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UMA ESPÉCIE DE CAVALO DE TROIA
O Jaguar parou em frente a minha casa. Menshiki apareceu, contornou o automóvel e abriu a porta a Shoko Akikawa, rebatendo depois as costas do assento do passageiro a fim de facilitar a saída de Marie. A rapariga e a mulher entraram no Toyota Prius azul. Shoko desceu a janela e agradeceu educadamente a Menshiki (Marie, claro, limitou-se a virar o rosto na direção oposta). As duas seguiram para casa sem mais delongas. Menshiki ficou a observá-las até desaparecerem de vista, fez uma pausa destinada a alinhar os pensamentos e ajustar a expressão (isto sou eu a efabular) e encaminhou-se para a porta.
– Sei que é tarde, mas podemos conversar um pouco? – perguntou ele, timidamente.
– Claro – respondi, convidando-o a entrar. – Não estou ocupado.
Fomos para a sala de estar. Menshiki sentou-se no sofá e eu instalei-me na poltrona que o Comendador acabara de vagar. Tive a nítida impressão de que o eco da sua voz estridente reverberava no ar.
– Quero agradecer-lhe pelo dia de hoje – declarou Menshiki. – Devo-lhe muito.
Não havia necessidade de me agradecer, respondi. A bem dizer, eu não tinha feito nada de especial.
– Se não fosse pelo retrato... aliás, se não fosse por si, não teria tido esta oportunidade. Nunca chegaria perto da Marie, nem conseguiria falar cara a cara com ela. Você tornou isto possível. É como se fosse a peça central de um leque. Preocupa-me, porém, que não tenha noção do que fez.
– Nada me deixaria mais feliz do que ajudá-lo neste particular – retorqui. – Mas não consigo perceber até que ponto o resultado terá sido acidental ou planeado. Essa é a parte que me incomoda.
Menshiki demorou uns segundos a responder.
– Pode não acreditar – disse, acenando com a cabeça –, mas não planeei nada disto. Talvez não seja inteiramente coincidência, mas as coisas acabaram por se desenrolar de forma natural.
– Quer dizer que fui o catalisador destes acontecimentos? – perguntei. – Foi esse o meu papel?
– Catalisador? Sim, creio que é uma boa escolha de palavras.
– Para falar com franqueza, sinto-me mais como uma espécie de cavalo de Troia.
Menshiki fitou-me, de olhos semicerrados, como se tivesse pela frente uma luz intensa.
– O que quer dizer com isso?
– Que me sinto como o cavalo de madeira construído pelos gregos para esconderem um punhado de guerreiros e o oferecerem aos troianos, que, incautos, o arrastaram para o interior das suas muralhas. Um contentor camuflado, desenhado para uma função específica.
Menshiki hesitou antes de responder.
– Ou seja – declarou, escolhendo as palavras com cuidado –, está convencido de que me aproveitei da sua pessoa. De que o usei para me aproximar da Marie?
– Correndo o risco de o ofender, é como me sinto.
Menshiki estreitou os olhos e os cantos dos lábios arrebitaram-se, formando um arremedo de sorriso.
– Bem, acho que nada posso fazer para o convencer do contrário. Mas, como lhe disse, tudo não passou de uma série de extraordinárias casualidades. Para ser franco, simpatizo consigo. O meu afeto é pessoal e puro. Raramente simpatizo com quem quer que seja, por isso, quando acontece, atribuo a esse facto a importância devida. Jamais abusaria de si em proveito próprio. Posso ser egoísta, volta e meia, mas gosto de pensar que sei distinguir a fronteira entre a amizade e o interesse pessoal. Não o uso como uma espécie de cavalo de Troia. Nunca faria tal coisa. Peço-lhe que tire essa ideia da cabeça.
Menshiki falava com toda a sinceridade. Não parecia estar a mentir.
– Bom… sempre teve oportunidade de lhes mostrar o quadro? – perguntei. – O retrato pintado por mim que está no seu escritório?
– Claro. Era esse o propósito da visita. Adoraram-no, apesar de a Marie não o ter confessado. É uma rapariga de poucas palavras, como sabe. Em todo o caso, pressenti o impacto que teve nela. Transparecia-lhe no rosto, nos longos minutos em que ali ficou a admirar a pintura, parada, sem abrir a boca.
