O Código Penal brasileiro, instituído pelo Decreto-lei 2.848/1940, a exemplo dos demais códigos penais modernos, está dividido em duas partes distintas: a Parte Geral e a Parte Especial. Na primeira estão previstas as regras aplicáveis a todos os crimes tratados pelo Código Penal e também subsidiariamente àqueles tipificados por leis extravagantes, enquanto na segunda se encontram os preceitos que estabelecem os delitos em particular.
Na França, a propósito, fala-se inclusive na divisão do Direito Penal em dois ramos distintos: o Direito Penal Geral e o Direito Penal Especial. Na Espanha, por sua vez, sustenta-se a existência de uma teoria geral do Direito Penal Especial, composta de dois ramos: um Direito Penal Especial, chamado de material, que compreende os crimes codificados, e outro, denominado de formal, abrangente das infrações e preceitos contidos em leis especiais e complementares.
O Brasil preferiu não ir tão longe. O Código Penal possui duas partes diversas. A Parte Geral vai do art. 1.º ao art. 120, que se destina a traçar as regras básicas do Direito Penal, tendo sido substancialmente modificada pela Lei 7.209/1984 – Reforma da Parte Geral do Código Penal. A Parte Especial, por seu turno, inicia-se no art. 121 e termina no art. 361, sendo composta dos crimes em espécie, exceto nos dois últimos artigos, que tratam das disposições finais e da entrada em vigor do Código Penal. De fato, a Parte Especial se desenvolve por meio da definição dos delitos, com as sanções particulares de cada um e acrescida, em determinados pontos, de regras particulares que excepcionam princípios contidos na Parte Geral, tal como se dá nas normas não incriminadoras nela previstas.
A Parte Especial do Direito Penal antecedeu a sistematização atualmente existente na Parte Geral dos códigos e legislações penais. É ela a mais antiga nas legislações positivas. E isso se deve a questões de ordem prática.
As legislações positivas puniam seus indivíduos à medida que surgiam os atos nocivos à ordem social e à paz pública. Não havia, porém, um sentido político de garantia individual e respeito ao direito de liberdade na regulamentação normativa que, aos poucos, se fazia sobre as espécies penalmente ilícitas. O Direito Penal era uma tessitura fragmentária de infrações justapostas, e a formação de figuras delituosas se apresentava empírica, desordenada e sem a necessária correspondência entre a gravidade da infração penal e o rigor da punição.1
Em torno de determinados crimes é que surgem e se desenvolvem os institutos da parte geral. É o que se constata, por exemplo, na legítima defesa, historicamente ligada ao delito de homicídio, nada obstante se constitua atualmente em causa genérica de exclusão da ilicitude. Igual fenômeno operou-se com a tentativa, com as dirimentes e com as regras inerentes ao concurso de crimes, entre tantos outros. Com o passar do tempo, porém, esses institutos adquirem estrutura própria, sobrepondo-se à generalidade das infrações penais. Bifurca-se, assim, o Código Penal em normas de ordem geral, ou parte geral, e em normas especiais, ou parte especial.
A Parte Especial, ao tipificar crimes e cominar penas, constitui-se em corolário do princípio da reserva legal ou da estrita legalidade, consagrado pelo art. 5.º, inciso XXXIX, da Constituição Federal, e pelo art. 1.º do Código Penal: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”.
Punem-se as infrações penais em conformidade com as figuras típicas das normas incriminadoras, para que o Estado proteja os bens jurídicos cuja violação comprometa as condições existenciais da vida em sociedade. Entretanto, se as condutas indesejadas não estiverem previstas e configuradas em textos legais como crimes, faltará ao Estado o poder de punir.
Título do crime, também chamado de nomen iuris, é o nome pelo qual um delito é “batizado” pelo legislador, por intermédio da rubrica marginal, ou seja, a denominação que consta ao lado dos crimes definidos na Parte Especial do Código Penal. Exemplificativamente, o art. 121 do Código Penal chama a conduta de “matar alguém” de homicídio.
Em cumprimento ao princípio da reserva legal, o Estado exerce o seu direito de punir de forma condicionada e limitada. Além de limites temporais e processuais, deve respeitar uma condição fundamental: somente pode impor uma pena ao responsável pela prática de um fato descrito em lei como infração penal. Muitos desses fatos compõem a Parte Especial do Código Penal, uma vez que também há diversos crimes e contravenções penais em leis extravagantes.
