma norma penal explicativa ou complementar no § 2.º do art. 180 do Código Penal, com o objetivo de equiparar à atividade comercial, para fins de receptação qualificada, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive o exercício em residência.
Cumpre destacar, porém, que a incidência da qualificadora reclama habitualidade no desempenho do comércio ou da indústria pelo sujeito ativo, pois é sabido que a atividade comercial (em sentido amplo) não se aperfeiçoa com um único ato, sem continuidade no tempo.
Na receptação dolosa simples (própria ou imprópria), prevista no caput do art. 180 do Código Penal, o elemento subjetivo está representado pela palavra “sabe”. O agente tem pleno conhecimento da origem criminosa da coisa. Por sua vez, no § 3.º do citado dispositivo legal a culpa está evidenciada pela frase “deve presumir-se obtida por meio criminoso”.
No § 1.º do art. 180 do Código Penal, a Lei 9.426/1996 inovou, indicando como elemento subjetivo a expressão “deve saber”.
Infelizmente, o legislador não manteve sua postura tradicional. Como é do conhecimento geral, quando o Código Penal utiliza a fórmula “deve saber”, ele também se vale da palavra “sabe”. Esta é indicativa de dolo direto; aquela, de dolo eventual. É o que se verifica, a título ilustrativo, no crime de perigo de contágio venéreo, tipificado pelo art. 130 do Código Penal: “Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado”.
Mas, insista-se, do tipo penal da receptação qualificada consta somente o “deve saber”. Em razão disso, é de questionar: Qual é o sentido e o alcance desta expressão? Ou então: Qual é o enquadramento da conduta do sujeito que, no exercício de atividade comercial ou industrial, pratica um ou mais núcleos previstos no art. 180, § 1.º, do Código Penal, sabendo (possuindo certeza) da origem criminosa da coisa? Formaram-se três posições acerca do assunto:
1.ª posição: “Deve saber” é dolo eventual, mas também abrange o dolo direto
Se a lei pune mais gravemente o menos, isto é, o comportamento daquele que “deve saber” (dolo eventual) da origem criminosa da coisa, consequentemente também responde pelo mais (receptação qualificada) aquele que “sabe” (dolo direto), isto é, efetivamente conhece tal circunstância. Não se trata de analogia in malam partem, mas de interpretação meramente declaratória da extensão da expressão “deve saber”, que inclui o “sabe”, razão pela qual não se ofende o princípio da proporcionalidade. Esta é a posição do Supremo Tribunal Federal:
O art. 180, § 1.º, do CP não ofende os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. De início, aduziu-se que a conduta descrita no § 1.º do art. 180 do CP é mais gravosa do que aquela do caput, porquanto voltada para a prática delituosa pelo comerciante ou industrial, que, em virtude da própria atividade profissional, possui maior facilidade para agir como receptador de mercadoria ilícita. Em seguida, asseverou-se que, apesar da falta de técnica na redação do aludido preceito, a modalidade qualificada do § 1.º abrangeria tanto o dolo direto quanto o eventual, ou seja, abarcaria a conduta de quem “sabe” e de quem “deve saber” ser a coisa produto de crime. Assim, se o tipo pune a forma mais leve de dolo (eventual), a conclusão lógica seria de que, com maior razão, também o faria em relação à forma mais grave (dolo direto), mesmo que não o tenha dito expressamente, pois o menor se insere no maior.448
2.ª posição: “Deve saber” diz respeito exclusivamente ao dolo eventual
Em face do princípio da tipicidade plena, o “deve saber” abrange apenas o dolo eventual, da mesma forma que o “sabe” somente é compatível com o dolo direto. Destarte, o comerciante ou industrial que agir com dolo eventual deverá responder pela figura qualificada do § 1.º, enquanto o comerciante ou industrial que atuar com dolo direto, ciente da origem criminosa da coisa, terá contra si imputada a receptação simples do caput do art. 180 do Código Penal.
Esta conclusão, todavia, é injusta, pois pune mais severamente a conduta menos grave, relativa ao sujeito que foi movido pelo dolo eventual. Em razão disso, Damásio E. de Jesus sustenta que, em ambas as hipóteses, deverá ser aplicada a pena da receptação simples, em face da inconstitucionalidade do § 1.º do art. 180 do Código Penal, por violação ao princípio da proporcionalidade. Em síntese, o comerciante ou industrial que “deve saber” da origem criminosa da coisa responde pela receptação qualificada, ao passo que o comerciante ou industrial que “sabe” ser a coisa produto de crime responde pela receptação simples. Mas para ambas as hipóteses há de ser utilizada a pena do caput, isto é, reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.449
Esta posição, atualmente superada, já foi acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça: “Salientou que lhe basta considerar a receptação qualificada, mas com a pena do caput do art. 180 do CP, para não se ver quebrado o princípio da proporcionalidade na cominação penal”.450
3.ª posição: “Deve saber” é elemento normativo do tipo
A expressão “deve saber” é elemento normativo do tipo penal, e não elemento subjetivo, indicativo de dolo direto ou eventual. Por corolário, sua missão é a de estabelecer “a graduação da maior ou menor censura da conduta punível”.451
Em outras palavras, “deve saber” representa um critério para o magistrado, no caso concreto, avaliar se o comerciante ou industrial, em decorrência do conhecimento das atividades especializadas que exercem ou das circunstâncias inerentes ao fato praticado, possuíam ou não o dever de conhecer a origem criminosa do bem.
Em nossa opinião, a primeira posição é a mais adequada.
A segunda posição apresenta uma grande fraqueza. Viola o princípio da reserva legal (CF, art. 5.º, inc. XXXIX, e CP, art. 1.º), pois acarreta a imposição, ao crime de receptação qualificada pelo exercício de atividade comercial ou industrial, de uma pena sem previsão legal. Além disso, afronta também o princípio da separação dos Poderes (CF, art. 2.º), ao permitir a criação de uma nova sanção penal pelo magistrado, tarefa constitucionalmente reservada ao Poder Legislativo. Como explicado em elucidativo acórdão do Superior Tribunal de Justiça:
O Código Penal prevê modalidades diferentes de conduta para o delito de receptação, estatuindo uma forma qualificada, delineada em um crime próprio – que tem como sujeito ativo um comerciante ou industrial – e mais grave, com punição mais severa. Se o Legislador previu no § 1.º do art. 180 do CP um tipo autônomo, descrevendo condutas não referidas no caput do dispositivo, para o qual fixou sanção mais gravosa, tornam-se inafastáveis os seus preceitos e vedadas quaisquer formas de troca de apenamento, sob pena de violação à independência dos poderes.452
Finalmente, a terceira posição, embora sedutora, não nos convence. Se adotada, teríamos de concluir pela existência de um crime sem elemento subjetivo, o que não se admite.
A receptação qualificada pelo exercício de atividade comercial ou industrial não se confunde com a forma equiparada de contrabando ou descaminho, prevista no art. 334, § 1.º, d, do Código Penal, punida com reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, cuja redação é a seguinte: “Incorre na mesma pena quem: (...) adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal, ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos”.
A receptação qualificada é crime contra o patrimônio, enquanto a figura equiparada ao contrabando ou descaminho constitui-se em crime praticado por particular contra a Administração em geral. Além disso, naquele o objeto material é a coisa produto de crime, ao passo que neste, crime específico, a conduta recai sobre “mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal, ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos”.
É válido destacar que para o crime específico também há uma norma penal explicativa ou complementar, segundo a qual “equipara-se às atividades comerciais qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências”.