Em abono da verdade, já mal me lembrava do retrato, embora o tivesse pintado há meia dúzia de semanas. Era esse o meu padrão. Assim que começava uma nova obra, esquecia-me da anterior, restando apenas uma imagem vaga. Retinha, no entanto, uma lembrança física da sensação de conquista que obtinha das horas passadas em frente à tela. Essa sensação, indiscutivelmente palpável, significava mais para mim do que a obra concluída.
– Não há dúvida de que acabaram por ficar bastante tempo – comentei.
Meio envergonhado, Menshiki encolheu os ombros.
– Após terem visto o quadro, servi um almoço ligeiro e levei-as a conhecer a propriedade. A Shoko mostrou-se bastante interessada, sabe? E o tempo acabou por voar.
– Aposto que ficaram impressionadas.
– A Shoko ficou, julgo eu. Sobretudo com o meu Jaguar E-Type. Mas a Marie não disse nada. Se calhar, não gostou da casa. Ou talvez não seja coisa para lhe despertar o interesse.
Eu tinha para mim que Marie não podia estar a marimbar-se mais para bens materiais.
– Teve oportunidade de falar com ela?
Menshiki abanou a cabeça.
– Abriu a boca duas ou três vezes, quando muito, mas só para dizer banalidades. É o que costuma acontecer. Ignorar-me.
Mantive-me em silêncio. Embora não tivesse nada de relevante a acrescentar, conseguia imaginar a cena. Sempre que Menshiki procurava iniciar uma conversa, a rapariga retraía-se e limitava-se a murmurar uma palavra ou duas. Quando ela se remetia ao silêncio, arrancar-lhe uma reação era como tentar extrair água do deserto.
Menshiki pegou numa peça que decorava a mesa – um caracol de cerâmica – e examinou-a de todos os ângulos possíveis e imaginários. Do tamanho de um ovo pequeno, era dos escassos objetos que decoravam a casa. Provavelmente uma peça de porcelana de Dresden, devia ter sido comprado pelo próprio Tomohiko Amada em tempos que já lá iam. Menshiki tornou a pousar o caracol no devido lugar. Depois, levantou a cabeça e fitou-me.
– Imagino que demore um tempinho até ela se habituar a mim – disse, como se falasse consigo próprio. – Bem vistas as coisas, acabámos de nos conhecer e é uma jovem acanhada. Além disso, os treze anos são uma idade difícil, o início da puberdade. Seja como for, o simples facto de estar na sua presença, de respirar o mesmo ar... Foi uma experiência preciosa. Inestimável, de facto.
– Isso quer dizer que os seus sentimentos não mudaram.
Menshiki semicerrou os olhos.
– Como assim?
– Que não lhe interessa saber se a Marie é ou não sua filha.
– Não, isso não mudou – sublinhou Menshiki, sem pingo de hesitação. Mordeu os lábios e prosseguiu. – Levaria muito tempo a explicar, mas quando ela está perto de mim e eu observo o seu rosto e o modo como se move, sinto-me invadido por um sentimento insólito. Fico com a sensação de que a minha vida, tal como a vivi até agora, poderá ter sido um desperdício. Que deixei de compreender a razão da minha existência, o meu lugar no mundo. É como se os valores que tomava por garantidos se revelassem, no fim de contas, um pouco dúbios.
– E, para si, esses sentimentos são difíceis de compreender, certo? – Para mim, sempre tinham feito parte da viagem.
– Exato. Nunca senti isto antes.
– E começaram depois de ter convivido um par de horas com a rapariga?
– Sim. Deve estar a pensar que não passo de um pobre idiota...
Abanei a cabeça.
– Longe disso. Aconteceu-me a mesmíssima coisa quando cheguei à puberdade e conheci uma rapariga por quem me apaixonei.
Menshiki sorriu. O seu sorriso denotava uma vaga tristeza.
– Foi então que percebi a vacuidade das minhas conquistas e dos êxitos – afirmou –, e de todo o dinheiro que acumulei. Ao contrário do que acreditava, verifiquei que mais não sou do que um veículo cujo único propósito é transmitir os meus genes a alguém. Que outra função poderei ter senão essa? Caso contrário, não passo de um torrão de terra.