As normas que contêm a descrição abstrata de infrações penais são chamadas de normas incriminadoras ou normas de direito penal em sentido estrito.
A ordem de descrição dos tipos penais segue uma escala lógica, amparada em duas pilastras fundamentais:
(1) técnica de construção legislativa, que deve adotar um critério a ser observado; e
(2) exigência científica, capaz de permitir a sistematização adequada a facilitar o estudo da matéria.
E, ao longo do tempo, vários foram os métodos empregados pelos legisladores para definir a ordem dos crimes na Parte Especial.
No direito romano vigorava a distinção entre crimes públicos (delicta publica) e crimes privados (delicta privata), levando em conta o maior ou menor grau de ofensa aos interesses estatais. Essa sistemática perdurou por vários séculos, mesmo com a queda do império romano.
Com o crescimento da Igreja Católica e o fortalecimento do direito canônico, tomavam lugar nos códigos inicialmente os crimes contra Deus e a religião (crimes eclesiásticos), e depois eram elencados os crimes comuns.
Já se sustentou até mesmo, por meio de Júlio Claro, o rol dos crimes obedecendo simplesmente à ordem alfabética, sem nenhuma preocupação sistemática e com a boa técnica legislativa.2
As classificações modernas, baseadas na gravidade dos crimes, iniciaram-se no século XVIII.
Atualmente, a Parte Especial do Código Penal está ordenada em conformidade com a natureza e a importância do objeto jurídico protegido pelos tipos penais. Essa classificação racional possui íntima correspondência com o conceito material de crime. Com efeito, se crime é a ação ou omissão humana que lesa ou expõe a perigo de lesão bens jurídicos penalmente tutelados, decorre como natural o efeito da divisão com arrimo na objetividade jurídica.
O Código Penal em vigor, datado de 1940 e com índole manifestamente individualista, inicia-se com os crimes que atentam imediatamente contra bens jurídicos individuais até chegar aos crimes contra os interesses do Estado, de natureza difusa e, consequentemente, de interesse mediato das pessoas em geral. Nesse contexto, são tipificados em primeiro lugar os crimes contra a pessoa, passando-se pelos crimes contra o patrimônio, até serem alcançados, finalmente, os crimes contra a Administração Pública. Fica então a impressão de serem os crimes definidos no final do Código Penal os de menor gravidade, o que justifica a sanção penal mais branda a eles endereçada pelo legislador.
Seguiu-se à risca a classificação proposta por Arturo Rocco. O penalista italiano, partindo de um conceito de Rudolf von Jhering e Franz von Liszt, acentua que a existência humana é o centro de irradiação de todos os bens ou interesses juridicamente protegidos (entendendo-se por bem tudo aquilo que pode satisfazer a uma necessidade humana e por interesse a avaliação subjetiva do bem como tal), mas, como a existência humana se apresenta ora como existência do homem individualmente considerado, ora como existência do homem em estado de associação com outros homens, isto é, de coexistência ou convivência dos homens em sociedade, segue-se a distinção entre bens ou interesses jurídicos individuais e bens ou interesses jurídicos coletivos.
A esta distinção deve corresponder a distinção dos crimes, pois estes são lesões ou criam perigos de lesão aos bens ou interesses jurídicos que, segundo a triagem feita pelo legislador, merecem a enérgica tutela penal. Além disso, a ordem de classificação adotada pelo Código Penal não só corresponde à ordem de apresentação histórica dos crimes (os atentados contra a pessoa foram, presumivelmente, as formas primitivas da criminalidade), como atende ao critério metodológico de partir do mais simples para atingir o mais complexo.3
A Parte Especial do Código Penal está dividida em 11 Títulos: I – Dos crimes contra a pessoa; II – Dos crimes contra o patrimônio; III – Dos crimes contra a propriedade imaterial; IV – Dos crimes contra a organização do trabalho; V – Dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos; VI – Dos crimes contra a dignidade sexual; VII – Dos crimes contra a família; VIII – Dos crimes contra a incolumidade pública; IX – Dos crimes contra a paz pública; X – Dos crimes contra a fé pública; e XI – Dos crimes contra a administração pública.