– Um torrão de terra... – Experimentei dizer as palavras. Soavam estranhas.
– Para ser sincero, encontrava-me no poço quando tive esta revelação. O poço que descobrimos atrás do santuário, lembra-se? Sepultado debaixo do entulho.
– Como poderia esquecer-me?
– O meu amigo podia ter-me abandonado lá, se estivesse para aí virado. Sem o que beber ou comer, o meu corpo minguaria e seria devolvido ao solo. No final, não restaria mais do que um torrão de terra.
Como não sabia o que responder, optei por ficar calado.
– Para mim é o suficiente – continuou Menshiki. – Quero dizer, que exista a probabilidade de a Marie e eu partilharmos laços de sangue. Não me sinto minimamente compelido a apurar a verdade. Essa simples possibilidade iluminou a minha vida, o que me permite olhar para mim de outra maneira.
– Compreendo – disse eu. – Não toda a extensão do seu raciocínio, provavelmente, mas aquilo que sente. Só não entendo o que espera obter da Marie. Em termos concretos, entenda-se.
– Já pensei nisso – retorquiu Menshiki, desviando o olhar para as mãos. Eram umas mãos bonitas, com dedos delgados. – As pessoas dedicam demasiada energia a pensar numa data de coisas, quer queiram quer não. Mas acabamos por ter de esperar. Só o tempo dirá o que nos espera mais à frente. As respostas encontram-se sempre no horizonte.
Fiquei calado. Não sabia bem o que ele queria dizer com aquilo, tão-pouco sentia necessidade de descobrir. Se o fizesse, a minha situação corria o risco de se tornar ainda mais delicada.
– Ouvi dizer que a Marie tende a abrir-se consigo – continuou ele, após uma longa pausa. – Foi o que a Shoko me contou, pelo menos.
– Admito que sim – respondi com cautela. – A conversa flui com grande naturalidade quando estamos no estúdio.
Como devem imaginar, não lhe contei que a rapariga me visitara atravessando a montanha, através de uma passagem secreta. Era um segredo nosso.
– Acha que isso acontece porque está confortável consigo? Ou porque sabe que existe uma ligação pessoal?
– A Marie é fascinada por pintura – expliquei. – Ou pela expressão artística em geral. Quando há um quadro envolvido, diria que existem ocasiões... nem sempre, devo sublinhar... em que se sente à vontade para conversar comigo. Não estamos perante uma rapariga comum, é certo e sabido. Quando lhe dei aulas no centro de artes e cultura, não socializava com os outros miúdos.
– Quer dizer que não se dá com crianças da mesma idade?
– Talvez. A tia afirma que não tem muitos amigos na escola.
Menshiki ponderou o assunto.
– Ela dá-se bem com a Shoko, imagino.
– Assim parece. Ao que sei, é mais próxima da tia do que do pai.
Menshiki limitou-se a acenar com a cabeça. Seguiu-se um silêncio carregado de insinuações.
– Que tipo de homem é ele? – perguntei. – Chegou a descobrir?
Menshiki desviou o olhar.
– Sei que era quinze anos mais velho que ela – disse por fim. – Quando digo «ela», refiro-me à mulher dele, claro.
A «mulher dele», obviamente, era a antiga amante de Menshiki.
– Não sei como se conheceram nem porque casaram. Os pormenores não me interessam. Seja como for, parece-me óbvio que ele a amava genuinamente. A sua morte constituiu um choque terrível. Dizem que nunca mais foi o mesmo homem.
De acordo com Menshiki, os Akikawa eram uma família de importantes proprietários rurais (à semelhança da família de Tomohiko Amada, em Kyūshū). Apesar de terem perdido quase metade da fortuna durante a reforma agrária que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, mantiveram um número de bens que continuou a permitir-lhes viver confortavelmente dos dividendos. Yoshinobu Akikawa, o pai de Marie, era o primeiro de dois filhos e o único de sexo masculino. Com a morte do pai, tornou-se o chefe da família, e isto quando era ainda muito novo. Mandou construir uma casa no topo da montanha, em terrenos que pertenciam à família, e montou escritório num dos edifícios, em Odawara, de onde passou a gerir as propriedades na cidade e arredores, o que incluía edifícios comerciais, de habitação e alguns lotes de terreno. Também investiu com conta, peso e medida no setor imobiliário. Por outras palavras, embora tenha dado continuidade ao negócio, pouco fez para o expandir, cingindo-se quase só a cuidar do património herdado.
Yoshinobu casou-se tarde. Contava quarenta e tantos quando decidiu dar o nó, e a filha (Marie) nasceu no ano seguinte. Seis anos mais tarde, a mulher seria picada até à morte. Foi no início da primavera; ela caminhava ao longo de uma plantação de ameixeiras quando foi atacada por um enxame de vespas. A sua morte deixou marcas profundas em Yoshinobu. Após o funeral, e a fim de se libertar do que lhe recordava a tragédia, contratou uma equipa de homens para arrancar as árvores, raízes e tudo. O que sobrou foi um pedaço de terreno revolvido e despido. Tinha sido um belo pomar até à data, e a sua destruição provocou uma enorme consternação em muito boa gente. Sobretudo considerando que, gerações a fio, os residentes das redondezas haviam sido autorizados a apanhar fruta a seu bel-prazer, com a qual fabricavam conservas ou licor de ameixa. Em resultado, o ato de retaliação bárbaro de Yoshinobu Akikawa privou muitos desses residentes de um dos pequenos prazeres por que ansiavam, ano após ano. Contudo, aquela era a sua montanha, o seu pomar, e as pessoas compreendiam a fúria em relação às vespas e às árvores. Como tal, ninguém lavrou publicamente a sua queixa.
Após a morte da mulher, Yoshinobu Akikawa tornou-se um homem taciturno. Nunca fora particularmente sociável, e o seu lado introvertido ganhou forte ascendente. O interesse por coisas espirituais adensou-se, acabando por ingressar nas fileiras de um culto religioso cujo nome ignoro. Há quem diga que, a dada altura, terá passado uma temporada na Índia. Deitando mão a uma boa maquia, construiu um imponente retiro para o culto nos arredores da cidade, onde se instalou durante grande parte do tempo. Ninguém sabe concretamente o que por lá acontecia, mas consta que um regime diário de rigorosa «austeridade» religiosa e o estudo da reencarnação o ajudaram a encontrar um novo propósito de vida.
Essa realidade afastou-o em grande parte dos negócios, mas sejamos realistas: as suas obrigações nunca haviam sido por demais exigentes. Tinha três colaboradores de longa data, mais do que capazes de dar conta do recado quando o patrão não punha os pés no escritório. As idas a casa tornaram-se mais espaçadas e, quando regressava, era normalmente para dormir. Por alguma razão, distanciara-se da filha. Talvez ela lhe recordasse a mulher, ou talvez nunca tivesse gostado de crianças. Marie acabaria por ficar aos cuidados de Shoko, a irmã mais nova de Yoshinobu, que tirara uma licença do trabalho como secretária do presidente de uma faculdade de Medicina, em Tóquio, e se mudara para a casa na montanha, contando que a situação fosse temporária. Afinal, o arranjo acabaria por se tornar permanente. É possível que Shoko se tenha afeiçoado à criança, ou que não suportasse a ideia de se afastar, pressentindo que a sobrinha necessitava dela.
Chegado a este ponto do relato, Menshiki parou de falar e levou os dedos aos lábios.
– Por acaso não tem uísque em casa? – perguntou.
– Acho que tenho meia garrafa de puro malte – respondi.
– Não querendo abusar, posso beber um copo? Com gelo, se possível.
– Claro que sim. Mas não vai conduzir?
– Depois chamo um táxi. Não vale a pena ficar sem a carta de condução por uma questão de lana-caprina.
Fui até à cozinha e regressei com a garrafa, uma tigela com gelo e dois copos. Na minha ausência, Menshiki pusera a tocar o disco que eu estivera a escutar, O Cavaleiro da Rosa. Sentámo-nos e ficámos a apreciar a exuberante composição de Richard Strauss enquanto desfrutávamos as nossas bebidas.
– É daqueles apreciadores que só bebem puro malte? – quis saber Menshiki.
– Não, a garrafa foi oferecida por um amigo. Mas que é bom, lá isso é.