Os Títulos, por sua vez, estão divididos em Capítulos. Exemplificativamente, no Título XI, em que se encontram os crimes contra a administração pública, há quatro Capítulos, sendo que um deles foi subdividido em outros dois: I – Dos crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral; II – Dos crimes praticados por particular contra a administração em geral; II-A – Dos crimes praticados por particular contra a administração pública estrangeira; III – Dos crimes contra a administração da Justiça; e IV – Dos crimes contra as finanças públicas.
E alguns Capítulos estão divididos em Seções. No Título I – “Dos crimes contra a pessoa”, o Capítulo VI – “Dos crimes contra a liberdade individual” abrange quatro Seções: I – Dos crimes contra a liberdade pessoal; II – Dos crimes contra a inviolabilidade do domicílio; III – Dos crimes contra a inviolabilidade de correspondência; e IV – Dos crimes contra a inviolabilidade dos segredos.
Enfim, esta é a atual estrutura da Parte Especial do Código Penal:
Título I – Dos crimes contra a pessoa
Capítulo I – Dos crimes contra a vida
Capítulo II – Das lesões corporais
Capítulo III – Da periclitação da vida e da saúde
Capítulo IV – Da rixa
Capítulo V – Dos crimes contra a honra
Capítulo VI – Dos crimes contra a liberdade individual
Seção I – Dos crimes contra a liberdade pessoal
Seção II – Dos crimes contra a inviolabilidade do domicílio
Seção III – Dos crimes contra a inviolabilidade de correspondência
Seção IV – Dos crimes contra a inviolabilidade dos segredos
Título II – Dos crimes contra o patrimônio
Capítulo I – Do furto
Capítulo II – Do roubo e da extorsão
Capítulo III – Da usurpação
Capítulo IV – Do dano
Capítulo V – Da apropriação indébita
Capítulo VI – Do estelionato e outras fraudes
Capítulo VII – Da receptação
Capítulo VIII – Disposições gerais
Título III – Dos crimes contra a propriedade imaterial
Capítulo I – Dos crimes contra a propriedade intelectual
Capítulo II – Dos crimes contra o privilégio de invenção
Capítulo III – Dos crimes contra as marcas de indústria e comércio
Capítulo IV – Dos crimes de concorrência desleal
Título IV – Dos crimes contra a organização do trabalho
Título V – Dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos
Capítulo I – Dos crimes contra o sentimento religioso
Capítulo II – Dos crimes contra o respeito aos mortos
Título VI – Dos crimes contra a dignidade sexual
Capítulo I – Dos crimes contra a liberdade sexual
Capítulo II – Dos crimes sexuais contra vulnerável
Capítulo III – Do rapto
Capítulo IV – Disposições Gerais
Capítulo V – Do lenocínio e do tráfico de pessoa para fim de prostituição ou outra forma de exploração sexual
Capítulo VI – Do ultraje público ao pudor
Título VII – Dos crimes contra a família
Capítulo I – Dos crimes contra o casamento
Capítulo II – Dos crimes contra o estado de filiação
Capítulo III – Dos crimes contra a assistência familiar
Capítulo IV – Dos crimes contra o pátrio poder, tutela curatela
Título VIII – Dos crimes contra a incolumidade pública
Capítulo I – Dos crimes de perigo comum
Capítulo II – Dos crimes contra a segurança dos meios de comunicação e transporte e outros serviços públicos
Capítulo III – Dos crimes contra a saúde pública
Título IX – Dos crimes contra a paz pública
Título X – Dos crimes contra a fé pública
Capítulo I – Da moeda falsa
Capítulo II – Da falsidade de títulos e outros papéis públicos
Capítulo III – Da falsidade documental
Capítulo IV – De outras falsidades
Título XI – Dos crimes contra a administração pública
Capítulo I – Dos crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral
Capítulo II – Dos crimes praticados por particular contra a administração em geral
Capítulo II-A – Dos crimes praticados por particular contra a administração pública estrangeira
Capítulo III – Dos crimes contra a administração da justiça
Capítulo IV – Dos crimes contra as finanças públicas
Disposições Finais
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1 MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. Campinas: Millennium, 1999. v. 4, p. 29.
2 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. Parte Especial. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. v. 1, p. 4.
3 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1953. v. 5, p. 12-14.