– Em casa, tenho uma garrafa de um uísque raro, enviada por um amigo na Escócia. Um puro malte da ilha de Islay. Proveio de uma barrica selada pela mão do próprio príncipe de Gales, por ocasião de uma visita à destilaria. Vou trazer-lha da próxima vez que cá vier.
– Por favor, não precisa de fazer isso – respondi.
– Existe uma outra ilha ao largo de Islay, chamada Jura. Já ouviu falar?
– Não.
– É praticamente desabitada. Vivem lá mais veados que pessoas. Para não falar de coelhos, faisões e focas. Isto para dizer que tem uma destilaria muito antiga. Existe uma nascente próxima, perfeita para o fabrico de um puro malte de excelência. Misturado com aquela água, o sabor é absolutamente incrível. Não existe nada que se compare no mundo.
– Deve ser delicioso – disse eu.
– A ilha de Jura é conhecida como o local onde George Orwell escreveu o 1984. Alugou uma cabana no norte da ilha, no meio de nenhures, mas o inverno fez sentir o seu peso durante a estada. Trata-se de um lugar primitivo, sem as amenidades da vida moderna. Mas calculo que ele precisasse disso para escrever. Eu próprio passei lá uma semana. À noite sentava-me à lareira a beber aquele maravilhoso uísque.
– O que o levou a ficar uma semana isolado naquele ermo?
– Negócios – respondeu Menshiki, fechando-se em copas. Sorriu. Pelos vistos, não tencionava aprofundar a natureza dos ditos negócios. Também não insisti.
– Estava mesmo a precisar desta bebida – prosseguiu. – Para me acalmar, percebe? Acho que é por isso que estou aqui, a abusar da sua generosidade. Amanhã passo por cá para vir buscar o carro. Não se importa, pois não?
– Esteja à vontade. Faça como achar melhor.
Seguiu-se um compasso de silêncio.
– Posso fazer-lhe uma pergunta pessoal? – disse por fim Menshiki. – Espero que não me leve a mal.
– Não se preocupe, não sou o tipo de pessoa que se melindra com facilidade. Tenho todo o gosto em responder à sua questão, se puder.
– Já foi casado?
Fiz que sim com a cabeça.
– Sim, fui casado. Aliás, ainda há dias enviei pelo correio os papéis do divórcio, devidamente assinados. Nesta fase do campeonato não tenho a certeza se ainda estarei casado ou não. Seja como for, posso afirmar que fui casado durante seis anos.
Menshiki mantinha os olhos cravados nos cubos de gelo, absorto nos seus pensamentos.
– Não quero ser abelhudo, mas alguma vez se arrependeu de o seu casamento ter acabado assim?
Bebi mais um gole de uísque.
– Como se diz «à responsabilidade do comprador», em latim? – perguntei.
– Caveat emptor – retorquiu Menshiki, sem hesitar.
– Demorei imenso tempo a fixar essas palavras, mas sei bem o que significam.
Menshiki riu-se.
– Claro que tenho arrependimentos – prossegui. – Mas, ainda que pudesse voltar atrás e corrigir alguns erros, duvido que o resultado fosse outro.
– Acha que existe algo em si impermeável à mudança? Algo que se terá tornado um obstáculo intransponível no decorrer do casamento?
– Pelo contrário, creio que o problema residiu precisamente na minha falta de impermeabilidade à mudança.
– Contudo, nutre um forte desejo pela pintura. Imagino que isso esteja intimamente ligado ao seu apetite pela vida.
– Talvez precise de ultrapassar qualquer obstáculo antes de poder começar a pintar a sério. Pelo menos é o que sinto.
– Todos temos os nossos escolhos – declarou Menshiki. – É através deles que descobrimos novos caminhos. Quanto maior a provação, mais isso nos ajudará de futuro.
– Partindo do princípio de que não nos deita por terra, claro.
Menshiki sorriu. Ao que parecia, terminara a sessão de perguntas sobre o meu casamento.
Fui à cozinha buscar um frasco com azeitonas, que mordiscámos a acompanhar as bebidas. Quando o disco chegou ao fim, Menshiki pôs a tocar o lado B. Ainda e sempre, Georg Solti conduzia a Orquestra Filarmónica de Viena.
O Menshiki está sempre a tecer maquinações. Nunca perde uma oportunidade, aquele salafrário. Corre-lhe no sangue, é uma espécie de doença congénita.
Se o Comendador estivesse certo, que jogada andaria Menshiki a preparar? Não fazia a mínima ideia. Se calhar, estava apenas a ganhar tempo, à espera da melhor oportunidade. Tinha dito que não «tencionava» abusar da minha boa vontade, e devia estar a falar verdade, provavelmente. Mas, vendo bem, as intenções não passavam disso mesmo. Menshiki era um sujeito esperto, que arranjara maneira de sobreviver e prosperar no setor mais inovador do mundo empresarial. Se tivesse um motivo oculto, ainda que latente, para me procurar, eu acabaria por me ver envolvido até ao pescoço.
– Tem trinta e seis anos, certo? – atirou ele do nada.
– Tenho.
– É a melhor idade.
Não podia dizer que concordasse com a afirmação, mas achei por bem não o contrariar.
– Tenho cinquenta e quatro anos. No que respeita aos negócios, sou demasiado velho para ocupar uma posição de destaque, embora demasiado novo para que me vejam como uma lenda. É por isso que agora vagueio por aí, sem nada para fazer.
– Há quem se torne uma lenda ainda jovem.
– Sim, há casos em que isso acontece. Mas não se pode dizer que haja grande mérito nisso. Na realidade, o estatuto pode revelar-se um verdadeiro pesadelo. Assim que passamos à categoria de lenda, não temos outro remédio senão acomodar-nos a defender esse estatuto para o resto da vida. Não consigo imaginar nada mais enfadonho.
– Nunca se aborrece?
Menshiki sorriu.
– Não me lembro de que alguma vez tenha acontecido. Sempre estive demasiado ocupado.
Acenei com a cabeça. Foi a única maneira que encontrei de exprimir a minha admiração.
– E o meu amigo? – perguntou ele. – Alguma vez se aborreceu?
– Claro. Acontece-me com frequência. Neste momento, por exemplo, o tédio é parte integrante da minha vida.
– E não lhe custa tolerar uma situação dessas?
– Habituei-me. Logo, não me custa.
– Aposto que se deve ao facto de a pintura ocupar um lugar central na sua vida. Irrompe do âmago do seu ser. A paixão de criar nasce daquilo a que se chama tédio. Sem isso, tenho a certeza de que o tédio seria insuportável.
– Não está a trabalhar, portanto?
– Acertou. Digamos que estou reformado. Compro e vendo ações online, como lhe disse, mas não o faço por imperativos financeiros. Encaro-o como uma espécie de jogo. Uma forma de disciplina mental, se quiser.
– E vive como um eremita naquele casarão.
– Correto.
– E, ainda assim, nunca se aborrece?
Menshiki abanou a cabeça.
– Tenho imensa coisa com que me ocupar. Livros para ler, música para ouvir. Informações que preciso de recolher, selecionar e analisar. Tenho por hábito manter-me ativo. Também faço exercício físico, e quando preciso de mudar de ritmo, pratico piano. Sem esquecer as tarefas domésticas, claro. Como vê, não há tempo para me aborrecer.
– E não tem medo de envelhecer, de se tornar um homem velho e sozinho?
– A velhice acabará por vir, um dia. Essa questão nem sequer se coloca. O meu corpo perderá capacidades, e tornar-me-ei cada vez mais solitário. Mas ainda não cheguei lá. Tenho uma ideia de como será o futuro, mas sou o tipo de pessoa que precisa de ver para crer. Como tal, terei de esperar. Não tenho medo da velhice, por nenhuma razão em particular. Não anseio por ela, entenda-se. Mas tenho alguma curiosidade, confesso.
Menshiki fez girar lentamente o uísque no copo.
– E consigo? – perguntou, fitando-me. – Passa-se o mesmo?
– Fui casado durante seis anos e as coisas não correram lá muito bem. Não pintei um único quadro durante esse tempo. Algumas pessoas dirão que desperdicei esses anos, visto que me obrigava a criar pinturas de que não gostava particularmente. Apesar de tudo, acho que me sinto afortunado de ter passado por isso. É o que penso nos tempos que correm.
– Acho que entendo o que está a dizer. Todos passamos por uma fase em que somos obrigados a colocar o ego de lado. Acertei?
Uma possibilidade, pensei. Mas, no meu caso, talvez tenha demorado mais tempo a descobrir o fardo que andei a carregar. Será que arrastei Yuzu ao longo dessa jornada desprovida de sentido?
Até que ponto teria medo de envelhecer e recearia a inevitabilidade da velhice, interroguei-me.
– Tenho dificuldade em imaginar como será – confessei. – Pode parecer um disparate, mas, aos trinta e tal anos, sinto-me como se a vida estivesse apenas a começar.
Menshiki sorriu.
– Não me parece disparate nenhum. Dou-lhe toda a razão, tem a vida inteira pela frente.
– Há pouco mencionou o tema dos genes. Referiu que sente que não passa de um recetáculo destinado a receber e transmitir um conjunto de genes à geração seguinte. E que, além desse dever, nunca passará de um torrão de terra. Certo?
Menshiki acenou afirmativamente.
– Sim, foi o que eu disse.
– Essa ideia não lhe parece assustadora? Ser um punhado de terra, isto é.
– Posso ser um torrão de terra – respondeu Menshiki, soltando uma gargalhada. – Mas, em matéria de torrões, sou do melhorzinho que por aí anda. Talvez pareça arrogante da minha parte, mas atrevo-me a pensar que posso muito bem ser um torrão de classe superior. Fui abençoado com alguns dons. São limitados, bem sei, mas não deixam de ser talentos. É por isso que me empenho a fundo em tudo o que faço. Quero testar-me ao máximo, descobrir o que consigo fazer. E assim não me aborreço. É a melhor forma que conheço para manter o medo e o vazio ao largo.
Continuámos a beber até perto das oito da noite, altura em que demos cabo da garrafa. Menshiki preparou-se para se ir embora.
– É melhor pôr-me a caminho. Já impus a minha presença o suficiente.
Chamei um táxi para a «casa de Tomohiko Amada». Foi tudo o que precisei de dizer para identificar a morada. O homem era mais do que famoso. A operadora respondeu que o carro demoraria quinze minutos. Agradeci e desliguei.
Menshiki aproveitou o compasso de espera para voltar à carga.
– Contei-lhe que o pai da Marie ingressou numa seita, não foi?
Acenei com a cabeça.
– Bem, trata-se de uma dessas novas religiões, bastante duvidosa, por sinal. Retirei informações da Internet e descobri que têm um passado negro. Foram processados legalmente uma data de vezes. Não passa de um monte de balelas, indignas de qualquer religião credora desse nome. Claro que o senhor Akikawa é livre de acreditar no que quiser, nada a objetar. O certo é que enterrou uma boa maquia neste grupo. Dinheiro pessoal e da empresa. A sua fortuna sempre foi considerável, e bastavam-lhe as rendas mensais que recebia para viver decentemente. Mas sempre existiu um limite para o que podia gastar sem ter de se desfazer de propriedades ou de outros bens. Esse limite foi ultrapassado há muito tempo, pois já vendeu este mundo e o outro. Uma situação nada recomendável. A imagem que me vem à cabeça é a de um polvo a tentar sobreviver à custa de devorar os próprios tentáculos.
– Está convencido de que ele anda a ser depenado por esse culto?
– Sem dúvida. O homem é um autêntico lorpa, e quando alguém cai nas mãos de um grupo desta natureza, fica sem couro e cabelo. Perdoe-me por dizer isto, mas a infância privilegiada do senhor Akikawa tornou-o mais vulnerável a esquemas desta natureza.
– Vejo que está preocupado com a situação.
Menshiki suspirou.
– Ele é responsável pela sua vida e pela maneira como tudo vai acabar. É adulto e consciente das decisões que toma. Para a família, contudo, a história não é tão linear quanto isso, visto que não fazem ideia do que se passa. Seja como for, esta minha preocupação não fará qualquer diferença.
– O estudo da reencarnação... – aventei eu.
– É um cenário fascinante – concluiu Menshiki, abanando a cabeça.
O táxi lá acabou por chegar. Antes de entrar no carro, e mostrando-se o mais cortês possível, Menshiki agradeceu-me novamente. Apesar do álcool que emborcara, o seu rosto não apresentava o mínimo rubor, e as suas maneiras permaneciam irrepreensíveis.